segunda-feira, 27 de julho de 2009

MALA DE PAPELÃO SEM ALÇA NA CHUVA

Nunca foi muito fácil para mim aguentar uma roda de amigos. Principalmente se nela estivessem aqueles cuja boa situação financeira era posta à mesa em todo e qualquer papo que se jogasse por ali. Isso me deixa extremamente sem assunto, já que de tal situação eu não conheço sequer o cheiro.

Olhar nos rostos de todos ali e acreditar que tivemos a mesma oportunidade, porém, cada um soube aproveitá-la à sua maneira, é duro. “Ele fez por merecer” é o que devemos pensar todas as vezes que esses assuntos são jogados à mesa? Eu já pensei muito dessa forma. Mas isso me fazia mal, porque eu começava a pensar no que eu não havia feito para merecer a falta de assunto, a mudez diante do sucesso alheio.

Não que eu seja invejoso; muito pelo contrário: eu quero mais é ver todo mundo bem. Mas todo mundo mesmo! Mas a vida não é assim. Sendo dessa forma, sou obrigado a pensar que para alguns se darem bem outros precisam se dar mal. O que seria do bolso dos patrões sem o lamento mensal de seus operários sobre seus míseros salários de fome? Eu, infelizmente, concluo que faço parte desses lamentadores, porém, que bebe cerveja com os patrões de outros também lamentadores.

Certa vez, num bar, numa dessas torturantes rodas, um amigo me perguntou:

- E aí Felipe, o que tem feito?

Aquele sorriso que vinha junto à frase me fazia mais mal que a própria pergunta.

- O de sempre, ora – eu me referia ao meu velho emprego de contínuo.
- E quando vai mudar, cara? Está na hora, não?
- Estou correndo atrás disso, Guilherme. Terminei agora o meu curso de montagem e manutenção de PC. Vamos ver se isso me ajuda.
- Tem chances de crescer na empresa onde trabalha? – de novo aquele sorrisinho.
- Não. Lá eu não quero ficar. Pretendo sair de lá o mais breve possível.
- Isso aí. Vou te ajudar nessa. Como trabalho nesse ramo – ele se referia ao seu excelente emprego de chefia numa produtora multinacional de softwares –, vou te passar uns endereços para que possa enviar seus currículos. Prepare bastante deles, OK?
- Poxa! Obrigado, Guilherme! Mesmo!

Alguns dias depois, Guilherme me encontrava no mesmo bar. Ele trazia em sua pasta cerca de dez folhas repletas de endereços.

- Aqui, Felipe! Os endereços que lhe falei!
- Nossa! São muitos! Nem sei como agradecer! Não conseguiria levantar todas essas empresas, cara.
- Tudo bem... Só peço que mande seus currículos pelo correio, sim? É mais profissional! Os nomes das pessoas para as quais deve endereçar estão abaixo de cada endereço.
- OK! Farei isso! Muito obrigado, Guilherme!

Pedi para um amigo meu, que trabalha numa gráfica, imprimir cerca de cem currículos. Tive que comprar envelopes, caneta, e dedicar boa parte dos meus dias a preencher destinatários. Eram muitos.

Enviei cinquenta e sete currículos de uma vez só. Foram trinta e sete reais e cinco centavos gastos nos correios; uma boa fatia de meu salário, diga-se de passagem.

Alguns dias se passaram e as primeiras ligações começaram a surgir.

Uma:

- Alô!
- É o Felipe? – perguntava-me um homem de voz afeminada.
- Sim!
- Olha, recebi o seu currículo, mas você não mencionou aqui qual a sua experiência no “babado”, meu amor!
- O quê? “Babado”?
- É!

A pessoa desligava.

Outra:

- Alô!
- É o Felipe? – perguntava-me uma senhora.
- Sim!
- Só aceitamos meninas, OK? Mas se você quiser se divertir conosco...
- O quê? Como assim?

Desligava.

Mais outra:

- Alô!
- Felipe? Do currículo? – perguntava-me uma mulher de voz atraente.
- Sim, sou eu!
- Na foto você está uma gracinha, mas será que serve para o emprego? Tem que saber ceder, meu bem! Você sabe?
- Ah?!

Desligava aos risos.

Intrigado com tal situação, eu fui até um dos endereços que Guilherme me passara. Ao chegar à porta do “escritório”, li uma placa com letras enormes que dizia “Clube 745”. Não precisei entrar para entender que se tratava de uma casa de prostíbulo.

De lá, passei em mais dois endereços dados por Guilherme; mais duas casas de prostituição.

Pensei no tempo e no dinheiro que perdi entrando na dica de Guilherme. Liguei imediatamente para ele.

- Guilherme! Que história foi aquela dos endereços?
- Hahahaha... Já foi chamado para alguma entrevista?
- Não teve graça, cara! Nenhuma!
- Ah, relaxa, Felipe! Foi só uma brincadeira! Eu te achei tão tenso naquele dia no bar! Você precisa relaxar mais!

Desliguei o telefone na cara dele. Lógico.

É impressionante como o bom humor, o astral elevado e o espírito esportivo parecem ser virtudes apenas daqueles dispostos de tempo para praticá-las. Eu, que já não possuo tempo nem para o mau humor, preciso mesmo de alguém para atrapalhar o que já anda difícil?

O ânimo de outrora se transformara num ódio ainda mais perturbador. Pior: ele me consome ainda hoje.

SINUCA DE BICO

Acordei naquele domingo com a cabeça estourando de dor. As cervejas da noite anterior se faziam presentes; martelavam meu crânio como que numa tentativa de me fazer parar de vez com essa vida de bebedeiras. Mas o que eram aquelas latas de alumínio diante da minha fabulosa caixinha de remédios? Em poucas horas eu dava adeus àquela dor dos infernos e me encontrava “pronto” novamente.

Como em todo domingo, desci para almoçar no Bar do Dodô (o melhor PF do bairro). Era o último domingo do Campeonato Dodô de Sinuca e os dois melhores estariam disputando a final: Candinho Braço de Taco e Toninho Caçapa. Eram sempre eles na final há mais de cinco anos.

- Dodô, me vê o de sempre, por favor! – eu pedia.
- Feijoada, arroz, farofa, torresmo e churrasco misto?
- Sim! E molho à campanha, não se esqueça!
- Ah! Claro!

Enquanto esperava o meu prato chegar, degustava uma cerveja preta. Aquilo me abria o apetite que era uma beleza. Da minha mesa, via Candinho e Toninho a conversarem. Dentro de alguns minutos, os dois começariam a grande final, disputada numa melhor de cinco.

