sexta-feira, 30 de maio de 2008

TAPETE TESTEMUNHA

- Sei que sua resposta será "não", mas você quer namorar comigo?
Perguntei.
- Se sabes que a resposta é "não", por que perguntas?
- Porque preciso ouvir de você. De mim eu já cansei de ouvir.
- Está preparado então?
- Sim. Pode falar.
- Sim, eu quero namorar você, seu bobo.
Michele respondeu aquilo enquanto mascava um chiclete.

Michele e eu tínhamos 15 anos. Estávamos no auge de nossa ociosidade naquele dia. Estávamos de férias. Era o um mês repleto de festas juninas e o inverno, sempre o inverno, deixava aquelas tardes ainda mais atraentes. Semanas antes de eu receber aquele "sim" com gosto de menta eu notava que não era por falta de casaco que Michele ia para rua tremendo de frio. Eu sempre oferecia o meu moletom para ela. Eu ficava com frio, lógico, mas achava uma gracinha quando ela se encolhia sob aquelas mangas enormes e ficava elogiando o amaciante que minha usava para lavá-lo. Só um idiota não entenderia que era do meu cheiro que ela gostava. Mesmo assim, o "não" se repetia em meus momentos de reflexão.

Depois daquele "sim" eu me sentia mais feliz. As festas de rua tinham outro sabor. A companhia de Michele esquentava aquele frio. Depois daquele "sim", passava a conhecer os casacos de Michele. Ela passou a usá-los. Ela me conquistou com aquela imagem dela cheirando meu agasalho e depois, que já me tinha nas mãos, achava melhor ficar cada um com o seu. Ela sabia como me atrair. Ela sabia que a figura minúscula de seu corpo de 1,57m atrairia o meu de 1,78. Ela sabia que eu a pediria em namoro. Ela só não sabia que minha consciência me dizia lá no fundo que "não". Mas Michele disse "sim" e era o que importava.

Ganhávamos horas e horas ouvindo os discos da coleção de serestas do meu pai. A gente deitava no chão da minha sala e ficávamos rindo das capas e das canções. Ela brincava de imitar o Nelson Gonçalves. Eu ria muito naquelas tardes. Imaginávamos como seria o nosso namoro se fosse há décadas atrás. É claro que aquele tapete da sala presenciava coisas que a mãe de Michele jamais poderia saber. Éramos dois adolescentes descobrindo tanta coisa. Desde a voz do Nelson até os calafrios de quando nos acariciávamos.
- Eu te amo sabia?
Eu dizia.
- Não sabemos o que é o amor ainda.
- Como não? Os filmes me dizem que é exatamente assim que acontece. Você não me ama?
- Gosto muito de você, Douglas, mas não sei é amor. Sei que é muito forte.
- Diz que é amor.
- Eu digo. Eu te amo.
- Mesmo que não saibamos se é realmente amor, vamos dizer isso um para o outro sempre. Eu te amo. OK?
- OK.
Ela ria e emendava um refrão do Nelson Gonçalves.
- Boba demais você.
Eu ria também.

Até a volta às aulas ainda faltavam alguns dias. O querer de ficar naquele tapete até o fim dos dias era gigante, tanto em mim quanto nela.
- Poderia morar nesse tapete com você, Douglas.
- Eu também.
- Sua mãe já saiu?
- Já.
- Então vem cá.
Ela me puxava pelo mesmo casaco que tanto já lhe havia agasalhado e vinha com sua mão gelada até meu tórax. Arranhava-me como delicadeza e me mordia a orelha como que num pedido mudo para que eu a possuísse. E era o que eu fazia. Sempre. Colocava-me sobre seu corpo com cuidado e a deixava meio presa e meio solta. Em poucos segundos o frio já dava lugar a um calor que nem o verão mais forte era capaz de nos proporcionar. Vinha de dentro. As nossas roupas ficavam ali junto ao tapete a testemunhar nossa inexperiência. Não chegávamos nunca aos finalmente. Michele tinha medo. Eu quase morria ao ser impedido, mas o meu amor me fazia entendê-la. Michele ria ao me ver ir ao banheiro todas às vezes depois daquele calor.
- Lá vai ele.
Ela ria de mim.
- Vai rindo. Um dia não me seguro.
- É? Passará por cima do meu medo?
- Do nosso medo.
- Você também tem medo de fazer?
- Tenho. Tenho medo de um dia esse tapete contar para nossos pais.
- Seu bobo. Estou falando sério. Tem medo?
- Tenho.
- De quê?
- Diz você primeiro. De que você tem medo?
- De doer e da minha mãe.
- Eu tenho medo da sua mãe, da minha mãe e de um bebê.
- Eu também.
- Temos muito medo.
- É. Não vai ao banheiro?
- Vou.
Eu ia. E lá eu acabava com o que acabava comigo em poucos minutos.

As aulas voltaram. Como ela estudava em outro colégio, passamos a nos ver menos. Um certo dia ela me aborda na frente do meu prédio.
- Douglas. Preciso lhe contar uma coisa.
- O que houve?
- Precisamos terminar por aqui.
- Por quê? Não me ama mais?
- Não sei. Estou confusa. Eu sempre fui apaixonada por um garoto lá na escola. Nessas férias você me fez esquecê-lo sabia?
- Tudo bem. Eu fui um passa-tempo. Eu entendo.
- Não fale assim.
- Como você quer que eu aja? Você termina um “namoro” de dez dias dessa forma e como você quer que eu aja?
- Não estávamos namorando.
- Mas e aquilo tudo no tapete? Eu sonhei?
- Preciso ir, Douglas. A gente conversa.
- OK.

Eu estava chegando do colégio. Entrei na sala e dei falta do tapete da sala.
- Mãe.
- Oi filho.
- O que houve com o tapete?
- Mandei lavar. Estava imundo.
- OK. Devia estar mesmo. Imundo de mentiras.
- O que disse, Douglas?
- Nada.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

QUEM VOCÊ QUISER II

Naquela noite, de fato Laura se mostrou completamente oposta a Sheila. Vulgar. Quase animal. Rodamos alguns bares, caminhamos, nos pegamos, mas no fim de tudo acabamos no meu apartamento. Meus 30 anos quase pediram pinico para os seus 22. Era uma profissional?
- Você é profissional?
- Quer que eu seja?
- Quero você como você é. É profissional?
- Eu sim.
- Por que essa resposta? Já sei. Sheila não é profissional.
- JÁ TE DISSE PARA NÃO FALAR DELA ENQUANTO ME PEGA!
- Desculpe.
Ela continuava seu “trabalho”.

Pela manhã, levantei primeiro que ela. Fui preparar o café pensando quem se levantaria daquela cama. Laura ou Sheila. Confesso que eu queria muito a Sheila para balancear as emoções daquela noite voraz. Preparei umas torradas, leite e chocolate. Logo ela acordou.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Estou exausta.
- E por que levantou? Podia ficar mais na cama. Hoje é sábado.
- Não. Já vou andando.
- Não vai tomar um café? Para que a pressa, Sheila?
- Tenho que estudar.
Notei que de fato era a Sheila que estava ali.
- Então é com a Sheila mesmo que estou falando.
- Sim.
Ela riu.
- Era você quem eu queria ontem. Sabia?
- Por que não disse?
- É que por algum motivo também me simpatizei pela Laura.
- Foi quando ela levantou o vestido, não foi?
- Foi.”Ela”.
Ri.
- O que foi?
- O modo como você se refere a seu outro lado.
- Não sou eu. É ela.
- Que seja. Isso me atrai, sabia?
- O quê?
- O fato de estar diante de duas mulheres ao mesmo tempo.
- Nunca terá as duas ao mesmo tempo. Ou uma ou outra.
- Quero você.
- Sheila.
- Você.
- Sheila.
- Sheila e Laura.
- Laura você pode ter também, mas nunca quando a mim tiver.
- Confuso. Mas eu topo. Quando nos vemos de novo?
- Sabe onde me encontrar. Aquela campanha do refrigerante ainda durará algumas semanas.
- Mas eu quero saber onde moras.
- Saberá. Agora não. Beijos.

Nos beijamos e eu fiquei ali de pé no meio da cozinha assistindo aquele corpo perfeito sumir pela porta. Notei na Sheila uma certa vergonha em acordar aqui em casa e com as roupas da Laura. Ela puxava o vestido para baixo e se mantinha atrás da bancada enquanto falava comigo. Comi as torradas e tomei o chocolate sozinho. Pensei o quanto estava amarrado àquela história louca de dois lados. Laura, Sheila.

Na quarta-feira, eu voltei à Estação Carioca do metrô. Ela estava lá, como disse.
- Sheila?
- Oi Jorge.
- Almoças comigo?
- Claro. Saio às 13h.
- Tudo bem, eu espero ali.
- OK.

Sentamos num restaurante no Centro do Rio e começamos a conversar. A relação com Sheila era bem mais tranqüila. Ela parecia mais centrada. Eu só não entendia como ela conseguia se dividir tão bem entre as duas. Ser Sheila sem dar indícios de Laura e vice-versa.
- Como consegue?
- Consigo o que?
- Ser duas.
- Não sei.

Notei em seu crachá o nome Sheila Miranda de Lima. Sinal de que estava diante dela em seu estado natural. Era de fato Sheila quem estava ali. Em carne, osso e alma.
- O que vai fazer hoje à noite?
- Estudar.
Ela respondia com o rosto em direção ao prato.
- Por que quase não olha nos meus olhos, Sheila?
- Vergonha.
- De que? Esteve na minha cama na sexta passada.
- Eu não. Laura esteve. E sinto vergonha por ela.
- Não sinta. Você não esteve em minha cama ainda. Então não há motivos para vergonha.
Sentia-me agora um perito em dois lados. Já sabia até me expressar diante do fato. Notei que naquele momento eu queria que Laura não mais voltasse. Queria que Sheila fosse Sheila para sempre e ao meu lado. Mas como confiar na Laura? Aquela putinha.

