segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ALLIÉS

Eu, um soldado americano em meio à Segunda Guerra, fui designado a uma missão bastante delicada: resgatar uma freira francesa das mãos de um grupo de alemãs, enquanto o restante da tropa avançava com deveres, digamos, mais emocionantes que o meu. Isso porque na minha cabeça uma única frase martelava: “que se danem as freiras desse lugar”.
“Tenente, leve o Robinson contigo. Não deve haver mais que dois naquela igrejinha”, dizia-me o capitão. O Robinson era um sargento daqueles que você prefere uma latrina cheia de merda à sua companhia; não serviria sequer para amarrar seus próprios coturnos. Mas ordens são ordens.

“Vamos, Robinson, não quero demorar por aqui”, eu dizia ao sargento, que, estabanado como sempre, derrubava sua arma ao tentar dizer um simples “sim, senhor”. Era lamentável.

Próximo à igreja daquele local já deserto, nos posicionamos. Podíamos ouvir aqueles alemães com suas risadas exageradas junto às tentativas de grito da irmã. Como o capitão previa, escutávamos apenas duas vozes masculinas. “Eles devem estar se divertindo um bocado, tenente”, dizia-me Robinson. Até a voz daquele sargento me enojava. “Robinson, você vai até a porta da igreja e, com cuidado, verifique se ela está aberta. Se estiver, dê-me sinal. Se não, volte para cá”, eu dizia.

Robinson chegou sem problemas até a porta, mas ao movimentá-la com sua delicadeza de búfalo, foi totalmente perfurado pelas MP40 dos alemães, que logo trataram de sair correndo dali. Diante disso, dei a volta por trás da igreja e me posicionei de forma que conseguisse ver os passos inimigos. Na certa eles imaginaram a presença de uma grande tropa aliada nas proximidades; sequer desconfiaram que na verdade estavam em vantagem sobre mim.

Com a fuga dos alemães, preocupado com o estado de saúde de Robinson, fui até a porta da igreja. Pela vida daquele sargento não havia mais nada a ser feito. Mas a freira permanecia viva – eu constatava pela respiração ofegante que se ouvia lá de fora. Fui até ela.

- Alliés! Américaine! – eu dizia à freira ser um aliado americano.

- Obrigada, senhor!

- Fala a minha língua, irmã?

- Sim... Eles iam me matar...

- Já passou. Vamos sair daqui.

- Para onde vamos?

- Para um lugar seguro, mas primeiro me ajude a carregar o corpo de meu amigo até a minha tropa, OK?

- Farei o possível.

Estávamos de certa forma em fuga, e aquela roupa que a irmã vestia não era nada apropriada, pois a fez tropeçar por diversas vezes. Então, parei no meio do caminho, saquei minha baioneta, fui até às pernas da irmã e rasguei metade de sua vestimenta.

- Mas tenente?!

- Isso vai lhe ajudar! – eu dizia ao mesmo tempo em que notava a beleza das pernas daquela mulher.

Eu estava naquele inferno havia pelo menos dois anos. Dois anos sem saber o que era prazer carnal. Levei minhas mãos até suas partes íntimas... Não pensei. Agi como um animal; estuprei-a.

Cheguei à tropa com um sargento morto e o silêncio temeroso de uma freira “salva”.

Mesmo assim, anos depois, retornado à minha pátria, recebi medalhas e até hoje sou considerado um herói de guerra.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

NATURALMENTE

Cabisbaixo, cheguei do trabalho e pus um antigo disco do Chet Baker para tocar. Era dezembro; fazia um calor infernal e, por isso, pus duas garrafas de Stella Artois no congelador e fui para o banho. O trompete de Chet parecia me dizer alguma coisa. Com suas frases lentas e repletas de pausas, dizia-me “calma, rapaz” – logicamente, eu o obedecia.

Sem perceber, sentei-me no piso do box; deixava a água gelada cair sobre minha cabeça. Aos poucos, o sentimento de solidão que me tomara toda a tarde dava lugar a uma espécie de conforto. Sentia-me do lado de dois grandes amigos: o Chet, que tocava para eu ouvir, e a água, que me acariciava o corpo como uma mulher pronta a me satisfazer.

