domingo, 29 de junho de 2008

A ORDEM DOS FATORES ALTERA O PRODUTO

“Faz 38º C no Rio de Janeiro. Está do jeitinho que o carioca gosta. Sabadão, dia de pegar aquela praia...”. Assim anunciava o locutor de uma rádio jovem às 9h da manhã. As ondas eram ouvidas através de um rádio velho que Celso, um menino de rua do Centro da cidade, havia achado em algum depósito de objetos que não mais serviam a algum indivíduo participante – diferentemente de Celso – da sociedade. O menino ouvia aquela voz tomada por uma maneira jovialmente forçada e já entendia, apesar de seus 12 anos de idade, que nada do que ali era dito direcionava-se à sua pessoa. Não que Celso fosse proibido de freqüentar a uma praia, mas sendo quem ele era, um excluído daquela troca de informação entre emissor e receptor, não possuía o conceito de que sábado era um dia para curtir, já que o menino tinha coisas muito mais importantes para fazer do de que se bronzear na areia. Era preciso decidir o que fazer durante o dia para ter o que comer à noite.

Celso nasceu na rua e foi criado nela. Sua mãe, e de mais cinco, também teve o mesmo histórico. Celso não tinha como fugir do destino daquela família. Devido à exclusão que se encontrava, não havia o que fazer a não ser sobreviver dia após dia. Um dos recursos que estavam disponíveis para a sua sobrevivência e de todos que se encontravam na mesma situação naquela concentração de seres invisíveis era entre outros o uso da violência para quebrar o bloqueio entre eles e os seres visíveis. Roubar para se vestir, para se drogar, para comer, para se agasalhar. Tudo o que era conseguido pelas pessoas inclusas de maneira simples era para Celso objetivo que necessitava de um ato transgressor para se alcançar. Não teria o que jantar se não deixasse alguém do outro lado do bloqueio sem um maço de cigarros, por exemplo, seja por meio de esmola ou furto.

Enquanto o rádio transmitia as dez músicas teoricamente mais pedidas pelos ouvintes – que se encontravam na faixa etária dos 14 aos 35 anos, os dois lados da cidade se movimentavam de acordo com suas condições. Celso esperava pela bondade de um grupo de jovens que se alimentavam numa lanchonete antes de partirem para mais um dia de surf.
- Tio. Paga um lanche pra mim?
- Tenho cara de tio, moleque? Vai trabalhar que você lancha!
Aqueles jovens faziam parte do outro lado da cidade, o lado daqueles que por se enquadrarem no sistema, possuírem condições de se instruir e consumirem aquilo que a burguesia precisa para crescer e colocar na sociedade mais indivíduos como eles mesmos, são inclusos socialmente.

Desse mesmo lado, havia num apartamento de luxo próximo dali, Lídia, uma empresária que também ouvia a rádio repetindo os refrões americanos que nada queriam dizer ao embalo daquele ritmo dançante que remetia exatamente àquilo que ela era, fútil e vazia. Arrumava-se para se encontrar com algumas amigas no shopping e fazer valer a sua participação social no consumismo exacerbado que mantinha os interesses da minoria em alta.

Celso quando na vida de pedinte era visto como problema apenas quando insistia em permanecer na porta das lanchonetes em busca de uma alma caridosa. Os donos dos estabelecimentos não gostavam. Aquilo afastava a clientela. E afastava mesmo, já que a figura de Celso pedindo um salgado e um refresco trazia à tona a real situação em que se encontrava aquela cidade. Situação esta que ninguém ali estava muito a fim de presenciar àquela hora da manhã. Mesmo assim “era melhor pedir do que roubar”, já que dessa forma quem quisesse ajudar ótimo, quem não quisesse que deixasse o Celso ali com fome à espera do próximo bonzinho. Assim, a violência se fantasiava em paz e todos ali na lanchonete poderiam tomar o seu café tranquilamente.

“É. Pedir não está dando muito certo hoje”. A partir daí, Celso se vê forçado a “caçar”. Munido de seu velho canivete, se coloca próximo a um semáforo de pouca movimentação. Ali, era bem capaz de Celso não conseguir apenas um café da manhã, mas o suficiente para se alimentar e se drogar por uma semana inteira.

Celso, integrante da classe excluída e invisível da sociedade. Lídia, importantíssima parte da classe de condições contrárias a de Celso. As vidas dos dois estavam prestes a se cruzarem por poucos segundos. Lídia parava no semáforo e falava ao celular. Celso nem pensou.
- Perdeu.
Com a lamina no pescoço de Lídia, Celso recolhe a bolsa, o celular e um colar da vítima e sai em disparada cruzando vielas e sumindo dos olhos de quem ousou persegui-lo.

Já longe do local do crime e mais seguro, Celso vasculhava a bolsa de Lídia à procura de algo que lhe servisse. Via-se diante de alguns livros que sua distância da alfabetização o impedia de identificar. Imediatamente os mesmos foram jogados ao lado para que a busca se tornasse mais fácil. A desfeita daqueles livros ajudava Celso a avistar uma carteira de couro legítimo com uma boa quantia em dinheiro e cartões de crédito no fundo da bolsa.

O ato cometido por Celso foi apenas um na enorme cadeia da violência, que tem seu início na atitude mais cruel que é a forma como o poder lida com a educação do nosso país. A ausência dos livros o ajudava ali a enxergar o que precisava naquele momento, quando anos antes daquela cena acontecer, outros livros poderiam ter ajudado-o a ter hoje o que precisa sem ser o ator da mesma.

Celso é, antes de ser um infrator das regras sociais, uma vítima das próprias regras que infringe para sobreviver no lado da cidade onde se encontra sem muitas escolhas ou chances.

A EDUCAÇÃO É A BASE DE UMA SOCIEDADE, MAS A CONSCIÊNCIA DE QUEM TEM O PODER DE CONDUZI-LA E DISTRIBUÍ-LA É QUE DEFINE O ESTADO DA MESMA!

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A PROCURA PELO INÉDITO

Por volta das 19h, do 26º andar de um antiguíssimo prédio, no centro da cidade, avistava-se sempre a luz acesa da sala de Celso, um jovem solitário, trabalhador e a princípio dono de uma conduta normal. Saía diariamente às 6:45h para o seu emprego de guardador de automóveis num estacionamento rotativo bem perto de sua residência. Era de poucas palavras. Entrava no elevador:
- Bom dia.
- Bom dia.
Isso era tudo.

