quinta-feira, 27 de novembro de 2008

100.º POST

Hoje, tenho o orgulho de postar pela centésima vez por aqui. Esse post não poderia ser um post qualquer. Então, deixo vocês com um pouco da história do Muitos em Um. Espero que curtam!

Como tudo começou

Há alguns anos, existia um blog chamado
Verbalize Já. Nele, escreviam alguns amigos meus e mais alguns outros colunistas. Ao todo eram cinco pessoas, revezando de segunda à sexta, cada um com um respectivo assunto. Nas quintas-feiras, era a vez de Clarissa Marinho. Ela escrevia contos. E que contos! Lembro ainda do primeiro conto que ela publicou no VJ: “O Assalto”. Eu ainda não a conhecia, mas, devido a minha paixão pelos seus escritos semanais, passei a conhecê-la. Transformei em versos e musiquei um de seus contos, “A Lua”. Daí surgia uma amizade baseada na troca de experiências, já que Clarissa curtia minhas músicas e eu, como já disse, os seus contos.

Com o fim do VJ e inspirado na arte de Clarissa, passava então a escrever meus próprios contos. Eram ruins demais, creio eu, mas continuava mesmo assim, por exercício mesmo. Em 17 de março de 2007, eu publicava o meu primeiro conto,
“Seis Dias Depois”, em meu fotolog. Como capa, usava simplesmente a foto de um revólver. A idéia de fazer capas para os contos só viria um pouco mais tarde.

Com o tempo, o fotolog passou a limitar minhas idéias, tendo apenas quinhentos caracteres disponíveis para postar contos que ultrapassavam o setecentos. Surgia assim a idéia de um blog.

Muitos em um?

Os contos, hoje vejo, mesmo com grotescos erros de português, acabaram fazendo certo sucesso entre os amigos. Tudo bem, amigos são suspeitos, mas eles liam até o fim, além de comentarem. Até uma série de cinco capítulos,
“Quatro Mais Um”, em pleno feriado prolongado. Foi quando eu percebi que precisava apenas melhorar (está bem, melhorar e muito) para que a coisa ficasse pelo menos um pouco mais séria.

Precisava de um nome para isso aqui. Eu pensava em vários. Até que me atentei a algumas críticas que recebia no fotolog. Alguns diziam que eu escrevia muito diferente entre um conto e outro. Como se fossem escritores diferentes. Eu não sabia como sanar isso, e acho que até hoje não sei. Então, se pareço ser muitos em um só: Muitos em um!

O primeiro conto a ser publicado no blog foi
“O Incapaz”, em 04 de março de 2008. Eu me empolgava com o novo formato de publicação. Começava então a produzir cada vez mais.

Idéias, textos, tempo...

Trabalhando e fazendo faculdade, eu preciso confessar que, às vezes, é difícil manter o blog atualizado. Mas quanto mais coisas eu faço, mais contato com o mundo eu tenho e, conseqüentemente, mais idéias para criar me vêm. Uma frase dita no vento, uma história contada por algum amigo, uma música. Tudo me vem como “frutas”. Junto tudo e faço uma vitamina, que costumo chamar de conto.

Sinto-me pressionado a escrever. Eu não possuo chefe no blog. Então, de onde vem tal pressão para escrever cada vez mais e mais? De mim mesmo. Às vezes, me pego escrevendo entre garfadas, na hora do almoço. Por quê? Porque gosto, ora! Apenas isso. O meu dia tem apenas vinte e quatro horas, como o de qualquer um, porém, uso cada minuto de maneira correta, acredito eu, a fim de usar apenas o “resto” que me sobra para o sono. Coisa que faço muito pouco.

Foto da capa por:

Eu não sou fotógrafo e muito menos fotogênico. Então, possuo amigos que, gentilmente, cedem suas fotos para ilustrarem alguns contos. Amigos que fotografam bem e acabam virando leitores do blog também. É sempre uma troca. Sempre! A Fabiana Romeo e o Gabriel Andrade são um dos que mais fotografaram para esse blog. Aninha Shinoda contribuiu bastante também, porém, de uma maneira diferente. A Aninha incorporou, a pedido meu, a personagem mais fofa desse blog, a Luana.

O que aconteceu nas séries
“Luana” e “Duas” foi algo que me deixou muito feliz. Os leitores praticamente “adotaram” a Luana e sua gatinha Mimi com comentários que me deixavam cada dia com mais vontade de escrever. O carinho demonstrado pelos leitores me motiva muito! Mesmo!

Enfim, devo um agradecimento especial a todos que me cedem suas belíssimas fotos!

Discos e livros

Os discos e livros do meu momento ficam sempre expostos na coluna da esquerda para, não só divulgar os trabalhos alheios, mas levar ao leitor um pouco da atmosfera que me ronda. Assim, às vezes fica claro de onde veio tal idéia ou fase pela qual minha escrita passa. Sempre me sinto influenciado pelas coisas que leio ou escuto. É isso.

Muito obrigado pela leitura de sempre

É mais ou menos assim que agradeço aos scraps, e-mails e comentários que recebo referentes aos contos. Não é muito fácil manter, mesmo que num número pequeno, leitores atentos num blog de textos não muito curtos como o Muitos em um. Agradecer é o mínimo que devo fazer pelos minutos que me cedem de suas vidas. Ver filmes no youtube é muito mais fácil, não?

E por falar em video...

Segue um video comemorativo do centésimo post do Muitos em um!



* * *

Um grande abraço!!!

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

SEGUNDO TEMPO

- Ele está aqui, Pâmela.
- Onde?
- Aqui na minha frente. No Jazz Bar, ora.
- Ele está sozinho, não está?
- É... – Adalberto pausava. – Não! Está com ela. Por que não acredita em mim, mulher?
- Adalberto, você tem certeza?
- Como dois e dois são quatro. Eles estão aqui e de mãos dadas. Na minha frente.
- De mãos dadas? Eu não posso acreditar!
- Acredite. Vou fotografá-los. Calma aí.

* * *
Adalberto era o melhor amigo de Pâmela. O rapaz tentava descobrir a traição do noivo da amiga, o Glauber. Na verdade Adalberto tentava apenas comprovar tal adultério aos olhos cegos e apaixonados da amiga. Adalberto já o havia flagrado com a “boca na botija” por diversas vezes. Pâmela precisava de provas, de algo mais palpável para acreditar nas descobertas de Adalberto.

Pâmela fora alertada por diversas vezes sobre as aparições acompanhadas de seu noivo naquele bar, porém, as palavras de Adalberto não lhe causavam sequer desconfiança.
- Ora, Adalberto. Ele sempre me disse. Nunca me escondeu que nas sextas ele pára no Jazz Bar com seus amigos. Ele não me trairia. Não ali.
- Pois é. Por que você não aparece lá qualquer dia?
- Não preciso, Adalberto. Eu confio no Glauber!
- E em mim não, pelo visto.
- Adalberto, você é meu melhor amigo. Você sabe disso. Mas você só pode estar confundindo as coisas. A mulher que você diz ver sempre aos carinhos com o Glauber só pode ser a Mônica Lisboa, a cantora do bar. Ela é prima grudada do Glauber.
- Eu conheço a Mônica, Pâmela. Não é ela.
- Adalberto! Chega! Por favor, amigo. Não quero brigar com você, mas deixe o Glauber em paz.
- Como quiser.

Era sempre assim que as conversas terminavam. Adalberto contava o que via, mas Pâmela fechava os olhos e os ouvidos. Talvez, por preferir conviver com a metade que prestava do Glauber, ou seja, apenas com os momentos em que estavam juntos.

Adalberto não estava enganado. Glauber mantinha, sim, um caso com uma amiga de trabalho e não media seus atos, já que não escondia carícias e beijos em pleno Jazz Bar lotado. Glauber na certa tinha noção da cegueira de Pâmela diante de sua palavra. Sabia que uma aparição inesperada de sua noiva era praticamente impossível. Adalberto sentia-se ainda pior em saber de tudo aquilo.

Certo dia, Adalberto ia até a uma loja e gastava o dinheiro que com tanto sacrifício juntara. Comprava um aparelho celular com câmera. Estava disposto a comprovar a traição de Glauber para Pâmela. Não se sentia bem com a função popularmente chamada de fofoqueiro, mas não admitia ver sua melhor amiga na condição de idiota.

Em alguns momentos, Adalberto se questionava em relação àquela fixação por tal comprovação. Perguntava a si mesmo se valia todo aquele esforço. Pensava várias vezes que aquilo não era um problema seu, porém, tudo o que atingisse direta ou indiretamente a Pâmela caía, sim, sobre seu obro. E uma vontade imensa de protegê-la logo surgia. Adalberto podia não perceber ou aceitar, mas estremecia frente àquela pequena de pele alva. Os olhos azuis, que mais pareciam duas safiras, o hipnotizavam.

- Pâmela.
- Adalberto?
- Sim, sou eu. Anote esse número. É meu celular.
- Mas você sempre foi contra celulares. Com toda aquela história de perseguição, controle, consumo consciente...
- Pois é. Mas comprei um e com câmera embutida.
- Nossa! Com câmera embutida? Não é você! Para que quer um celular com câmera?
- Para que acredite mais em mim.
- Você não está pensando em...
- Sim. Vou fotografar o seu noivo nas condições que lhe digo e você vai se livrar desse noivado que só lhe trará infelicidade, minha amiga.
- Adalberto. Deixa de ser enjoado! Você quer acabar com meu noivado? É isso? Eu sou feliz com o Glauber! Deixe-o em paz!
- Vai me agradecer por isso, Pâmela.
- Adalberto!
Adalberto desligava.

Na sexta-feira, como sempre, lá estava Glauber e sua turma no Jazz Bar. Três rapazes e duas garotas completavam sua mesa. Uma delas era a de Glauber. Adalberto ficava do lado de fora do bar e procurava o melhor ângulo para enquadrar um possível beijo. Adalberto pensava no quanto iria doer o peito de Pâmela ao ver aquela imagem. Dava uma golada na caipirinha e resolvia ligar para a amiga.

- Ele está aqui, Pâmela.
- Onde?
- Aqui na minha frente. No Jazz Bar, ora.
- Ele está sozinho, não está?
- É... – Adalberto pausava. – Não! Está com ela. Por que não acredita em mim, mulher?
- Adalberto, você tem certeza?
- Como dois e dois são quatro. Eles estão aqui e de mãos dadas. Na minha frente.
- De mãos dadas? Eu não posso acreditar!
- Acredite. Vou fotografá-los. Calma aí.

* * *
Após conseguir várias fotos, inclusive a de um beijo, Adalberto corria até a casa de Pâmela.
- Quer ver as fotos?
- Eu não acredito que você fez isso, Adalberto?
- Espere aí, Pâmela. Você não acredita no que eu fiz? Não devia acreditar no que ele vem fazendo com você!
- Mas que obsessão é essa, Adalberto? O que você ganhará com isso?
- Vou vê-la feliz de verdade, Pâmela! Você não merece aquele canalha!
- E QUEM DISSE QUE EU NÃO SOU FELIZ, ADALBERTO?
- Pâmela, veja as fotos, por favor!
- EU NÃO QUERO VER COISA ALGUMA! SAIA DA MINHA CASA!
- Eu não estou acreditando que prefere viver com uma mentira a encarar a dura verdade!
- EU QUERO VIVER EM PAZ COM O GLAUBER!
- Mas ele lhe trai, Pâmela! E da pior maneira possível! O que é viver em paz para você?
- Saia daqui, Adalberto, por favor...