Eu nunca fui muito bom de sinuca, não a ponto de participar de tal competição. Gostava de brincar, lógico, mas nunca de competir. Ver Candinho e Toninho numa disputa é bacana porque não há rivalidade. É como se os premiados ali naquela final de campeonato fosse o público. Eles, sim, nos presenteavam com aquelas jogadas maravilhosas. Um verdadeiro show!

O meu prato acabara de chegar. Eu abria o vidro de pimenta quando um amigo meu, o Alex, chegava à minha mesa.

- Hugo! – ele dizia – Em quem vai apostar?
- Sabe que só aposto no Candinho, Alex!
- Beleza! Dez no Candinho?
- Segure – eu entregava com a mão esquerda uma nota de dez reais a Alex, enquanto a direita banhava o prato com pimenta.
- A maioria está com o Toninho, Hugo!
- Melhor assim!

O jogo começava. A cada pedaço de linguiça à boca, uma passada com a vista sobre as bolas daquela mesa. As tacadas de Candinho estavam certeiras. Mais ainda que no ano anterior.

Restando apenas uma bola para vencer o primeiro dos cinco jogos, Candinho, no momento da tacada, para, tira o chapéu e segue com o olhar as pernas numa calça jeans justíssima da menina que acabava de chegar. Para o meu azar, era a minha filha Patrícia, que mora com a minha ex-mulher.

Era inegável que, em seus recém completos dezenove anos, Patrícia era uma mulata de cair o queixo, reconheço. Mas era a MINHA filha!

- Opa! Por que parou o jogo, Candinho? – eu dizia a levantar da mesa – Respeito, meu chapa!
- Mas é a Patrícia? – perguntava Candinho com cara de espanto.
- Isso mesmo! Com idade para ser sua neta, meu caro!
- Desculpe-me, Hugo, é que...
- Tá, tá, tá... Acerte logo essa bola e vença logo essa primeira!
- OK!

Pude ouvir aquela bola caindo na caçapa enquanto encarava Patrícia.

- Já falei para não me procurar aqui no bar, Patrícia!
- E onde te procuro? Você só vive por aqui, pai!
- Tá, tá, tá... Diga o que quer!
- Preciso comprar casacos novos. Tem feito muito frio e os meus estão curtos!

Patrícia apontava para o casaco que vestia e, realmente, estava bem curto.

- Poxa, filha, você deu uma esticada boa!
- Esticada? Esticada eu dei quando completei quinze anos, pai! Sabe de quando é este casaco?
- Não precisa me dizer, vai. De quanto precisa?
- Quinhentos reais!
- O QUÊ? QUINHENTOS? SÃO DE OURO?
- Pai, eu preciso de três casacos, no mínimo!
- Três? E sua mãe, não pode cooperar?
- Ela já me comprou calças novas, pai!
- O que houve com as que lhe dei no ano passado?
- Pai, eu engordei! Não entram mais em mim!
- OK! Mas não tenho quinhentos aqui. Preciso pegar no banco.
- OK! Eu espero você terminar de almoçar.
- Filha, hoje não! Amanhã, logo pela manhã, eu pego esse dinheiro e deixo com a sua mãe, pode ser?
- Não, pai! Eu marquei com minhas amigas de irmos ao shopping hoje!
- Tá, tá, tá... Espere-me acabar de almoçar! Mas me espere lá em casa, aqui não! Tome a chave.
- Ah, pai... O que é que tem?
- Aqui não é ambiente para você!
- É só até você terminar de comer, ora!
- Ah, menina! Está bem, mas fique aqui do meu lado!
- OK!

O segundo jogo começava e, para a minha surpresa, Candinho não acertava sequer a bola branca! Também, o safado não tirava os olhos de Patrícia. Minha filha estava desequilibrando a final de um campeonato de sinuca. Pode?

O fato é que Patrícia estava realmente estonteante. Seios rijos e fartos, pernas grossas, cabelos bem cacheados e enormes. A minha pele negra junto à branca de minha ex-mulher deu à Patrícia um lindo tom chocolate. Uma princesa! Um orgulho!

Pensando em minha aposta em Candinho e notando o que ocorria por ali:

- Vamos, filha, sair daqui! – eu dizia.

Peguei o carro e fui com Patrícia até o Centro, no caixa automático, a fim de sacar os malditos quinhentos reais.

Ao deixá-la na porta da casa de sua mãe:

- Obrigada, pai! Eu te amo!
- Tá, tá, tá... Eu também te amo! Mas preciso ir...
- Ver o maldito jogo de sinuca?
- Sim...
- Tudo bem, pai! Pode ir – dizia-me Patrícia nitidamente irritada.
- Está zangada?
- Claro! Você sequer perguntou como eu estou, pai! Sabia que estou namorando?
- Ah?
- Isso! Estou namorando!
- Quero conhecer o canalha! Sua mãe já sabe disso?
- Canalha? Pai, veja lá como fala do meu namorado! Sabe onde ele está nesse momento? Trabalhando! Enquanto você está naquele bar fedorento tendo a coragem de apostar dinheiro na vitória de um vagabundo que olha para a sua filha da mesma maneira como fita um frango assado!

É... Um fedelho estava arrancando beijos apaixonados de minha filha e ainda virando um exemplo de homem para ela. Naquele momento, pouco me importava o resultado do jogo entre Candinho e Toninho. Eu acabava de perder o mais valioso dos jogos: o jogo da vida. Notava toda a minha ausência diante daquela dura (e correta) frase de Patrícia.

Patrícia, ao sair do carro e caminhar até a porta, parecia fazer questão de me exibir um rebolar adulto e prestes a se tornar independente. Novamente o fedelho me veio à mente, mas parei de pensar antes que morresse ali mesmo; de raiva.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O MAIS LIMPO DOS IMUNDOS

As viagens de ônibus até o escritório são monótonas. Se eu não carrego um livro ou fones de ouvido, a viagem fica ainda mais chata. Então, recosto minha cabeça sobre o vidro da janela e durmo.

Numa dessas viagens sem livro ou fones de ouvido, tive meu cochilo interrompido por uma discussão que vinha do assento ao lado. Tratava-se de um rapaz sujo, mal vestido, com a barba e os cabelos enormes a gritar com uma menina (linda, diga-se de passagem) que mal sabia o que fazer. Amedrontada, ela apenas encolhia-se no canto, entre aquele ser e a janela.

Aquilo me pareceu estranho. O que aquele cara queria com ela àquela hora da manhã? E por que gritava tanto? “Deve ser um desses mendigos malucos”, pensei. Passei a prestar atenção em suas palavras, mas não consegui entender o contexto da coisa.

- ...você sabia? Hein? Sabia? Responda! – dizia o rapaz.

Não pude ficar indiferente. Tive de tomar uma atitude antes que ele resolvesse agredi-la.