Durante sua jornada, Celso tratava os clientes do estacionamento com muita educação e guiava os carros com destreza e precisão. Até às 17h, Celso era um típico empregado exemplar. Aquele que todo o chefe gostaria de ter aos montes em suas máquinas de fazer cédulas. Lá, o jovem também se mostrava quase que mudo, porém, executava suas obrigações sem reclamar jamais. Um funcionário que não fala, apenas executa. Um exemplo, não?

Quando Celso chegava à sua casa, todo o mundo ficava lá fora, fazendo companhia ao tapete que trazia escrito em si um “bem vindo” pouco lido, já que Celso não recebia visitas em sua casa. Sem amigos nem familiares próximos, o rapaz era o mistério em pessoa. Sabia que os vizinhos pagariam alto para enxergar um metro quadrado de seu apartamento. Mas o que acontecia por lá era de conhecimento apenas de Celso.

Celso possuía uma mania um tanto quanto estranha. Ele, apesar de ser o mais normal dos normais, se sentia extremamente incomodado com a normalidade e a previsibilidade das coisas que o cercavam. Não conseguia entender o por quê que certas coisas nunca aconteciam. “Por que os cachorros de rua não se uniam para dormir todos em frente ao shopping?” “Por que os recolhedores de lixo não jogavam toda aquela sujeira sobre os carros de luxo estacionados?” “Por que as pessoas não apedrejavam a casa do prefeito?” Essas perguntas sempre vinham seguidas por atos que Celso praticava na calada da noite a fim de concretizar as suas próprias respostas.

Celso gostava de pegar o jornal e avaliar a cara de babaca de algumas autoridades ao tentarem dar respostas convincentes aos atos cometidos na noite anterior. Ele lia aqueles jornais e ria por dentro sem jamais soltar um sorriso sequer.
- Que barbaridade.
Ele dizia.

- Por que um repórter nunca morre no meio de um telejornal?
Essa pergunta martelava forte na cabeça de Celso durante alguns anos. “Seria bacana ver um apresentador do jornal do horário nobre levando uma bala no meio da testa. Ao vivo. Seria impressionante”. Celso vivia uma rotina calada, mas buscava sempre dentro de si alguma cena inédita para causar. Essa do telejornal seria uma realização ímpar para Celso. Ele sempre sonhava com isso.

Meses se passaram. Um certo dia, no trabalho:
- Olá Celso.
- Olá.
- Adivinha para onde eu vou essa noite?
- Onde?
- Num estúdio de TV.
- Fazer o que lá?
- Conhecer o casal de apresentadores do telejornal.
- Do telejornal? Você está se referindo ao...
- Esse mesmo, amigo.
Celso pensou em seu desejo e soltou:
- Como conseguiu?
- Meu cunhado, esposo da minha irmã, trabalha lá e conseguiu que eu fosse com ele essa noite.
- Nossa. Legal. Será que eu poderia ir também?
- Eu vou ligar para ele e perguntar. Eu te digo no fim da tarde. OK?
- OK.

Durante aquela tarde Celso não pensou em outra coisa.“Usar aquela raridade bem na testa daquele mentiroso”. Ele se referia ao 38 que guardava na gaveta. Mas a dúvida era, se confirmada a possibilidade de ir até o estúdio do telejornal, como entrar com a arma naquele império? Teria de haver um jeito, pois Celso não teria outra chance dessa tão cedo.

- Celso!
- Diga, Afonso.
- Está certo. Pode ir comigo lá.
- Poxa! Que bacana! Estou muito feliz com isso.
- Então, esteja pronto às 19h. OK?
- Estarei.
Celso confirmava sua presença sem saber ao certo o que faria. “Como entrar lá com a arma?” “Como acertar o tiro sem deixar rastros num estúdio de TV?” Dúvidas e mais dúvidas de uma cabeça doentia.

Na verdade Celso não media as conseqüências desse ato. Onde já se viu? Assassinar o apresentador do jornal mais assistido do país ao vivo. O que poucos sabiam é que Celso apresentava-se de uma forma durante o dia, em sua vida social, e de outra durante a noite, em sua casa e durante as ações onde procurava o inédito de uma vida tão rotineira. Ele acreditava que causava tais situações não somente para sua própria satisfação, mas para a de uma população que esperava a cada dia por algo fora dos padrões. Mas nada se comparava ao assassinato que planejava. Mesmo porque Celso jamais havia matado alguém. Só que as suas procuras eram mais fortes que as precauções. “Quem disse que preciso de uma arma para isso?” Decidia então que não levaria o revolver.

Às 19h, Celso se encontrava em frente seu prédio à espera de Afonso. Uma buzina alertava Celso. Era Afonso ao volante.
- Vamos embora, Celso.
Gritava Afonso.
- Estou indo.
- Entre aí.
Os dois seguiam assim para a grandiosa empresa televisiva.

Chegando lá:
- Afonso Luiz Barbosa Neves
Identificava-se na portaria.
- Esse é o Celso... Celso de quê?
- Celso Aguiar.
- A identidade de vocês, por favor.
- Claro. Vimos a mando de um funcionário de vocês, o Egberto Lima.
- Sim. Está aqui. Podem ir. Este senhor os levará até o estúdio.
- OK.
- OK.

- Caramba, Celso, nem acredito que vamos assistir o telejornal de dentro do estúdio da Rede...
- Ih. Olha ele ali.
Interrompia Celso.
- Quem?
- O...
- Não brinca!
- É ele passou ali agorinha. Entrou naquela porta.
O segurança que os acompanhava apenas observava os dois.

No último corredor antes do estúdio, Egberto, cunhado de Afonso, aparece.
- Olá.
- Olá. Esse aqui é o amigo que lhe falei, o Celso.
- Ah sim. Tudo bem, Celso?
- Tudo.
Celso não parava de observar cada canto daquele lugar.
- Bem, vocês entrem e se acomodem naquelas cadeiras ali atrás das câmeras. OK?
- OK.
- OK.

Sentados lá, observaram os preparativos para a transmissão. Muitos equipamentos, muitas pessoas transitando pelo estúdio. Celso mantinha-se calado enquanto Afonso se deslumbrava com toda aquela estrutura. Até que o famoso casal de apresentadores adentrou e tomou sua posição diante das câmeras. Afonso permanecia boquiaberto. Celso analisava. Um pedido de silêncio foi dado. O jornal acabava de entrar no ar.