Naquele instante, a porta se abria. Era Glauber. Vendo todo aquele desespero de Pâmela, o rapaz perguntava:
- O que está acontecendo aqui, Pâmela? Por que está chorando?
- Não foi nada, Glauber. Não foi nada.
- E o que faz aqui, Adalberto?
Pâmela e Glauber olhavam para Adalberto de maneira torta, cada um com seu próprio motivo.
- Nada. Estou só de passagem. A gente se vê, Pâmela. Tenham uma boa noite.

Adalberto se sentava num banco de uma praça, frente à casa de Pâmela. Ficava a observar a silhueta do casal pela janela. Glauber abraçava Pâmela e parecia contornar qualquer tipo de situação. Pâmela, num salto, rapidamente laçava o corpo do noivo com suas pernas. As luzes da sala se apagavam. Era o segundo tempo de Glauber, o primeiro tempo de Pâmela e o tempo nenhum de Adalberto.

Ao amanhecer, Adalberto se levantava do banco e, coberto pelo sereno da madrugada, seguia para casa pelo caminho mais longo. Glauber permanecia sob os lençóis e as pernas de Pâmela. Provavelmente pronto para a prorrogação.


[Continua]

* * *
Foto da Capa por: Gabriel Andrade [meinframmer].

terça-feira, 25 de novembro de 2008

DUAS IX - Uma (Final)

No domingo, Rômulo reaparecia à casa de Luana. Marcos e Patrícia estavam em casa e, ao chegar do rapaz, tratavam de assistir TV no quarto. Preferiam deixar a sala livre para Luana e o namorado, que aproveitavam bem o espaço. Dessa vez, Rômulo deixara que Luana ligasse a TV, embora o conteúdo televisivo naquele dia fosse tradicionalmente péssimo. Mas quem estava interessado em programas de auditório ou filmes já amarelados de tanta tortura? O jovem casal fitava-se e beijava-se quase que todo o tempo.
- Adorei o CD que me trouxe ontem, Rômulo.
E beijos.
- Eu sabia que iria curtir.
Mais beijos.
- Você é um amor. Prestou atenção quando disse sobre meu gosto musical.
E mais beijos.

Para Luana, tudo aquilo era muito novo. Para Rômulo, nem tanto. Mas havia algo em Luana que deixava tudo com ar de novidade. O rapaz na verdade nunca tivera experiência tão maravilhosa. Conversar com Luana, mesmo que muito pouco, por conta dos beijos mil, era sempre muito bom. Rômulo ficava sem entender o motivo de tanta sorte. Encontrar uma menina como Luana era como o surgir de um cometa raro no céu.
- Queria te fazer uma pergunta, Luana.
- Quantas perguntas você quiser.
- Algum menino já se mostrou tão apaixonado por ti?
- Nunca.
- Eu não posso acreditar. Uma menina apaixonante como você não ter despertado algo assim em ninguém até hoje.
- Bem, pelo menos nunca ninguém veio me dizer que estava apaixonado por mim, Rômulo.
- Pensando bem, Luana, acho que Deus a guardou numa redoma de vidro até aquele dia na capela.
- Pode ser. Mas e você? Muitas meninas já se apaixonaram por ti?
- Como irei responder? Eu não sei bem... Algumas até chegaram a me dizer isso, mas, sinceramente, o sentimento não foi recíproco. Então...
- Então?
- Não representaram nada. Nada parecido com o que estou vivendo hoje, Luana.
- Fico feliz em saber.
E mais e mais beijos.

À noite, Rômulo jantava com a família de Luana, que permanecia boquiaberta com a inteligência e a educação de Rômulo. O rapaz conduzia os assuntos a estudos, artes, lugares interessantes. Celeste, maravilhada e hipnotizada com o conteúdo de Rômulo, servia os pratos dispersa. Luana era só orgulho ao notar o quão especial era seu namorado.

- Papai, amanhã, às sete da noite, Giovanna se apresenta na SNT da escola. Você vai, não é?
Luana lembrava.
- Sim. Patrícia e eu daremos um jeito de estar lá.
- Você vai também, não é, Rômulo?
- Sim. Terei de faltar ao grupo de estudos, mas sei que valerá a pena. Pelo que me diz, as poesias dessa sua amiga me parecem bem especiais.
- E são. Vocês verão!

* * *
Na segunda-feira, às sete da noite, lá estava Luana no auditório a esperar pela apresentação de Giovanna. Devido a uma partida de futebol da SNT, no mesmo horário, o auditório estava praticamente vazio. Luana encontrava os pais de Giovanna e sentava-se ao lado deles.
- Boa noite, Sr. Nelson. Boa noite, Sra. Amélia.
- Boa noite, Luaninha.
Era como a chamavam os pais de Giovanna.
- Meus pais estão vindo para cá. E meu namorado também.
- Namorado? Luaninha namorando? Que graça!
Dizia Amélia.
- Eles chegaram! Ali!
Luana acenava para os pais. Logo Rômulo também aparecia no auditório.

Todos foram devidamente apresentados um ao outro por Luana. Era hora de aguardar a entrada de Giovanna. Eis que surgia ao palco a professora Jussara:

- Primeiramente, gostaria de dizer que é um prazer enorme receber todos vocês aqui para as apresentações da Semana de Novos Talentos deste ano. Nessa edição, tivemos um número inédito de inscritos no Corredor de Artes, em poesia. Quatro alunos. Em poesia, trata-se de um recorde! Mas vamos lá. Para abrir a noite, ela, aluna do segundo ano do ensino médio, dezesseis anos – a mais jovem desta categoria. Por favor, aplausos para Giovanna.

Os poucos presentes a aplaudiam de pé. Giovanna surgia com um lindo vestido azul frente ao microfone. A menina observava o vazio daquele auditório e mostrava-se um pouco desapontada. Até que avistava seus pais, Luana e a família da amiga. O “bonitão” só podia ser o Rômulo. Estavam bem próximos ao palco. Giovanna, então, começava:

Nos nossos dias mais alegres
O céu, azul ou cinza, faz-se fundo
Sobre as mentes mais confusas
Das mais amantes desse mundo

Uma janela com vista para o nada
Abre-se sempre após minha chegada
Serve-nos de canto, de pouso e morada
Sendo assim, a ouço e me ouve calada

O chão que pisamos, enchemos de luz
Mas luz que vem de nós, que nasce e conduz
O céu que observa ao mesmo tempo nos seduz
Seja azul ou cinza, uma esperança nos produz

Uma coisa meio estranha, terei de agora fazer
Mudar a estrutura para a poesia assim nascer
A amizade vale muito, até um verso não dizer

Todos a aplaudiam de pé, mas Luana não entendia, já que tal poesia nem conhecia.

* * *
Após a apresentação, Giovanna dirigia-se até seus convidados. Luana era a primeira a abraçar a amiga poetisa.
- Ai, Giovanna. Foi tão lindo! Você quase nem olhou os papéis.
- Pois é. Que bom que gostou, amiga.
- Agora, que poesia foi aquela? A primeira que recitou.
- Fiz ontem. Sua percepção não captou?
- O quê? Em recital fica mais difícil, Giovanna.
- As iniciais, Luana, de cada verso.
- Imagina! Não! O que diziam?
- “Nós duas somos uma”. Tive que fazer a última estrofe faltando um verso para que desse certo. Fiz para você, Luana!
- Ai, Giovanna, dá um abraço!
As amigas se abraçaram sob os olhares emocionados de Nelson, Amélia, Marcos, Patrícia e Rômulo. O último ficava ainda mais admirado com os sentimentos presentes na namorada.

* * *
Uma semana depois, a escola onde estudavam fazia um convite à Giovanna. Queriam publicar suas poesias numa espécie de livreto, a fim de presentear os pais de seus alunos no fim do ano. Giovanna aceitava, logicamente, mas com uma única condição: Escolheria o título do livreto. A escola aceitava e, em dezembro, publicava dez poesias de Giovanna com o título escolhido: “Duas”.

Luana vivia um sonho aos braços de Rômulo e Giovanna dava um primeiro passo em sua tão sonhada carreira de escritora. É... Um sol começava, enfim, a brilhar na vida das duas.

Trilha Sonora

[Fim]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana na série LUANA (
Setembro de 2008).

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

DUAS VIII - Luana Nas Nuvens

A Semana de Novos Talentos batia à porta. Os eventos teriam início na próxima segunda-feira. Giovanna prosseguia com seus ensaios em sua casa mesmo. Sabia do estado emocional de Luana e sabia também que a imagem de Rômulo não a deixaria prestar atenção nos versos. Entendia que Luana precisava “diminuir o gás” e isso levaria ainda alguns dias.

Na sexta-feira, no mural da escola, estavam as datas e horários das apresentações, jogos, exposições, etc. Giovanna agarrava-se nos braços de Luana a procurar seu nome na programação.
- Achou algo, Luana?
- O quê?
- Acorda! Procure meu nome na programação, Luana.
- Ah sim. Estou procurando.
Na certa todos os nomes ali presentes deveriam aparecer para Luana como “Rômulo”. Era só nisso que parecia pensar.
- ACHEI!
Gritava Giovanna.
- Onde?
- Ali. Segunda-feira às sete da noite.
- Vai arrasar. Terá mais gente a recitar poesia?
- Sim. Mais duas meninas e um menino.
- UM MENINO?
Perguntavam-se as duas ao mesmo tempo.
- Não conheço meninos por aqui que curtem poesia.
Dizia Giovanna.
- Rômulo disse que gosta.
- Luana, eu disse POR AQUI. Tudo agora é Rômulo?
- Foi só um comentário, Giovanna.
- Sei.
Elas riam.

Não houvera aula naquela sexta-feira. Na verdade a semana toda fora uma baderna. Mas na próxima semana, toda a escola estaria enfeitada e pronta para os eventos. Uma faixa enorme na portaria já anunciava a SNT. Isso deixava Giovanna um pouco nervosa.
- Vamos embora?
Sugeria Giovanna.
- Vamos sim.
- A semana que vem promete, Luana.
- O fim de semana também.
- Por quê?
- Rômulo vai lá em casa.
- Jura? E você nem me fala nada.
- Desculpa. Estou falando agora. Ele vai lá em casa no sábado.
- Que sortuda! Depois quero ver esse seu primo. Precisa passar pela minha aprovação.
Elas riam mais.

* * *
Sábado à tarde. Luana tomara um banho demorado. Um Converse novinho, um jeans e uma blusa de malha a esperavam sobre a cama. Desde o beijo na capela, Luana e Rômulo só se falavam por telefone. Revê-lo era a coisa que Luana mais sonhava naquela semana. Rômulo também deixara exposto nos telefonemas o quanto queria tê-la por perto novamente. Sob o chuveiro, Luana cantava “Paquetá” às vistas arregaladas de Mimi. A felina jamais andara tão por fora do comportamento de sua dona. “Sem você sou pá furada”, cantava a menina.