- O que está acontecendo? – eu perguntei.
- Não se meta, cara! – ele me respondeu sem sequer olhar no meu rosto.
- Está importunando a menina, cara!
- Já disse para não se meter! – disse ele, mas, dessa vez, olhando-me nos olhos.

Estiquei meu braço e alcancei os braços da menina, que, lendo meus pensamentos, agarrou-me a fim que eu a puxasse daquela situação. Puxei-a.

- Olha aqui, seu... – ele me disse nitidamente bêbado.
- Olha aqui você! Não vai fazer mal à menina, ouviu? Não na minha frente!

O motorista do ônibus freou e resolveu intervir na discussão.

- O que está acontecendo aí? – perguntou o motorista.
- Esse cara está bêbado e está tumultuando a viagem... – eu ia dizendo.

A menina já se encontrava sentada no banco onde eu sentara; olhava para a rua.

- Como é que é, seu mendigo? Ou você fica numa boa aí ou serei obrigado a retirá-lo! Entendido?
- Quem é você para me tirar daqui, seu motorista de merda? Quer me tirar o direito de ir e vir também, é isso?
- Eu vou te mostrar quem é motorista de merda, seu...!

Aquele motorista percorreu o corredor do ônibus em passadas fortes; fechou os punhos. Ao chegar perto do causador de toda aquela confusão:

- Fale de novo, se for homem!
- Motorista de merda! Falei!

Vermelho de raiva, o motorista acertou um soco no nariz do bêbado.

- Calma aí, gente! – eu disse.
- “Calma” é o caralho, merda! – disse-me o motorista arrastando o bêbado até a porta da frente do ônibus.

Desacordado com o soco, o bêbado foi jogado na calçada.

- Sabia que ia dar merda! Sabia! – disse o motorista ao sentar-se ao volante – Você está bem, Cíntia? – perguntou à menina.
- Sim, estou! – ela o respondeu.

O ônibus partia e a imagem daquele rapaz caído sobre a calçada distanciava-se de nós.

Sentei-me ao lado da menina. Ela me parecia ainda mais linda que momentos antes; quase uma índia. A pele bem morena, os olhos puxadinhos e os cabelos tão lisos e brilhosos... Ela não olhava nos meus olhos; olhava para a rua o tempo todo.

- Está tudo bem mesmo? – eu perguntei.
- Mais ou menos...
- Ele chegou a te machucar? Eu estava dormindo, e...
- Não. Ele apenas disse algumas coisas, mas...

Ela pausava.

- Mas o quê? – eu perguntei.
- Acho que ele tem um pouco de razão.
- Por quê?
- Ele me disse que é por minha causa que ele está daquele jeito; sujo e vivendo na rua.
- Como assim?
- Ele é meu ex-marido – ela disse em voz baixa.
- !!!
- Faz um mês que eu terminei o nosso relacionamento. Foram quase cinco anos juntos. Terminei por conta de outro homem.
- Hum...
- Ele não segurou a onda e ficou assim. Dá para entender?
- Bem, quem sou eu para me meter assim numa história dessa? Mas acho que faltou um pouco de amor próprio da parte dele. Mulher nenhuma merece me ver numa decadência como a dele. Eu penso assim.
- É...
- Desculpe dizer, mas você o traiu, pelo visto.
- Eu o traí sim.
- Isso agrava um pouco a situação, não? Mas ele era ruim para você? Ele lhe agredia?
- Até que não. Ele não era nada disso que o senhor presenciou; totalmente o contrário. A relação esfriou, só isso.
- Acontece, mas a traição não tem justificativa, não é?
- Sei que não. O pior é que foi com o irmão dele.
- Nossa! Belo irmão ele tem, hein! E bela esposa ele tinha!
- Pensei que quisesse me acalmar, ao invés de me julgar, senhor.
- Ajudar? Quem precisa de ajuda é o cara que acabou de levar um soco no nariz e, a esse momento, deve estar sangrando naquela calçada imunda.

Ela se calava.

- Bem, senhor – disse ela minutos depois –, chegou o meu ponto. De qualquer forma, obrigada.
- Tudo bem.

Antes de descer do ônibus, a menina foi até o motorista e, ardentemente, lhe beijou a boca.

- Eu sabia que se eu deixasse meu irmão subir ia dar merda! – disse o motorista à menina.
- Está tudo bem, meu amor. Não acontecerá mais, está bem? Bom trabalho para você!
- Para você também, meu anjo! Até mais tarde!

Eu perdia os sentidos ao mesmo tempo em que um arrependimento monstruoso me consumia o peito. Só conseguia pensar naquele rapaz sobre aquela calçada imunda.

* * *
Foto da Capa: Gabriel Andrade

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O FIM E O COMEÇO

- Só isso, senhor?
- Sim.
- Três reais.
- OK.

Eu comprei uns tabletes de chocolate a fim de adocicar um pouco o meu restinho de horário de almoço. Já tinha mandado o meu regime para o espaço mesmo.

Ao sair da loja de chocolates, no Centro da cidade, eu segui em direção ao cartório no qual trabalha a minha irmã Lídia. Precisava conversar com ela um assunto familiar de extrema importância.

Lídia e eu sempre nos demos muito bem. Por ser minha irmã mais velha – ela com trinta e sete e eu com vinte e um, sempre a vi como um porto seguro. Nos momentos mais difíceis, foi ela quem esteve do meu lado. Lembro que diante da morte de mamãe ela me acalmou o pranto. Eu chorava feito uma criança enquanto ela, calma e centrada, me acariciava a testa.

O assunto que teríamos naquele início de tarde não seria dos mais agradáveis. Na verdade seria o assunto mais desagradável que tratei com ela até a presente data. Mas aquelas palavras precisavam ser ditas; e logo.

Chegando ao cartório, Milena, uma das atendentes do balcão, me recebeu com o mesmo carinho de sempre.

- Meu amor! Que bom ver você por aqui!

A Milena era uma gracinha de menina e sempre me dava a maior condição. Tinha dezenove aninhos e, mesmo com sua estatura baixa (um metro e sessenta, no máximo), era bastante notável. Suas medidas eram todas muito proporcionais. Tudo nela era, como eu mesmo costumava dizer, “na medida certa”. Sem contar que faríamos um par perfeito, já que tenho apenas um e sessenta e cinco de altura.

- Oi Mileninha! Tudo bom? – eu disse.
- Melhor agora, Cléber – disse Milena a exibir aquele rosto moreno e perfeito.
- Fico feliz. Quer um chocolate?
- Vou aceitar um.
- Pegue. Minha irmã está aí?
- Sim, está! Pode ir lá.
- OK. Até já.
- Ah! Cléber!
- Diga.
- Hoje à noite, o pessoal do cartório vai tomar um chopp no Jazz Bar. Aparece lá!
- Não garanto...
- Ah, faz uma forcinha! Por mim!