Celso suava frio.
- Está nervoso?
Perguntava Afonso em voz baixa. Celso mantinha-se mudo.
- Cara, você está tremendo. O que há?
Celso somente olhava fixamente para o âncora.
- Celso?
Celso levantava rapidamente de seu assento e com apenas três passos largos e velozes ultrapassa a linha das câmeras e chega até o pescoço do alvo. Na mesma hora, surgem várias pessoas da equipe para retirar Celso de cima do apresentador.
- O QUE ESTÁ FAZENDO, CELSO?
Gritava Afonso.
- VEJA QUE MARAVILHOSO AFONSO, EU VOU MATÁ-LO AO VIVO!
Um amontoado de gente agora se encontrava sobre Celso e a vítima. Ninguém teve força suficiente para retirá-lo de lá.
- DEIXEM AS CÂMERAS LIGADAS. AS PESSOAS QUEREM ALGO INÉDITO!
Gritava Celso totalmente possuído por uma ira assustadora. A esposa do apresentador apenas gritava aos prantos.

As câmeras transmitiram apenas os primeiros segundos do ato. Logo depois a transmissão havia sido interrompida. Celso, dono de uma força inexplicável, mata por estrangulamento o mais famoso âncora dos telejornais da atualidade.

- ME PRENDAM! MATEM-ME! MAS AMANHÃ OS JORNAIS NOTICIARÃO AQUILO QUE UM DIA EU QUERIA VER! FOI LINDO!
Berrava um Celso transformado e levado à força pelos corredores do estúdio rumo à delegacia.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

JAZZ

Já era possível ouvir a voz poderosa de Mônica ecoando por quase todo o prédio quando a mesma tinha apenas 13 anos. Os vizinhos nunca reclamaram. A voz de Mônica agia como a felicidade adentrando em seus apartamentos. A menina era carinhosamente apelidada de rouxinol, passarinho e voz de anjo. Ela gostava. Nunca havia estudado canto. Sua escola tinha sido a velha coleção de discos de sua mãe. Lá, a menina encontrava as grandes divas do jazz americano.

Mônica ouvia diversas vezes uma mesma música até que a estivesse por inteira na memória. Quando uma pausa na vitrola era dada, os vizinhos já sabiam que a menina começaria a cantar aquela música do início ao fim e na mesma tonalidade da gravação original, já que sua capacidade vocal era absurdamente extensa. Mas Mônica não se mantinha apenas na linha vocal no disco registrada, ela improvisava em cima das complexidades harmônicas do jazz e ainda imitava os solos de trompete, sax, guitarra, piano. Executava com perfeição os vocalizes de Ella Fitzgerald. Era impressionante.

A menina franzina logo deu lugar a uma linda e estonteante mulher. Aos 19 anos, Mônica já cantava nas diversas casas noturnas da cidade. Não cantava qualquer coisa. Cantava apenas aquilo que representava igualmente um desafio para ela e um prazer inenarrável para o público que a assistia. Diversas vezes foi chamada para integrar bandas “antenadas” no cenário musical contemporâneo, mas recusava sempre por acreditar que não se faziam mais músicas como nas décadas passadas. Sentia com isso uma saudade de uma época não vivida. Por isso, cantava sempre com olhos fechados e procurava imaginar ali no palco estar diante de uma platéia em preto e branco atenta ao que ouvia e ao que sentia com isso.

O tempo passou e aos 25 anos, Mônica se via presa aos limites de alguns bares. Suas interpretações não eram aceitas em qualquer casa, porém, nas casas onde era recebida obtinha aceitação total por parte dos presentes, que freqüentavam assiduamente as suas apresentações. Em algumas ocasiões, Mônica recebia o triplo do cachê previsto por conta das inúmeras “gratificações” vindas da platéia. Ela se apresentava com um experiente guitarrista local, o Alfredo Ramos, que conhecia praticamente todos os standards de jazz, sendo assim, todos os pedidos eram prontamente atendidos pela dupla. Alfredo sorria encantado a cada nota emitida por Mônica. Era lindo de se ver.

Mônica perdia seus pais aos 27 anos em um acidente de automóvel. Ela soube da notícia através de um telefonema logo após um de seus shows. Não se conteve e desabou em lágrimas nos ombros de Alfredo, que apenas consolava-a. O caminho daquela dupla de poucos e fiéis ouvintes parecia ter findado a partir daquele momento. Mas não era do gosto de Alfredo nem de seu público.
- Mônica. Você vai superar isso. Conselho de um velho de 49 anos que perdeu os pais aos 16.
- Sei que vou, Alfredo. Mas como farei sem eles? Que forças eu terei para cantar?
- Cancelaremos os shows por tempo indeterminado. OK?
- Mas você vive disso, assim como eu. Como faremos?
- Eu me viro, Mônica. Quando estiver bem, me procure e voltaremos a nos apresentar.
- Obrigada. Não sei o que seria de mim sem você.
- Descanse. Você está no seu auge. Em breve estará pronta novamente.
- Obrigada.

Mônica seguiu os conselhos de Alfredo e passou então dois meses sem soltar a voz. Durante todo esse tempo, Mônica se manteve o mais longe possível da música, mas freqüentemente telefonava para o guitarrista. Até que um dia:
- Oi Alfredo.
- Oi menina. Como estás?
- Melhor. Já se passaram dois meses. Recebi telefonemas do Sr. Glauber, o dono do Jazz Bar. Quer que voltemos o mais rápido possível. Seus clientes parecem sentir nossa falta.
- Mas como você se sente?
- Pronta!
- Ótimo. Quer um ensaio?
- Quero um bom whisky e seus acordes, Alfredo, somente isso.
- Que bom!

Naquela semana uma faixa enorme se encontrava na frente do Jazz Bar: “Nesta sexta, Mônica Lisboa e Alfredo Ramos de volta com o melhor do jazz”.
- Olhe isso, Mônica.
Alfredo mostrava a faixa à Mônica.
- Olha essa fila, Alfredo.
- É!
Ambos não acreditavam mais o número de clientes na fila era bem maior do que de costume.

Aquele foi o melhor show de Mônica até então. Casa lotada, Alfredo tocando como nunca. A voz de Mônica dispensava comentários, parecia ainda mais precisa e clara. As lágrimas de Mônica ao cantar certas canções davam ainda mais beleza ao espetáculo. O silêncio tomava conta de todo o Jazz Bar enquanto a dupla despejava o melhor do estilo para aqueles amantes.