Arrumada, Luana esticava-se sobre o sofá da sala e ali permanecia a observar uma peça decorativa da mesa de centro. Uma pequena escultura de um casal se abraçando. Imaginava-se ali com Rômulo. A campainha tocava. Num salto, Luana avistava o primo no portão. Celeste ia atendê-lo.

Rômulo trazia bombons e o CD Live Au Trianon da cantora francesa Camille. Rômulo já sabia de alguns de dos gostos musicais de Luana.
- Para mim?
Perguntava Luana ao perceber o esticar de braços de Rômulo.
- Para quem mais poderia?
- Rômulo, não precisava de nada disso.
Dizia uma Luana totalmente sem jeito. Celeste observava cautelosamente da cozinha com sorriso de admiração.
- E do que precisava?
Perguntava Rômulo.
- Só de você. Somente.
Os dois beijavam-se um pouco desconfortáveis com a presença de Celeste à entrada da sala.
- Vocês vão querer um lanche?
Interrompia Celeste.
- Agora não, Celeste. Mais tarde, sim?
- Está bem.

O casal sentava-se no sofá. Luana, sem jeito, ensaiava ligar a TV.
- Não. Não ligue a TV.
- Não gosta?
- Gosto.
- Então?
- Mas é que só faço o que gosto quando não há nada que gosto mais para competir. E você, Luana, é hors concour.
Beijavam-se. E dessa vez se deixavam levar pelo calor dos braços um do outro. Era impossível resistirem. O casal estava completamente cego um pelo outro. Apaixonados.

À noite, com a chegada de Marcos e Patrícia, Rômulo, sempre muito educado, levantava-se do sofá a fim de cumprimentá-los.
- Boa noite primo Marcos. Boa noite D. Patrícia.
- Boa noite, Rômulo. Pode ficar à vontade.
Dizia Patrícia.

Marcos cumprimentava o pretendente a genro com certa seriedade. Nem rude nem simpático. Apenas sério, porém, bem natural. No quarto do casal, Marcos mostrava-se inquieto.
- O que foi, Marcos?
Perguntava Patrícia.
- Eu não sei. Minha filha. Meu bebê. Trocando beijos com um rapaz. É difícil para mim, entende?
- Eu entendo sim. Coisa de pai mesmo. Mas tente aceitar que mais cedo ou mais tarde isso teria que acontecer.
- Eu estou tentando. Juro que estou.
- Outra: Sua filha se tornou uma moça linda, meu amor. Devia se sentir feliz por isso. Imagina se Luana fosse uma dessas meninas que, Deus que me perdoe, espantam os meninos.
Eles riam.
- Você tem razão, Patrícia. Notou como Luana estava ainda mais linda, por conta do namorado?
- Claro que notei. E digo mais: Esse Rômulo é uma gracinha de menino. Um gatinho.
- Olha, já sinto ciúmes por conta de Luana. Você não quer que eu sinta por conta de você também, não é?
Dizia Marcos em tom de brincadeira.
- Pára com isso, bobo. É um menino. Além do mais...
- O quê?
- Estou bem resolvida com o homem que tenho.
Patrícia o fitava com olhar malicioso. Marcos ria.

Mais tarde, Rômulo se despedia de Luana e sua família prometendo retornar no domingo, para delírio de Luana.
- Estarei te esperando, Rômulo.
- E eu morrendo de saudades, Luana.
Um beijinho, sob os olhares curiosos de Marcos, Patrícia e Celeste, pela janela da cozinha, marcava a meiga despedida do casal, no portão. Os três sorriam com cena tão linda. Luana voltava sorrindo e nitidamente "nas nuvens".

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana na série LUANA (
Setembro de 2008).

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

DUAS VII - Rotação Interrompida

Naquele dia, depois de muito conversar com Giovanna, à noite, era a vez de Luana conversar, como combinado, com seu pai. Luana esperava uma ligação de Rômulo, mas, até então, nada. Resolvia seguir os conselhos inexperientes de Giovanna, que dizia para que ela não ligasse, e sim, esperasse primeiro um sinal dele. Assim Luana fez, embora morresse de vontade de telefoná-lo. Mal se continha em si.

Marcos e Patrícia chegavam em casa. Patrícia subia as escadas rapidamente até o quarto de Luana. Marcos falava com Celeste sobre o jantar e ao mesmo tempo observava a atitude de Patrícia com breve sorriso.
- Luana?
Chamava Patrícia à porta do quarto da menina.
- Entra.
- Estou sabendo que você e um tal de Rômulo...
Dizia Patrícia em tom de brincadeira. Luana ria e corria para abraçar Patrícia.
- Papai te contou, não foi?
- Foi. Mas me conta. Como foi isso?
Patrícia sentava-se na cama com Luana, que logo contava tudo o que acontecera naquela capela.

As duas conversaram bastante. Patrícia deu alguns conselhos à enteada como se fosse filha dela. Luana sentiu bastante à vontade ao conversar assunto tão íntimo com Patrícia. Havia muita cumplicidade entre as duas.
- Papai disse que quer conversar comigo.
- Ele me disse, mas preferiu transferir essa conversa para mim.
- Então, quer dizer que a conversa que eu tanto temia foi essa que acabamos de ter?
- Sim. Veja bem, Luana. O que seu pai e eu queremos é que caso você e esse seu primo venham a namorar mesmo, que seja sob os nossos olhos, entende? Não queremos saber de encontros às escondidas por aí. Combinado?
- Claro que sim! Mas o Rômulo ainda nem me ligou. Acha que ele já se esqueceu de mim?
- Bem. O conselho que lhe dou é de deixar que ele tome a iniciativa. Não ligue.
- Mas e se ele não me ligar?
- Sinal de que ele não merece mesmo a sua ligação.
- Giovanna falou o mesmo.
- Viu?
- Entendi.
- Está gostando dele, não é?
- Ai... Nem sei explicar o que me passa. É tão estranho. Uma vontade louca de vê-lo, de ouvi-lo. Você precisava escutar as coisas que ele me disse. Parecia cena de filme.
- Eu posso imaginar.
Respondia Patrícia feliz pela fase de Luana.

* * *
Mais tarde, Luana tentava pregar os olhos, sem sucesso. Mimi já se encontrava profundamente nos braços de Morfeu, quando o celular de Luana tocava. Já passava das dez horas. A menina levantava assustada e olhava o visor do aparelho a fim de identificar quem a ligava. Era Rômulo. Suas pernas tremiam, Luana toda tremia. Um pulsar acelerado tomava seu coração e um nervosismo gostoso de sentir lhe possuía por completa.
- Alô!
- Luana?
- Oi... Rômulo.
- Oi. Estava dormindo?
- Estava. Quer dizer, não. Quer dizer, estava quase dormindo, mas não tem problema.
- Desculpe-me. Quer que eu ligue outra hora?
- NÃO! Imagina. Pode falar.
- Que bom. Eu ia lhe telefonar mais cedo, mas depois da escola eu tive curso. E depois do curso eu tive grupo de estudo e...
- Nossa! Estudioso você, não?
- Um pouco. É que estou me preparando para o vestibular. Aí já viu...
- Imagino como deva ser. Faz curso de quê?
- Piano clássico.
- Nossa! E vai prestar vestibular para qual curso?
- Música!
- Claro. Que idiota eu sou.
Eles riam.

Depois daquela breve explicação sobre os motivos que não o deixaram ligar mais cedo para Luana, Rômulo despejava uma série de frases que Luana tanto sonhara ouvir. Ele sabia usar as palavras a seu favor. Educado e muito romântico, Rômulo fazia – sem saber – as lágrimas de Luana chegarem aos olhos por diversas vezes. Luana ainda não acreditava que tudo aquilo era real.
- Sinto por morar um pouco longe de você.
Dizia Rômulo.
- Eu também sinto.
- Eu seria capaz de unir nossas cidades no mapa, Luana, a fim de segurar a sua mão nesse exato instante.
- Eu ia adorar! Por que não une?
- Porque sou fraco. Sou fraco porque estou longe de ti, Luana. Desde ontem, não penso em outra coisa se não nesses seus lábios delicados.
- Ai, Rômulo, eu também não paro de pensar. Preciso lhe confessar uma coisa.
- Diga.
- Aquele foi o meu primeiro beijo.
- Não brinca!
- Juro.
- Não sei o que pensar, Luana.
- Por quê? Não gostou de saber?
- Muito pelo contrário. Perco a cabeça em pensar que estarei marcado em sua vida até o seu último suspiro. Estarei, não é?
- Claro que sim! Foi do jeitinho que eu sempre sonhei.
- Eu preciso lhe beijar novamente, Luana.
- Eu também preciso, Rômulo. Ah! Meu pai já sabe de tudo.
- O primo Marcos? Que vergonha, meu Deus. E o que ele acha disso tudo?
- Disse que, desde que seja sob os olhos dele, está tudo bem.
- Que bom. Então quer dizer que podemos nos ver mais vezes sem temer.
- Sim!

O casal ainda conversaria por alguns minutos até que a mãe de Rômulo o mandasse largar do telefone por conta do custo de uma ligação para celular.
- Eu preciso desligar, Luana. Minha mãe implica.
- Tudo bem, Rômulo.
- Quando nos vemos?
- Nesse fim de semana, pode ser?
- Contarei os minutos, linda.
- Eu também!
- Beijos!
- Beijos!

Luana desligava o telefone e sentia que só então o planeta voltava a girar normalmente. Durante a conversa, o mundo parava para Luana. Deitava-se com o aparelho no colo e o olhava como se fosse o Rômulo. Sorria. Ria de sua própria alegria. Ria de seu próprio riso. O coração aos poucos voltava ao seu batimento normal. A menina contaria cada passo do ponteiro de seu relógio até o sábado. Planejava recebê-lo em casa. Seguiria a finco às condições de Marcos e Patrícia. “Esperar meu namorado”, ela pensava.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana na série LUANA (
Setembro de 2008).

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

DUAS VI - Sua Vez, Giovanna!

No caminho de volta para casa, Luana era o silêncio em pessoa. Marcos não demorava muito para entender ou pelo menos desconfiar do que tinha ocorrido naquela capela enquanto esteve longe da filha. O rosto de Luana dizia tudo, porém, Marcos, num misto de ciúme e zelo, preferia não comentar nem fazer perguntas sobre as impressões da menina em relação a Rômulo. Marcos dirigia e Luana olhava o efeito daquela primavera. Luana avistava muitas flores pelo caminho, mas talvez metade delas era fruto do sentimento inédito que sentia. Um beijo inesquecível como aquele num coração sensível como o dela só podia dar naquilo.

Mais próximo de casa, Marcos não agüentava mais. Então:
- Luana, eu vou indo para o supermercado, OK?
- O quê?
- Estou indo para o trabalho, Luana.
- Trabalho?
- Luana! Você está bem?
- Sim, papai. Estou sim. Eu entendi. Você vai para o trabalho, não é isso?
Marcos olhou fixamente para Luana e:
- Venha filha.
Marcos desligava o carro.
- Diga, papai.
- O que houve lá no cemitério? Estás estranha.
- O quê? Lá no cemitério? Nada, ora... Eu...
- Luana! Não quero que minta para mim. Eu não nasci ontem, se é que me entende.
- Ora, papai. O que você quer saber afinal?
- Rômulo. Enquanto eu estava próximo ao caixão eu vi a aproximação dele. Repito: Eu não nasci ontem, Luana. Ele tentou alguma coisa com você? Ou ao menos lhe jogou algum tipo de galanteio?
- Galanteio, papai?
Luana ria.
- Você entendeu, Luana.
Marcos mantinha-se sério.
- Nós... Nós... Nós nos beijamos, papai.
- Poxa Luana. No cemitério? O que deu em você? Foi tão forte assim? Meu Deus.
- Desculpe papai, mas é que você me pressionou, então eu disse, ora. E se disse é porque confio em você.
- Claro que sim, filha. Fico feliz por isso. Mas não sei o que pensar quanto ao seu beijo com um primo seu. Distante, mas primo. Quando eu chegar do trabalho, conversaremos, OK?
- Como quiser, papai.
- Deixe-me ir. Beijos.
Marcos ligava o carro, engatava a primeira marcha. Quando:
- Papai!
- Oi, filha.
- Não está bravo comigo, está?
Marcos não teve outra escolha a não ser sorrir para a filha.
- Claro que não, Luana. Claro que não. Eu já tive a sua idade e sei bem como as coisas funcionam. Só precisamos conversar. Só isso, está bem?
- Como quiser! Beijos, papai.
- Beijos.

* * *
Depois do almoço, Luana corria para o telefone em busca de Giovanna. Precisava contar à amiga sobre Rômulo, sobre o beijo, sobre tudo. Uma espécie de felicidade amedrontada tomava conta do coração de Luana. Não sabia o que pensar, não sabia como agir. Sentia-se sem chão, tamanha euforia e ansiedade. Mimi pulava em seu colo à espera de alguma confissão, mas, no momento, Luana preferia Giovanna.
- Alô.
- Giovanna?
- Oi, Luana!
- Você não sabe o que aconteceu, Giovanna!
- O que foi, amiga? Fala!
- Lembra do enterro que fiquei de ir com meu pai?
- Sim, claro, o da sua prima.
- Pois é. Conheci um primo distante lá. O nome dele é Rômulo.
- Pelo visto... É uma gracinha, não é?
- Como sabe?
- Pela sua respiração, Luana. Está nítida sua empolgação!
- Giovanna! Sim, ele é um gato! E você não sabe de mais.
- O que é que eu não sei?
- Ele me beijou. Quer dizer, nós nos beijamos!
- Amiga! Mas no cemitério?
- Não importa, Giovanna. O que importa é que não consigo parar de pensar nele!
- Pelo visto o beijo foi bom, então.
- Não podia ter sido melhor, Giovanna. Eu...
- Luana, sem querer lhe interromper, mas ainda está de pé aquele ensaio hoje, aí na sua casa?
- Claro que sim. Pode vir! Mas venha já!
- OK! Vou me arrumar e parto para aí.
- Estarei te esperando, Giovanna. Tchau!
- Tchau!

* * *
Luana e Mimi esperavam por Giovanna. Luana num ataque de risos e Mimi com os olhos arregalados sem nada entender sobre o comportamento eufórico de sua dona.
- Ai, Mimi. Estou tão feliz! Você já beijou algum gatinho? Claro que não. Não sabe o que é bom, Mimi... Meu Deus!
Mimi apenas a observava. Luana, deitada, vestia um jeans, uma camiseta e, como sempre, um Converse nos pés. A menina rolava de um lado para o outro devido à inquietação em que se encontrava. Giovanna, enfim, chegava.
- E aí, beijoqueira de cemitério, como está?
- Sem essa, Giovanna.
Elas riam.
- Vamos! Quero ensaiar bastante hoje!
Dizia Giovanna.
- Pode começar. Suba na cama e comece.

Giovanna recitava a primeira, a segunda e a terceira poesia. Quando começava a recitar a quarta, notava que Luana podia estar em qualquer lugar, menos naquele quarto.
- Luana?
- Oi!
- Está prestando atenção?
- Sim, estou sim, Giovanna.
- Não, não está. Quantas poesias eu já recitei?
- Ora – via-se sem saída Luana – umas duas?
- NÃO! Estou na quarta! Luana, eu vou parar. Você não está com a cabeça aqui.
- Desculpe-me, amiga.
- Tudo bem. O dia em que eu tiver o meu beijo, eu acho que também ficarei assim, estranha. Quer conversar?
- Quero, Giovanna.

As poesias tiveram de ficar de lado naquela tarde. Luana tinha umas oitenta horas de conversa sobre um beijo que durara poucos segundos. Era a vez de Giovanna ajudá-la.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
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Setembro de 2008).

terça-feira, 18 de novembro de 2008

DUAS V - Tudo Ao Mesmo Tempo

No dia seguinte, pela manhã, Marcos e Luana seguiam para o enterro da prima Arlete. Patrícia preferia ir trabalhar. Alegava não se sentir muito bem em cemitérios. Demonstrava também muita preocupação na ida de Luana. Não achava uma boa idéia, por achar o cemitério um local muito triste e medonho. Marcos perguntava por diversas vezes à Luana se ela tinha certeza de que queria ir ao enterro.
- Tem certeza de que quer ir, Luana?
- Claro que tenho, papai. Não sou mais criança!
- OK. Então vamos.

Marcos parava o carro em frente à porta principal do cemitério. Os despachos de candomblé encharcados da chuva que caíra na noite anterior deixavam Luana um pouco impressionada, pois nunca chegara tão perto de um. Luana abraçava forte o braço de Marcos e o seguia até a capela onde familiares e amigos velavam o corpo de Arlete.

Plínio, irmão de Arlete, recebia pai e filha na porta da capela com um rosto de expressão nula. Não parecia triste nem feliz. Nem choroso nem risonho. Nem atencioso nem displicente. Apenas olhava para um nada enquanto apertava a mão de Marcos, que constatava uma piora nos sentimentos de Plínio daquela tarde no supermercado até então.
- Olha aí a Luana. Não está uma moça?
Marcos tentava quebrar o clima.
- Nossa! Está uma moça linda!
Plínio abraçava Luana, porém, com o mesmo olhar sem vida. Na certa não reconheceria Luana se a visse na rua no dia seguinte. Plínio parecia arrasado e com a cabeça bem distante.

Ao entrarem na capela, Marcos explicava à Luana o grau de parentesco de Plínio.
- O Plínio é irmão da prima Arlete. Lembra dele?
- Não, não me lembro muito bem. Então ele é meu primo também?
- Sim. É o que chamamos de primo de segundo grau. Ele é seu primo de segundo grau.
- Entendi.
- Você vai querer ver o corpo?
- Não, papai. Prefiro ficar por aqui.

Logo, vários familiares chegavam até Marcos e Luana. Estavam todos impressionados com Luana, que, por conta do excesso de trabalho de seus pais, mantinha-se há tempos longe das principais reuniões familiares. Diziam “Mas como cresceu!” “Meu Deus! É a Luaninha?” “Não acredito, Marcos! É a sua filha? Que moça linda!”. Luana se encabulava, mas não deixava de sorrir a todos e conversar um pouco com cada um que a ela chegava. Marcos deixava a “atração” do velório para consolar os mais próximos de Arlete. Até que:
- Realmente. Você está linda mesmo, Luana!
Um menino aparentando uns dezessete anos se aproximava dizia à Luana.
- Obrigada. Quem é você?
- Meu nome é Rômulo. Bem, pelo parentesco, sou seu primo. Distante, mas primo – ele sorria – Sou filho da sua prima, a Lúcia.
- Não conheço também.
- Deixa-me explicar. Tia Arlete, que Deus a tenha, era irmã da minha mãe, a Lúcia. Aquela ali.
Rômulo apontava para sua mãe.
- Entendi.
- Você não se lembra de mim?
- Desculpe-me, mas não lembro de você. Na verdade não me lembro de ninguém por aqui.
Luana sorria meio sem graça.
- Tudo bem. Eu lembro de ti muito pequena. Um natal que passamos na casa de Tia Arlete.
- Nossa. Não me lembro mesmo.

Rômulo falava manso e de forma que paralisava o olhar de Luana em seu semblante. Ele era um rapaz muito bonito. Um pouco mais alto que Luana, com ombros de quem parecia nadar todo dia. Vestido num casaco negro e de calça jeans na mesma cor, Rômulo fazia contraste com sua pele branca. Os lábios e o nariz eram delicados. No par de olhos, o menino trazia um castanho bem claro.
- Com quantos anos está?
Perguntava Rômulo.
- Fiz quinze. E você?
- Dezessete.
- Legal.
- Por que nunca mais a vi nos natais?
- Meu pai e minha madrasta trabalham demais. Principalmente nessa época do ano. Então, por causa da correria, acabamos passando as festas em nossa casa mesmo.
- Entendi. Mas façam um esforço para estarem mais próximos.
- Se dependesse de mim...

Naquele momento, o caixão de Arlete era fechado e os presentes seguiam para o enterro. Marcos chegava até Luana e a encontrava bastante entretida com o primo. Mesmo com um pouco de ciúmes e desconfiança das intenções de Rômulo, Marcos acabava achando melhor. Tinha com quem ficar até que ele retornasse.
- Filha.
- Oi papai.
- Tudo bom Rômulo? Está um rapagão!
Cumprimentava Marcos.
- Pois é...
Rômulo sorria.
- Luana, eu vou seguir até o enterro. Você fica aqui, OK?
- Fico sim, papai.
- Pode ficar tranqüilo, primo. Ficarei aqui fazendo companhia a ela.
Prontificava-se Rômulo.
- Que bom. Não demoro.

Luana e Rômulo estavam agora sozinhos frente à capela. Sentavam-se num banco de concreto e ali conversavam sobre a vida um do outro. Logicamente que tanto Luana quanto Rômulo desejavam no fundo que aquele enterro durasse pelo menos uns dois anos. Luana notava certa atração pelo primo, embora tentasse negar num terrível conflito íntimo. Rômulo era só carinho para com Luana. Mesmo num cemitério, o clima entre os dois era de algumas risadas e muitas constatações felizes. A demonstração de inteligência e a educação eram recíprocas.

Luana encontrava-se num misto de coisas inéditas. Onde imaginaria estar faltando aula, sentada num banco de uma capela, conversando com um primo atraente e tomada por uma vontade louca de beijá-lo?

Depois de muito conversarem:
- Posso te dizer uma coisa?
Perguntava Rômulo.
- Diga.
- Há muito não sinto vontade de ter alguém como sinto agora.
- O quê?
Luana envergonhava-se, porém, demonstrava agrado ao ouvi-lo em tal afirmação.
- É sério. Luana, isso pode parecer esquisito, por conta de toda essa situação, mas eu já estou com saudades de você só de pensar que amanhã não lhe verei.
- Poxa, Rômulo. Não sei o que dizer. Eu...
- Não precisa dizer nada. Apenas contribua para o cessar dessa saudade.
Rômulo chegava até os lábios de Luana vagarosamente, a fim de dar tempo para que a menina decidisse se corresponderia ou não àquele beijo. Rômulo jamais roubaria os lábios de uma menina. Acharia-se desrespeitoso e aproveitador. Mas ela correspondia.

Enquanto se beijavam, na cabeça de Luana se passava tudo ao mesmo tempo: Marcos lhe fazendo carinho, Giovanna recitando versos lindos, Mimi pulando em seu colo, Nara Leão cantando “O Barquinho”, um foguete subindo aos céus, os camarões de Celeste, o sol rasgando as nuvens com seus raios... Rômulo sabia beijar uma menina. Luana não seria mais a mesma depois de tal experiência.

Ao chegar de Marcos e os familiares, Luana e Rômulo fingiam apenas conversar. Porém, toda uma vontade de se verem mais vezes já tinha sido exposta um ao outro. Trocaram telefones e se despediram.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
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Setembro de 2008).

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

DUAS IV - Má Notícia

Luana e Giovanna passavam aquela tarde e o início da noite falando sobre poesia. Luana arrastava a cômoda que ficava sob a única janela de seu quarto a fim de que ficassem ali debruçadas olhando para a rua, que vez em quando passava alguém.

Um primo de Marcos estivera pela tarde em seu supermercado para informar a morte de um ente.
- Mas, Plínio! Não soube que prima Arlete estava mal!
Dizia Marcos sem acreditar no que ouvira.
- Pois é, Marcos. Minha irmã já tinha sérios problemas com o cigarro, você sabe, e já vinha sendo avisada por vários médicos sobre o risco que corria por conta do vício. Ela não nos ouvia.
- E o Roberto?
Marcos perguntava a respeito do esposo de Arlete, cunhado de Plínio.
- Ora, o Roberto. Aquele ali é mosca morta, Marcos. Ninguém sabe por onde ele anda faz quase um mês.
- Nossa. E será que não foi esse sumiço que fez com que Arlete piorasse?
- Nada. Arlete vinha se sentindo muito feliz até, por causa do sumiço do traste.
- Que loucura. E eu sem nada saber, primo.
- Ora, Marcos. Você tem seus supermercados para administrar. Imagino as dores de cabeça que já possui. Jamais iria lhe incomodar com essas maluquices de nossa família.
- Bobagem. Mas diga, quando será o enterro?
- Amanhã de manhã. Às nove. Naquele cemitério em frente ao Clube dos Líderes.
- Sei qual é. Estaremos lá. Força, cara!
- Eu estou bem. Como está a Luana? Nunca mais a vi, Marcos.
- Está uma moça já. Já fez quinze anos.
- Nossa. Acho que a lembrança mais recente que tenho de Luana é a dela montando nas minhas costas certa vez.
- Meu Deus. Nem eu lembro disso. Tomarás um susto quando a vir.
- Imagino. Bem, mande um beijo para ela. Deixe-me ir, Marcos.
- Vai lá. Eu te vejo amanhã.

À noite, Marcos chegava em casa e:
- LUANA!
- OI!
Respondia Luana.
- SE JÁ TOMOU SEU BANHO, DESÇA PARA JANTAR!
- ESTOU INDO, PAPAI!
Luana descia com Giovanna, que se despedia de todos.
- Tem certeza que não quer jantar conosco, Giovanna?
- Não, Luana. Obrigada. Minha mãe já deve estar preocupada comigo.
- Janta conosco, Giovanna. Ligue para sua mãe e diga que a levarei em casa.
Sugeria Marcos.
- Isso!
Reforçava Luana.
- Boa idéia!
Dizia Patrícia.
- Ai. Está bem. Mas não vou demorar, OK?
Giovanna aceitava o convite morrendo de vergonha.
- OK! Pode usar o telefone ali na sala, Giovanna.
Dizia Marcos.
- Está bem.
Ela ia.

Enquanto Giovanna telefonava para sua mãe, Marcos comunicava à Luana sobre a morte de Arlete.
- Luana, você se lembra daquela nossa prima, a Arlete?
- Lembro um pouco. Aquela que passava o tempo todo lá na varanda porque fumava muito?
- Exatamente, Luana.
- O que tem ela?
- Faleceu nessa madrugada.
- Meu Deus. Por causa de quê?
- Ela tinha sérias complicações no pulmão por conta do cigarro. Aí...
- Entendi. Que chato. Quando será o enterro?
- Amanhã. Mas você não precisa ir, Luana.
- Mas eu queria ir, papai. Ver minha família. Tanto tempo que não vejo.
- E vai faltar aula?
- O colégio está uma bagunça total, papai. Por causa da Semana de Novos Talentos.
- Entendi. Se não há problemas em faltar, pode ir comigo.
- OK.

Giovanna chegava da sala dizendo estar tudo bem em jantar lá naquela noite. Sua mãe deixara que ficasse.
- Mas o senhor vai me levar em casa, não é?
- Claro!
- Então está bem.

Celeste arrumava a mesa para a família enquanto brincava com Giovanna.
- Sabia que as amigas de Luana que jantam aqui nunca mais se dão bem com as mães?
- Por quê?
- Porque depois que comer de minha comida, não vai mais querer saber da comida de sua mãe.
- Mentira! Giovanna é a primeira a jantar aqui!
Luana dizia e Giovanna ria.
- Luana fala muito bem da senhora.
- A Luana é um anjo. Fala bem de todo mundo.
Giovanna ria mais enquanto notava o quão cheirosa era a comida de Celeste.

Durante o jantar, Luana falava à mesa a respeito das poesias de Giovanna. Causando assim uma imensa curiosidade por parte de Marcos e de Patrícia.
- Poderia recitar um para nós?
- Ora, senhor Marcos. Assim? Tenho vergonha.
- Sem essa, Giovanna. Vergonha de quê?
Dizia Luana.
- Pára, Luana!
Dizia Giovanna sorrindo encabulada.
- Deixa, papai. No dia da apresentação dela, passa lá no colégio. Será lindo!
- Combinado!
Marcos sorria com a empolgação das duas, mas não conseguia tirar totalmente da cabeça a morte de sua prima Arlete.

Após o jantar, Marcos, como prometido, levava Giovanna em casa na companhia de Luana. As amigas foram no banco de trás tagarelando sem parar. Marcos era só seriedade e lembranças de Arlete. Lembrava do tempo em que brincava no sítio de seus avós e de tantos outros episódios ao lado da prima mais velha, que cuidava de Marcos com muito carinho.

Na volta, Luana entendia o estado emocional do pai e procurava se manter em silêncio.
- Pode falar, minha filha.
- É que está tão quieto. É por causa de nossa prima?
- Sim. Mas vai passar, filha.
Luana cobria-se com o capuz do casaco e recostava a cabeça no ombro de Marcos. Num gesto carinhoso o beijava o braço, que apoiava sobre a alavanca do câmbio.

Marcos constatava mais uma vez que Luana não era mais aquela criança que montara nas costas de seu primo Plínio. Aceitara a notícia da morte de Arlete com muita seriedade e extrema noção do ocorrido. Marcos não estava certo se seria uma boa idéia levá-la ao enterro no dia seguinte, mas Luana mostrava maturidade suficiente para que mudasse de idéia poucos minutos depois. Luana tinha o dom de motivar quem a cercava através gestos muito dosados e sempre carinhosos. Marcos sorria discretamente.

[Continua]

* * *
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Setembro de 2008).

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

DUAS III - Crème de La Crème

Na fila de inscrição para o Corredor de Artes da Semana de Novos Talentos, Giovanna aguardava sua vez abraçando suas dez poesias escolhidas junto à Luana. Duas meninas à frente conversavam sobre suas apresentações. Uma dizia ter separado duas músicas da Ivete Sangalo para a apresentação. Já a outra, estava ali a fim de inscrever seu grupo de dança de rua. Giovanna não sabia para qual das duas torcia o nariz, já que não admirava nenhuma das expressões ali jogadas ao vento naquele papo de fila.

Enfim, Luana a encontrava.
- Nossa. Procurei-lhe por toda a escola, Giovanna.
- Você não sabia que eu estaria na fila de inscrição? Eu lhe disse!
- Eu sei, Giovanna, mas pensei que viéssemos juntas.
- Desculpe-me, Luana, é que quis garantir o meu lugar na fila. Bem, o que importa é que me achou, não é?
- Isso. Já sabe com quantas poesias poderá se apresentar?
- Não. Mas espero que com umas cinco pelo menos.

Após alguns minutos, Giovanna chega, enfim, à mesa de inscrição.
- O que vai inscrever?
Perguntava a professora Marlene, uma das atendentes.
- Poesias.
- Poesias?
JUSSARA! ALGUÉM JÁ SE INSCREVEU COM POESIA?
- NÃO!
Respondia a professora Jussara, do outro lado do auditório, à Marlene.
- Qual o seu nome?
- Giovanna.
- Giovanna, você é a primeira a se inscrever com poesia, sabia? Parabéns, pois é difícil ver jovens da sua idade interessar-se por tal expressão.
- Obrigada. Essa é minha amiga, a Luana. Ela também adora poesia!
- Que ótimo saber disso, meninas. Bem, Giovanna, preencha essa ficha aqui e me entregue logo após.
- OK. Com quantas poesias eu posso me inscrever?
- Ih! Espere.
JUSSARA, COM QUANTAS POESIAS A MENINA PODE SE INSCREVER?
Àquela altura, todo o auditório já sabia da presença de uma poetisa na fila. Giovanna avermelhava-se.
-
O SUFICIENTE PARA VINTE MINUTOS DE RECITAL!
Esclareceu Jussara.
- Ouviu?
- Sim. Vinte minutos de recital. Oito poesias, no máximo.
- Você é quem sabe, Giovanna. Fique à vontade. Não se esquece de me entregar-me sua ficha preenchida.
- OK!

Giovanna e Luana sentavam-se numas das cadeiras do auditório para decidirem quais seriam as duas poesias eliminadas. Era uma escolha muito difícil, já que aquelas dez poesias eram chamadas pelas amigas de crème de la crème. Luana sentia-se como uma empresária de uma grande artista, a Giovanna, que não conseguiria eliminar sequer um único verso daqueles escritos.
- E agora, Luana? O que faço?
- Olha só. São todas muito boas. Se pensarmos em todas elas como iguais em suas qualidades, bastamos sortear duas e pronto.
- Não sei se concordo, Luana.
- Tem alguma idéia melhor?
- Não.
- Então, sorteemos!
- OK.
Dizia Giovanna simulando um semblante triste.
- Não fique assim, vamos. Jogue-as para o alto e pegue duas. Não as leia para não se arrepender. Simplesmente pegue as oito poesias que estiverem no chão e entregue.
Giovanna fazia exatamente o que Luana propusera. Inscrição realizada.

* * *
Já na casa de Luana:
- Giovanna, você já pensou em como vai recitar suas poesias?
- Ora, recitando.
- Mas você já recitou alguma vez?
- Ai! Não, nunca! Meu Deus! Não pensei nisso, amiga!
Giovanna se desesperava.
- Calma! Você tem uma semana para ensaiar!
- Queria tê-las na cabeça. Não precisar lê-las.
- Entendo. Você tem uma semana para decorá-las então. E acho bom que comece o quanto antes.
- Agora?
- Pode ser!
- Na sua frente, Luana? Tenho vergonha!
- Você terá um auditório lotado, Giovanna.
- Não me lembre disso!
- Vamos! Suba na cama e recite essa aqui.
Luana entregava uma cópia de uma das poesias inscritas para Giovanna e deitava-se no tapete de seu quarto.
- Assim?
- Sim! Comece!
- OK! Que vergonha!

Giovanna respirava fundo e começava a recitar de maneira impecável. Ela não tinha idéia, mas já possuía boa parte de seus escritos muito bem guardados naquela cabecinha. Algumas olhadas ao papel já eram suficientes para recordar Giovanna em suas possíveis falhas. Era a vez de Luana olhar Giovanna com espanto e admiração. A interpretação de cada verso era simplesmente magnífica. Os olhos de Luana brilhavam ao brotar de lágrimas emocionadas. Mimi vidrava os olhos ora em Luana, ora em Giovanna, emitindo um miado empolgado após os últimos versos ditos por Giovanna.

Sei que sou fruto dos sonhos,
Do lixo e da lama de meus pais


- Vai arrasar!
Sussurrava Luana.
- Você está chorando, Luana?
- É que está lindo demais, Giovanna! Que venha o SNT.
Elas riam.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
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Setembro de 2008).

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

DUAS II - Percepção

Naquela semana, a escola onde Luana e Giovanna estudavam anunciava a proximidade da Semana de Novos Talentos. Uma forma que a instituição tinha de incentivar e descobrir alunos talentosos em diversas áreas, como artes, ciência, esporte etc. Seria uma semana inteira sem aulas, porém, repleta de atividades que costumavam deixar a escola mergulhada num agito ora atraente, ora infernal.

Na semana anterior ao evento, não se falava em outra coisa entre os alunos. Bandas musicais, times de futebol, grupos de dança e tantos outros alunos munidos de seus dotes faziam uma enorme fila no auditório para a inscrição. Embora parecesse um verdadeiro caos, a escola tinha tradição na organização de tal evento, o que garantia que no final tudo correria bem. Mas a impressão inicial era, sim, de uma reprise do festival de Woodstock, de 1969, onde a desordem gerou inclusive a fome de seus participantes.

Luana e Giovanna se viam no meio daquela correria toda.
- O que vai apresentar na SNT desse ano, Luana?
- Eu? Nunca apresentei nada. Não será nesse ano que a coisa mudará. E você?
- Eu só me apresentei uma vez. Com os meninos lá da sala. Apresentamos-nos no Corredor da Tecnologia.
- E o que apresentaram?
- Um software capaz de lhe dar as condições matemáticas de aprovação ou reprovação no ano letivo com base nas suas notas de anos anteriores.
- Que interessante...
Luana mostrava pouco interesse, na verdade.
- Pois é. Ele lhe dava até a nota que poderia alcançar caso você fosse para a prova final. Aqueles meninos são uns gênios. Você precisa conhecer.
- O software?
- Não! Os meninos da minha sala.
- Ah, não, obrigada.
- Bem, eles são inteligentes demais. Eu garanto.
- Nota-se, mas... Melhor não.

No dia seguinte, Giovanna chegava até Luana com a notícia de que participaria da SNT.
- Em que corredor? Tecnologia?
Perguntava Luana.
- Não, não. Artes.
- E o que vai apresentar?
- Poesia.
- Escreve poesia?
- Sim. Nunca lhe disse, pois sei que és leitora conhecedora e as minhas poesias são muito amadoras, Luana.
- Fiquei curiosa agora. Pode me mostrar uma?
- Posso. Passa lá em casa hoje à tarde. Assim me ajuda a escolher as melhores para o evento.
- Então, pelo visto, tens muitas poesias.
- Sim. Cerca de duzentas.
- Nossa. Passo lá sim.
- OK, Luana!

Chovia muito naquela tarde, mas nada impediria Luana de ler os escritos da amiga. A menina ligava para o pai e perguntava se ele viria almoçar em casa, a fim de aproveitar uma carona na sua volta para o trabalho até a casa de Giovanna.
- Eu não ia não, filha. Mas vou quebrar o seu galho.
- Você é o melhor pai do mundo, sabia?
- Eu sei disso, Luana. O cara que tem a melhor filha do mundo só pode ser o melhor pai do mundo também.

* * *
O quarto de Giovanna encontrava-se repleto de papeis. A cama e o chão estavam completamente forrados deles. Era muita poesia. Giovanna sentia-se envergonhada com a chegada de Luana, já que temia a opinião da amiga sobre seus versos.
- Meu Deus, Giovanna! Será que consigo ler isso tudo?
- Sim. São pequenas. A maioria tem no máximo quatro estrofes de quatro versos.
- OK. E por onde começamos.
- Acho melhor descartarmos as mais antigas, Luana. Eu era muito pequena ainda. Acho que de um ano para cá a coisa fluiu melhor. São essas aqui.
Giovanna apontava para uma pilha de mais ou menos cinqüenta folhas.
- Melhorou.
Aliviava-se Luana, que começava a ler imediatamente.

Luana lia e separava os escritos formando duas pilhas, provavelmente uma significava “apta” e a outra “não apta”, na cabeça de Giovanna, que roia as unhas. Luana lia sem dar sequer um pio. Apenas lia e as colocava ora numa pilha, ora noutra. As duas pilhas se encontravam uma em imensa desvantagem da outra. Restava saber o que aquilo significava. Giovanna roia mais as unhas, mas não deixava de observar o empenho de sua amiga em ajudar. Singelos sorrisos saltavam de seu semblante ao notar expressões de encanto no ler de Luana. Giovanna a adorava num limite jamais alcançado.
Tempo depois:
- Pronto!
Dizia Luana, após quase uma hora de leitura ao colocar a última folha numa das pilhas.
- E então? O que você achou? O que significam essas pilhas? Essas são as boas e essas as ruins? É isso? Fala!
- Giovanna, todas, escute bem, todas as suas poesias são lindas demais! Estou sem palavras para descrever a profundidade e o bom gosto de suas palavras. Você é uma escritora, amiga!
- Ai, Luana. Obrigada. Mas o que significam essas duas pilhas?
- Bem, essas quarenta e poucas aqui são boas demais e merecem serem inscritas na SNT. Essas quinze também são muito boas, mas não acho que o Marcelo mereça tais versos. Mas fique à vontade para inscrevê-los também. As poesias são suas.
- Mas como você sabe que foram para o Marcelo? Eu não citei o nome dele em nenhuma delas.
- Giovanna, por favor, eu vou lhe dar só um exemplo, OK? Olhe essa aqui:

O SEU VENTO

Esse vento que me deixa gélida
Uma aparição nostálgica dia após dia
A vontade de que me carregue
Momentos antes de me dar as costas

Os piores de todos os deveres são:
Manter-me firme diante do vento,
Amar o ser que o vento me traz e
Rasgar as montanhas que lhe envolvem

Chutar as lágrimas que deixo pelo caminho
E andar sobre piso seco, porém, os molhando,
Lembra a rotina de todas as ruas
Onde seu vento passa de leve e enxugando


- O que percebeu?
Perguntava Giovanna.
- Ora, esse tal vento só pode ser uma ligação entre o sentimento que Marcelo lhe causava e o vento que ele produz ao passar tão rápido por ti em sua bicicleta. E outra. Veja as iniciais de cada verso, formam a frase “Eu amo Marcelo”.
- Nossa...
Luana acertava em cheio os objetivos da amiga em cada palavra usada, o que deixava Giovanna espantada e ao mesmo tempo feliz. Muito feliz. Encarar a SNT com o apoio de Luana seria bem mais fácil do que Giovanna imaginava.
- Então? Vamos selecionar as melhores das melhores?
Com um sorriso contagiante, Luana entusiasmava.
- Vamos!
Confirmava uma sorridente Giovanna.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana na série LUANA (Setembro de 2008).

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

DUAS

Chegava da escola com o mesmo ar de cansada de todos os dias. Mimi, sua gata de estimação, já a esperava sobre o segundo degrau da escada a fim de acompanhá-la até o seu quarto, no segundo andar. Luana afagava rapidamente Mimi e seguia com destino à cama. A menina enfiava o rosto no travesseiro macio e sentia como se as células de seu corpo se espreguiçassem todas juntas. A moleza de seus membros fazia com que Luana ficasse completamente imóvel sobre o colchão. Mimi apenas a observava.
- Vá para o banho, Luana!
Dizia D. Celeste, a empregada, da cozinha, no primeiro andar.
- Estou morta, Celeste...
- Mas seu pai vem almoçar em casa. Ele não vai gostar de lhe ver ainda de uniforme, Luana.
- Está bem!
Respondia Luana chutando cada pé do par de tênis para um canto do quarto após sentar-se na cama.

Após o banho, Luana se sentia mais acordada. Embora o chuveiro lhe despejasse águas quentes sobre seu corpo, aquele sono todo da menina dava uma boa trégua. Eram quase doze e trinta quando Marcos, seu pai, e Patrícia, sua madrasta, chegavam para almoçar. D. Celeste preparara uns camarões capazes de chamar Luana à mesa pelo cheiro. A menina descia correndo.
- Camarão! Adoro! Oi Papai! Oi Patrícia!
- Oi filha.
Dizia Marcos.
- Oi filha.
Dizia Patrícia, que já a considerava e agora a chamava como sua filha.

Durante a refeição, Luana resolvia contar um fato ocorrido na escola.
- Papai. Sabe aquela minha amiga? A Giovanna. [Leia em Por Que Ele?]
- Sim. O que tem?
- Hoje ela foi embora aos prantos.
- Por quê?
- Ela sempre foi apaixonada por um menino ridículo lá da escola, o Marcelo. Sempre falei para ela o esquecer, mas ela não me deu ouvidos. Então, uma menina que se disse amiga dela, a Lorena, resolveu que iria a ajudar a conquistar o Marcelo. E...
- Escuta aqui, Luana. Essas meninas vão para a escola estudar ou arrumar namorado? Não gosto disso.
Interrompia Marcos.
- Está bem, pai. Mas agora escute. Daí, a Giovanna passou a se vestir de maneira vulgar a mando de Lorena, para ajudar na “conquista”. Sei que o Marcelo disse algo à Giovanna que a fez vomitar sobre ele.
- Nossa! Bem feito pra ele, então.
Vibrava Marcos.
- Também acho. Mas preciso ligar para Giovanna. Coitada. Deve estar arrasada.
- Eu não ficaria.
Dizia Marcos.
- Por que não, papai?
- Porque o vomitado foi o tal Marcelo e não eu, ora.
- Por favor, gente. Estamos na mesa. Que papo mais nojento.
Dizia Patrícia em tom irritado.
- Desculpe-me Patrícia.
Pedia Luana.

A amiga de Luana devia estar muito mal em casa após aquele episódio na escola. Seria bom que Giovanna recebesse uma ligação ou até mesmo uma visita de Luana, já que ambas só tinham uma à outra para contar. Uma visita seria mais eficaz. Sabia que a primeira coisa que Giovanna precisaria seria um abraço forte da amiga.
- Papai, eu posso ir à casa de Giovanna depois do almoço?
- Claro.

Enquanto Luana se arrumava, Mimi andava em círculos pelo quarto.
- Você está estranha, Mimi. O que houve?
Seria ótimo se os gatos falassem, não? Mimi continuava a rodar.
Luana vestia-se numa calça jeans, um Converse nos pés e uma blusa de listras. Beijo na Mimi, corrida escada a baixo, beijo na D. Celeste e rua.

Para chegar à casa de Giovanna, Luana precisava tomar um ônibus na via principal, mas nem isso a menina conseguiria, já que Giovanna apontava no início da rua vindo em direção à Luana. O andar estava pesado, a cabeça baixa, os ombros caídos, mas pelo menos já se encontrava vestida com as roupas que usava normalmente. Era duro para Luana ver a amiga daquele jeito vulgar de antes. Luana respirava um pouco aliviada.
- Giovanna, eu estava indo à sua casa.
- Fico feliz, Luana. Então você viu aquilo tudo.
- Não. Eu fiquei sabendo. Naquele momento eu estava na biblioteca.
- Ai, amiga. Queria tanto estar lá com você. Lendo. Longe de toda a fantasia em que me meti por causa daquele ser repugnante.
- Eu lhe avisei, não, Giovanna?
- Pois é. Sinto-me envergonhada em ter dado ouvidos à Lorena, que me fez pagar esse mico, e não a você, que a todo tempo quis me poupar da cena mais ridícula de minha vida. Desculpe-me.
- Ora, Giovanna. Está tudo bem. Você não ouviu nem a mim, nem à Lorena. Você ouviu apenas o seu coração. E Lorena parecia estar a favor dele, não?
- Foi bem por aí mesmo.
- Mas e então? Quer conversar?
- Quero sim, Luana.
- Está bem. Mas conversaremos sobre qualquer coisa, menos sobre Marcelo, Lorena... Nada que lembre os dois. OK?
- OK!

Luana dava meia-volta e conduzia Giovanna até sua casa. Foram caminhando por aquela rua residencial e repleta de casas bem cuidadas. O silêncio da rua onde Luana morava trazia certa paz à Giovanna.
- É engraçado.
Dizia Giovanna.
- O quê?
- Nossa amizade.
- Por quê?
- Há pouco tempo, nós apenas conversávamos um pouco no intervalo das aulas. E isso era tudo. Hoje, estou aqui buscando em ti um apoio sentimental.
- Não temos com quem contar naquela escola. Somos incompreendidas por aqueles seres que nos rodeiam. Era inevitável nossa aproximação. Somos muito parecidas.
- Eu te adoro, sabia?
- Eu também, Giovanna. Dá um abraço.
As duas amigas se abraçavam e se sentiam em relação ao mundo exatamente como se encontravam naquela situação: ambas numa rua deserta e completamente sozinhas.
- Precisamos uma da outra.
Dizia Giovanna.
- Uma da outra e de Mimi!
- Mimi? A sua gata que tanto você fala?
- Sim. Você precisa ver. Ela me ajuda tanto. Sabe que um dia desses, ela...

Luana levava sua amiga até sua casa contanto alguns feitos de Mimi. Giovanna ria da forma engraçada como Luana falava de seu animal. A tristeza de Giovanna logo dava espaço ao prazer da companhia de Luana, que depois daquele dia passou a receber Giovanna frequentemente em sua residência. Era o início de uma nova união na vida de Luana, que, mais tarde, lhe traria algumas surpresas.

[Continua]

* * *
Foto da capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana na série LUANA (Setembro de 2008).

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

OS SEGREDOS DA COZINHA DE DONA JANE

Sexta-feira. O expediente se encerrava e a movimentação no Centro da cidade me causava profunda dor de cabeça. Aliás, isso acontecia todas as sextas. Eu sentia meu crânio latejar nos dois lados, pouco acima do ouvido. Eu saía da repartição e procurava um bar o mais longe possível daquele agito. O bar da Jane era sempre o escolhido, pois ficava numa rua deserta depois de uns quatro quarteirões da via principal.

Jane era uma típica proprietária desses bares que servem feijoada, angu e outras coisas. Gorda e sempre suada, ela tinha um rosto quadrado e a pele bem branca. Com os cabelos bem curtos e a ausência de qualquer um desses artifícios de embelezamento, Jane sempre levantava alguma suspeita por parte de sua clientela em relação a sua sexualidade. Homossexual ou heterossexual, a verdade é que Jane espantaria qualquer de suas opções. Ela tinha um semblante horrível e seus modos eram os de um homem das cavernas.

Eu sempre parava por lá. Por vários motivos, mas o especial era que no bar da Jane tinha um jukebox excelente. Por vinte e cinco centavos você podia ouvir de Chopin a Jimi Hendrix. Minha dor de cabeça cessava sempre que adentrava naquele minúsculo quadrado musical. Era bom beber com uma tigela de amendoim ao bom som daquele aparelho.

Eu sempre me sentava sozinho. Via por lá as mesmas pessoas de todas as sextas, porém, não falava com nenhuma delas. Na verdade ninguém falava com ninguém naquele bar. Ouvia-se apenas a música e os berros de Jane a fim de apressar o pessoal da cozinha.

- O CLIENTE QUER CHEGAR EM CASA A TEMPO DE ASSISTIR O ALTAS HORAS, AMANHÃ!
Berrava Jane.
- Já está quase pronto, D. Jane. É que hoje estou sozinha por aqui.
Explicava-se uma das cozinheiras.
- Garota, eu estaria com esse prato sob o queixo do cliente antes mesmo que você me desse tal desculpa. Ande logo com isso!
- Já vai. Já vai.

Da tal cozinheira eu só ouvia a voz mesmo, e baixa. Por várias vezes me vinha à mente a idéia de visitar a cozinha de Jane. Era meu direito como cliente daquela espelunca. Mas a preguiça tomava conta de minhas pernas imediatamente após.
- PATRÍCIA, PODE ESQUECER OS SALAMES, POIS O CLIENTE JÁ SE FOI! SE VOCÊ RESOLVER FABRICAR AS COISAS QUE LHE PEÇO, ME AVISE PARA QUE EU CORRA ATRÁS DE UMA LESMA PARA LHE SUBSTITUIR!
Depois dessa eu não ouvia sequer a respiração da cozinheira, a Patrícia.

- Posso visitar a sua cozinha, D. Jane?
Enfim eu estava por cima de minha preguiça. Tudo porque eu odeio injustiças. Queria conversar com a Patrícia sobre aqueles maus tratos.
- O que quer ver lá?
Jane tentava me intimidar.
- Ora, é meu direito. A senhora não sabe disso?
- Sei. Mas vou logo avisando. Se o que quer ver é o rabo da Patrícia, não perca o seu tempo. Não é para o seu bico!
- É para o seu, D. Jane?
- O quê? Como ousa...?
- Desculpe-me, mas é que somente as condições de sua cozinha é o que me interessa. Nada mais.
- Tudo bem. Pode entrar. PATRÍCIA! MOSTRE A COZINHA A ESTE SENHOR! Pode ir lá.
Autorizava-me Jane me olhando de cima a baixo.
- Obrigado.
Eu entrava.

Chegando à cozinha, Patrícia vinha até a mim. Uma morena, alta, de olhos azuis bem claros coberta por um avental branco imundo. De seus cabelos apenas alguns fios lisos e negros eu podia perceber. Eles saíam por de baixo de uma touca também branca.
- Desculpe-me senhor, mas estou com um monte de pratos para preparar. Não sei se poderei lhe dar a atenção devida.
- Fique à vontade, Patrícia. Meu nome é Maurício. É um prazer conhecê-la.
- Igualmente. Você é da vigilância sanitária?
- Não. Apenas um cliente assíduo do jukebox e da cerveja de vocês.
- Entendi. Bem, fique à vontade para perguntar o que quiser, OK? Estarei no fogão.
- OK.

Eu andava pela cozinha, que, embora limpa, apresentava pequenos sinais de desleixo. Mas nada que me fizesse criar repulsa pelos pratos lá servidos. É que eu pensava logo naquelas mãos morenas e, pelo visto, carinhosas os preparando. Depois de duas voltas pela cozinha, eu chegava até o posto de Patrícia.
- Você é linda, sabia?
- Olha, o senhor não devia estar aqui com esse propósito.
- Realmente não estava, mas é que não sabia que encontraria um ser como você por aqui.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer o que eu já disse: que você é linda demais.
- Acho melhor o senhor voltar para a sua mesa.
- PATRÍCIA! VAMOS LOGO COM ISSO!
Gritava Jade.
- Está vendo só? Vai para a sua mesa, por favor.
- OK. Mas quero saber em que outro momento eu terei o prazer de revê-la.
- Volte para a sua mesa, por favor, senhor.
- O que foi, Patrícia? Por acaso a D. Jane manda em ti?
- Claro que não. Mas a devo respeito.
- Por quê? Porque ela é sua patroa ou porque é sua...
- O quê?
- É que a D. Jane me parece um pouco...
- O que está pensando? Ela é minha mãe! Sou adotiva, mas a considero como tal!
Que idiota eu fui!
- Entendi. Mas quando podemos nos ver novamente sem esse avental me poupando a vista?
- O que você quer comigo?
- Apenas conversar.
- Sobre?
- Sobre a possibilidade de ter a D. Jane como minha sogra. Pelo menos por algumas horas.
- Não transo na primeira noite, se é o quer saber.
- OK. Alguns dias.
- Não tenho hora para sair, mas se quiser me esperar, fique à vontade.
- O tempo que for.

A espera valeu a pena. Fomos parar num motel barato logo após Patrícia despistar a mãe. Lá, Patrícia despia-se como uma atriz pornô. Seus vinte e oito anos balançavam os meus quarenta no mesmo ritmo com o qual quicava sobre mim.

- Você disse que não iria para a cama na primeira noite, lembra?
- Sim. Eu disse.
- Então sou uma exceção na sua vida!
- Não.
- Então mentiu?
- Sim. Como sempre.
- Como assim “sempre”?
- Ora, Maurício, você acha mesmo que foste o único a visitar aquela cozinha? Caia na real! Minha mãe não falaria no meu rabo só por falar.
- (...).
- E então? Vai repetir?
Ela perguntava com as mãos mais ocupadas que naquela cozinha. Eu ficava triste por uns dois segundos, mas a sua fome pela coisa me alegrava de imediato.
- Vou sim. Como sempre!

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

CACHORRO MORTO

Certa noite, eu sonhava que toda a cidade se encontrava sob o mar, ou melhor, todo o mar se apossava da cidade. Eu estava no pico de um monte com mais umas mil pessoas. Todos nós parecíamos loucos com tal situação. Alguns, tamanha loucura, saíam nadando sem rumo, na intenção, depois de exaustos, de descansarem de vez nos braços de Yemanjá. As crianças, cujos seus pais não conseguiam mais esconder as lágrimas de desespero, riam de toda aquela desgraça. Eu, sozinho como sempre, apenas me mantinha agachado e olhando o horizonte então completamente azul de mar a céu.

De vez em quando, lembro que chegavam até a mim alguns destroços da cidade submersa. Eu passava horas rezando para que algum objeto de minha casa, através das ondas, encontrasse meus pés, que apoiava um corpo curvado de nada poder esperar àquela altura. Alguns se aventuravam a nadar ao fundo à procura de alimentos ou simplesmente para ter noção do estrago feito pelos mares. Voltavam sempre com notícias terríveis. Lembro-me de um homem que chegou até nós dizendo que havia encontrado o corpo de nosso prefeito, que se encontrava inchado e quase irreconhecível, próximo ao prédio da prefeitura. Só em sonho mesmo, mas...

Com muita fome, resolvia também nadar para o fundo em busca de algo para comer. Ia sem a mínima noção do encontraria por lá. Sabe que em sonho, conseguimos fazer coisas humanamente impossíveis, não? Então não leve em consideração o fôlego que tive de ter para o “passeio”. Então mergulhava, mas antes, arrancava um beijo de uma loura linda que estava de pé ao meu lado. Sabe-se lá o porquê.
- Vá com Deus. Meu nome é Ângela.
Ela dizia. E eu mergulhava.

Chegava cada vez mais fundo e já avistava o prédio onde eu trabalhava, no Centro. Vendo que várias janelas se encontravam quebradas, pensava em localizar a minha ex-sala. Ia contando o número de janelas em relação aos andares do edifício até que achava o meu escritório.

Dentro da sala, um tremendo caos. Eu reconhecia os móveis e me assustava com a aparição de coisas como placas de rua e até mesmo um semáforo que violentamente ali também estavam. O corpo de Sara, minha estagiária, jazia completamente nua e inchada como o nosso prefeito. Tive nojo de seus seios, coisa antes jamais imaginada. Lembrava-me de meu frigobar, que ficava ao lado de minha mesa. Costumava ter iogurtes por lá. Mas nem sinal do eletrodoméstico, muito menos dos iogurtes.

Ia até o banheiro do escritório. Era como naqueles dias em que o vaso sanitário entupia, porém, numa proporção capaz de inundar o cômodo até o teto. Lá, um corpo de um cachorro com coleira e tudo boiava para lá e para cá entre as quatro paredes. Enojado, nadava por entre as outras instalações do escritório e depois saía pela mesma janela que entrara.

Ao sair, eu podia avistar um amontoado de automóveis, trens e embarcações unidos por suas ferragens e corpos de vítimas numa espécie de engarrafamento surrealista. Já era possível ver alguns cardumes habitando os locais onde antes se vendiam artigos de pesca. Corpos de pessoas humildes onde antes só permaneciam a alta sociedade daquela cidade. O mar misturava todos os elementos de forma artisticamente perfeita. Estava tudo sob o seu poder.

Eu chegava à superfície sem nada para ludibriar minha fome, que já me causava o triplo da dor inicial. A loura não mais estava onde a beijara. Na certa teria morrido de fome à minha espera. Foi quando acordei.

- AMOR! Acorda!
- AH!
- O que foi, Otacílio? Pesadelo?
- Sim, sim.
- Sonhaste com o quê?
- O mar.
- E o que tem o mar? Morria afogado?
- Não, Helena. Não morria afogado, mas a cidade sim.
- Como assim?
- Deixe-me lavar o rosto, sim? Ainda estou assustado.
- Vá, homem.
- Graças a Deus! Graças a Deus!
Eu lavava o rosto repetindo a frase sem parar.
- Graças a Deus o quê?
- Helena, por favor, deixe-me agradecer! Que inferno! Já lhe conto o sonho, ora!
- OK. Vou pôr o café.
- Vá.

Na mesa, eu contava o sonho, assim como acabei de contar aqui. Helena não dava muita bola ao meu sonho. Sem contar que dava gargalhada ao lembrar do cachorro morto no banheiro do meu escritório. Isso me deixava irado.
- Olhe aqui, Helena. Está rindo porque não foi você quem sonhou com coisa mais horrível.
- Ah, Otacílio. Foi só um sonho, merda. Uma merda de sonho.
- Mas tinha uma coisa boa nesse sonho, sabia?
- O quê?
- Uma mulher loura que me beijava antes do mergulho.
- Fale nessa loura novamente e lhe enfio esta faca com manteiga e tudo na sua garganta.
- Você não teria coragem, Helena.
- Sabe que não, mas não quero saber dessa loura, OK? Seu bobo.
- Disso não quer saber, não é, Helena? Bom, deixe-me ir. Quero ver se tudo está em ordem lá no escritório.
- A cidade não foi inundada, Otacílio.
- Eu sei disso. Mas o sonho pode ter sido um aviso. Algo de ruim. Sei lá.
- Começou você com seus pressentimentos. Bem, agora vá que estou esperando uma amiga pela manhã. Ela vende biquínis lindos. O verão está aí e...
A campainha tocava.
- Ih! Deve ser ela.
Dizia Helena com os olhos de uma mulher extremamente consumista.
- E eu já vou indo. Aproveito a porta aberta.

Helena abria a porta para que sua amiga entrasse e eu saísse para o trabalho. Eis que me surgia a loura do sonho. Isso mesmo. A amiga de minha esposa, que nunca vira mais linda, era a loura do meu sonho. Como podia?
- Oi! Tudo bom, Ângela?
Eu a cumprimentava sem pensar.
- De onde a conhece, Otacílio?
Perguntava-me Helena.
- Do meu sonho! É a loura do meu sonho!
- O QUÊ?
Questionavam-se ambas em uníssono. Ângela sem entender nada.

Eu chegava até Ângela e a beijava como que me preparasse para aquele mesmo mergulho. Nem me importava com a presença de Helena. Eu estava indo trabalhar, logo, buscar o sustento de minha casa. Era como que uma continuação daquilo tudo.
- Vá com Deus.
Ângela dizia pausadamente e com um semblante em total concordância com o meu beijo. Como fizera no sonho. Helena permanecia muda, boquiaberta e estática. Como o cachorro morto no banheiro.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

UMA ESPÉCIE DE SAUDADE VIRTUAL

Quando a conheci, numa dessas salas virtuais da vida, não imaginava que teríamos tanta coisa em comum. Mas devido à distância – ela, Érica, no sul do país e eu, Júlio, no sudeste – tivemos que nos contentar com aquilo que nos “uniu” e que já era considerado um avanço para suprir as necessidades de uma amizade daquele tipo. O problema é que pela tela do computador eu só tinha acesso às fotos que Érica achava mais convenientes. As fotos, geralmente posadas, demonstravam ora sorriso, ora seriedade. Mas a verdade é que em todas as situações Érica deixava claro que a amiga mais bonita de meu círculo era justo a que eu nunca tivera a oportunidade de ver em movimento. Quando pensava nela era como pensar num manequim. Ali, parada.

Érica e eu conversávamos muito e trocávamos “favores virtuais” aos montes. É que eu a ajudava em algumas pesquisas universitárias enquanto ela, numa tentativa de ser grata, me dava alguns conselhos a fim de melhorar o meu poder de sedução, que, diga-se de passagem, era nulo. Digo isso para que, antes que pensem o contrário, entre Érica e eu não havia qualquer tipo de interesse que ultrapassasse o limite de uma boa amizade. Não mesmo. Ela era linda, sim, mas, definitivamente, eu tinha ciência de que não era para o meu bico.

Até que:
- Oi Júlio!
Ela sempre começava.
- Oi Érica! Beleza?
- Sim. E você?
- Também. Tudo tranqüilo. E como foi com aquele trabalho?
- Tirei 9,5!
- Parabéns, Érica!
- Parabéns a você também, não é? Ajudou muito naquele dia.
- Ora, não foi nada, Érica. Por favor.
- Escuta.
- Diga.
- E a tal da Karina? Conseguiu alguma coisa?
- Sim. Consegui sim.
- Então conta, guri!
- Consegui um “não” e quase consigo uma tapa também.
- O quê? Por que ela fez isso?
- Ora, você sabe. A Karina é uma gata e eu sou um otário de ainda pensar que algo possa rolar entre nós.
- Escuta. É porque ela não tem noção do quão grandioso você é!

Como uma menina que jamais ficara frente a mim poderia saber o quão grandioso eu era a ponto de questionar a opinião de uma outra que falava pessoalmente comigo quase todo dia? Érica, sim, sabia muito mais sobre mim do que qualquer outra amiga.

- Érica. Você diz isso justamente pelo fato de não me conhecer pessoalmente.
- Mas quem lhe disse que preciso?
- Tudo o que sabe sobre meus sentimentos, Érica, são meia dúzia de bonequinhos amarelos que ora sorriem e ora choram.
- Está errando, Júlio.
- Por quê?
- Porque estás subestimando o poder de nossas conversas.
- Érica, eu acho cansei de tudo isso. Seus conselhos não estão me ajudando porque você na verdade não sabe realmente a quem está os direcionando. Não me conhece.
- Então você acha que perco o meu tempo com você?
- Não é isso, Érica. Só acho que não somos capazes de conhecer um o outro através dessa coisa toda. Sabe o que eu queria fazer quando tomei aquele “não” da Karina?
- O quê?
- Abraçar você.
- Ai, Júlio. Que fofo.
- Pois é. Mas como? Agora até existe um bonequinho meu que pode abraçar uma bonequinha sua, mas o abraço em si continua inexistente. Entende?
- Então acha que uma amizade como a nossa não vale a pena existir?
- Sinceramente, eu não sei até que ponto.
- Entendi. Bem, Júlio, eu vou precisar sair. Eu já volto. Beijos.
- Beijos, Érica.

Depois daquela despedida, Érica sumia de meu PC durante uns três dias. Três dias em que minha cabeça largava de forma inédita a imagem de Karina e passava a pensar exclusivamente na falta que Érica me fazia. De fato eu subestimara o poder daquela amizade. Até que ela, enfim, aparecia novamente.

Dessa vez, eu começava:
- Oi Érica!
- Oi Júlio!
- Sumiu! O que houve?
- Andei ocupada com uns trabalhos da faculdade.
- Que bom que dessa vez não precisou de minha ajuda? Fico feliz!
- Na verdade precisei. Como sempre preciso.
- E por que não me procurou?
- Porque, segundo você, tudo isso não passa de uma perda de tempo, Júlio.
- Ora, eu não disse isso, Érica.
- O fato é que dessa vez minha nota foi 5,0.
- Eu sinto muito. Eu...
- Tudo bem. Só espero contar com a sua ajuda no próximo. Se você quiser, lógico.
- Estarei aqui, Érica.
- Você sentiu minha falta, Júlio?
- Sim. Uma espécie de “saudade virtual”.
- Eu também. Passe lá e me dê um abraço.
- Com o bonequinho?
- É tudo o que podemos, por enquanto.
- Está certa.
Eu ria ao entender que a amizade de Érica era ímpar justamente por conta das condições em que se encontrava: distante demais e ao mesmo num esforço constante de estar o mais perto possível.

* * *
Foto da Capa: Janaina Muller.