Ela pedindo daquele jeito era impossível de negar, mas tudo indicava que eu não teria o menor clima para chopp naquela noite. O papo que teria com Lídia...

- Pode deixar, Mileninha! Farei essa “forcinha”.

Ela sorria.

Eu entrei na sala de minha irmã pensando nas melhores palavras. Precisava lhe dar aquela notícia de maneira certa, com calma. Eu não tinha a mínima noção de como Lídia entenderia o fato.

- Oi Cléber! Que surpresa boa! Sente-se! – disse-me Lídia.
- Tudo bom, Lídia?
- Tudo! E com você, meu irmão?
- Tudo indo, minha irmã.
- Já viu como a Milena está bonita hoje, Cléber?
- Sim, eu a vi. Mas por que “hoje”? Ela mudou algo?
- Deixa eu te contar. Lembra daquele dia em que você me disse que achava linda franjinha de mulher?
- Ah, sim! Lembro!
- Então! Note o cabelo da Milena! Ela está de franjinha, Cléber! Fofa!

Com a cabeça onde eu estava naquele dia seria realmente difícil eu notar algo. Lídia continuava:

- Ai, queria tanto que vocês namorassem! Ela é uma menina de ouro, Cléber! Trabalha, estuda, ajuda nas despesas de casa! Sem contar que é linda, confesse!
- Realmente...
- Hoje à noite...
- Já sei. Vocês estarão no Jazz Bar, não é?
- Sim!
- A Milena já me convidou...
- Então! Você vai, não é?
- Quem sabe...
- Ah...

Lídia estava tão eufórica e feliz. Era uma sexta-feira de inverno, porém, um sol tímido iluminava a cidade e elevava a temperatura a deliciosos vinte e quatro graus. Tudo parecia conspirar para a felicidade de todos, menos o assunto que eu teria com Lídia.

- Lídia, deixemos Milena para uma outra hora. Eu estou aqui porque preciso te contar uma coisa.
- Diga.
- Bem, eu não sei como lhe contar isso, mas...
- Ai, Cléber! Está me deixando nervosa! Diga logo! O que foi?
- É sobre o Daniel.
- Que é que tem o meu marido? Aconteceu alguma coisa? Fale! Algum acidente? Fale!
- Não, nenhum acidente!
- Então, o que houve?
- Semana passada, na sexta-feira, eu o vi.
- E? Conte!
- Eu o vi beijando outra mulher!
- O que você está me dizendo? Viu Daniel me traindo?
- Sim, irmã! Infelizmente...
- Mas me conte isso direito, Cléber! Quem era?
- Você a conhece, Lídia. Quer dizer, nós a conhecemos muito bem.
- Diga, Cléber!
- Fernanda. Vi o Daniel aos beijos com a Fernanda, Lídia.

Fernanda era a melhor amiga de Lídia. Era minha amiga também. Lembro de Fernanda frequentar a nossa casa desde que eu era uma criança.

- Eu desconfiava, Cléber! – disse Lídia – Desconfiava que eles tinham um caso e sentia que um dia eu acabaria tendo a confirmação.
- O que vai fazer, Lídia?
- Bem, eu não tenho provas, não é?
- Tem sim.
- Quais?
- Eu tirei fotos com o celular.
- Deixe-me ver!

Lídia viu as fotos enquanto suas lágrimas silenciosas danaram a rolar.

- Como passou a desconfiar, Lídia?
- Flagrei alguns olhares, pesquei alguns comentários... Fernanda sempre dizia me achar a mulher mais sortuda do mundo por ter o Daniel como marido, essas coisas.
- Olha, Lídia, eu sinto muito, mas eu não pude deixar de te contar isso. Você não merece!
- Fez bem, meu irmão! Sei que é uma situação complicadíssima essa coisa de “se meter na vida de um casal”, mas... Muito obrigada, Cléber! Eu te amo, meu irmão!
- Eu também te amo!
- Sei disso!
- E o que vai fazer, Lídia?
- Não quero mais o Daniel em minha casa. Darei hoje mesmo um prazo para ele sumir da minha vida.
- Se precisar de ajuda...

Lídia secou as lágrimas, se recompôs e:

- Olha, logicamente eu não irei ao Jazz Bar hoje, Cléber. Mas, por favor, vá você.
- Não tenho clima, Lídia. Com você assim?
- Faça isso, meu irmão, por favor! Por Milena! Ela gosta tanto de você... Esperou por essa sexta desde a segunda.
- Tudo bem, mas qualquer coisa me liga, OK?
- Pode deixar, Cléber!
- Eu vou indo... Beijo.
- Beijo, irmão querido!

Ao sair da sala de minha irmã, notei, enfim, a franjinha linda de Milena. Passei pelo balcão e:

- Mileninha de franjinha... – eu disse.
- Só agora que notou, Cléber?
- Notara antes, mas estava apressado para falar com Lídia. Desculpe-me...
- Ah bom! E hoje à noite?
- No Jazz Bar?
- Sim! Você vai, não é? Diz que vai, Cléber!

Eu olhei para o rostinho de Milena e aquele seu par de olhos castanhos claros me forçaram a seguir os conselhos de Lídia.

- Sim, eu vou!
- Oba! Terá show da Mônica Lisboa! Gosta?
- Sim, gosto, mas terá seus lábios por lá também?

O rosto angelical de Milena corava-se.

- Sim, terá... – ela respondia numa vergonha tipicamente adolescente que me seduzia.
- Então, para mim já será uma ótima noite!
- Ai, Cléber...
- A gente se vê mais tarde. Beijo.
- Beijo.

Foi estranho para mim. Deixar minha irmã há poucos metros com uma relação de quase dez anos picotada sobre sua mesa e ao mesmo tempo ver, no sorriso encantador de Milena, o envolvente nascer de uma outra relação. Assim como, um dia, Lídia e Daniel viram a deles.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

BANANA COM AVEIA AO LEITE

Pela manhã, antes de ir para o escritório, costumo tomar meu “café” numa lanchonete próxima – um copo de banana com aveia ao leite. Durante os goles da vitamina eu penso no dia e nos afazeres que terei pela frente; uma espécie de organização mental pré-expediente.

Os barulhos dos talheres, as vozes das pessoas ali na lanchonete, tudo aquilo acabava ajudando nessa minha “meditação”. Era como se tudo aquilo ali fosse gravado e posto para tocar todas as vezes que eu me sentava num daqueles bancos do balcão.