Depois do show:
- Alfredo.
- Diga, menina.
- Foi fabuloso hoje.
- Sim. O show foi realmente fabuloso.
- Também, mas me referia a você.
- Ora, eu sou apenas a harmonia por trás se seu talento.
- Também, mas me referia a tudo o que fez por mim até hoje.
- Mônica. Só um louco não lhe ajudaria. Você é especial.
- Você também é especial para mim.

Mônica lhe tocava os lábios com os seus lentamente enquanto Alfredo paralisava ao limpar as cordas de sua guitarra. A casa já se encontrava vazia. Apenas os garçons que arrumavam o local testemunharam a entrega de Mônica à doçura de Alfredo através de um beijo cercado de bebidas mesas vazias. Então cantava “Body and Soul” ao ouvido de Alfredo, que sorria.

***
Foto da capa: Gabriel Andrade [meinframer.wordpress.com]

quarta-feira, 18 de junho de 2008

MENOS UM

Já fazia um certo tempo que minha mãe lutava contra um câncer no seio e essa luta era muito minha também, já que éramos somente ela e eu nesse mundo. Meu pai sumiu de casa logo que soube da doença, o que o fez imaginar de imediato o tamanho do trabalho que o esperava pela frente. Trabalho esse que eu herdei até com um certo alívio. Meu pai nunca serviu para nada mesmo. A bebida era a única coisa que lhe arrancava algum esforço. Antes só do que mal acompanhado. Então, dos 17 aos 22 anos eu cuidei da minha mãe da melhor forma possível.

Não foi nada agradável, mas também não foi nenhuma surpresa. Eu estava descarregando um caminhão lotado de eletrodomésticos.
- Murilo!
Chamava-me a recepcionista da loja onde eu trabalho.
- Oi.
- Telefone para você. É do hospital onde sua mãe...
- Dê-me aqui. Obrigado.
Recuperei o fôlego.
- Pois não?
- Sr. Murilo Almeida?
- Sim, sou eu.
- Solicitamos o comparecimento do senhor aqui no hospital, por favor.
- O que houve com minha mãe?
Eu perguntava já com a resposta em mente.

Chegando lá eu constatava que minha mãe não havia resistido dessa vez. Era um choque e ao mesmo tempo um alívio. Saber que aquele duplo sofrimento havia se findado me fazia chorar as lágrimas que tanto tempo estavam guardadas. Era uma dor terrível. Apesar de entender que a morte era a melhor saída para a sobrevida de minha mãe, a impressão do chão se abrir sob meus pés era presente e forte.

Graças ao seguro funeral de minha mãe, me livrava das burocracias, tendo assim tempo suficiente para chorar a minha dor e pensar como seria a minha vida sem a presença de minha mãe. Um telefonema foi tudo o que eu precisei fazer para que ela tivesse um enterro digno da pessoa maravilhosa que era. Pensei que precisava avisar aos familiares. Mas que familiares? Éramos somente ela e eu. Não havia primos ou tios. Meu pai eu nem sabia por onde andava. Não havia ninguém. Dei-me mais conta disso quando me vi sentado sozinho no velório ao lado da urna florida.

Passei a noite e a manhã ali. O enterro estava marcado para as 12h. Ao lado, um senhor também era velado, com a diferença de que havia bastante gente por ali. Parecia uma espécie de festa. Algumas pessoas riam, contavam piadas. Nem todas ali estavam realmente sentidas pela perda daquele homem. As crianças, possivelmente netas do falecido, corriam sem parar. Eu observava aquilo tudo sem deixar de pensar que não havia dado um neto à minha mãe. Nem namorada eu tinha, ora. O enterro ocorreu de forma bastante rápida. Somente eu e mais três funcionários do cemitério. Dei então o meu último adeus.

No ônibus.
- Alô, Dr. Macedo?
- Quem fala?
- É o Murilo, do setor de carga e descarga.
- Olá. O que houve?
- Minha mãe faleceu.
- Oh! Sinto muito, Murilo.
- Tudo bem.
- Pode ficar em casa o restante da semana. OK?
- Muito obrigado.
- Meus sentimentos.
- Obrigado.

Meu chefe foi diferente; bastante gentil. Impressionante o poder que a morte ainda tem de anestesiar o mais bruto dos homens. Da janela da condução eu avistava a cidade se movimentando da mesma maneira de sempre. Ficava claro que a morte de minha mãe era um problema apenas meu e o fato não iria impedir que os empresários continuassem lucrando, inclusive meu chefe, que as partidas de futebol da rodada do campeonato estadual ocorressem, que a chuva deixasse de cair.

Nada havia mudado. Aquela tarde se mostrava diferente apenas para mim, que acabava de perder a única pessoa de minha vida. Um vazio enorme tomava meu peito, mas somente o meu peito. Lá fora tudo permanecia igual. Exceto o luto oficial de três dias decretado pelo prefeito por conta da morte de um tal ídolo do futebol. Não me recordava o nome dele. Só sabia que ele havia nascido na cidade, mas passou toda sua vida na Europa. Lembrava que lá no velório daquele senhor tinha um velho vestindo uma camisa preta com a foto desse jogador estampada.

Provavelmente, lá na loja, a grande maioria dos funcionários deve estar recordando os maravilhosos dribles do defunto “europeu” e nem se deram conta da minha falta. Somente quando aquele caminhão enorme chegar e notarem que eles são seis e não sete como sempre.

Ao decorrer da viagem a vida ia voltando lentamente ao normal. Via que era assim mesmo. A gente deixava um ente querido debaixo da terra e continuava a nossa vida para que outros mais tarde e nos enterrasse também. E o nosso enterro seria assim ou assado de acordo com o que você representasse para as pessoas.

Observando uma fila de trabalhadores numa manifestação que não causava nenhum tipo de atenção por parte da sociedade eu começava a pensar se não era mesmo esse o caminho que a grande maioria buscava durante toda a sua vida; a valorização de sua existência para que depois da morte seja lembrado como mais um na sala dos importantes. Caso contrário, será apenas menos um. Percebi que assim eu serei.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

JEITO PARA O NEGÓCIO

Certo dia, eu, folheando um álbum de fotografias de minha infância, me vi diante de minha pessoa há mais de vinte anos atrás vestindo uma camisa do Fluminense. Logicamente a idéia de tirar uma foto minha e de meu irmão com aquele uniforme só poderia ser de meu pai. Meu irmão e eu, ali, sem saber o real significado daquela camisa, posamos felizes.