Os dezenove minutos do lado A daquele disco se findavam. O silêncio então me fez levantar daquele banho interminável. Sequei-me e, ainda enrolado na toalha branca coberta de mofo, pus o lado B para tocar. Fui ao congelador e notei que as cervejas estavam prestes a congelar – adoro quando isso acontece. Retirei as duas garrafas de lá e as levei comigo à mesa da sala.

Não fumo, mas nesse dia acendi um cigarro do maço que um amigo meu havia esquecido lá em casa. Sem saber como tragar, puxava pouca fumaça e logo a expulsava, passando bons minutos a observar o seu caminho rumo ao teto. Um dos cigarros eu simplesmente deixei queimar sem sequer o levar à boca. Observando-o, refleti e filosofei comigo mesmo sobre o curso natural das coisas. Por que simplesmente não deixamos “queimar”? Por que precisamos sempre tomar atitudes para que as coisas aconteçam conforme queremos? Na verdade tudo isso estava ligado a uma só pessoa: Bruna. Vou contar.

Bruna e eu éramos amigos de infância e, de forma muito natural, viramos o casal de namorados mais apaixonado do sistema solar. Estudamos juntos, cursamos a mesma faculdade e entramos para o mercado de trabalho de forma competitiva – ela e eu trabalhávamos em empresas quase inimigas. Eu jamais imaginei que tal fato fosse atrapalhar o nosso relacionamento, mas foi exatamente o que ocorreu.

Bruna fora promovida a um cargo de extrema confiança e, logo no dia seguinte à posse, passou a agir de forma muito estranha. Perguntava-me muito profundamente sobre os meus afazeres profissionais – coisa muito rara até então. Inocente, respondia a todos aqueles questionamentos; estava movido pela confiança que tinha em Bruna.

Semanas depois do “interrogatório”, a empresa em que Bruna trabalhava usava de uma estratégia de marketing que pôs meu chefe de cabelo em pé. Informações empresariais que jamais deveriam ser fornecidas foram postas por mim sobre a cama onde gozamos tantas e tantas vezes. Fora o meu erro crucial.

Até então, onde eu trabalhava, ninguém sabia sobre o meu relacionamento com uma concorrente. Mas a partir daí tudo veio como uma avalanche, que me acertava violentamente.

Perdi o emprego. Minha carreira fora manchada pelo coração gélido de Bruna. Sou hoje taxista, com muito orgulho, mas com um pouco de rancor, claro.

Onde eu estava mesmo? Ah, no cigarro! Eu o observava queimar quando o telefone danou a tocar. Levantei a agulha do toca discos e:

- Alô.

- Thiago, sou eu!

- O que foi, Bruna?

- Podemos conversar? Servi de isca naquela história toda! Estou tão envergonhada... Fui despedida e...

- Olha, se você quer minhas desculpas, está desculpada, mas se quer voltar a se deitar na minha cama, eu espero que não vire uma taxista também!

- Thiago, eu ia dizer que estou montando um negócio próprio e queria que você fizesse parte dele! O que acha?

- Não, mas mesmo assim, muito obrigado pelo convite. Boa noite.

Desliguei o telefone, desci a agulha do toca discos e passei a me sentir mais leve. A vida parecia estar voltando ao seu curso natural. Até o mofo de minha toalha sumira de forma mágica. Pus uma roupa, aumentei o som e fui até a garagem lavar meu carro. A segunda cerveja descia ainda mais saborosa.

* * *
Foto da Capa: Weeping-Willow.

domingo, 11 de outubro de 2009

EU QUERO SEGURAR SUA MÃO

Senti sua presença. Sentado no banco daquela praça, fui forçado a retirar os fones de ouvido porque senti o vento que Cecília produziu ao acomodar aquele corpo tão perfumado ao meu lado. Era na verdade uma mistura de perfumes; a colônia que usava era mais forte, mas os seus fios, ainda molhados do banho, também traziam um aroma dos deuses.