Certo dia, aquele ambiente sonoro foi interrompido por uma voz que dizia:

- Tem fogo?

Era uma mulher linda. Nunca tinha a visto por ali, nem mesmo pelo Centro da cidade, nunca. Ela estava bem vestida e praticamente banhada de um perfume que me fazia pouco ligar para o exagero; estava cheirosa demais. Os seus cabelos negros iam até o meio das costas. Seu rosto fino e levemente maquiado possuía como característica principal os lábios. Que lábios! Eram carnudos e brilhavam muito.

- Eu não fumo – eu dizia.
- Tudo bem...
- Ali no caixa tem um isqueiro.
- Você pega para mim?
- Pois não.

Eu estava bem próximo ao isqueiro, então fiz a gentileza. Entreguei em sua mão.

- Pensei que acenderia meu cigarro – ela dizia.
- Ah!
- Tudo bem. Ando me acostumando com a atual falta de cavalheirismo. Principalmente vinda de jovens como você.
- Jovens? Não sou tão jovem assim, moça!
- E quantos anos você tem? Dezenove?
- Quase vinte!
- Jovem!
- E você?
- Trinta e cinco!

“Nossa!”, pensei. Ela parecia ter no máximo vinte e quatro.

- Enfim! Dei o isqueiro em sua mão! O que mais queria? – eu dizia.
- Já disse! Que acendesse meu cigarro!
- Ora, acenda você essa porcaria!
- Porcaria que tanto lhe seduz!
- O quê? Acha que o cigarro me seduz?
- Não, menino! Eu fumando lhe seduzo!
- Acho que você fumou algo a mais, não?
- Quer pagar para ver?
- Para ver o quê?
- Que lhe seduzo com apenas uma tragada.
- Essa é boa...

A mulher acendia seu cigarro e, por Deus, tragava-o como jamais vi alguém tragar. Ela, apesar de naquele momento estar enchendo o meu saco, era a mais exótica sensualidade em pessoa. Era impossível não pensar em sexo diante dela.

Depois de tragar e passar alguns segundos de boca fechada, a mulher soltava a fumaça como que em câmera lenta. Ela tinha o controle total daquela coisa. A fumaça saía de sua boca num formato cônico perfeito.

- Fecha a boca, menino! – ela dizia.

Eu estava realmente de boca aberta. Que mole!

- A que horas pega no serviço, menino?
- É... às oito.
- E a que horas sai?
- Às dezessete. Por quê?
- Estarei por aqui.
- OK.

Aconteceu! Exatamente como ela anunciara momentos antes. Ela me seduzira com apenas uma tragada naquele cigarro dos infernos!

Passei todo aquele dia pensando na noite que teria aos braços daquela mulher tão misteriosa. Não dissemos sequer os nossos nomes um para o outro. Foi uma coisa tão louca. Parecia estar num desses filmes onde o mocinho ganha as mulheres mais fantásticas sem emitir palavra. Senti-me bem, embora apreensivo, naquele dia de trabalho.

Às cinco da tarde, saía do escritório e ia direto para a lanchonete à procura daquela mulher. Ela não estava lá. Sentei-me no mesmo banco de sempre e pedi um pastel de queijo com um refresco de manga. Assim a esperei.

Minutos depois:

- Demorei? – dizia ela com a mão no meu ombro.
- Não! Imagina!
- Para onde vamos?
- Bem, eu não sei... Eu...
- Meninos...
- Ah?
- Vem comigo, vem.

Ela me levava até o seu carro.

- Conheço um lugar ótimo – ela me dizia enquanto dirigia pelas ruas mais vazias do Centro.
- O que você viu em mim? – eu perguntava – Parece sempre tão descrente nos homens mais jovens, mas estamos aqui, prontos para nos divertir! Não entendo!
- Exatamente! Nos divertir!

Ela freava o carro bruscamente numa esquina deserta.

- O que houve? – eu perguntava.
- Está assustado?
- Um pouco, confesso.
- Adoro quando vocês ficam assim... Assustados!
- O que pretende? Pensei que iríamos a um motel... Não?
- Não! Previsível demais, você não acha?

Ela inclinava o meu banco e, num movimento rápido e nitidamente comum na vida daquela mulher, pulava sobre mim a levantar o vestido.

- Eu quero aqui! – ela dizia ao meu ouvido.
- Meu Deus...
- Será que eu preciso dar outra tragada daquelas para que você fique novamente como pela manhã?
- Não... Mas acho que não foi bem a sua tragada que me conquistou!
- E o que foi? – ela perguntava aparentemente assustada.
- Acho que algo em mim LHE conquistou primeiro.

Ela saía de cima de mim; voltava para seu banco e:

- Está bem, eu confesso! Tenho tara em meninos que tomam banana com aveia ao leite! Pronto!
- Ah?

Eu não podia acreditar no que aquela louca dizia! Como assim? Tara por meninos que tomam banana com aveia ao leite?

- Satisfeito?
- Bem...
- Satisfeito, menino?
- Ainda não, mas acho que pode me satisfazer! Venha cá!

Naquele momento eu a tomava em meus braços e acertava a mão de leve em sua face.

- Você quer um menino ou um homem? – afrontava-a o mais sensualmente que pude.
- Não quero mais nada! Vamos embora! Você acabou de agir como um homem! Não quero mais!
- Mas...

Ela me levava até o meu ponto de ônibus sem dar sequer um pio.

Até hoje não me conformo de não ter transado com aquela mulher pelo simples fato de ter agido como um homem! Eu continuo tomando a mesma vitamina de sempre, porém, nunca mais vi aquela mulher.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A FILHA

Assim que o sinal soava, Tatiana, diferentemente de todo o restante da classe, guardava lentamente o seu material escolar. O colocar daqueles livros tão bem cuidados na mochila já cheia de manchas e remendos era calmo, quase sombrio. O bom estado de seus livros se devia à seriedade com que a menina levava seus estudos, ainda na quarta série. Já a mochila tinha como causa de seu aspecto gasto um desleixo materno. A mãe de Tatiana estava mais interessada na quantidade de cervejas estocadas na geladeira.

Conforme as crianças desciam euforicamente as escadas da escola rumo ao portão, Tatiana os seguia a passos lentos, mantendo certa distância. Tatiana não via necessidade de tamanha pressa. Não para ela. Pressa de quê? Pressa para quê? Os momentos de paz que vivia eram justamente aqueles que naquele momento se acabavam por conta do soar daquele sinal. A escola era o porto seguro daquela menina que apanhava da mãe sem motivos e com certa frequência. Ir para casa significava o início de mais um dia de inferno familiar.