Lembrei de quando meu pai, louco pelo esporte, chegou a casa com a notícia de que começaríamos na escolinha de futebol do Clube Cinco de Julho, no bairro onde morávamos (onde eu ainda moro). Meu irmão reagiu com bastante animação. Eu, para ser sincero, não lembro da minha reação, só lembro de sairmos para comprarmos chuteiras, shorts e camisetas para aquilo. Na mesma semana, minha mãe se encarregou de nos inscrever. Inscritos, começamos a comparecer às aulas de futebol do Alderico, vulgo Tio Aldo.

O Tio Aldo é um personagem não muito importante nessa história. Ele mantinha na escolinha os seus dois filhos; Alderico Júnior, o mais velho, e Rafael. Ambos muito ruins de bola, mas eram filhos do professor. Fazer o que? Parecia mais uma escolinha montada para que os seus filhos aprendessem a jogar futebol. E nós? Bem, não se joga futebol sozinho. Precisava de cobaias.

Chegando lá na escolinha, íamos nos reunir com o grupo de meninos que ali permaneciam à espera do apito para início das atividades. Antes que este fosse soado, o papo não poderia ser outro; futebol. “Qual o seu time?” Lembro de rirem de meu irmão e eu por sermos “torcedores” do fluminense, pois para aquela molecada, time era flamengo, o resto era... Ah. Sei lá.

O apito dava o sinal de que devíamos ir para o centro daquele campo de areia, que naquele tempo me parecia tão grande. Não sei por qual motivo, Tio Aldo me disse que eu jogaria de centro-avante. OK. Mas o que seria um centro-avante?
- Você vai atacar pelo meio!
- Está bem.
Respondi sem entender muito.

Ao meu irmão foi passada uma posição de defesa. Acho que por ele possuir um corpo mais desenvolvido que o da grande maioria ali. Lembro que meu irmão já tinha músculos onde em mim sobravam ossos.

Quando o treino começava, eu procurava estar onde a bola estava, não me preocupando muito com a definição dada por Tio Aldo. Lembro de meu pai falando e rindo, provavelmente já certo de que eu não levava o mínimo jeito para o negócio: “Ele corre o campo todo, o danado”. Meu irmão, pelo contrário, já demonstrava uma boa desenvoltura com a redonda. Eu notei logo essa situação quando reparei que meu pai, que jogou futebol durante toda a sua vida, dava uns toques para o meu irmão e para mim apenas alguns sorrisos.

Além da minha total falta de domínio com a bola, eu notava também que algo estava errado. Centro-avante é atacante. Atacante que num faz gol? Achava que eu poderia estar é na posição errada. Isso, somado a imensa vontade de vestir uma camiseta de manga comprida e diferente daquele bando de crianças que vestiam verde, me fez querer jogar no gol. É. Virar goleiro.
- A baliza é muito grande para você, meu filho!
- Mas eu quero ser goleiro, pai! Minha mãe pode até fazer um blusão de goleiro para mim.

Minha mãe, costureira de mão cheia, aceitou a idéia. E deve ter pensado: “O garoto é tão ruim na linha, quem sabe?”. Ela aproveitou-se de alguns tecidos que suas freguesas deixavam aos montes e escolheu um especial para fazer o meu blusão; um verde. Na verdade, a cor pouco me importou. O legal é que tinha espumas no cotovelo e nos ombros, eu acho. Não tinha luvas. Mas eu era doido para usá-las. Eu era tão magrinho e pequeno que não faziam luvas para o meu tamanho.

No primeiro dia como goleiro, foi aquela alegria. Alegria dos meninos que já previam o que ocorreria com aquela tampinha defendendo o gol. Os risos tomaram conta do campo. Acho que meu irmão tomou as minhas dores, não lembro. E quem encararia meu irmão? Um soco dele bem dado faria um belo estrago.

Nos treinos do Tio Aldo, quando findava o primeiro tempo, os times trocavam de campo, porém, os goleiros permaneciam. O que fazia o goleiro jogar com os dois times durante o jogo. Na verdade eu nunca entendi direito o por quê disso. Mas tudo bem. Isso me forçara a no primeiro treino como goleiro engolir quatro frangos, dois de cada time. Eu era zoado pelos dois ataques e levava bronca das duas defesas. Incrível.

Aos poucos fui entendendo que não adiantava eu insistir naquilo. Meu irmão sim. Já mostrava habilidade ao driblar com facilidade o Alderico Júnior. Eu ria. Tio Aldo não. A minha carreira terminou quando ao fazer uma das minhas raras defesas, caí com as mãozinhas sobre um monte de cacos de vidro jogadas na beira do campo. Cortei-as. Lembro que sangrou bastante. Nunca mais quis voltar para a escolinha.

Meu irmão seguiu em frente. Aquele amontoado de crianças pernas-de-pau já estava pequeno para ele. Eu não me lembro bem da ordem dos fatos, mas lembro que aos poucos, meu irmão foi jogando em tudo que era time dali do bairro e de bairros vizinhos também. Telerj, Lira, Henrique Lage, Tio Sam, Viradouro e tantos outros. Inclusive enfrentando o Cinco de Julho, onde o Alderico Júnior era capitão. Esses jogos foram os mais legais que assisti. No campo, Allan, meu irmão, versus o Alderico, que, coitado. Allan firmou-se na posição de volante e era bacana o ver jogar. Meu pai o incentivava demais e o acompanhava também.

Antes dos times de bairro, aos quinze anos, Allan foi chamado para jogar em São Paulo, no time do Guarani. Foi uma grande alegria para o meu pai vê-lo ali diante de um procurador que administraria a vida profissional dele, que àquela altura já jogava como gente grande. E eu? Eu já tinha largado o futebol antes mesmo de começar e ouvia tudo aquilo deitado de barriga para o chão no meio de lápis e hidrocores. Eu desenhava e sonhava em aprender violão. A MTV no canal VHF ajudou a milhares de adolescentes como eu a querer tocar aquilo.

Meu irmão foi para São Paulo, mas não ficou lá nem dois dias. As condições não eram boas e ele desanimou. Voltou para casa um Allan um tanto quanto desiludido com a carreira de atleta. Meu pai não se conformou no início e até chegou a dizer que não correria mais atrás de nada para ele. Vocês acreditaram? Nem eu. Logo depois estavam os dois por aí fazendo testes em outros clubes.