- Tenho que ir.
- Mas você nem terminou o almoço.
- Preciso voltar. Só tenho trinta minutos de almoço.
Peguei-a pelo braço e beijei-a. De pé, no meio do restaurante, nos beijamos loucamente. Sua mão correu meu abdômen para o sul. Senti que havia algo ali que não era de Sheila.
- Calma Sheila. Estamos no meio de um restaurante.
- Me chame de Laura e me leve para o seu apartamento agora.
- Meu Deus.
Levei.

Chegando lá, Laura pára na porta.
- O que foi? Não vai entrar, Laura?
- Sheila.
- Sheila?
- Mas...
Fiquei irritado.
- Olhe aqui Sheila, não brinque mais. Entendeu? Isso está me deixando confuso. A Sheila não transa? É isso?
- Transa. Mas não desse jeito.
- E de que jeito “ela” transa?
- Assim.
Começou a me beijar e me fazer carícias como uma namoradinha que tive na adolescência. A inocência de Sheila conseguia ser mais atraente que a voracidade de Laura. Era isso que eu queria desde o início. Consegui. Ela trazia na bolsa uma saia e uma camiseta de ficar em casa. Ela já sabia que estaria aqui de novo. Trocou-se.

Depois de muito carinho, tirou minha roupa devagar. Tirei a dela com o mesmo cuidado. A transa levou horas, porém, as horas mais românticas da minha vida. Eu estava diante da Sheila que eu queria quando a vi pela primeira vez na Estação.

Não transamos. Fizemos amor. Estávamos enfim amando um ao outro.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

AQUELA PELE

Foi daquele ponto de ônibus que eu via uma única vez entrar na condução aquela que talvez tenha mexido em meu peito de forma que nenhuma outra havia mexido, pelo menos à primeira vista. Os fios negros e molhados do banho matinal deixavam aqueles cachos mais longos. Sua pele branca e nitidamente bem cuidada ficava agora bem perto de mim. É que com a mão direita ela se apoiava na alça do meu assento fazendo seu braço ficar bem próximo ao meu rosto. Ela viajava de pé, pois não havia mais lugar para sentados. Sua pasta cheia de cadernos eu fiz questão logo de alcançar.
- Quer que eu segure?
- Sim. Obrigada.
Dava um breve sorriso e voltava ao seu estado normal. Séria. Seus olhos se perdiam nas imagens que passavam depressa na janela. Ela nem se dava conta de que eu não tirava os olhos de sua boca. Sem batom ou qualquer outro tipo de maquiagem, aquela menina me fez parar no tempo daquela viagem. Seu abdômen ficava à altura de meus olhos. Uma pinta um pouco acima da cintura também me chamava bastante atenção. A vontade era de abraçá-la e sentir aquela pele fresca de quem acaba de sair de um bom banho.

O seu telefone tocava. “Só falta agora ela ter uma voz linda”, pensei.
- Alô.
Que voz linda. A mais linda.
- Sim. Eu estou no ônibus já. Logo estarei aí. Beijos.
Pronto. A perfeição visual acabava de se completar. Ela era linda e sua voz não era diferente. Vontade de abraçá-la veio de novo. Controlava-me. O telefone dela tocava novamente.
- Alô. Oi amor. Não. Estou indo para a faculdade. Por que?
Aquilo me broxava. Um namorado?
- Está bem. Eu também te amo. Beijo.
Finalizava.
Desligava o telefone e mordia os lábios sorrindo por dentro com uma cara de quem estava muito a fim.

Desviava meu olhar. Afinal, eu estava num ônibus e diante de uma menina comprometida. Que chance teria? Tentava me distrair ao som do rádio da condução, mas não dava. Toda vez que ela movia o braço me chagava uma fragrância quase que alucinógena. Era delicioso demais o cheiro que vinha daquele corpo.

Ela coçava então a cintura na altura da barra da calça com um dos dedos e sem querer assume uma calcinha branca de elástico azul claro. Já a imaginava nua. O lance foi rápido, mas minha mente parecia congelar aquela cena. Ela voltava a coçar e a calcinha voltava a aparecer, dessa vez o elástico se dobrava e exibia uma pele ainda mais alva e atraente. Algum mosquito muito meu amigo parecia me ajudar naquele ônibus.

Naquela altura, eu já não sabia se rezava para que uma freada brusca a lançasse sobre meu colo ou para que chegássemos logo ao centro da cidade. Ela dava o sinal.
- Minha pasta. Vou descer.
Eu entregava a pasta. Via que a menina desceria uns cinco pontos antes do meu. Descia atrás dela.
- Eu também vou descer.
Ela ria, por educação, provavelmente.

Pelo ponto em que ela desceu, eu já podia saber em qual faculdade ela estudava. Na verdade eu nem sabia o que eu estava pretendendo ao segui-la. Talvez eu quisesse sentir um pouco mais daquele cheiro. Que pele. Mas para minha surpresa ela passou direto pela instituição. E eu continuava a seguir. Não havia outra faculdade num raio de quilômetros dali. Não fazia sentido ela saltar naquele ponto e continuar a pé o restante enorme do possível percurso. Continuava seguindo-a.

Depois de uns trezentos metros após a faculdade, um homem digno de suspeita a aborda.
- Trouxe?
Ele dizia.
- Trouxe. Espere.
Eu escutava o início do diálogo, mas não podia parar ali. Seguia em frente. Virava a próxima esquina e me posicionava de forma estratégica. O que eu fazia ali? Parecia agora um investigador. Talvez eu fosse bom nisso. Via a menina tirando uma boa quantia em dinheiro da carteira e entregando àquele cara. “Viciada”, pensei.
- Agora me deixe em paz!
- Em paz? Você é quem me procura, garota.
- Não vou mais procurar. Não tenho mais grana e preciso parar com essa porra.
- Largar você não larga e você sabe que não é só com grana que se paga as contas, Larissa.
Descobria da pior forma o nome dela.
- Deus me livre. Nunca mais faço aquilo.
- Nunca diga nunca. Agora vai pra sua aula.
Ela mordia os lábios novamente, mas de maneira aflita. Até que pergunta:
- Você tem aí?
- Mas você não acabou de dizer que não queria mais saber disso?
- Anda logo. Tem ou não, Gustavo?
Descobria agora o nome dele. O que eu estava fazendo ali? Meu Deus.
- Sabe que sempre tenho, mas, dinheiro na mão, neném.
Ela sacava uma nota de dez e pegava de maneira louca um saco de pó.
- NÃO SE META COM ESSAS PORCARIAS!
Gritava eu. Definitivamente, o que estava fazendo ali?
- Quem é esse cara, Larissa?
- Não sei. Não conheço.
O olhar de Larissa se lançava ao meu. Ela parecia lembrar de mim. Omitia.

O tal Gustavo colocava a mão na cintura e eu não ficava para conferir o que viria dali. Corria depressa pela transversal. Ele dobrava a esquina e aproveitava a rua ainda deserta para largar uns tiros. Três deles atingiram minhas costas e um em cheio o meu crânio. Eu morria ali sem chances. Nunca mais veria Larissa. Nunca mais sentiria o cheiro de sua pele. Uma lona negra me cobria minutos depois. O que eu estava fazendo ali?

Aquela pele.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

QUEM VOCÊ QUISER

Os postes dançavam de tanto calor. Cada um passo em direção à sombra era dado com dificuldade e ansiedade. Gotas de suor minavam de meus poros. Elas caíam e evaporavam sobre o solo que fervia sob aquele fevereiro escaldante. Eu odiava cada dia daquele verão. Daquele e de todos os que cismavam em dar as caras antes de dezembro. As cores das meninas eram de fato um ponto positivo naquele inferno. As marquinhas de biquínis exibidos com malícia por aquelas que faziam parte daquele cenário urbano amarelado me fazia pensar que tal estação nem era tão ruim assim, mas era.

Os trabalhos no escritório se multiplicavam naquela época do ano. Parecia praga. Eu não parava um só minuto. Fedelhos entupiam as calçadas em seus passeios de férias enquanto suas mães derretiam suas maquiagens mesmo sob as marquises da cidade. Eu fazia entregas o dia inteiro. Documentos, projetos, etc. Eu pingava. Naquele dia, eu me deliciava no ar condicionado do metrô quando a minha estação infelizmente chegava. Carioca. Saltei. Em direção à saída, podia ver a claridade acima do normal que adentrava pela escada rolante. Foi quando:
- Oi senhor.
Abordava-me uma jovem linda. Estatura mediana, cintura fina. Ela usava uma calça jeans tão apertada que parecia que iria rasgar sobre aquelas médias nádegas empinadas. Ela era do tipo de menina em que tudo está no lugar certo e na medida exata. Nada sobra nem falta.
- Senhor? Eu? Estás no céu, por favor.
- Desculpe. Qual seu nome?
- Silva. Jorge Silva.
Eu adorava a forma como os americanos dos filmes pronunciavam seus nomes.
- Bom dia, Jorge. Você gostaria de receber um brinde como esse?
Ela apontava para um adesivo de uma nova marca de refrigerantes.
- Ou como este?
Apontava agora para um chaveiro com a mesma marca.
- Vem o seu telefone num desses brindes?
Perguntava.
- Não. Mas você vai experimentar o mais saboroso refrigerante.
Ela se saía bem.
- Eu já conheço esse refrigerante.
- Já? E o que achou?
- Parece com os concorrentes.
- Então. Gostaria de responder a uma pequena pesquisa? Ganhará os brindes.
- OK. E depois dos brindes? Ganho seu telefone?
- É só ir até aquela mesa ali. A Gabriela lhe fará algumas perguntas e lhe dará os brindes.
- Você não me disse seu nome.
Ela parava por alguns segundos e:
- Sheila.
- Quero seu nome verdadeiro.
- Senhor...
- Senhor está no céu. Já disse. Seu nome?
- OK. Laura.
Confessava com um pequeno sorriso.
- Agora sim. Vou até ali pegar meus brindes.
- Como quiser, Jorge.