A camiseta de Cecília era amarela e trazia um enorme rosto do Paul McCartney estampando à frente. Seus seios, tão firmes e ao mesmo tempo tão singelos, me chamavam mais atenção que o próprio beatle, mas tratei de desviar o olhar, que aos poucos ia se tornando mais fixo e abobalhado.

A presença de Cecília me fazia tremer as bases. Por que ela tinha de carregar aquele sorriso sempre? Sorriso este que me tomava as manhãs, as tardes, as noites, os sonhos e todo o resto. Olhando para o chão, notava o quão limpo era o seu par de tênis, que por sinal combinava muito cruelmente com a camisa; uma covardia. Subia-lhe com os olhos escalando cada detalhe de suas pernas vestidas naquele jeans novo e de tonalidade escura; estava impecável.

Um tênis verde chegava até o nosso banco. Tratei de subir a vista até a face do intrometido. Para a minha revolta instantânea, tratava-se de um rapaz muito bonito. Os olhos dele eram tão verdes quanto o seu calçado. Trazia na mão esquerda uma pequena margarida recém retirada do jardim da praça. Delicadamente – de forma que eu jamais serei um dia –, aquele rapaz depositou a pequena flor entre os cabelos negros de Cecília. Uma pontada em meu peito se fez presente naquele mesmo momento – uma flor ali e uma faca aqui.

Esperei pela reação daquela menina, mas não por muito tempo – na verdade não cheguei nem a esperar. Cecília se levantou como uma flecha a pendurar-se no pescoço daquele rapaz. “Você aqui”, dizia ela na ponta dos pés.

- Que saudade, Cecília! – dizia aquele ser.

- Você está um gato! – dizia a acariciar o rosto do rapaz – Mamãe precisa te ver! – continuava numa empolgação inédita.

Ela, puxando o bonitão pelos braços, atravessava a rua até o seu condomínio. Os dois falavam sem parar, como se quisessem pôr todo aquele assunto aparentemente atrasado em dia.

Mudo, no mesmo lugar fiquei. O assento ao meu lado ficava vago e ao mesmo tempo muito gelado. Eu estava tão próximo de ensaiar o primeiro “oi” de nossas vidas, mas um par de olhos verdes tratou de adiar tal acontecimento histórico. De lá, através da janela do apartamento de Cecília, pude notar as silhuetas dela, de sua mãe e do rapaz a se abraçarem. “O genro perfeito chegara, talvez, de uma longa viagem”, eu pensava. Aquele cara devia ter tanta história para contar, tantas vantagens, tantas experiências mirabolantes.

Foi quando, da janela, Cecília gritou para uma amiga que passava pela portaria do condomínio.

- CARLA, MEU IRMÃO VOLTOU DE MADRID! SOBE AQUI!

Meu coração então voltou aos poucos a bater de forma tranquila. “Irmão”, eu repetia como se quisesse convencer a mim mesmo da palavra que Cecília anunciara instantes antes. Respirei fundo e me senti com o bolso cheio de fichas novamente. “Ela ainda pode ser minha”, eu pensava enquanto repunha os meus fones.

“I wanna hold your hand / I wanna hold your hand / I wanna hold your hand…”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

200.º POST


É, minha gente, o MEU chega hoje ao seu ducentésimo post. Muitas linhas foram escritas, muitos personagens criados, muitas histórias inventadas, muitas capas elaboradas, muitas fotos usadas e muitos comentários foram feitos. Foram até agora 197 textos publicados e mais de mil comentários vindos de vocês, pessoas próximas ou não, que fazem desse blog um compromisso muito prazeroso para mim.

Quero deixar aqui registrado o quanto sou agradecido pelas diárias visitas e leituras de todos! Sei que ainda não posso (e nem quero) ser comparado a escritores profissionais, que fazem de seus livros verdadeiras portas de entrada para um mundo que somente as palavras bem escritas são capazes de nos transportar, mas espero ser, pelo menos, aquele cara que procura trazer alguns minutinhos de ficção, uma espécie de passatempo mudo; que procura no mínimo ser agradável a quem por aqui passa.