Foi quando ele completou dezoito anos e resolveu que entraria para o curso de Geografia da UFF. Prestou vestibular, foi aprovado, cursou, formou-se e hoje leciona a matéria em diversos colégios. Simples assim!

E eu? Aos dezesseis, meu pai finalmente resolveu pagar um curso de violão. Até comprou o meu primeiro instrumento com R$ 70,00 - um Málaga que até hoje está no meu quarto -, mas sob a seguinte frase: “quero ver se vai tocar essa coisa mesmo”. Passou na minha cabeça que se meu irmão já teria desistido da carreira que meu pai sempre sonhou para ele, não seria eu que teria feio diante de um simples instrumento de madeira e náilon. Em seis meses já me apresentava nos recitais do curso com composições minhas. Mas isso não era importante. O violão só foi levado a sério anos depois, quando recebi meu primeiro cachê como músico. Então ouvi: “Até que você levou jeito para o negócio”.

Sigo ainda nas confusões de minha vida e tomando cada cena dessa descrita como lição de como devemos ser persistentes num caminho só, como fez meu irmão, mas o quanto é necessário que pisemos um pouco em cada caminho, como eu venho fazendo ainda sem sucesso.

terça-feira, 10 de junho de 2008

OS BRAGA EM GUERRA

Todos na vizinhança já sabiam do modo de vida da família Braga. Uma verdadeira guerra entre paredes, onde valores como respeito eram totalmente ignorados. O Sr. Dorival Braga, a esposa D. Olga Braga e a filha do casal, Raquel. Bastava o chefe de família chegar em casa com suas doses a mais de whisky para que o vasto vocabulário de xingamentos fosse exibido pelos três em alto e bom som. Dorival chegava, fazia o mesmo discurso de sempre contra Raquel, Olga se metia e a confusão estava iniciada. Sempre. Diariamente nessa mesma ordem de fatos.

Raquel, 16 anos, estudava numa boa e caríssima escola de classe alta, porém, estudar era o que a menina menos fazia. Colecionava admiradores, fofocas, horas de papo no celular e na Internet com amigos e outros que ela nem se quer tinha visto na vida. Enfim, Raquel estava na escola para aumentar o seu ciclo de amizade e exibir suas roupas adquiridas semanalmente com ajuda da mãe que não dispensava um único sábado de shopping.

Na família Braga era Dorival contra Olga e Raquel. A Olga era uma madame. Não lavava sequer um copo. Tinha quem fizesse tudo naquela casa. Vivia sob as de Dorival, empresário bem sucedido, porém infeliz com a família que possuía. Se já não bastasse uma filha que não dava o mínimo valor ao seu suor, tinha ainda a esposa, eterna protetora de Raquel. Isso o levava à fraqueza. Saia do escritório já encharcado de whisky. Talvez assim fosse mais fácil, entre outras tarefas, fazer vista grossa à mão maliciosa do namorado de Raquel, Pedro, que insistia em apalpar os pequeninos seios de Raquel no meio da sala. Dorival reclamava, discursava, era ignorado pelo casal e ainda tinha que escutar a voz irritante de Olga a lhe passar a conversa de que na idade de Raquel os namoros eram assim mesmo. Pronto. Mais guerra.

Um certo dia, Pedro propôs a Raquel que pusessem em prática uma transa a três com Tadeu, amigo do casal. Raquel, fácil demais, aceitou na hora.
- O lance é o seguinte. Eu e Tadeu entraremos no motel no meu carro, como se fossemos um casal de gays. Você, por ser menor de idade, virá no porta-malas. Quando entrarmos na garagem do quarto e descermos a lona, ninguém vai lhe ver e estaremos prontos para brincar.
- Caralho, Pedro. Muito safado, pensou em tudo!
- Claro. Será amanhã.
- Está bem.

No dia seguinte, seguem os três para um motel barato na beira da estrada. Raquel no porta-malas vinha imaginando as loucuras que fariam juntos. Pedro e Tadeu riam com toda aquela situação. Raquel não podia imaginar – e também não podia ver – é que o recepcionista do motel era um ex-amigo dela, o Jorge, que conhecia o Pedro de vista e sabia que era namorado dela. Pedro e Tadeu encenaram de forma brilhante. Jorge, sem palavras, entregou a chave do quarto e ria sem parar por dentro. Na mesma hora, capturou aquela cena através da câmera de segurança da entrada do motel e não teve pena, divulgou no maior site de vídeos da Internet com o título de “Raquel – a cega”.

Devido ao excelente trabalho de divulgação de Jorge entre os amigos de Raquel, o video foi um sucesso estrondoso. Na semana seguinte, Raquel teve que lembrar das orgias estonteantes que fizera com Pedro e Tadeu como um pesadelo. Ela estava sendo ridicularizada pelos os amigos por namorar uma bicha daquela. Pedro e Tadeu então, não tinham o que dizer. Contaram a verdadeira história para os amigos, mas ninguém levou a sério. Não tiveram escolha:
- Raquel, viu a merda que deu?
- Vi, Pedro. Culpa sua, seu idiota. Por que eu fui cair na sua conversa?
- Calma. Temos um jeito. Você fará um video contando toda a verdade e colocaremos na Internet, simples!
- Simples? Vocês ficaram malucos? Você acha que eu estou disposta a me expor dessa forma?
- Você é quem sabe, Raquel. Ou faz por bem ou faz por mal.
- O que? Estão me ameaçando?
- Sim! É contigo agora.

Sem saber o que fazer, Raquel contou toda a história para sua mãe, que logicamente, achou super normal e achou melhor pedir proteção a Dorival. Raquel não aceitou, mas à noite, Olga contou tudo para Dorival.
- Foi isso Dorival. E agora, Raquel está correndo perigo. Faça alguma coisa.
- Essa vagabunda vai ver só.

Dorival partiu em disparada para o quarto da filha na intenção de dar-lhe uma surra. Chegando lá, encontrou Raquel com uma arma apontada para ele.
- Se tocar a mão em mim eu juro que atiro.
- Raquel.
- Eu juro.
- Eu não vou fazer nada. Vamos conversar.
- Você contou a ele, não foi, mamãe?
- Contou sim, filha. Ela contou e precisamos fazer alguma coisa. Abaixe essa arma.
- Eu vou fazer o video confessando toda a verdade. Vou livrar eu, Pedro e Tadeu dessa vergonha e assumir de vez o tesão que tenho nos dois juntos. Sabe por que? As mãos de Pedro dentro da minha blusa são pouco para me saciar, papai e o meu tesão você não pode reprimir. Entendeu?