Fui até a Gabriela.
- Pois não, senhor.
- Senhor está no céu.
- Perdão. Qual seu nome?
- Silva. Jorge Silva.
- OK. Responda minhas perguntas e receberá um brinde. OK?
- OK.
- Já conhece o refrigerante...
- Já.
- O que achou?
- Igual aos outros concorrentes.
- E o preço?
- Foi mais barato que os concorrentes.
- Quando comprar outro refrigerante, você vai optar por ele?
- Vou.
- Por quê?
- Porque é mais barato que os concorrentes.
- O que achou do nome, do rótulo...
- Previsível.
- E o que você mudaria?
- Nada.
Totalmente desanimada com a função que exercia e com as respostas dadas por mim às suas perguntas, a tal Gabriela me dava um adesivo e um chaveiro.
- Muito obrigada.
- OK.

Retornava à Laura.
- Oi.
- Oi senhor. Digo, Jorge. Respondeu a pesquisa?
- Sim.
- Recebeu seus brindes?
- Sim.
- OK. Passar bem.
- Quero seu telefone, Laura.
- Passar bem, Jorge.
- Quero seu telefone, Laura.
- Por quê?
Respondia ajeitando o cabelo.
- Porque você é a menina mais linda que cruzou o meu caminho desde que o verão começou e não tem sequer uma marca de biquíni.
- O que tem as marcas de biquíni? Não gosta?
- Gosto, mas cansei de vê-las desde novembro. Você não as tem e mesmo assim é tão linda.
- Eu tinha até o mês passado.
- Ainda bem. Seu telefone?
- Você cismou.
- Sim. Seu telefone?

Ela me deu enfim o número do telefone dela. Ia para casa pensando em seu semblante e imaginando o quão babaca eu fui. Era lógico que aquele número não era dela. No mínimo ela contou o número de idiotas lhe deram a mesma cantada e trocou os últimos dois dígitos por essa quantidade.

Às 22h, eu discava aquela fantasia.
- Alô.
- Laura?
- Sou eu.
- É o Jorge. Do metrô. Lembra?
- Claro. Estava esperando você ligar. Sheila me disse que ligaria.
- Sheila?
- Sim. Sheila. A moça que lhe abordou para a pesquisa.
- Se ela é realmente a Sheila, quem é você?
- Laura.
- Mas...
- Me encontre no Centro, agora. Pode ser?
- Mas...
- Me espere em frente ao terminal rodoviário.
- OK.

Chegava ao local indicado pela tal Laura. Calor noturno. Avistava logo a menina que eu realmente queria ver. Só que a maneira comportada e atraente da mesma dava espaço agora a uma roupa vulgar e um olhar típico de uma prostituta.
- Oi Jorge.
- Que palhaçada é essa? Quem é você afinal? Sheila? Laura?
- Lá no metrô você conheceu a Sheila, mas você não acreditou. Então resolvi apresentar-lhe à Laura, que é esta que vos fala.
- Mas... São a mesma pessoa.
- Não. Mas o outro lado de uma mesma pessoa. Se você quer sacanagem, é como Laura que me apresento. Caso contrário, serei Sheila. Mas por favor, não cite meu outro nome enquanto me pega.

Peguei forte naquela bundinha firme.
- Prazer. Chame-me de Laura então.
Ela disse.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

SOL E CHUVA

A fila do banco era enorme. Já passava das 16h quando Sérgio, último da fila, preferiu sentar-se numa cadeira. Com o banco já fechado, não haveria mais ninguém para ser atendido depois dele. Era de fato o último. Rodando para lá e para cá naquela cadeira de rodinhas, onde só sentavam os clientes importantes, aqueles que tinham algo a discutir com o gerente. Sérgio achava atraente a frase “vou consultar ao gerente da minha conta”, mas como não possuía conta alguma, restava-lhe apenas repeti-la ao vento enquanto andava pela rua com uma enorme quantidade de serviços bancários sob as axilas.

Olhando para a mesa à sua frente, reparava que se tratava de uma gerente. Talita Vasconcelos Nunes Corrêa era o nome dela. Estava escrito sobre a mesa. Uma bela mesa. Sérgio ficava tentando imaginar a cara da baranga. “Talita – pensou – é nome de baranga”. Continuava rodando com a cadeira. A fila permanecia do mesmo tamanho. Voltava a olhar para o nome da gerente. Contava quantas letras tinha o nome dela. Vinte e oito letras. Depois tentava ler de trás para frente o nome dela. “Aêrroc Senun Solecnocsav Atilat”. Ria.

Sérgio ouvia um assobio de volume crescente, assim como um barulho de salto alto no piso elevado do banco. Via-se diante da mais bela dama que já tinha visto. Num terno azul marinho, aquele pedaço se aproximava de Sérgio.
- Boa tarde.
- Boa.
Respondia Sérgio àquela escultura.
Ela se sentava de maneira elegante e jogava os cabelos ondulados castanhos como se fosse tudo pensado para deixar quem estivesse por perto louco de paixão.
- Você é a gerente?
Perguntou Sérgio.
- Sim. Em que posso ajudar?
- Acho que em nada. Eu só estou aguardando a fila. Eu não possuo conta.
- Tudo bem. Pode ficar aí. Ninguém usará essa cadeira mais por hoje.
- OK.
Sérgio pensou.
- Você é a Talita?
- Sim. Por quê?
- Nada. Vi seu nome.
- Ah.

Sérgio não conseguia parar de olhar para aqueles vinte e poucos anos de aparência à sua frente. Tentava manter ela falando para reparar a pinta que ela possuía no canto dos lábios. E os olhos? Duas bolas verdes. Mas ela respondia a Sérgio olhando para uns papéis que assinava. Parecia apressada.
- Quantos anos você tem?
- 28.
- Nem parece.
- Obrigada.
- Eu tenho 18.
- Ah.
- Gosta de ser gerente?
- Gosto.
- Gosta desse banco?
- Gosto.
- Sempre cheio não é?
- É.
- O tempo escureceu lá fora. Acho que chove.
Sérgio não poderia ser menos previsível.
- É. Eu vi. Vim lá de fora. E nem trouxe guarda-chuva hoje.
- Eu trouxe.
- Que bom.
- Quer emprestado?
Isso aí, Sérgio! Grande!
- Como?
- Perguntei se não quer meu guarda-chuva emprestado.
Talita achava a pergunta um tanto quanto estranha, mas respondia.
- Não. Obrigada.
- OK.
- Mora onde?
- Olha aqui, menino. Você está me atrapalhando. Preciso acabar com esses papéis aqui e você não pára de me fazer perguntas. Pode ficar na cadeira se quiser, mas quietinho, por favor.
- Está bem.
- Obrigada.
Sérgio não se contentava. “Ela me responde olhando para os papéis”.

Sérgio estava cansado de observar cada traço do rosto de Talita, que por sua vez, não olhou sequer para o rosto de Sérgio.
- Você pode olhar para mim? Só uma vez.
Talita pára de escrever, respira fundo, solta o ar, larga a caneta na mesa, joga mais uma vez os cabelos para o lado e finalmente olha para Sérgio. Gosta do que vê. Sérgio era um rapaz de traços finos e de uma feição bastante simpática. Solta um sorriso lindo, embora sem graça, e diz:
- Desculpe. Fui grossa?
- Não. Não foi não. Só que observei que você não tirou os olhos dessa papelada um instante sequer. É assim sempre?
- De vez em quando sim. É estressante às vezes.
- Mas me disse que gostava daqui.
- Disse?
- Disse. E que gostava de ser gerente também.
- Disse?
- Disse.
- Eu realmente gosto, mas confesso que respondi automaticamente. Desculpe. Preciso de férias sabia?
- É a primeira vez que falou comigo querendo.
- Sim. Desculpe novamente.
- Tudo bem. Eu é que tenho que perder essa mania de perguntar tudo aos outros.
- Você de certa forma me fez bem.
- É? Por quê?
- Porque me fez parar o que estava fazendo e só agora me dei conta de que precisava respirar e conversar algo que não fosse sobre esses papéis.

Naquele momento um estrondo do lado de fora do banco anunciava uma tremenda chuva.
- Vai aceitar o meu guarda-chuva agora?
- Você chegou a me oferecer?
- Sim. E você negou.
- Mas onde está ele?
- No escritório. Posso passar aqui e lhe dar uma carona sob ele.
- Na verdade eu precisaria dele sim, mas só até o estacionamento do outro lado da rua. E não acho que será necessário se abalar por isso. Alguém aqui nesse banco terá um guarda-chuva também. Mesmo assim, agradeço.
- OK. Ah. Chegou a minha vez.
- Sua vez?
- Na fila.
- Ah. Sim. Então vai lá.
- Foi um prazer.
- O prazer foi meu.