Quando o MEU completou o seu 100º post, publiquei um vídeo, se lembram? Hoje, eu resolvi presenteá-los com um texto perdido em meus arquivos; trata-se de um “esboço” do que viria a ser um romance infantil, no qual Luana (a queridinha do MEU) aparece ainda muito novinha. Estava escrevendo este romance para um concurso, mas não consegui terminá-lo. O que lerão a seguir é apenas uma ideia de toda a história, que teria seu foco nas aventuras vividas pela pequena Luana a bordo de uma nuvem chamada Fofura.

Espero que curtam, embora o texto tenha um teor infantil – aproveitem que a semana da criança vem aí! O romance se chamaria “Não tenha medo, Luana!”.

A todos vocês, muito obrigado pela leitura de sempre!


O vento soprava forte e, como se fossem braços de adultos, balançavam as janelas de toda a casa. Era o prenúncio de uma frente fria carregada de chuvas e as nuvens começavam a mandar os seus sinais. Vinha muita água dos céus. “CABRUM”, ouvia-se das nuvens.

Luana, morrendo de medo dos trovões, cobria-se por completa com seu edredom. Já eram mais de duas da madrugada e a menina não pegava no sono. Pensava em descer até o quarto dos pais, mas o temor a impedia até mesmo de encarar as escadas às escuras. A menina descobria os olhos e, pelo vidro da janela, com cautela, enxergava a forte chuva que começava a cair.

De repente, assustava-se com um clarão! “CABRUM”. Luana voltava rapidamente a cobrir o rosto.

No dia seguinte, domingo, pela manhã, Luana encontrava-se com seus pais à mesa do café.

- Como passou a noite, filha? - perguntava Marcos, seu pai.

- Não muito bem, papai. Demorei a dormir por causa da chuva.

- O que tem a chuva, filha?

- Não foi bem por causa da chuva, papai. Foram os trovões que me deixaram um pouco assustada.

- Ora, Luana, você acabou de fazer cinco anos. Não deveria ter tanto medo de trovões.

- Papai, eu acho que terei medo deles até eu ficar grande.

Camila, mãe de Luana chegava à mesa:

- Bom dia, filha!

- Bom dia mamãe! Estava contando para papai o quanto sofri esta noite por causa dos trovões.

- Ainda com esse medo, Luana?

- Ainda, mamãe.

- Olha, filha, vou lhe contar uma coisa que acabará com esse seu medo. Quer ouvir?

Camila começava a contar à filha uma versão sobre os trovões.

- Você sabe por que os surgem esses barulhos das nuvens?

- Não, mamãe.

- Esses barulhos acontecem quando uma nuvem briga com a outra para ver quem vai ficar num determinado lugar. A briga é tão feia que elas começam a gritar uma com a outra.

- Mas nuvem não tem boca, mamãe!

- Quem lhe disse? Não dá para ver a boca de uma nuvem olhando daqui, mas elas têm, sim; e são capazes de gritar muito alto.

- Mas e a chuva? Por que chove quando elas brigam?

- É que as nuvens não gostam de brigar. Então, depois da briga, elas começam a chorar.

- Então, a chuva é o choro de uma nuvem, mamãe?

- Sim, filha. E as nuvens não gostam quando de ficamos prestando atenção nas conversas delas. Por isso, quando você ouvir os trovões, tente esquecê-los e deixe que as nuvens se entendam.

- Que engraçado.

- Viu? O que há de assustador nisso?

- Você contando assim, nada. Mas à noite me dá muito medo, mamãe.

- Deixe as nuvens discutirem em paz, Luana. Dessa forma, elas vão dizer que você é uma fofoqueira. Você quer isso?

- Eu não!

- Então? Ficamos combinadas assim? Você deixará as nuvens em paz e procurará dormir?

- Vou sim, mamãe!

Marcos ficava sem saber se a explicação de Camila para Luana a respeito dos trovões fora convincente. A menina acabava de tomar o seu leite com torradas aparentando estar bem mais tranquila.