Dorival teve um ataque repentino, tamanha quantidade de sentimentos de uma vez só. Raquel matou o pai sem disparar sequer um tiro.

Conto publicado originalmente em 13 de novembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O LIMITE DE UM CONSCRITO

Lauro chegaria à maioridade em outubro daquele ano. Logo, como todos os jovens do sexo masculino de nosso país, Lauro se dirigia por volta das 5h para uma silenciosa e deprimente fila para de alistamento ao Serviço Militar obrigatório. “Servindo ao exército, você aprenderá a superar seus limites”, dizia Carlos, seu pai.

Ia sozinho. Era o único do ano de 1984 na sua rua. Sem companhia, chegou ainda mais calado que os outros que já ali aguardavam. Ainda estava escuro e muitos dos rapazes dormiam agachados sobre o meio-fio. Lauro ficava analisando o porte de cada rapaz na intenção de adivinhar quais daqueles serviriam ao exército e quais “sobrariam”. “Esse fica. Esse sobra. Aquele sobra, Aquele fica com certeza”, pensava Lauro.

Mais tarde, a porta do estabelecimento se abria. Lá de dentro saía uma senhora com a pior cara já vista por Lauro. Ela ficava encarregada de medir e pesar os rapazes, assim como carimbar as fichas e anotar alguns dados. Todos passaram por aquela burocracia básica, a primeira de todo o processo, com muito sono e apreensão. Atrás da ficha de Lauro, continha a data e o local onde ele voltaria a se apresentar. Seria no 3º BI, o Batalhão de Infantaria, também conhecido entre os conscritos* como “buraco do inferno”.

*Cidadãos brasileiros que, no ano que completam dezoito anos, participam do processo de seleção para o Serviço Militar.

Dias depois, Lauro se dirigia então para o batalhão indicado para uma série de exames médicos. “É nessa que eu fico. Eu não enxergo um palmo diante do nariz e sou fraco feito uma mosca. Vou sobrar”, pensava Lauro. Chegava lá e já era, assim como os outros rapazes, recebido por um soldado que saía de sua guarita para indicar o local onde esperaria pelo oficial responsável pelo processo de recrutamento.
- Por favor, para onde me dirijo?
Lauro mostrava o verso de sua ficha para o soldado.
- Não está esquecendo de nada?
- Eu disse “por favor”.
- Mas não disse SENHOR!
- E por que deveria?
Lauro não suportava os militares. Principalmente os que carregavam resquícios da ditadura sem nunca terem feito parte dela.
- Com quem você pensa que está falando?
- Com um soldado do 3º BI. Estou errado?
- Paga dez.
- Como?
- Paga dez para mim. AGORA!
Lauro, mesmo sem concordar, mas com medo daquele soldado lhe causar problemas futuros, executou as dez flexões ordenadas.
- Muito bem. Agora, o que queria saber mesmo?
- Para onde me dirijo, senhor.
- Agora sim. Vá até aquele galpão e aguarde ali junto com aqueles outros conscritos. Seu CONSCRITO!
Lauro seguia até o galpão com ódio.

As esperas eram eternas. Alguns grupos já conversavam entre si. Lauro preferia permanecer sozinho e pensar o que faria caso servisse. Na cabeça de Lauro o serviço militar era algo totalmente descartado. “Eu trabalho. Vou inventar que minha família precisa do meu salário. Eles não fariam uma truculência dessas”, pensava.

Enfim, um Sargento com uma voz rouca começava a chamar os nomes. Primeiro esse mesmo sargento fazia perguntas óbvias, inclusive se o indivíduo queria servir. A resposta de Lauro foi “não” e o motivo alegado foi o sustento de seus pais doentes. Horas mais tarde:
- Lauro Esteves da Silva.
- Aqui.
- Vem comigo.
- OK.
- OK? Você disse OK?
- Não senhor, digo, sim senhor...
- Venha logo seu mocorongo*.

*Termo usado com freqüência entre os militares, que significa “pessoa lesada”.

Lauro chegava numa sala com um amontoado de letras de todos os tamanhos na parede. “Daqui eu não saio. Sou praticamente cego”, pensava Lauro. Um outro sargento se aproximava.
- Fique aqui nesta linha.
- Sim senhor.
- Agora tape o olho direito.
- Sim senhor.
- Me diga agora as letras daquela primeira fileira.
- “A”, “Z”, “D” e “S”.
Lauro lia as maiores letras do quadro.
- Muito bom. Agora as de baixo.
As de baixo eram menores.
- “B”, “F”, “G” e “V”.
- Errado. Tente novamente.
- “P”, “T”, “C” e “W”?
- Não. Você está de brincadeira. Saia daqui e vá para aquela sala. Você está aprovado!
- Como? Não acertei a linha de baixo.
- PRÓXIMO!

Dali, Lauro passava por exames físicos, ficava nu diante de um tenente para alguns testes e levantava pesos para medir a força. De fato, Lauro não tinha a mínima condição para o serviço militar, porém, quase na hora do almoço, Lauro recebia sua ficha com uma nova data para comparecimento ao 3º BI.
- Por que isso?
Perguntava Lauro a um oficial.
- Por que o quê?
- Por que fui aprovado nos testes físicos?
- Foi aprovado porque foi aprovado. Só isso.
- Mas eu não tenho condições. Olhe para o meu corpo e diga se posso ajudar essa merda de país a ganhar uma guerra.
O Capitão Marques, que estava ao lado, ouvia a frase de Lauro.
- O que foi que você disse, rapaz?
- Merda de país! Merda de exército! Merdas! Vocês são uns merdas! Isso que são!
O capitão não pensou.
- Paga vinte!
- O quê?
- Paga trinta, conscrito.
- Não vou pagar merda nenhuma. Não sigo ordens de ninguém aqui. Não sou militar.
O capitão o agachou por meio de força e o fez executar cada uma das trinta flexões. Lauro saía do local chorando de raiva.

Mais tarde, mais calmo e já na loja de materiais de construção onde trabalhava:
- Lauro.
Chamava o S. Batista, o dono da loja.
- Sim.
- Vá até a filial da rua de trás e me traga duas cavadeiras simples, por favor.
- OK.