Sérgio levantava se achando o mais imbecil do mundo. “Onde já se viu? Oferecer carona de guarda-chuva. Você foi demais hoje, Sérgio”, pensou.
- Menino!
Chamava-o Talita.
- Oi.
- Acho que aceitarei a sua carona. Pode ser?
- Claro. Até o estacionamento?
- É.
- Que horas passo aqui?
- Às 18h.
- Fechado.
Às 18h Sérgio estava lá, na porta do banco. A chuva já havia terminado.
- Menino! Você veio? Mas a chuva já se foi.
- Eu não trouxe o guarda-chuva. É que no meio da chuva eu vi um sol nascer para nós. Vamos?
Sem saber o que dizer e tentando disfarçar o sorriso, Talita deu a mão a Sérgio e ambos atravessavam a rua.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

BUSCA INCONSCIENTE PELA SOLIDÃO

Eu sabia que àquela hora da noite Rafaela não ligaria mais. Só um idiota feito eu para esperar tanto tempo debaixo daquele sereno. Eu não tinha telefone fixo nem celular naquele estágio trágico de minha vida. 29 anos, desempregado e com a última parcela do seguro desemprego nas mãos. Já não era grande coisa e eu ainda torrava de dois em dois reais por algumas horinhas no PC da papelaria da esquina. Lá, conhecia Rafaela numa dessas salas de bate-papo. Mas como eu iria fazer para manter contato com uma menina sem sequer um telefone. Tive que apelar para o aparelho público que ficava na parede de frente ao sobrado onde eu morava.

Quando aquilo tocava, eu ouvia lá do meu quarto. Corria. Descia dois lances de escada, atravessava aquela rua de pouco movimento e chegava até o aparelho ofegante.
- A.... a.... alô.
- Lucas?
- Raf... Raf... Rafaela?
- Sim. Correndo?
- Sim. Estava no jardim. Fica longe da sala.
Mentia.

E a partir daquela mentira inicial, seguiam-se várias outras para que eu pudesse manter aquela voz doce de uma menina de 23 anos no meu ouvido. A realidade dela era totalmente diferente da minha, mas como eu já havia trabalhado para um bando de gente da classe social dela, me virava nas invenções. Carro, roupas, festas. Tudo que ela achava legal eu fingia também achar. Na verdade eu nem sabia o que realmente me fazia agir daquela forma. Acho que foi a foto que ela me enviou. De corpo inteiro. Linda. Morena. Cabelo negro liso até os seios. Olhos cor de amêndoa. Um sorriso capaz de enlouquecer qualquer pessoa. Se eu fosse mulher naquela hora eu virava sapatão com aquele sorriso.

Os papos foram tomando grandeza, e como eu era o único que morava próximo àquele telefone, ela nunca descobriu que não se tratava de um aparelho residencial. Fui levando a mentira sem nem mesmo saber até quando conseguiria manter tal situação. Como marcaria um encontro? Com esse par de sapatos filho único? Morando atrás dessa parede mofada? Jamais. Mas aquela foto me fazia encarnar um personagem onde apenas o meu nome era verdadeiro. Ali, naqueles telefonemas, eu era filho de um desembargador. Dono de três carros. Casa na região oceânica para passar um possível verão ao lado dela.

Até que um dia:
- Lucas.
- Oi.
- Quando iremos nos conhecer?
Gelei.
- Faz duas semanas que nos falamos todos os dias. Quero lhe ver pessoalmente. Você já me viu por foto. E eu? Como fico?
- Você vai me ver. Assim que eu puder. Ando tão enrolado.
- Enrolado com o que, Lucas? Você me disse que não trabalhava.
- E não trabalho mesmo, mas organizo as coisas aqui em casa. São muitos empregados.
- Sei.
- Mas não tem ninguém que faça isso?
Pensei: “Que idiota. Claro que deveria ter alguém que faria esse tipo de serviço”.
- É. Mas meu pai mandou a governanta embora. Foi isso.
- Sei.
- Está um frio aqui fora.
- Aí fora?
- Não está na sala?
Pensei: “Que idiota. Outro furo”.
- Estou na beira da piscina. Telefone sem fio. Está ventando aqui.
- Na piscina com esse vento? Enlouqueceu?
Nesse momento, uma moto passa pela rua com um enorme ronco.
- Lucas. Pelo número, não pode ser celular. E acredito que você não esteja com o telefone sem fio no meio da rua. Certo?
- Rafaela. Ligue-me amanhã? Meu pai acabou de chegar e preciso tratar coisas com ele.
- OK. Que horas?
- Às 20h, como sempre.
- Tudo bem.
Ela desligou o telefone com um ar de desconfiança. Essa desconfiança surgiu logo que ela veio com a idéia de querer me conhecer. Mas que merda.

Então, começava a pensar. Se a Rafaela não ia me aceitar depois de saber toda a verdade, por que insistir com aquilo? Mas aquela foto. Aquele sorriso. Se eu fosse mulher eu... Já disse isso.

No dia seguinte, lá estava eu. Naquele frio de julho, frente ao telefone da rua esperando o toque de Rafaela. Já passavam das 21h e nada. Perdi a conta de quantas vezes fui até ele e o tirei do gancho para saber se estava com defeito, mas o som de total funcionamento que ele me emitia ia lentamente acabando com as minhas esperanças de voltar a ouvir a voz de Rafaela.

23h. Eu sabia que estava fazendo papel de babaca ali agachado na calçada. Se ao menos eu tivesse pegado o número do telefone dela. Mas como eu ligaria? O valor de um cartão telefônico me faria uma enorme falta. Para falar poucos minutos? Nossos papos varavam a madrugada.

00h. Minhas mãos já estavam dormentes. Aquele vento frio era cortante. Começava a imaginar que ela poderia ter saído para alguma festa. Talvez até mesmo com um outro cara. Vai saber. E eu ali.

01h. Pegava no sono ali mesmo na calçada. Cheguei a sonhar que o telefone tocava e eu atendia. Sempre era ela nos sonhos. Mas na verdade estava apenas eu ali. A imagem do bico do meu sapato úmido do sereno não saía da minha cabeça. Sonhava com ele também. Eu estava encolhido e quase o beijava. Observava o quanto estavam gastos nas poucas vezes que acordava daquele sono.

07h. Acordava. O sol já dava sinal de um dia um pouco menos frio. O telefone não tocou durante toda a minha estadia naquela calçada. Estava ali há quase doze horas esperando pelo telefonema de Rafaela. Ela não ligou. Na certa desconfiou de toda a minha farsa e me mandou pastar. Aquele sorriso ficou paralisado pela foto. Antes ele se mexia conforme ela ia falando no meu ouvido, mas sem a voz de Rafaela tudo aquilo se acabou.

Olhei para o aparelho ali naquela parede. Tive vontade de quebrá-lo. Mas eu sabia que de nada iria adiantar. Ele não tinha culpa de eu ter me metido onde não era chamado e camuflado minha realidade fedorenta por causa de um sorriso que, vai saber, talvez nem dela é.

Pensando bem...


***
Foto da capa: Gabriel Andrade [meinframer.wordpress.com]

terça-feira, 20 de maio de 2008

9021

Diego freqüentou as festinhas, os churrascos, as saídas ao shopping e à praia durante todo o ano. Estudante do primeiro ano do ensino médio, o garoto estava aproveitando uma das melhores fases de sua vida, se não a melhor. Bonito e um verdadeiro pós-graduado em conversa, Diego conquistava as meninas com facilidade, a mesma facilidade que tinha para trocá-las, passar a ser odiado por elas e ser idolatrado pelos outros meninos da escola. Diego se encontrava agora na difícil tarefa de todos os anos; recuperar o tempo perdido, que de perdido não tinha nada na idéia do menino. Afinal, Diego não se arrependia de nenhum minuto que se “dedicou à felicidade”, como costumava dizer.

Estava encrencado em três matérias: matemática, português e física. Em matemática já tinha decidido o que fazer. Ora, o que vem feito todos os anos, pedir aulas particulares a Guilherme, seu irmão mais velho e idolatrado, já graduado na matéria. Para as provas da língua Diego teve a brilhante idéia: Continuaria “ficando” com Bruna, que sempre foi uma ótima aluna e completamente cega por ele, para que o ajudasse com aulas de reforço. E física? Diego não tinha a menor idéia do que faria para conseguir a média na matéria da excelente Professora Lívia, que por sua vez era o pesadelo e ao mesmo tempo o sonho dos meninos da escola. É que Lívia era simplesmente linda. Uma deusa em forma de professora, porém, por trás de suas pernas torneadas, seus seios firmes e proporcionais e seus olhos castanhos claros, havia um verdadeiro demônio em forma de modelo. Incapaz de dar um sorriso, Lívia levava sua profissão a ferro e fogo. Nunca desrespeitou sequer um aluno. Com ela não tinha isso. Ganhava os alunos com a moral que vinha anexa ao seu olhar e sua perfeita postura. Ela agia como na verdade todo mestre deveria agir, mantendo o respeito e o bom relacionamento entre aluno e professor, porém, sem apelar para piadas, tapinhas nas costas ou se tornar amiga dos fedelhos. Lívia era professora e os alunos eram... alunos.

“Fodeu”. Pensou Diego. Não havia o que fazer. Não conhecia ninguém bom o bastante para lhe dar aulas de física. Na verdade, Diego precisava de um super hiper mega intensivo com toda a matéria dada durante o ano em apenas duas semanas. Todos os seus amigos, inclusive Bruna, passaram raspando da fase de recuperação. Na lista de Lívia só havia ele para perturbar o mês ensolarado de dezembro e mesmo que ela quisesse, Diego não tinha condições de ser aprovado pelo conselho de classe pois suas notas eram baixas demais. Ótimo. Lívia não lamentaria mesmo por alguns dias de praia perdidos por conta do aluno tapado que conseguiu a façanha de ir para a prova de recuperação com ela. Diego teve que estudar sozinho e tentar entender aquele monte de fórmulas que para o seu entender de nada valeriam para sua vida. Foi a matéria em que Diego mais se dedicou, nas outras, Guilherme e Bruna faziam um belo trabalho com o malandrinho.

Faltando dois dias para a prova de física, Diego se via desesperado em meio à sua situação. Concluía que não estava pronto para enfrentar as questões de Lívia. Imaginava a professora vestida apenas com roupas intimas em tons avermelhados, formulando os problemas que Diego teria de resolver, enquanto gargalhava diabolicamente em frente a um cenário infernal. Esses desvios de concentração deixavam Diego suando frio e cada vez mais nervoso. Então pensou: “Não tenho nada a perder. Não conseguirei mesmo fazer esta prova. O Guilherme conhece a Lívia, já me contou que deram aula juntos num mesmo colégio. Ele podia pedir a ela que me desse os pontos necessários”.
- Não! Você ficou maluco?
Respondeu Guilherme em tom irritado após ouvir o pedido do irmão.
- Poxa, Guilherme, não custa nada. Afinal de contas, para que servem os amigos?
- Isso é ridículo, Diego. Jamais pediria isso a um professor, muito menos à Lívia. Ora, ora. A Lívia. Um caso antigo...
Deixa escapulir, Guilherme.
- O que? Um caso? Você e a Lívia tiveram um caso?
Perguntou Diego.
- Puta que pariu, Diego. Sim. Pronto. Falei. Mas não vá dizer isso a ela, ouviu?
- Claro que não, Guilherme. Ficou louco? Ela me reprovaria antes de fazer a prova. Do jeito que ela é séria.
- Acho bom, Diego. Acho bom.

Realmente Diego jamais faria uma coisa dessas. Mas faria algo bem mais vantajoso para si com aquela informação tão valiosa. Conseguiu no celular do irmão o número do telefone de Lívia. Com um pano na boca e imitando o máximo o jeito do irmão falar, ligou a cobrar para a professora.
- Alô.
- Lívia?
- Sim. Quem fala?
- Guilherme. Lembra de mim? Professor de matemática.
- Como não lembraria?
- Que bom. Como você está?
- Bem. E você? Não me parece com uma voz muito boa.
- (Tossindo) Pois é. (Mais tosse) Uma tosse enjoada. Mas está tudo bem. Na verdade estou te ligando por causa de um problema um pouco mais grave.
- Pois não. Diga.
- O meu irmão, o Diego, ele é seu aluno. Ele está em recuperação. Estuda no Josias de Andrade.
- Sim. Perfeitamente. O único, diga-se de passagem.
- (Pasmo) Pois é. Gostaria de saber se não daria para você aliviar a situação dele. Ele é um bom menino, apenas deu uma escorregada na sua matéria.
Uma pausa de Lívia fez Diego pensar que talvez ela estivesse concordando com a idéia. Até que ele insiste:
- Em troca, podíamos relembrar os velhos tempos. O que acha?
- O que? Guilherme, não me faça relembrar aqueles momentos tão... tão...
- Tão bons?
- Bons? Se você achou bom eu lhe flagrar aos beijos na sala dos professores com o Lauro, de educação física, tudo bem. Mas eu achei péssimo para um namorado!
Diego perdeu a voz. Não sabia o que dizer e nem o que pensar. Acabara de descobrir um passado vergonhoso do próprio irmão. O garoto desejou nunca ter tido a idéia de ligar para Lívia. Pensou que seria melhor ser reprovado do que tomar posse de um fato tão estranho.
- Guilherme... Guilherme? Ficou mudo? Quanto ao seu irmão, o Diego, sei que ele não tem nada a ver com a sua falta de caráter, mas farei de tudo para reprová-lo, tamanha minha indignação com sua proposta imunda. E ele ainda deve ser igual a você.
Diego quis morrer.

Conto publicado originalmente em 10 de novembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

sábado, 17 de maio de 2008

POR QUE ELE?

Teve vontade de sumir quando ouviu a resposta negativa. Giovanna, uma menina tímida, manteve-se por muito tempo firme diante da idéia de que uma mulher jamais deve se atirar em um homem. Naquele dia, a menina se desprendia de tal bloqueio e se declararia de corpo e alma para Marcelo. Mas ela tinha seus motivos. E que motivos.

Giovanna, apesar de quase nunca abrir a boca, quando falava, era certeira. Suas frases inteligentes provocavam o silêncio da dúvida ou a boca aberta da concordância por parte de seus receptores. Conquistava a amizade de todos com o seu jeito contido de ser. Seu sorriso era um colírio para os dotados de uma sensibilidade aguçada, pois através dele se podia entender muito pouco do conteúdo emocional de Giovanna, que era a musa dos mais estudiosos e ao mesmo tempo “aquela quatro olhos” dos mais populares.

A menina podia ter se apaixonado por qualquer um naquela escola enorme, mas não, foi se encontrar perdida por um dos mais populares dali, o tal Marcelo. Ela mesma não entendia o porquê de não conseguir tirar aquele rapaz da cabeça. Encontrava-se em estado de dormência toda vez que ele cruzava o portão da escola montado em sua bicicleta de último modelo. O cabelo liso que parecia incomodar os olhos e o forçava a fazer movimentos repetitivos com a cabeça era fatal para o coração de Giovanna, que por sua vez, usava roupas sem o mínimo de intenção de atrair o sexo oposto, como faziam a grande maioria das meninas.

Marcelo para Giovanna era tudo. Giovanna para Marcelo era nada. A presença de Giovanna nunca era notada por Marcelo. Marcelo se fazia presente para Giovanna vinte e quatro horas por dia. Giovanna tinha conteúdo para conquistar alguns meninos, mas buscava Marcelo, que tinha todas as meninas o buscando e não precisava buscar por ninguém. O fato de Marcelo estar de braço dado com uma menina diferente a cada semana, só fazia a pobre Giovanna imaginar que um dia chegaria a vez dela.

Em momentos mais lúcidos, Giovanna se irritava consigo mesma por parecer tão idiota diante daquele sentimento tão inesperado. “O que ele vai querer comigo?”, pensava a menina. “Ele é mulherengo, gazeia as aulas, se mete em brigas, fala errado... Por que ele?”, continuava pensando.
- Giovanna?
Chamava Lorena, uma amiga de Marcelo.
- Oi.
- Queria falar com você.
- Pode falar.
- Faz tempo que eu vejo que está amarradona no Marcelo.
- Eu? Imagina!
Mentia Giovanna.
- Não precisa mentir. Eu vejo como fica quando o Marcelo passa a poucos metros de você.
- Bem.
- Olha. Por que você não diz isso a ele?
- Dizer o quê?
- O que sente por ele.
- Mas não sinto nada.
- Se você ficar aí pensando que um dia ele falará com você, morrerá esperando.
- Mas se ele nunca falará comigo, sinal de que não me merece.
- Pronto. Acabou de me confessar que gosta dele.
- Está bem. Mas não conte a ninguém, por favor.
- Tudo bem. Procurei você para lhe ajudar.
- OK. O que devo fazer?
- Primeiramente, arrumar-se melhor. Com essas roupas, ele jamais vai te enxergar.
- Mas gosto das minhas roupas.
- Esse é o problema.
- O quê?
- Esquece. Está vendo como estou vestida? Anote e se vista assim. Se ele não te der ao menos um “oi”, você pode me surrar.

Não estava nos planos de Giovanna mudar a forma como se vestia para ganhar um simples cumprimento de Marcelo. Mas pensando bem Giovanna topava.

Vestia aquela saia curta que lhe fizera depilar toda a perna, coisa que raramente fazia. A blusa do uniforme recebia ajustes que a deixava mais justa, o que realçava aqueles seios eretos e antes escondidos por aquele monte de malha sobrando. Pulseiras, brincos, batom, sandália, tudo era modificado no visual de Giovanna. Aos poucos, Giovanna percebia que não era mais ela ali diante do espelho. Aquele visual não pertencia a sua real personalidade. Crítica, passava a analisar se Marcelo realmente merecia tanto esforço. Mas pensando bem concluía que merecia.
- Giovanna!
Grita uma abismada Lorena.
- O que foi? Fiz algo errado?
- Imagina. Você está linda, garota!
- Obrigada. Tiro os óculos?
- Não. É o seu diferencial, menina.
- OK. Mas responda-me. Por que está fazendo isso por mim?
- Porque acho que tem chance com ele.
- Ora, só por isso? Você nunca falou comigo antes, Lorena.
- Para tudo há uma primeira vez.
Essa frase batida fazia Giovanna pensar se realmente estava fazendo a coisa certa.
- E agora o que eu faço?
- Vá até ele e chame-o para conversar.
- Assim? Ele nunca sequer falou comigo.
- Para tudo há uma primeira vez.
De novo. Ela repetia essa frase e Giovanna se controlava para não jogar todo o plano para o alto.
- Eu sei me doar desse jeito.
- Não está se doando, apenas irá dizer que o acha um gato e que estaria disponível para o churrasco da Pâmela.
- Mas eu nem fui convidada.
- Mas com ele do lado? Quem precisa de convite.
- Nunca fui tão dada.
- Para tudo há uma primeira vez.
Ódio. Era o que sentia agora Giovanna pela mente opaca de Lorena, mas mesmo assim, seguiu até Marcelo.

- Oi.
- Oi. O que houve com você...
- Giovanna. Meu nome é Giovanna.
- O que houve Giovanna. Está diferente.
Isso era sinal de que Marcelo a notava antes de mudar radicalmente de visual. Tomou coragem:
- E prefere de que jeito?
- Assim. Antes parecia uma velha.
“Que grosso!” Pensava.
- Então fiz bem?
- Fez sim. Mas diga. O que você quer?
Depois de gaguejar:
- Ir ao churrasco da Pâmela com você. Digo, estou disponível para ir...
- OK. Já entendi.
- E?
- NÃO!
Naquele momento, além da já citada vontade sumir, Giovanna passava a sentir um nojo incontrolável da roupa que vestia, dos cosméticos que usava e mais ainda de Marcelo, que permanecia em sua frente mascando um chiclete e rindo pelo canto da boca. Não segurou. Vomitou sobre ele.
- FICOU MALUCA, GAROTA?

Todos olhavam para aquela cena esquisita, onde Marcelo se encontrava com a roupa lavada pelo almoço de Giovanna. O pátio se transformava numa verdadeira platéia de circo. Giovanna tonteava de tanta vergonha e caia sobre os braços de Lorena que vinha correndo para acudi-la.
- PORRA MARCELO. PRECISAVA DISSO?
Gritava Lorena.
- OLHA O QUE ELA FEZ EM MIM, LORENA!
- Mereceu. Ela só queria lhe dizer o quanto gostava de você.
Nesse momento, Giovanna abria os olhos e:
- EU NUNCA GOSTEI DE VOCÊ, NUNCA GOSTEI DA LORENA, NUNCA VOLTAREI A USAR ESSA MERDA DE ROUPA E GOSTARIA QUE VOCÊS NUNCA MAIS CRUZASSEM O MEU CAMINHO.
O pátio era agora velório. O silêncio reinava.

Giovanna erguia-se e seguia cambaleando sobre aquelas sandálias pela calçada do colégio até desaparecer entre as amendoeiras. Seguia com seu emocional ferido e precisando de cuidados. Pagava ali um preço alto por querer ser o que nunca havia sido. Por se apoderar de valores menores do que os presentes em sua alma. Porém, percebia que a imagem de Marcelo ia sumindo de seu pensamento na mesma proporção em que as gotas enormes de suas lágrimas evaporavam pelo caminho.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

LONGO DIA

O engarrafamento das 7:30h já fazia parte do meu cotidiano. Ele me fazia acordar mais cedo do que eu realmente precisava, já que num trajeto que levaria não mais do que quinze minutos eu levava quarenta para fazer. Livro, jogos de celulares, música, tudo isso eu já carregava na mochila para me entreter até o trabalho.

Naquele dia eu chegava ao escritório por volta de umas 9h. O engarrafamento estava maior do que de costume. Um acidente matava quatro pessoas no centro da cidade. Isso justificava o meu atraso e eu teria a capa do jornal do dia seguinte para comprovar tal situação.
- O que houve?
Perguntava Dr. Haroldo, meu chefe.
- Engarrafamento.
- Sei.
- Morreram quatro hoje.
- Sei. Preciso que você vá ao Rio levar isso aqui.
Era um perfil de alumínio de mais ou menos um metro e meio de comprimento. Um saco carregar esse tipo de coisa. Esbarrava nas pessoas. Uma merda.
- Tudo bem. Deixe só eu colocar a minha marmita na geladeira.
- OK. Rápido.

Pegava então o perfil e seguia para a Tijuca. Já ia pensando: caminhada, barca, caminhada, metrô, caminhada. Com o fone no ouvido, o bandolim de Jacob me levava a outro plano, fazendo todo aquele trajeto e o incômodo do perfil passarem despercebidos. Era o meu jeito de fazer a coisa ficar a meu favor.

Chegando até o local, não dava uma palavra. Entregava o perfil e dava meia volta. Aqueles que me esperavam já conheciam o meu comportamento “longe” em relação àquele trabalho. Voltava para o escritório e dessa vez preferia o livro à música. Caminhada, metrô, caminhada, barca, caminhada. Chegava ao escritório por volta das 12h. Minha marmita precisava de trinta minutos para esquentar, isso significava que eu iria almoçar às 12:30h. Tudo bem. A campainha tocava. Atendi. Era o Dr. Haroldo.
- Preciso que você volte lá.
- Mas acabei de voltar de lá.
- Pois é, mas preciso que você volte lá.
- OK. Almoço e vou.
- Isso.

Estava cansado da primeira viagem e já ficava sabendo que iria voltar. Raiva. A comida descia mal. Mascava um chiclete depois do almoço e ficava no aguardo do material que eu levaria para a Tijuca. Dr. Haroldo chegava de seu almoço de rei.
- Vamos?
- O senhor vai comigo?
- Não. Vou comprar o material e lhe deixo na barca.
- Tudo bem.
Pelo menos dessa vez a ida seria barca, caminhada, metrô, caminhada. Uma caminhada a menos fez uma enorme diferença àquela altura. Já passavam das 15h quando saltava do carro do chefe com oito peças de alumínio de um metro e meio, três metros de tela de náilon e dois reatores. Uma mula de carga eu era. Raiva. Aquela mesma viagem era repedida, só que dessa vez a minha cara não era das melhores. Nem minhas pernas.

Comprava o bilhete da barca com a mesma atendente da manhã.
- De novo?
- É.

Sentava-me semelhante a um balão carregado de cangalhas. Uma merda. Só pensava o que eu estaria fazendo caso não precisasse daquele emprego de merda. Os três números que havia acertado na mega sena da semana anterior vinha na minha mente como um martelo. Tinha sido por pouco.

Na saída da barca, não me preocupava em carregar aquelas peças de forma vertical para que não esbarrasse em ninguém como eu havia feito pela manhã. Levava na horizontal e assim devo ter rasgado belos vestidos e ternos à minha volta. Foda-se.

Na caminhada até o metrô, avistava quatro violinistas mirins e um percussionista se apresentando no meio da calçada. Era Pixinguinha. Só por isso jogava uma moeda das grandes no chapéu dos meninos, mas nem parava para apreciar. Na escada rolante da estação do metrô, encontrava um velho amigo da escola. Sorridente, de terno e gravata e nem um pingo de suor no semblante. Acenei para ele cabisbaixo e ele retribuiu sorrindo enquanto falava ao celular. Eu visualizava naquelas escadas exatamente o caminho das coisas. Eu estava descendo e ele subindo. Como na vida profissional.

Dentro do trem, não havia onde me segurar. Usava as peças de alumínio como bengala e despejava sobre elas todo o meu cansaço. Caminhada. Chegava lá e jogava todo aquele incômodo no chão. Não dava um pio. Meia volta.

Caminhada, metrô, caminhada, barca, caminhada. Enfim. Escritório. 17:30h. “Ainda tenho trinta minutos para descansar até a aula”.
- Entregou lá?
- Sim.
- Vamos digitar essa proposta aqui.
Não acreditava naquilo. Mais? Nem sabia se minhas mãos me obedeceriam àquela altura. Para a minha infelicidade obedeciam.

Saía correndo do escritório direto para a sala de aula. Morto. Acabado. Por uns míseros reais por hora de trabalho eu estava em frangalhos e nervoso. Poderia matar um. Um colega me avisava:
- Seu celular está vibrando. Estou sentindo a carteira vibrar.
- Obrigado.
- Alô.
- Oi amor.
Era minha namorada.
- Oi. Tudo bom? Estou na aula.
- Desculpe.
- Não. Não desligue. Pode falar. O professor ainda não chegou.
- Só liguei para dizer que te amo e que tenho muito orgulho de você.
- Que me amas eu aceito, mas orgulho? Se soubesse o dia que tive hoje. De cão. Tem orgulho de namorar um cão?
- Não. Não namoro um cão. Namoro um cara especial.
- Seu carinho me faz falta durante o dia. Muita falta. Preciso de você hoje.
- Saia daí e venha me ver, ora.
- OK.
Saía novamente correndo da sala de aula rumo à casa de Ana Lúcia.
- Marcos! Você veio! Não acredito nisso!
- Não era para vir?
- Claro que era.

Respondia Ana Lúcia sorrindo e me puxando pela alça da mochila. Um beijo. O beijo. O beijo que fazia ali eu esquecer de todo aquele cansaço do dia. Estava pronto para encarar tudo de novo. O perfume que eu encontrava no pescoço de Ana Lúcia era a fonte de vitalidade e de coragem para encarar todas as minhas derrotas de peito aberto. Ali, nos braços de Ana, me sentia forte. Escondia dela quase todos os meus medos para que ela se sentisse segura ao lado de um cara que nascia para perder. No amor, pelo menos no amor eu desejava continuar vencendo.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

20 MINUTOS

Ao comprar o bilhete da barca já levei um susto. Mais um aumento na tarifa. OK. Segui adiante, inseri o bilhete de ouro na roleta e entrei. Percebi que a última embarcação tinha acabado de sair. Odeio quando isso acontece, porque, sem dinheiro, não há nada para fazer durante a espera de longos minutos pela próxima saída, a não ser, folhear as revistas expostas na banca de jornal que fica dentro do salão de espera. Segui até a banca.

No caminho, avisto uma menina de pele alva e cabelos dourados. Elegante, está vestida como uma advogada. Parece advogada. Sentada num banco de madeira com mais algumas pessoas espremidas, ela também me lança o olhar. Gosto do que vejo. Entro na banca e pego uma revista do Tex para passar uma vista. Os trejeitos daqueles personagens sempre me pareceram tão engraçados. A maneira como eles saltam de seus cavalos. Levo um esbarrão. É ela, a advogada.
- Desculpe.
- Tudo bem.
Respondo olhando-a de cima a baixo.
Ela pega uma revista de design para o meu espanto. Imaginava que ela fosse pegar qualquer revista, menos uma de design. E eu aqui com esse gibi do Tex. Que vergonha.

