segunda-feira, 19 de abril de 2010

EM MEIO AO CAOS

Segunda-feira. Já se passava das dez da noite quando tomei o ônibus debaixo de um temporal atípico. O Centro da cidade se mostrava mais uma vez precário em relação àquele fenômeno natural. As ruas alagadas em poucos minutos de chuva tratavam de dar ao transporte a lentidão que precisávamos naquela situação. Tudo parou.

A chuva, como que num querer de mostrar o seu poder, martelava o teto do ônibus com uma violência crescente e ininterrupta. A impressão era a de que a qualquer momento aquele teto cederia sobre todos nós. Quantos ali não pensaram no famoso ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, hein? Antes fosse mole a água que nos atingia. Antes fosse de pedra aquilo que nos protegia.

Ao meu lado, uma mulher, aparentando quase trinta, levava as mãos à testa e orava em voz baixa. A ação daquela mulher contrastava com todo o seu redor: pessoas completamente desesperadas a falar em voz alta e sem parar. Eu apenas encostava a cabeça no vidro da janela e observava o nível da água a subir e subir e subir...

- Vamos sair dessa – eu dizia à mulher ao meu lado, mas sem olhar para ela exatamente.

- Sei que vamos – ela respondia sem parar a oração.

Não se tratava de fé. Não de minha parte. Tratava-se de convicção mesmo. Estava disposto a usar toda minha força para sair daquela situação, caso a água invadisse aquele veículo. E a salvar aquela mulher também, por que não? Ela, apesar daquela fé que já me incomodava, me passava uma sensação boa. Sensação esta que meu peito abriu espaço para sentir em meio aquele prenúncio de tragédia.

O nível da água já alcançara a lataria do ônibus, o que fez com aquela mulher orasse ainda mais fervorosamente. É difícil explicar a uma pessoa cristã o que se passa na cabeça de um ateu nessas horas. Eu não sei. Só sei que não coloco a minha salvação nas “mãos” de algo que eu nem sei se existe. Confio em mim. Durante o tempo que aquela mulher perdia jogando frases ao vento, eu estudava uma maneira de nos tirar dali.

Foi quando a água começou a balançar levemente o veículo que as pessoas entraram realmente em pânico. Em algumas janelas já era possível notar riscos d’água a invadir os assentos. As pessoas fechavam os vidros às pressas. Mas o que quase ninguém notou foram as enormes poças já formadas sob nossos pés.

Quando a água atingiu uns cinco centímetros acima do nível das janelas:

- Vamos sair daqui! – eu dizia àquela mulher ao meu lado.

- Eu sei que vamos!

- Não estou dizendo para esperarmos uma ação de seu Deus, moça! Estou dizendo para sairmos daqui! E agora!

- O meu Deus é o seu Deus também, rapaz!

- Eu não tenho Deus algum!

- Então pode ser que não saia daqui!

- Isso é o que vamos ver!

Abri a janela com força, fazendo com que um grande volume de água invadisse o ônibus – para desespero geral. “Você ficou maluco?”, gritavam. Não sei o que deu em mim, mas senti que o único jeito seria nadar até um ponto seguro.

Nas primeiras braçadas que dei, ainda sem saber para onde ir, eu senti a correnteza me levar para trás do ônibus. Fui arrastado por aquela água suja até conseguir me agarrar num poste, uns cinquenta metros depois.

No poste permaneci. Abraçado, concluía aos poucos que não fora uma boa ideia. Mas ali fiquei.

Alguns minutos se passaram até que a chuva, abruptamente, cessava. Mais alguns minutos depois o nível da água, que cobrira os carros, baixava, revelando os estragos.

Com a água na canela, vi descerem os passageiros do ônibus em que eu estava. Caminhei até eles. Mais especificamente até aquela mulher que sentava ao meu lado.

- Está tudo bem? – eu perguntava.

- Sim, graças a Deus.

- Talvez seja graças a Ele mesmo.

- Que bom que agora crê.

- Não, não creio. Apenas respeito sua fé.

- Que bom, mesmo assim.

- Vai ser difícil caminhar até em casa, não?

- Sim, será. Nem sei o que fazer – dizia aquela mulher, que me aparecia ainda mais linda depois de molhada – Pego dois ônibus para chegar em casa, e...

- Eu moro aqui perto. Se você quiser, pode ficar por lá. Eu...

- Imagina. Não precisa se preocupar.

- Bem. Vamos andando. Até lá você decide. Pode ser? Não há problema algum para mim.

Caminhamos até a minha casa. E ela, depois de muito eu insistir, resolvia ficar. Acho que porque ela notou que minha mãe me aguardava na janela. Que perigo um homem que ainda morava com a mãe poderia oferecer?

- OK. Eu vou ficar. Fico muito grata.

* * *
Bem mais tarde, minha mãe, depois de muito paparico, ia para a cama. Aquela mulher e eu ainda ficaríamos por horas conversando à mesa da cozinha.

Prometemos não entrar no assunto religião, mas não me contive em comentar a beleza de seus olhos castanhos enormes e de seus cabelos curtos e ondulados. Até que:

- Engraçado você não acreditar em Deus – dizia ela.

- Por quê?

- Fala de minha beleza como se ela nascesse de onde?

- Ora, eu sei lá de onde?

- Só uma força maior seria capaz de criar tudo isso. A beleza, o sentimento...

- Prometemos não falar de religião, lembra?

- Não estou falando de religião. A religião, na maioria das vezes, estraga tudo. Estou falando de fé!

- Mas você não vai à igreja? Não tem uma religião?

- Não. Por quê? Porque eu orei naquele momento?

- Ué...

- Não preciso da igreja. Preciso da minha fé.

- E eu preciso de um beijo seu.

- E o que o faz acreditar que eu o beijaria?

- Não sei. O meu poder de sedução, talvez...

- Pode ser. Mas eu prefiro acreditar que Deus o colocou no meu caminho.

- Acredita que o seu Deus causou toda essa tragédia para que nós nos encontrássemos?

- Por que não? Acredite! Nesse exato momento, várias pessoas devem estar mortas. Mas, em meio ao caos, várias pessoas estão nascendo também. Eu me sinto assim...