Na volta para a loja, Lauro, que atravessava a avenida corretamente entre o semáforo vermelho e a faixa de pedestres, era assustado por uma buzina nervosa. O sinal acabava de esverdear, porém, Lauro ainda estava no meio da faixa.
- SAI DA FRENTE, PORRA!
Lauro olhava fixamente para o motorista e descobria que quem estava ali era o Capitão Marques, o mesmo que havia o humilhado pela manhã no batalhão, que por sua vez, arregalava os olhos ao identificá-lo como “aquele conscrito”.

Lauro soltava uma cavadeira no chão que então ressoa por todo o centro da cidade. Com o braço direito, elevava a segunda cavadeira e como uma lança a arremessava contra o pára-brisa do carro. A cavadeira atravessava o peito do Capitão Marques como que num papel.

“É pai. Nem cheguei a servir e já superei um limite. Superei o limite da minha intolerância”, pensava Lauro enquanto corria da multidão enfurecida.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

TAPETE TESTEMUNHA II

Leia a primeira parte de TAPETE TESTEMUNHA aqui: http://muitosemum.blogspot.com/2008/05/tapete-testemunha.html

Quanto mais eu a conhecia mais eu percebia a importância de tê-la por perto. Não importavam as horas que eu perdia ali na frente do PC, pois na verdade eu só ganhava com aquilo. Ela era tão doce comigo. Eu retribuía. No ápice de nossa amizade eu nem lembrava mais como a tinha conhecido. Dela, até então, eu só tinha uma foto sorridente que ao aparecer no canto da tela me enchia de alegria. “Ela entrou”, eu pensava.

Eu contava todo o meu dia para ela. Gabriela era o seu nome. Aquilo parecia não acabar nunca. Apesar de morarmos basicamente perto um do outro, nunca nos vinha à cabeça nos conhecer pessoalmente. A idéia até vinha em mente, mas acho que nem eu nem ela tínhamos coragem para propor. Tínhamos o número do telefone um do outro, porém, jamais nos ligávamos. Na verdade eu preferia imaginar a voz de Gabriela e morria de medo de me decepcionar. Manter a idéia fictícia de uma voz doce como as suas atitudes era uma de minhas metas.

Mas chegava um dia em que nossa conversa já passava das seis horas de duração. Víamos que estávamos realmente envolvidos um no outro, não se podia negar.
- Está me dando uma vontade louca de te ver.
Ela dizia.
- Eu também, Gabriela.
- Douglas, por que não vem até aqui?
- Você nunca me fez esse convite.
- Estou fazendo agora. Cansei do Messenger.
- Eu também. A nossa escrita limitada acaba por podar as vontades que me dão quando converso com você.
- Então vem até aqui e use a fala. Prefere me ligar?
Aquela proposta estava vindo realmente dela? Eu, o homem, estava recebendo as propostas? Não era possível.
- Vem ou não vem?
Insistia Gabriela.
- Sim. Dê-me vinte minutos. Tomarei um banho e irei até aí.
- OK. Estarei esperando.
Ela desligava o Messenger e eu sentia as pernas tremerem. Tinha medo do que poderia acontecer. Meu coração batia muito forte.

Não conhecia aquela sensação. Nem na presença de Michele foi assim. Ia até o chuveiro e deixava uma água bem quente cair sobre mim. Ficava imaginando como ela realmente seria. Ela já havia me dado tudo sobre ela. Suas características, tudo, porém, a única foto que eu tinha visto era de metade de seu rosto sorridente. Mas o que isso importava? Ela falava coisas tão lindas e ta inteligentes. Pegava-me de jeito.
- Mãe.
- Oi.
- Vou sair.
- Vai onde?
- Dar uma volta.
- Mas está ventando muito, Douglas. Veste um casaco pelo menos.
- Está bem.
Vesti.

Pegava a bicicleta e descia a rua do me prédio feito um louco. O porteiro já conhecia minhas fugas alucinadas sobre as duas rodas e levantava a cancela dos carros.
- Vai devagar, garoto.
- Valeu, S. Oswaldo.
Ele ria enquanto mastigava um biscoito.

Eu já estava na principal na marcha pesada. O vento frio daquele inverno me fazia encher os olhos de lágrimas durante o trajeto. Por um instante jurava ter visto Michele conversando com um garoto na barraca de cachorro-quente. Nem ligava. O tapete já estava limpo no centro da minha sala como sempre havia sido. E era limpo da Michele que me sentia, porém, pronto para possivelmente me sujar novamente com Gabriela. Mas na minha mente seria impossível Gabriela ser como Michele. Ela já me havia conquistado à distância. Pessoalmente Gabriela devia ser um tornado.

Prendia a bicicleta num poste em frente à casa de Gabriela. Tocava a campainha. Uma senhora abre a porta.
- Quem é?
- É o Douglas. A Gabriela está?
- Não!
- Como?
Naquele exato momento, Gabriela aparecia na porta.
- Vovó? Eu estou em casa.
- Não me diga?
Retrucava a avó de Gabriela.
- Desculpe Douglas.
Eu não acreditava no que via. Ela era realmente linda. Mais linda do que a foto.
- Tudo bem.
Ficamos uns dois minutos mudos, olhando um para o outro.
- Você é linda.
- Obrigada. Agrada-me muito também o que vejo.

Ficávamos ali no portão de sua casa.
- Não ligue para minha avó. Ela implica com meus amigos, mas é gente boa.
- Está tudo bem.
- Espere um pouco. Vou apanhar um tapete que fica ali na sala para que possamos sentar aqui no portão sem nos sujarmos com o chão.
- Tapete?
- É.
- Não precisa.
- Por que?
- Eles ficam sujos.
- E?
- Esquece. Pegue o tapete.
Gabriela sorria sem entender nada. Trazia o tapete.
- Esse tapete me faz lembrar tanta coisa.
- Como o que?
- Para todos que vêm aqui no meu portão eu o ponho para sentar-se sobre ele, assim como você agora.
- Quer dizer, ex-namorados também?
- Sim. Por que não? O incomoda?
- Não.

A mãe de Gabriela chegava do trabalho.
- Oi mãe. Esse é o Douglas.
- Oi Douglas. Filha, esse tapete está imundo. Não tem vergonha? Dê-me aqui. Vou por para lavar. Que absurdo.
- É melhor assim.
Eu dizia.
- Por que?
Perguntava Gabriela.
- Tenho alergia.
Mentia.

Sem aquele tapete por perto, pegava Gabriela pela nuca e a beijava. Ela aceitava a condição com a mesma vontade louca de se despir ali mesmo. Foi o início de um inesquecível relacionamento.