- Nossa que lindo!
Eu sabia que ela tinha soltado a frase por causa da bela gravura vista nas páginas da revista em suas mãos, mas não pude perder a oportunidade.
- O que é lindo?
Ela olha para o meu rosto e responde:
- Essa gravura. Assustei você?
- Um pouco. Por um momento pensei que estivesse falando comigo.
- Hahaha. Não. Foi realmente para a revista que eu estava falando. Desculpe.
- Tudo bem. Era o mais provável mesmo. É advogada?
Puxo assunto.
- Não. Por que?
- Parece.
- Sou designer. E você?
- Eu? Trabalho numa gráfica. Provavelmente já devo ter imprimido algum de seus trabalhos.
Tento fazer ligação entre meu emprego de merda e o dela.
- Sei.
Essa resposta dela foi desanimadora.
- A barca já vai sair. Vou levar a revista. Quer levar o gibi?
- Não.
Nego.
- Eu pago.
Diz ela.
- Imagina. Não precisa.
- Aqui. Essa revista e esse gibi.
Ela paga ao jornaleiro.
- Eu disse que não precisava.
- Presente.
- Mas nem sabemos nossos nomes.
- Aline. E o seu?
- Fábio.
- Vamos?
- Vamos.

Seguimos para a barca. Ela na frente em passos firmes sob uma postura ereta e elegante, e eu, atrás com uma mochila enorme nas costas e as pernas da calça sobrando sobre o tênis barato e sujo. Ainda estranhando todo aquele comportamento da tal Aline, a segui e sentei-me do seu lado. Ela abriu sua revista e eu não tive coragem de abrir o gibi do Tex.
- Escuta.
Diz ela.
- Me acha bonita.
- Sim. É uma gata.
- Me beijaria?
- Como?
- Me beijaria?
- Claro. Por que não?
- É que algo em você me chamou atenção. Não sei o que foi.
Penso em perguntar se ela pretendia me comprar com gibi, mas acho melhor não.
- Então me beija.
- Aqui? Assim?
- É!
Beijei-a. As revistas caíram no chão e em poucos segundos a bolsa dela também caía, chamando a atenção de todos os que entravam e se acomodavam na embarcação.
- Quantos anos você tem?
Pergunta a loira pegando fogo.
- 23. E você?
- 26. Mora com seus pais?
- Moro.
- Não precisa mais. Mora comigo?
- Como? Ficou louca?
- Morando. Não precisará mais dessa merda de emprego.
Impressionante como todo mundo chamava o meu emprego pelo mesmo nome; merda. Mas largar o emprego e ainda ter uma mulher daquela ao meu lado seria bom demais.
- Tudo bem. Levo minhas coisas e moro com você! Quando posso ir?
- Hoje à noite.
Disse ela.
- OK.

Depois de nos beijarmos por mais alguns minutos, ofegante, ela diz:
- Acho que sou louca.
- Por que?
- Onde já se viu? Atirar-me assim em alguém e ainda o convidar para morar comigo!
- Eu achei ótimo.
- Estou arrependida.
- De que?
- De tudo isso. Foi bom te conhecer... é... é...
- Fábio.
- Isso. Foi bom te conhecer, Fábio.

Ela se levanta e segue até a porta da proa. Ficou ali à espera da atracação. A porta se abriu e ela sumiu em meio à multidão. Fiquei ali sentado, sem saber que avião havia me atropelado. O gibi do Tex ela deixou no chão. Foi o relacionamento mais rápido da história da humanidade. Aline.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

AS ESCADAS DO NEW TOWER

Num movimentado edifício comercial do centro da cidade, era comum ver elementos dos mais desconfiáveis subirem e descerem as escadas. Os mesmos iam atrás dos diversos prazeres que aquelas saídas de emergência proporcionavam. Uns eram atraídos pelo descarado tráfico de tóxicos. Já outros, iam pelos números de telefones escritos nos corrimões e nas portas corta-fogo, que prometiam “barba, cabelo e bigode” entre quatro paredes e sob uma mínima quantia em reais ou até mesmo em drogas.

A segurança do prédio era falha demais. Faziam rondas com pouca freqüência e em horários já conhecidos pelos participantes daquela “feira”. Quando soavam os passos de um dos vigias por volta das 22h, traficantes, usuários e prostitutas viravam meros freqüentadores do edifício, disfarçando no hall de elevadores de cada andar. Não havia controle em relação àquela desordem. Durante o dia o movimento era menor, mas o movimento de médicos e comerciantes do prédio não intimidava aquele comércio ilegal.

Thiago era freqüentador assíduo das escadas do Edifico New Tower, que de novo não tinha absolutamente nada. Uma edificação corroída pelo descaso de seus responsáveis tinha Thiago como um dos personagens mais vistos dentro dele. 25 anos, Bissexual, viciado em cocaína, o rapaz ainda carregava uma fortuna dos pais no bolso. Quem lhe fornecia tudo o que queria era Gilson, o traficante e cafetão mais antigo da escadaria. Ele ficava sempre no 17º andar. Local privilegiado. Ali, Gilson tinha acesso aos elevadores da zona alta e da zona baixa para qualquer eventualidade; a fuga, por exemplo.
- Fala Thiago.
- Fala. Beleza?
- Beleza. Vai de que hoje?
- Estou a fim de arreganhar um desses seus travestis aí.
- Sobe lá no 19º. Os meus estão todos lá. Você sabe. É só escolher.
- Está bem.
- Só num vai bater na cara delas. Ouviu? Uma delas já se queixou de você.
- Gilson. Quem manda é quem paga. Sacou?!
Brincava Thiago, que na mesma hora é surpreendido com o cano prateado de Gilson no meio do queixo.
- Olha aqui o playboy, se você tentar algo contra uma delas de novo eu acabo com tua raça. Ouviu?
- Que isso Gilson, guarda essa coisa aí. Foi só uma brincadeira.
- Acho bom
- Vou lá.
- Vai. E não esquece de pagar. Playboy. Vai cheirar nada não?
- Já estou cheirado, Gilson.

Thiago subia correndo para o local indicado por Gilson para escolher com quem ele ia passar a noite. Chegava lá e se deparava com o torcer de nariz das meninas e dos travestis.
- Chegou! Estava demorando.
- É isso mesmo. Cheguei. Deixa-me escolher quem é que vai ser meu franguinho assado hoje.
A repulsa por Thiago era visível nos rostos daquele bando de mini-saias.
- Você.
Apontava Thiago para Regiane, um dos travestis.
- Eu vou. Mas se meter a mão na minha cara eu nem espero pelo Gilson e lhe meto a faca nessa seu focinho horroroso.
As palavras de Regiane faziam as outras se agitarem numa gozação tremenda.

Thiago ficou calado e seguiu até o hall para descer junto à Regiane. Na calçada do prédio, Thiago abre a porta de seu carro importado e carrega a mercadoria para um motel luxuoso que ficava bem próximo. Aquela rota feita por Thiago era conhecidíssima pelos viinhos do New Tower. Era conhecida como “caminho do abate”.

Seguiam sem uma palavra. O silêncio imperava dentro do veículo. Até que Regiane resolvia abrir a boca. Para que?
- Está podendo! Carrão, motel caro.
- Regiane. Do jeito que vocês são tratadas, até um pão com mortadela a faria deslumbrar. Cala essa sua boca suja de porra e limite-se a abrir as pernas quando eu mandar. Sacou?
Regiane se cala enfurecida.

Já no quarto do motel, Thiago resolvia fazer o que de fato mais lhe satisfazia numa cama. Bater. Aproveitava-se da estatura mediana de Regiane e já lhe aplicava uma tapa no rosto.
- Eu lhe avisei Thiago. Você quer que eu faça um escândalo aqui nesse lugar? Você vai preso seu animal.
- Esse motel é do meu pai, Regiane. Aqui são todos meus empregados também, sua bicha ridícula.
Regiane se sentia acuada para sacar sua navalha. No meio daquela situação ela é que poderia se danar. Achava melhor esperar as atitudes de Thiago e depois se queixar com Gilson.

Faziam de tudo naquela noite. Trocavam de papéis e se entupiam da cocaína que Regiane levava na bolsa. Várias vezes o ato era interrompido por tapas e até queimaduras com o cigarro que Thiago freneticamente conduzia da boca para o cinzeiro e vice-versa. Regiane agüentava calada guardando dentro de si o ódio que aos poucos se acumulavam.

Depois de tudo, Thiago pagava o travesti e o deixava na calçada do New Tower.
- Opa. E a coca? Não vai pagar?
- Você também é traficante. Regiane? Depois eu acerto com o Gilson.
- Não. Gilson me mata se eu chegar lá sem a grana, playboy. Paga, vamos. Cinqüenta reais. Vamos.
- Eu não vou pagar nada a você. Paguei pela sua bunda. A droga eu pago ao Gilson. E saia do meu carro. Anda.
Empurrava Regiane com violência para fora do carro arrancava.

Regiane chegava ao 17º e ainda encontrava o Gilson por lá.
- Gilson. O Thiago.
- O que tem ele?
- Me agrediu. Não fiz nada porque estávamos no motel do pai dele. E não pagou a coca que eu levava.
- Deixa. Ele volta.
Como previsto, dois dias depois, Thiago retornava ao 17º do New Tower.
- Fala Gilson.
- Fala é o caralho, playboy. Cadê a minha grana?
Ameaçava Gilson com a pistola no peito de Thiago.
- Calma cara, eu vim aqui para pagar.
- E aquelas marcas de cigarro na Regiane? Eu te avisei!
- Ela quis!
- Quis? É? Então você vai querer também. Desce comigo.
- Como assim?
- Desce comigo, playboy!

Gilson colocava Thiago no porta-malas de seu Opala e o levava para um local já bem conhecido. Um matagal já bem distante do centro. Lá, Gilson encontrava um Thiago encolhido e fedendo a urina.
- Você mijou no meu Opala? Pirou?
- Vamos conversar.
- Fica tranqüilo.

Gilson começava a amarrar Thiago com uma corda que dava medo só de olhar. A mesma era completamente manchada de sangue, dando assim total idéia do que ele pretendia com ela. Thiago chorava como um bebê.
- Pode berrar. Seu pai não vai te ouvir daqui.
Gilson começava a queimá-lo com seu cigarro, assim como Thiago fez com Regiane. Tapas. Socos. Chutes.
- Escuta aqui. Entenda porque vou explicar uma vez só. Eu não tenho você como cliente exclusivo. Sacou? Se você morre, o meu negócio continua rendendo e muito. Não admito que estrague minhas peças. Entendeu?
Dizia Gilson com o bafo na direção do nariz de Thiago, que por sua vez suava frio e continuava a chorar.
- Eu entendi. Eu entendi.
- É?
- É! Não me mate. Por favor.
Gilson levava o cano prateado à testa de Thiago na velocidade de uma tartaruga. Naquele momento, pensava no que ele perderia se acabasse com a vida daquele idiota.
- Não perco nada!
Assim, disparava três tiros na cabeça de Thiago. Deixava a corda para apodrecer junto àquele corpo inútil.

No dia seguinte, tudo continuava normal no New Tower. Pessoas eram alugadas, drogas eram vendidas e consumidas, Gilson continuava dominando o 17º andar e suas prostitutas continuavam vivendo sob as violências de um chefe que as protegiam da violência alheia. Assim caminhavam aquelas vidas.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O CORPO DE NINGUÉM

Cecília era de fato uma mulher de parar o comércio. Sempre bem arrumada, usava de roupas que mexiam com o imaginário presente nas mesas dos bares, nos bancos da praça e no balcão da mercearia, cujo proprietário e atendente era seu marido, o Roberto. Sempre que o corpo e o rosto perfeitos de Cecília se faziam presente, fosse onde fosse, o silêncio reinava e passava os dizeres aos olhos dos que ali já estavam. Na mercearia não, logicamente, mas em qualquer outro lugar, os olhares também davam espaços para frases que jogadas ao vento passavam de longe do coração de Cecília; o mesmo era todo de Roberto.

Roberto era tudo que um marido deveria ser para uma mulher, porém, ciumento. Mas ciumento como nenhum marido deveria ser com uma mulher. Mas Cecília não era uma mulher. Eras um monumento. Uma jóia rara. Não era somente linda por fora, mas por dentro também. Roberto ainda fazia questão de frisar que Cecília era ainda muito mais bela e perfeita por dentro. Imagine o que os homens daquela pequena cidade deveriam fantasiar. Uma beleza como aquela ainda ser menor do que o seu interior? Era demais para aquele monte de desocupado.

Cecília, todos os dias pela manhã, visitava o marido na mercearia.
- Oi meu docinho!
Dizia Roberto com um sorriso que fazia alargar seu bigode.
- Oi meu amor! Tudo bem por aqui?
- Tudo ótimo. Melhor agora com sua presença.
- Bem. Passei aqui para lhe avisar que recebi uma carta do Rivaldo. Meu primo. Lembra?
- Claro que lembro.
Já respondia um raivoso Roberto.
- Não vá começar Roberto!
- Você sabe que não vou com a cara desse seu primo, Cecília.
- Mas o que ele fez demais?
- Toda vez você me pergunta a mesma coisa. Responderei a mesma coisa também: Não gostei da maneira como ele dançou com você em nosso casório.
- Mas Roberto, isso faz dez anos, homem de Deus.
- Não interessa! Espero que lá em casa ele não fique.
- Pois é lá em casa que ele vai ficar Roberto. São apenas dois dias. Daqui ele vai para a casa de Tia Glorinha.
- Mas nem me fale uma coisa dessas, Cecília. Lá em casa não. E ponto final.
- OK. Então vamos brigar por conta de uma bobagem dessas?
- Você sabe que não gosto de brigar com você, minha flor.
- Então aceite que Rivaldo fique lá em casa.
- OK. Mas serão somente dois dias!
- Obrigada Roberto. Eu te amo.

Cecília nesse dia conseguia contornar os ciúmes de Roberto que não ficavam isolados a esse caso tão remoto. Em casa, Roberto tinha o costume de revistar a bolsa da esposa, cheirar as suas roupas de alguns outros atos típicos de um homem que morre de medo de perder aquele espetáculo chamado Cecília, que por sua vez já presenciava algum desses atos, sempre o perdoava. O amava demais.

Roberto sempre fazia questão de acariciar o rosto de Cecília e de dizer que se fosse de seu poder, guardava o corpo dela num cofre, e a deixava sair de casa apenas com o rosto. Ele achava que o que mais chamava a atenção dos homens na rua eram as pernas torneadas e os seios redondos e fartos mesmo sob os cortes comportados da costureira da cidade. Imaginar um rosto saindo de casa sem o corpo era um tanto quanto bizarro para a mente de Cecília. Mas a mesma ria quando ele pronunciava essa cena surreal.
- Guarde meu corpo num cofre não, meu amor. Guarde-o dentro de suas calças. É mais seguro!
Essas frases deixavam Roberto ainda mais louco em suas sugestões incabíveis.

Dois dias depois, Rivaldo chegava à casa de Roberto e Cecília.
- Primo! Que saudade!
- Eu também, Cecília! Estás linda!
- Você também, está um rapaz lindo!
Ela com 29 e ele com 23 anos, se abraçavam com a saudade de mais de cinco anos.
- Oi Roberto. Tudo bom?
Dizia o agora tímido Rivaldo.
- Tudo. Mas deve estar melhor aí, não é? Com a mão na cintura de minha esposa.
- Roberto! É meu primo.
Chamava a atenção Cecília.
Rivaldo retirava as mãos da cintura de Cecília e sem graça apertava a mão de Roberto.
- Eu espero que sua estadia por aqui seja breve.
- Roberto!
De novo Cecília.
- Não se preocupe Roberto. Ficarei apenas dois dias. E nem se dará conta de minha presença.

Envergonhada, Cecília conversava com Roberto enquanto Rivaldo levava suas malas para o quarto de hóspedes.
- Roberto. Que vergonha! O seu ciúme está a cada dia pior. Eu não sei o que será de nós se esse seu sentimento não tiver um freio. Estou avisando.

Rivaldo, de fato quase não parava em casa. Como tinha muitos amigos por ali, passou os dois dias a visitá-los. Em cada casa que passava, recebia a mesma afirmação: “Sua prima está um pedaço, Rivaldo”. Rivaldo apenas ria e se lamentava das grosserias que recebia de Roberto toda a vez que os olhos dos primos se cruzavam.
- Roberto não enxerga o amor que Cecília sente por ele. É um idiota. Ele acha mesmo que eu tenho algo com ela. Ela é minha prima. Está linda. Mas é minha prima e a respeito muito. Além de sem seis anos mais velha do que eu.
Justificava-se Rivaldo.

Na noite do último dia de Rivaldo na casa do casal, Cecília conversava com o primo na cozinha enquanto Roberto tomava banho, ou melhor, fingia tomar banho, pois o chuveiro o atrapalharia de ouvir o papo.
- Rivaldo. Você me desculpe às grosserias de Roberto. Ele é ciumento demais.
- Tudo bem, prima. Eu entendo. Aliás, uma moça linda como você.

Cecília seguia até o rapaz e lhe dava um beijo no rosto que sem querer estalava, para enlouquecimento de Roberto que ouvira e saia do banheiro ainda vestido e com uma boca enorme:
- Escuta aqui seus pervertidos. Debaixo do meu teto eu não vou admitir. Cecília. Não esperava isso de você!
- Mas o que foi que eu fiz?
- Eu escutei o beijo!
Roberto pegava uma faca e partia para cima de Rivaldo, que de malas já prontas na sala, as pegava e sumia. Cecília chorando muito na cozinha pensava que nada mais poderia fazer para conter os ciúmes de Roberto, a não ser apelas para o seu desejo louco de guardar seu corpo em um cofre e deixar apenas o seu rosto ao alcance da cidade. Interpretava o sonho de Roberto da maneira que podia. Alucinada pela raiva, não pensava. Banhava-se com o álcool que lhe estava às mãos e jogava a lamparina sob o corpo. Contorcia-se em meio às chamas, mas enrolava o rosto com a toalha de prato que havia encharcado de água para proteger um semblante que agora esticava de tanta ardência e gemidos.

Roberto ouvia os gritos de Cecília da calçada e entrava correndo para ver o que ocorria. Chegava a tempo de apagar o fogo sob a mulher com ajuda de um tapete pesado que se encontrava na sala.

Cecília ia parar no hospital e viria para casa semanas depois da recuperação das queimaduras. O corpo de Cecília ganhava marcas que ficariam por toda a vida. Roberto constatava, mesmo sem a fala da esposa, que o amor que ela depositava nele foi capaz de fazer com que a mesma se livrasse do que tinha de mais belo. Em casa, e agora somente em casa, Cecília exibia um corpo retorcido conseqüente da loucura em que Roberto conseguiu colocá-la. Aquele corpo não era mais desejado por ninguém, nem mesmo por Roberto, que se arrependia amargamente ao chorar nas fotos antigas de uma Cecília feliz.

A tristeza tomava conta daquela casa. Todas as vezes que Cecília despia-se, as lágrimas nos olhos do casal danavam a rolar. E não agüentando o peso da parcela de culpa que carregava nas costas, Roberto se enforcava sob o galho forte de uma velha árvore no quintal. Cecília perdia ali o último motivo raro de um sorriso. Chorava ajoelhada no gramado.