Já na rua, Tatiana deixava para trás toda uma imensidão de crianças que abraçavam e beijavam seus pais. Os sapatos, já tão gastos quanto a mochila, se arrastavam pelo trajeto que, por Tatiana, não precisava ter objetivo. “Eu poderia ficar andando e andando até o início das aulas de amanhã”, pensava Tatiana todos os dias durante o caminho de volta para casa.

Mal pusera os pés dentro de casa e Tatiana já escapava por pouco de uma garrafa que voou em sua direção como um tiro. Uma voz de homem também habitava aquela casa junto aos gritos de sua mãe.

- Seu canalha! Tome! – dizia sua mãe àquele homem.

Mais uma garrafa voava.

Depois que o pai de Tatiana faleceu, assassinado pela própria esposa, o inferno da menina passou a ter personagens que mudavam quase que diariamente. As aventuras “alcoólico-amorosas” de sua mãe se davam às claras. A menina presenciava tudo, dos beijos às garrafadas, o que causava em sua mente confusão tamanha. Como diferenciar o amor da fornicação? Mãe, pai, padrasto, casos, namoros, sexo... Tudo se apresentava de forma direta, porém, complexa demais para o entendimento de Tatiana.

O rapaz da vez – alvo das garrafadas – passa por Tatiana e nem a enxerga; tropeça na menina e sai cambaleando.

- Mãe?
- O que foi, peste? Já chegou da escola?
- Quem é ele?
- Não te interessa, filha do cão! Interessa essa louça aí na pia para você lavar! Vá!

Tatiana, ainda com a mochila nas costas, apanhava um pequeno banco que usava como degrau até a pia. Sobre ele, ela lavava os restos de uma manhã cheia de álcool, cigarro etc.

A mãe de Tatiana, completamente embriagada, abria mais uma cerveja e, com os pés sobre a mesa de centro da sala, assistia à TV.

- Mãe, o que tem para o almoço?
- Não fiz nada, Tatiana! Se vire aí!
- Mas...
- O QUE É? MAS O QUÊ? QUER APANHAR, NÃO É? – gritava aquela mulher que já se aproximava com um pedaço de condutor de gás de cozinha.
- Não, mãe! Com essa borracha não! Por favor!

As súplicas de Tatiana, como sempre, não a livraram das surras. As pernas, já sem espaço para novos hematomas, tremiam a cada golpe.

Depois de arriar a menina sobre o vermelhão do chão da cozinha, a mãe de Tatiana acendia um cigarro e voltava para a TV. Tatiana olhava para suas pernas e pensava seriamente se ainda as teria até os seus quinze anos. A impressão era a de que mais cedo ou mais tarde sua mãe as arrancaria durante uma dessas surras. Na sua cabeça ainda infantil e sem muitos critérios para avaliações como essas, pensava o quão seria difícil ir até a escola sem as suas pernas. Então, decidida, falou para si:

- Não vai arrancar as minhas pernas!
- O que foi que você disse? – perguntava sua mãe já se preparando para mais uma dose de violência.
- Você não vai arrancar as minhas pernas!

Foi quando sua mãe, num trocar de pernas sem fim, chegava até Tatiana com um dos braços já erguido, pronto para mais um golpe, que a menina, ao ver uma das garrafas quebradas ao chão, se apossou de um grande pedaço de vidro e o arremessou sem mirar. Mesmo assim, foi certeira ao atingir um dos olhos da mãe.

- AAAAAAAAAAAAI! SUA FILHA DO DEMÔNIO! EU VOU TE MATAR!

Com o olho jorrando sangue entre a mão que a tapava, aquela mulher não sabia o que fazer. Não enxergava Tatiana, mas tinha o desejo de matá-la a qualquer custo.

A menina se posicionava atrás da mãe e, malignamente, assistia todo aquele sofrer como que num camarote em chamas. Chegou a esboçar um sorriso.

Um vulto negro às gargalhadas aparecia ao lado de Tatiana.

- Merecido, não? – dizia aquele vulto de silhueta chifruda e esbelta.
- Ela vai me matar... Minha mãe vai me matar!
- Não se preocupe, Tatiana. Seu pai está aqui!

A menina olhava para o vulto e, sem espanto algum, passava, talvez, a entender o porquê de ser tantas vezes chamada de filha do cão pela mãe. De certa forma se sentia mais leve agora.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

UMA GALERIA DE ARTES CHAMADA BON APPETIT

Sentia-me feliz em qualquer lugar. Desde que não notassem a minha presença, lógico. A lembrança de minha existência, por parte dos outros, se dava quase sempre pelo fato de meu nariz ser um tanto quanto desproporcional à face. Era de fato um “senhor nariz”, como diziam.

Cansei de ver pessoas que também possuíam narizes “avantajados”, porém, até mesmo essas riam do meu caso. “O meu nem é tão grande assim, comparado ao desse rapaz”, diziam. E pior: diante de um sentimento horrível que me vinha de forma muda, eu, muito sinceramente, tinha que concordar.

A desproporção de meu nariz não é daquele tipo que embeleza a pessoa. Por exemplo: a Débora, uma vizinha aqui de perto, vive dizendo que se pudesse operava. Implica com seu próprio nariz de uma forma que nem eu – um caso excepcional –, consigo implicar. A Débora, na minha opinião, é uma das meninas mais lindas do bairro. O nariz dela realmente não é do tipo “delicado”, porém, talvez, se fosse, acredito eu que toda a beleza de Débora estaria comprometida. Aquele nariz é perfeito para ela! E ponto!

Mas essa história não é sobre a Débora. Não. Mas sobre a Carolina.

A Carolina é uma menina que almoça sempre no mesmo restaurante que eu. Certa vez, ela estava lá com mais três amigas. Elas a chamavam o tempo todo. “Carolina, escuta essa...”, “Mentira! Jura, Carolina?”, diziam. Por isso sei o nome dela.

Que menina linda essa Carolina! Aparentava ter uns vinte e cinco anos, mas carregava um sorriso que a rejuvenescia aos dezessete! Sabe aquela pessoa que te induz ao bom astral apenas em sorrir? Então, é ela! Tinha um cabelo bem curto, na altura do pescoço mesmo, com cachos volumosos que ela costumava brincar de enrolar enquanto aguardava a sobremesa. A cor de sua pele ficava maliciosamente entre o moreno e o branco. E que pele!

Apesar de Carolina ser tudo isso que acabei de descrever, uma coisa nela me incomodava bastante: ela não tirava os olhos de mim. Eu já pensara diversas vezes em trocar de restaurante, mas, além de ser o único restaurante que abria uma conta para que meu chefe pagasse somente no final de cada mês, a beleza e o sorriso de Carolina nunca me permitiriam tal atitude.