Na noite daquele domingo, Luana perguntava ao pai se Mimi, sua gatinha de estimação, poderia dormir com ela em seu quarto, no segundo andar da casa.

- Luana, eu não sei se isso é uma boa idéia. Não quero essa gata em sua cama.

- Papai, ela dormirá no tapete. Eu juro!

- Deixe-a, Marcos, – dizia Camila – isso fará Luana se sentir menos sozinha durante a noite.

- Tudo bem, Luana. Mas se ela não se comportar, coloque-a de volta para baixo, entendeu? – dizia Marcos.

- Tudo bem, papai!

O céu permanecera nublado durante todo o dia. À noite, a chuva voltava a cair. Luana não se preocupava com a chuva nem com os trovões; estava com sua atenção totalmente voltada para Mimi. As mãos pequenas de Luana acariciavam a testa da gatinha, que ia lentamente pegando no sono.

A chuva apertava. Fazia um barulho forte ao bater na janela do quarto de Luana. A menina, após Mimi fechar os olhos, passava novamente a fixar seus pensamentos na chuva e nos trovões. “CABRUM”. Um forte trovão parecia trazer ainda mais chuva. Mimi acordava assustada com o estrondo.

- Fique tranquila, Mimi. Mamãe me disse que isso é só uma briguinha entre nuvens. Uma delas está chorando. Por isso toda essa chuva.

Mimi arregalava os olhos para Luana.

- Não precisa ter medo, Mimi. Eu estou aqui. E não fique prestando atenção na conversa das nuvens. Elas te chamarão de fofoqueira! Você quer ser chamada de fofoqueira, Mimi?

Mimi, numa atitude repentina, corria para debaixo da cama de Luana. A menina ria e tentava acalmá-la com carinhos.

- Venha para cá, Mimi. Deixa de ser medrosa.

“CABRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUM”.

Este último estrondo havia sido o mais alto e assustador de toda a tempestade. Luana calava-se e arregalava os olhos como Mimi.

“CABRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUM”.

Luana puxava Mimi de debaixo da cama e a segurava no colo. As duas morriam de medo, mas permaneciam quietas diante dos clarões e do barulho da chuva.

- Fique quietinha, Mimi. Já vai passar. A briga entre essas nuvens está feia hoje.

Mimi aconchegava-se no colo da dona a fim de proteger-se.

Depois de algumas horas, a chuva dava uma trégua. Os trovões ficavam fracos até sumirem de vez. Batia em Luana uma curiosidade de saber qual das nuvens lá fora havia vencido a discussão. “Se os trovões pararam, é porque a discussão entre as nuvens já acabou. E se a chuva não cai mais, é porque não há mais nenhuma nuvem chorando lá fora”, pensava a menina.

Luana pensava em abrir a janela para que pudesse conhecer a grande nuvem que gritara tão alto durante horas. Ela seguia até a janela com cautela. Mimi ficava ao chão a observar os movimentos da dona.

Então, Luana abria a janela e se deparava com uma nuvem muito simpática.

- Luana?

- Sim...

- Eu me chamo Fofura! Tudo bom?

- Tudo...

As bochechas de Fofura eram enormes. A nuvem parecia estar sorrindo para Luana.

- Você não deve ter reparado, mas eu estou aqui nesse mesmo lugar há uns cinco dias. Durante o dia, isso aqui fica uma calmaria. À noite, outras nuvens vêm aqui tentar tomar o meu lugar e...

- Já sei! Mamãe me falou! Vocês discutem para ver quem vai ficar com o lugar, não é?

- É isso mesmo, Luana.

- Mas falando assim com você, nem parece que a mesma nuvem faz todo aquele barulho.

- Pois é. Mas é que para defender nosso lugar, a gente precisa gritar de vez em quando.

Fofura e Luana conversaram por alguns minutos. Logo aparecia Soprão, o vento particular de Fofura, aquele que a levava para onde ela ordenava. A nuvem então fazia um convite à menina: um passeio pela cidade.

- Mas eu não disse nada aos meus pais. Se eles acordarem e não me encontrarem aqui no quarto, ficarão preocupados – dizia Luana.

- Eu trago vocês de volta antes do amanhecer. Prometo! – dizia Soprão.

Luana pensava um pouco, mas a ideia de voar a bordo de uma nuvem parecia tão fantástica que não via motivos para recusar ao convite.

- Vamos!

Luana e Mimi então fizeram um longo passeio com Fofura e Soprão. Sobrevoaram toda a cidade e puderam inclusive ver outras nuvens a passear com outras crianças. Durante toda a madrugada, os quatro viveram aventuras inesquecíveis.

E, conforme combinado, Soprão e Fofura deixavam Luana e Mimi em casa ainda antes do amanhecer.

Pela manhã, Marcos e Camila subiam até o quarto da filha para saber como passara aquela noite chuvosa.

- E então, Luana? Tudo bem com os trovões de ontem?

- Sim! Tudo ótimo! Mimi e eu conhecemos uma nuvem e um vento, a Fofura e o Soprão! Eles nos levaram para passear e...

Marcos olhava para Camila como quem diz “a sua história funcionou, mas e agora?”. O casal sorria um para o outro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O MENINO DAS FRUTAS

Eu era só uma menina, tinha onze ou doze anos, não lembro bem. Toda manhã, sempre que chegava à escola, acompanhada de minha mãe, me deparava com um grande caminhão que vendia frutas; uma espécie de barraca de feira ambulante. Dentro daquele baú, trabalhavam o S. Adalberto, que era um senhor barrigudo e muito simpático, e seu filho Pedrinho, que deveria ter a minha idade.

Enquanto minha mãe comprava algumas frutas, eu observava os movimentos de Pedrinho. É que, apesar de pequeno e magro, aquele menino demonstrava força e muita habilidade ao manusear os produtos, geralmente depositados em sacos aparentemente muito pesados. Aquele menino trabalhava muito mais que o pai, no meu ponto de vista. S. Adalberto tratava de atender muito bem a clientela, enquanto Pedrinho parecia se encarregar de todo o trabalho duro. O menino suava muito dentro daquele baú.

Pedrinho tinha o cabelo bem liso e os olhos eram de um verde inédito a mim. Poucas vezes pude notar sua dentição, mas posso dizer que era, embora amarelada, perfeita. As camisetas que vestia geralmente traziam personagens de desenhos animados. Lembro que, mesmo sendo muito nova, eu conseguia capturar o contraste entre os sorrisos do Mickey, por exemplo, e a realidade de Pedrinho.

“Será que o Pedrinho estuda?”, pensava a minha cabecinha infantil. Os olhos daquele menino eram tristes a ponto de denunciar uma ausência de amizades, de uma vida de criança, de amor, de carinho. Eu tinha uma imensa vontade de perguntar a ele sobre essas coisas, mas eu teria de gritar para que ele me ouvisse lá no fundo daquele baú; preferia ficar calada e apenas o observar.

Ao meio-dia, enquanto eu saía da escola, S. Adalberto e Pedrinho atendiam seus últimos clientes, pois o caminhão logo estaria partindo. No portão da escola, à espera de minha mãe, via que o trabalho de Pedrinho no fim do expediente era ainda mais pesado. O menino ensacava aquela quantidade imensa de frutas sob os avisos sempre iguais de seu pai. “Não vá me colocar os mamões embaixo das melancias, pelo amor de Deus, Pedro!”, dizia o pai. “Já sei”, era o que o menino sempre respondia.

Em alguns momentos, nossos olhares se encontravam. Pedrinho, hoje consigo entender, sentia muita vergonha de trabalhar tão duro bem em frente a uma escola. O vai e vem daquelas crianças a sorrir e brincar devia causar no coração do menino um sentimento terrível e indescritível. Eu cheguei a imaginar que ele pudesse estudar no turno da tarde, mas, em conversa com minha mãe, soube que não.

- O Pedrinho estuda, mamãe? – eu perguntava.

- O menino do caminhão de frutas?

- É!

- Não, minha filha. Ele ajuda o pai.

- Mas não estuda por quê?

- Porque precisa ajudar o pai no caminhão, ora!

- Mas o caminhão só funciona pela manhã, não é?

- Não. O S. Adalberto me disse uma vez que eles saem dali e vão para um outro ponto na parte da tarde. Por isso, creio eu, que Pedrinho não estude. Aquele menino fala tudo errado, nunca ouviu?

- Não.

Ficava um pouco chateada ao perceber que minha não dera a mínima importância ao sofrimento de Pedrinho. Pareceu-me muito normal quando ela disse “por que precisa ajudar o pai no caminhão, ora”; pareceu um motivo óbvio, correto e sem possibilidade de questionamentos.

O tempo passou e o caminhão de frutas continuou por ali durante todos os anos em que eu estive naquela escola. S. Adalberto já mostrava sinais de uma saúde debilitada, enquanto Pedrinho, no auge de sua juventude, trocava o corpo franzino por músculos bem definidos. Agora, além do trabalho pesado, ele também atendia a clientela.

Eu, já com dezessete anos, me preparava para, no ano seguinte, ingressar em uma faculdade; estava muito feliz em dar mais um passo ascendente rumo ao meu objetivo profissional: o de lecionar Língua Portuguesa, mas senti meu coração partir ao concluir que, talvez, jamais veria o rosto de Pedrinho novamente. Frente ao portão da escola, confessei a mim mesma: estou apaixonada pelo menino das frutas!

Então, com a coragem que sempre me faltara, fui até ele.

- Pedrinho!

- Senhora!

- Senhora não, por favor!

- Desculpa...

- Tudo bem.

- O que vai querê? Nós tem um abacaxi hoje aqui que...

- Não, não vim pelas frutas!

- ...

- Vim por você! Quero te perguntar uma coisa que há anos me incomoda.

- Pode perguntar!

- Você... – eu pausava, tomava coragem – Você estuda?

- Não senhora!

- OK! Mas tem vontade?

- Tenho sim, senhora!

- Eu... Eu poderia te ensinar alguma coisa, que tal?

- Como assim?

O restante da conversa não interessa. Interessa é que, a partir da outra semana, Pedrinho passou a frequentar a minha casa durante a noite para ter aulas de português. Não cobrava nada a ele, mas ele fazia questão de me levar algumas frutas de vez em quando; um amor de pessoa.

Com o tempo, Pedrinho e eu nos abrimos um para o outro. Até que um beijo se fez presente em meio aos sujeitos e predicados à mesa. Desse beijo em diante, mesmo sob as reclamações irritantes de mamãe, nunca mais nos largamos. Nos casamos e tivemos uma filha.

Hoje, ele é dono de três pequenos mercados de varejo, e eu, como sempre sonhei, professora.

O menino das frutas, o rapaz disciplinado das aulas... Já o chamei de tanta coisa. Hoje, o chamo de amor da minha vida.

* * *
Foto da Capa:
Katherine Davis.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

FELICIDADES AO MAR

Estávamos à beira mar. O tempo nublado tornava a vista para o Rio de Janeiro praticamente impossível. Mas quem estava interessado no Pão de Açúcar naquele momento? Estávamos em meio a uma briga de casal. Bem, na verdade estávamos ali para um encontro romântico “às escuras”, mas tudo acabou se tornando uma baita discussão mesmo.

Evelyn era casada e mantinha comigo um relacionamento de mais ou menos seis meses. Ela trabalhava numa livraria no Centro e, de tanto eu fazer compras com ela, acabamos nos conhecendo melhor; e o resto é uma história repleta de fugas, beijos escondidos e telefonemas proibidos. Eu, solteiro, sentia que não tinha nada a perder, muito pelo contrário, pois no fundo eu sonhava que um dia ela largaria o seu marido para viver comigo. Eu teria a chance de ter aqueles seus vinte e sete anos só para mim.

Ela era uma gracinha de menina! Evelyn tinha os cabelos bem curtinhos (eu costumava a chamá-la carinhosamente de menino) que deixavam à mostra uma pequena tatuagem sob a minúscula orelha; era a representação de um parafuso. O seu rosto era de uma delicadeza tão exótica que mal consigo descrevê-lo; talvez pelo fato de eu mesmo não saber destacar aquilo que de mais bonito havia em tal semblante. Era um rosto lindo, isso eu posso dizer! Muito lindo! Ah! Ela usava um piercing também, um bastão na sobrancelha esquerda.

Naquela tarde, discutíamos justamente o porquê dela não deixar o marido para viver comigo. Ela vivia reclamando de que a vida deles não estava nada bem, ao mesmo tempo em que nós descobríamos a cada dia o tamanho imenso do nosso amor.

Em meio à discussão, eu a tomava pelas mãos e perguntava:

- O que ainda lhe mantém nesse casamento, Evelyn?

- Ora, Gilberto, não é tão simples assim!

- Vocês não têm filhos, Evelyn! É simples, sim!

- Não, não é!

- Você vive dizendo que não é feliz ao lado dele! O que falta?

- Eu ter coragem para dizer isso a ele!

- Coragem? Ele não percebe?

- Ele acha que está tudo bem, entende?

- Então você finge!

- Não, Gilberto! O que posso fazer se ele não tem sentimento? Ele não consegue me ver por dentro!

- Mais um motivo para vir comigo, Evelyn!

- OK! Dê-me um tempo, sim? Duas semanas!

- Em duas semanas eu a terei comigo, então?

- Farei de tudo! Prometo!

Duas semanas se passaram. Todos os dias eu acordava pensando que ouviria de Evelyn a notícia de que tudo estava acabado entre ela e o marido. Mas ao fim de cada dia eu concluía que a espera ainda me tomaria o peito por mais e mais tempo.

Durante as duas semanas, a pedido de Evelyn, não nos vimos e também não nos falamos. Segundo ela, a minha presença de certa forma a pressionaria.

- Não conseguirei agir sob a pressão de seus olhos, Gilberto! – ela dizia ao fim daquele encontro.

Ao final do décimo quinto dia de espera, fui correndo até à livraria.

- Evelyn! – eu a chamava.

- Estou atendendo um cliente, já falo com você.

- Não! Precisa ser agora! – eu dizia pegando-a pelo braço.

- Solte meu braço, Gilberto! Ficou maluco?

- Quero saber o que resolveu da sua vida! Da nossa vida, aliás!

- Não posso falar agora, Gilberto! Espere a hora do almoço!

- Não! Nem mais um minuto, Evelyn!

- Você quer saber mesmo?

- Sim!

- Agora?

- Claro!

- Lá vai: eu não me separei ainda! Pronto! E nem vou me separar!

- Por quê?

- Não tenho coragem! É isso!

- Não tem coragem de ser feliz, é isso?

- Não tenho coragem de fazer o meu marido infeliz! É isso!

- Mas está nos fazendo infeliz! Já pensou nisso?

- Penso em nós dois todo o tempo, mas entenda a delicadeza da situação, Gilberto!

- Delicadeza? O seu marido não me parece delicado com você, pelo que me diz! Por que tem que agir com delicadeza?

- PORQUE ELE É PARAPLÉGICO E SÓ TEM A MIM! ENTENDEU?

O berro de Evelyn fez a livraria parar. Eu, sem ação, soltei seu braço e dei meia volta.

Entendi ali que Evelyn se sentia responsável demais pelo marido; e o fato dele ser paraplégico agravava ainda mais a situação. Imaginei, apesar da ausência de detalhes, um homem em sua cadeira de rodas, dependente do trabalho de sua esposa e incapaz de perceber a infelicidade que o cercava. Imaginei também o fardo pesado que Evelyn carregava. Valeria atirar a verdadeira felicidade de duas pessoas ao mar pelo sorriso de uma, mesmo que um sorriso de raízes falsas?

Eu ali era apenas uma válvula de escape. Tratei de sumir. Nunca mais li um livro também.