Eu a olhava bastante também, mas ela tinha motivos de sobra, ora. Já eu: nariz de sobra. O que mais atrairia a atenção de Carolina sobre minha pessoa sem ser esse meu nariz? Sentia-me deprimido em pensar que os lindos sorrisos daquela menina deveriam se repetir aos montes (e numa proporção ainda mais elevada, por que não?) durante um provável comentar sobre o meu nariz às amigas.

Em hipótese alguma me passava pela cabeça ir falar com Carolina. Para mim, ela era uma espécie de obra de arte, dessas bem caras. A gente fica ali olhando, admirando, imaginando o quão seria bom tê-la em sua casa, até que aparece alguém e a leva da galeria.

Certo dia, um amigo meu, o Maurício, almoçou comigo.

- E aí, Victor – dizia Maurício –, como andam as mulheres?
- Bem, elas andam por aí, não é?
- Refiro-me a você com as mulheres, Victor!
- Na mesma de sempre, Maurício. Elas lá e eu aqui.
- E por falar em mulheres... Olha que morena ali naquela mesa, Victor! – apontava para Carolina.
- Ela está sempre aqui, Maurício. Realmente é muito linda!
- Ei! Ela não tira o olho de você ou é impressão minha?
- Impressão sua, Maurício.
- Não! Não é! Ela está, sim, olhando para você, cara!
- Não está, Maurício!
- Victor, vá lá falar com ela, sei lá! Mas não deixa essa menina escapar!
- Maurício! Olhe para mim! Olhe para o meu nariz! Entende o que ela tanto olha? Hein?
- Deixa de ser bobo, cara! Quanto mais você se inferiorizar por conta de seu nariz, mais problemático ele será para você! Não entende?
- Acho que tem razão... Mas não tenho coragem de falar com ela, cara. Não aqui.
- E onde falará? A vê em mais algum lugar?
- Pior que não...
- Então! Espere ela se levantar. Quando ela for para a fila, você vai atrás. Lá você puxa um assunto.
- Que assunto, Maurício?
- Qual quer um, Victor!
- OK.

Não preciso dizer que eu não fui atrás dela, não é? Tremi. Preferi não ir e, por isso, fiquei ouvindo as gozações de Maurício o resto do dia. Mas no fim da tarde:

- Maurício! Amanhã! Amanhã, falarei com ela!
- Espero que sim, cara! Alguma coisa ela quer com você.
- Talvez gozar do meu...
- Pare, Victor! Se falar assim de seu nariz novamente, eu juro que o arranco ele daí com um soco! Coragem, cara!
- Você tem razão! De amanhã não passará!
- Isso aí! – animava-me Maurício.

No dia seguinte, como eu já previa, novamente tremi, mas duas semanas depois, como sempre, estava eu no mesmo restaurante a almoçar. Sendo que justo no dia em que me preparara de corpo e alma para falar com a Carolina, ela não aparecia. A cada duas garfadas eu esticava o pescoço e passava uma vista em todas as mesas do local. Nada. Até que, através do vidro da porta, a vi de pé do lado de fora do restaurante. Parecia esperar alguém. Suas amigas, provavelmente.

Um rapaz chegou e a abraçou. “Ela tem companhia! Eu sabia!”, pensei. Os dois entraram no restaurante de mãos dadas. Sentaram-se, encostaram-se levemente pelos lábios e abriram o cardápio. A primeira atitude que tive foi a de olhar bem no rosto do rapaz que acompanhava Carolina. E, por Deus, o cara tinha um nariz ainda maior que o meu!

Diante da nítida felicidade daquele casal, notei que o nariz dele – apesar de, segundos antes, ter se mostrado tão incômodo para mim –, era para Carolina, talvez, aquilo que de mais bonito ele tinha; que fazia dele uma pessoa de sorte. Como aquelas que levam da galeria as obras de arte que tanto admiramos.

Aprendi que admirar é tão gostoso quanto preciso, mas admirar somente é incompleto.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

AS OBSESSÕES DE LAURO

Eu trabalhava como caixa numa livraria no Centro da cidade. Era um serviço meio estressante, mas que me proporcionava alguns momentos divertidos. É que alguns rapazes acabavam me deixando o número de seus telefones ou – os mais saidinhos –, me convidavam para jantar após o expediente. Cantadas, sim, mas nada mais que cantadas, que eu tratava de esquecer logo depois. Ria delas, até.

Mas havia um homem que todos os dias estava lá na livraria. Sentava-se na nossa lanchonete, pedia um café com alguns biscoitos e, de sua mesa, me fitava incansavelmente. Eu tinha muito medo. Ele me olhava de forma tão esquisita. Era um misto de desejo e psicopatia quase. Perto dele as outras cantadas pareciam mais com aquelas cartinhas que recebemos dos meninos, no tempo da escola. A coisa ali parecia muito mais séria.

Ele era um senhor já, mas não um senhor feio. Muito pelo contrário: possuía os cabelos levemente grisalhos, porém, o rosto, apesar de também expressar certa maturidade, passava a jovialidade que, de certa forma, atraía olhares. Além de estar sempre muito bem arrumado.

Depois de tomar o seu café com biscoitos, ele rodava a livraria a se apossar de uma quantidade enorme de itens; de gibis a livros de culinária. Depois de um tempo eu percebi que aquela quantidade era justamente para que o seu atendimento fosse bastante demorado.

E lá vinha ele com aquela pilha de livros.

- Hoje, levarei só isso – dizia ele sorrindo, em tom de piada.
- OK – eu dizia sem dar trela.
- Está tão séria! O que houve? – ele tentava um assunto.
- Nada.
- Mas está sempre tão sorridente!
- Não sei desde quando! Estou sempre séria. Afinal, aqui é o meu local de trabalho.
- Sim, mas um bom atendimento depende, principalmente, de um sorriso no rosto, não?
- Nem sempre.
- Bem, acho que você não está para papo, não é?
- Desculpe-me, senhor, mas é que são muitos itens que está levando. Eu não posso perder a atenção, entende?
- Claro, perfeitamente.
- Obrigada.

O tempo todo em que eu operava o caixa, aquele senhor me olhava. Certa vez, ele chegou a tentar retirar a minha franja, que estava na direção dos meus olhos.

- Pode deixar, senhor – eu dizia.
- Mas não a incomoda?
- Sim, mas pode deixar.

Os “foras” que eu lhe dava pareciam ajudar ainda mais naquela fissura que ele tinha por mim.

Por várias vezes tive vontade de sair daquele emprego, mas eu dependia muito daquele dinheiro. Cheguei a comunicar à minha gerente sobre as atitudes daquele senhor, a fim de que tomasse alguma providência. Sei lá qual! Mas ela:

- Francine, entenda que ele é um cliente que nos rende muito!
- Mas ele só aparece por aqui e compra aquele monte de livros por minha causa! Eu tenho medo dele, D. Regina! Muito medo!
- Minha filha, ele não a fará mal algum! E se a sua beleza está ajudando nas vendas da loja, que motivo eu tenho para mudar isso?
- Não pensa na minha segurança, não é?
- Segurança, Francine? Pois saiba que se eu fosse você, tratava era de dar uma chance para ele! Sabe quem ele é?
- Não! E nem quero saber!
- Mas direi! Ele é o dono desse hospital aí em frente!
- E daí?
- E daí que ele é podre de rico, Francine! Vai desperdiçar? Outra vem e pega, hein!

Confesso que, naquela tarde, diante da minha total falta de grana, pensei seriamente na dica de D. Regina. Ora, ele era um senhor bonito. Embora eu não soubesse como meus pais aceitariam essa história, já que eu tinha apenas vinte e um anos, resolvi que iria dar uma chance àquele senhor.

No dia seguinte, lá estava ele, na mesma mesa, tomando o mesmo café com biscoitos e me fitando da mesma maneira obcecada.

No caixa:

- Hoje, levarei só isso – como sempre, dizia ele.
- Como faz para ler tudo isso? – eu perguntava.
- Quem disse que os leio?
- E porque os compra?
- Somente para ter esse momento prazeroso que é falar com você, Francine.
- E qual o seu nome?
- Lauro.
- Prazer.
- O prazer é todo meu. Que horas você sai daqui, Francine?
- Às oito.
- Posso passar aqui? Podemos jantar... Eu preciso muito conversar com você... Eu...
- Eu vou aceitar, Lauro.
- OK! Combinado! Às oito!
- OK!

Pontualmente, Lauro aparecia frente à porta da livraria.

- Podemos? – dizia ele.
- Sim! Mas para onde vamos?
- Se não se importar, mandei preparar um jantar especial lá em casa.
- Na sua casa?
- Sim. É aqui perto. Que tal?
- Tudo bem.

Eu passava a o achar um doce de homem. Ele era a gentileza em forma de gente. No caminho – íamos a pé mesmo – ele me dizia coisas tão românticas.

- Eu cheguei a pensar, Francine, que nunca teria a chance de lhe dizer que...
- Que o quê?
- Que tu és a menina mais linda que já vi em toda a minha vida!
- Que exagero, Lauro.
- Não, não é!

Ao entrar na casa de Lauro, logo na (enorme) sala, avistei a pilha de livros que ele comprava diariamente comigo.

- Você não os lê mesmo – eu dizia apontando para a pilha.
- Apenas alguns. Os que me interessam.
- E o que lhe interessa?
- Armas.
- Armas? Pensei medicina.
- Também, mas meu interesse maior, no momento, são as armas!
- Você tem armas?
- Sim, algumas. Quer ver?
- Melhor não, eu acho.
- Você vai gostar.

Lauro me levava até uma outra sala. Em meio a quadros e esculturas enormes, centenas de armas de todos os tipos ajudavam na decoração.

- Não são lindas? – perguntava-me Lauro.
- As esculturas? São!
- As armas!
- As armas? Não acho muito.
- Espere até experimentá-las.
- Não acho uma boa ideia, Lauro.
- Por que não? Olhe esta faca! Que lâmina! – Lauro dizia passando as costas do cortante em meu braço.
- Credo! Não faça isso! Não íamos jantar?
- Íamos, Francine, mas acho que temos coisas mais interessantes a fazer.
- Como o quê?
- Como isso! – Lauro encostava a lâmina em meu pescoço.
- Pare com isso, Lauro! Não estou gostando!
- Mas vai gostar!

Num reflexo que nem eu mesma sabia possuir, afastei seu braço armado de meu pescoço e tomei o caminho até a saída daquela mansão. Com as portas já trancadas, aquela casa tornava-se um imenso alçapão, onde a presa era eu.

- Volte aqui! – ele corria atrás de mim afoitamente.

Naquela extrema loucura, Lauro acabava se desequilibrando ao correr daquela forma; e, ao cair, fincava, sem querer, a faca em seu peito.

Fiquei ali. Vi toda o agonizar de Lauro sem dar um pio. Até a chegada da polícia eu só pensava na cilada em que me metera e nas outras cantadas mil que, por alguma razão, não dei atenção. Senti saudades das cartinhas e da inocência que era o “paquerar” de minha adolescência. Maldito amadurecimento. Maldita mente adulta.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

SEGUNDA CHANCE

Com muita elegância, acendeu o cigarro. Olhou-me de uma forma tão ameaçadora e ao mesmo tempo tão desejada por qualquer homem naquele momento. Soltou a fumaça devagar. Seus cabelos ruivos de certa forma combinavam com a camiseta branca que vestia. Sua pele branca fazia o seu cigarro parecer um sexto dedo naquela mão de unhas feitas; vermelhas. Usava também um par de óculos bacana, uma calça jeans escura e um tênis de cano longo preto até a canela. Realmente uma figura diferente no meio da multidão.

O semáforo estava verde para os carros. Não fiz nada. Ali fiquei. Imóvel. Nem sequer piscava os olhos. Nem me lembro se respirava. Apenas olhava para aquela menina do outro lado da rua, que parecia um pouco ansiosa em atravessar.

Foi quando deixou escapar um sorriso. Respondi sorrindo também, meio sem acreditar que aquilo era verdade. Abobalhado, deixei cair no chão toda a papelada que diariamente me resultava em fortes dores por todo o braço.

O semáforo “abriu” para nós. Não pude seguir, pois tive que me agachar para catar toda àquela chatice que tomava horas do meu expediente. Enquanto apanhava os papéis, ia observando cada calçado que tropeçava em mim na esperança de ser aquele cano longo preto que me chamara atenção segundos antes. Mas não o vi passar. Recolhi tudo. Triste, me levantei e olhei para o semáforo, que estava novamente verde para os carros.

Logo pensei que havia perdido a oportunidade de ao menos passar ao lado daquela menina dona do sorriso mais lindo que eu já tinha visto até então.

Olhei para os lados, para trás e até para cima. Não seria difícil achá-la no meio daquela gente toda, com aquele tom de blusa. Mas não achei. Foi quando olhei para frente. Ela estava lá, no mesmo lugar. Ela também não havia atravessado a rua. Balançou seus longos fios ruivos, sorriu-me novamente e disse uma frase que só através da leitura labial entendi.

- Você tem mais uma chance!

* * *
Foto da Capa: Ana Fonseca

Conto publicado originalmente em 30 de agosto de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas