sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A MINHA VEZ DE APRENDER III (Final)

Os meses se passavam e com muita dificuldade eu ia tirando a imagem de Ana Paula da cabeça. Dá para imaginar o estrago que uma jovem linda como aquela causara num velho como eu, não? Mas à medida que meus afazeres tomavam conta de minha vida novamente, a cura para aquela escara enorme que Ana Paula me deixara se apresentava com mais vigor. A curiosidade infinita pela economia por parte dos alunos daquele primeiro semestre de 2008 me ajudava muito a esquecer aquele episódio triste. Eu tinha a sorte de ver em meu trabalho uma espécie de bengala, ou melhor, um energético sentimental. Eu amava lecionar. Muito mais do que amei Ana Paula.

No fim de julho, eu recebia um e-mail daquela que nem mais me lembrava o tom de voz ou outros detalhes. Ana Paula intitulava sua mensagem com um “me ajude” em letras maiúsculas e diversos pontos de exclamação. A princípio, pensava em excluí-la sem sequer abri-la. Mas embora eu não mais a tivesse no pensamento ou no coração, o meu lado curioso falava mais alto. Lia.

Cristóvão,

Estou para lhe escrever há mais de um mês, mas faltava-me coragem. Só que a situação aqui no Canadá chegou a um extremo em que não sei mais o que fazer. Você não deve estar entendendo nada, por isso, vou explicar.

O Leonardo, meu namorado, mudou muito o seu comportamento de uns meses para cá. Está me agredindo muito e me mantendo praticamente em cativeiro, já que cheguei a ficar trancada dentro de casa por três semanas.

Ontem, Leonardo e eu fizemos as pazes novamente, mas eu na verdade só estou fingindo um bem-estar. O que quero é ir embora daqui o mais rápido possível, Cris.

Sei que você deveria ser a última pessoa a quem eu deveria pedir qualquer tipo de ajuda, mas entenda que eu só tenho você para me ajudar. Por conta de meu sumiço, minha família não quer mais saber de minha existência. Preciso fugir daqui, Cris. Preciso de você!

Fico no aguardo.

Ana Paula.

Confesso que, após ler por várias vezes a mensagem de Ana Paula, eu não sabia o que fazer. Não sabia nem até que ponto eu deveria confiar nas palavras dela novamente. Uma pessoa que mentira para mim daquela forma, em dezembro, não era merecedora de créditos futuros. Mas eu estava ali apontado como único capaz de ajudá-la e tudo aquilo poderia ser, sim, a mais pura verdade. Mas e se não fosse? A confusão tomava minha mente por vários minutos.

Ao fim da mensagem, Ana Paula informava o número de seu telefone celular. Depois de duas horas de indecisão, resolvia ligar, mas de um aparelho que restringia o meu número.

O telefone chamava umas quatro vezes quando:
- Hello!
A voz de um homem aparentemente irritado me atendia. Para que ele não suspeitasse de mim, afinal, eu acreditava que o tal Leonardo tinha total conhecimento de minha existência, a existência de um idiota que bancara a felicidade de Ana Paula, eu tinha de falar em inglês com o sujeito.
- [Alô! Eu poderia falar com a Ana Paula?]
- [Ana Paula? Quem gostaria?]
Precisava inventar um nome, sei lá.
- [Aqui quem fala é o Steve.]
- [Que Steve?]
- [É a respeito de um emprego. Ela está?]
- [Emprego?] Não está falando do Brasil, está?
Encrencava-me.

No mesmo instante, a voz de Ana Paula vinha à mente ao ouvi-la tomar, aos berros, o telefone das mãos de Leonardo.
- VOCÊ DISSE QUE NÃO IRIA MAIS SE METER COM AS MINHAS LIGAÇÕES, LEONARDO!
Ela dizia.
- OK. Tome. Mas vou querer saber quem é esse tal de Steve!

- Hello!
Ana Paula me atendia ofegante.
- [Quem fala?]
- Poupe seu inglês, Ana. Aqui é o Cristóvão.
- [Olá, Sr. Steve!]
Ana Paula disfarçava.
- OK. Agora me diga o dia e a hora em que poderá pegar um avião de volta ao Brasil. Finja que se refere à data em que poderia começar num novo emprego. OK?
- [Oh, Sr. Steve! Por mim, posso começar a partir do dia 11 de agosto. Às 8h, não é?]
- OK. Estarei aí e lhe esperarei no aeroporto. Eu voltarei a lhe telefonar para marcarmos tudo certo. Espero poder confiar em você dessa vez, Ana!
- [Pode ter certeza disso, Sr. Steve.]

Eu não tinha noção da merda em que arriscava me enfiar. Ana Paula não merecia sequer o valor daquela ligação ou o preço daquelas passagens, muito menos a minha confiança. Mas lá estava eu novamente a ajudar aquela jovem. Céus.

* * *
No dia 11 de agosto, como combinado com Ana Paula através de mais dois telefonemas, encontrava-me no Aeroporto Internacional Toronto Pearson à espera de Ana Paula, que não demorava muito para aparecer bem na minha frente com o sorriso mais sem graça que já pude presenciar.
- Oi Cris. Eu...
- Não diga nada, Ana. Vamos. Nosso avião partirá logo. Ele desconfiou de algo?
- Não. Escolhi o dia de hoje, pois sabia que Leonardo tinha um compromisso inadiável. Uma reunião em Montreal.
- Bem, você vai voltar mesmo ao Brasil, não?
- Claro! Para isso pedi sua ajuda, Cris.
- OK! Então, a partir de agora, cale essa boca e vamos.
Naquela hora eu tentava ser o mais rude possível. Ela aceitava minha condição sem pestanejar.

Durante a viagem, não perguntava nada à Ana Paula. Nem sequer dirigia meu olhar àquele semblante coberto de hematomas em fase de cura. Foi o silêncio mais difícil de minha vida. Mas seguia firme.

* * *
Ao desembarcarmos no Brasil, tomávamos um táxi ainda em silêncio total. Eu percebia algumas lágrimas querendo descer dos olhos castanhos de Ana Paula, mas fingia não notar. Eu agia com uma frieza que nem mesmo tinha conhecimento da existência. Estava mais frio que aquela foto que Ana Paula me mandara. Eu saltava em minha casa e dava ordens ao taxista que a deixasse em sua residência, a qual então eu fazia questão de não saber endereço.

No dia seguinte, Ana Paula batia à minha porta.
- O que você quer, garota?
- Conversar. Acho que merece explicações.
- Mereço descanso, isso sim, Ana.
- Eu preciso do seu perdão, Cris. Por favor.
- Não sou Deus para perdoar ninguém. Agora me dê licença, pois estou cheio de provas para corrigir e...
Ana Paula pulava no meu pescoço e alcançava meus lábios como na primeira vez.
- PARE!
Eu a tirava de mim.
- EU NÃO MEREÇO VOCÊ, CRIS! NÃO É MESMO? EU FUI A PIOR PESSOA QUE JÁ PASSOU EM SUA VIDA! NA VERDADE EU FUI A PIOR PESSOA DA VIDA DE TODOS A QUEM CONHECI. EU ME ODEIO! EU ESTOU ME ODIANDO AINDA MAIS POR TUDO O QUE FIZ COM VOCÊ, CRIS. SABE O PORQUÊ? PORQUE EU DESCOBRI QUE TE AMO! DESCOBRI QUE VOCÊ, SIM, É O AMOR DA MINHA VIDA. O DESTINO LHE COLOCOU NO MEU CAMINHO NÃO FOI EM VÃO, CRIS. FICA COMIGO! EU NÃO TENHO NINGUÉM! NEM O MEU IRMÃO QUER VER A MINHA CARA NOVAMENTE!

Diante do ser ajoelhado à minha porta, em total descontrole emocional e contrastando com um belíssimo céu azul à suas costas, eu não tinha outra escolha a não ser observar o quão linda Ana Paula ainda era, mesmo com os hematomas pelo corpo. Suas lágrimas tomavam minha varanda e algumas gotas até molhavam os meus pés.

- Ana! Levante-se, por favor.
Ela se erguia ainda aos soluços.
- Vai me perdoar?
- Sim. Como quiser. Está perdoada.
- Então me quer de volta? Seremos felizes, Cris. Você vai ver. Amanhã mesmo eu...
- Claro que não, Ana! Tenha uma boa tarde!
Eu fechava a porta e voltava às minhas provas. Acho que eu havia, enfim, aprendido.

[Fim]

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A MINHA VEZ DE APRENDER II

Ana Paula e eu passávamos aquele final de 2007 nos vendo praticamente todos os dias. Com certeza o melhor mês de dezembro da minha vida. A cada dia que passava eu me sentia mais dela e vice-versa. Quanto à sua família, eu só conhecia o irmão dela, aquele que me apresentara na praia, o qual também jamais vi novamente. Eu queria conhecer os pais dela, mas acreditava que seria um choque. Eu não sei o que faria se tivesse uma filha de vinte e seis anos que me apresentasse um namorado de cinqüenta e poucos. Então eu preferia deixar que ela determinasse a hora certa para tal.

Alguns alunos e amigos, quando me encontravam pela rua, com ou sem Ana Paula, me diziam que eu estava aparentando menos idade do que possuía. É que na verdade meu semblante carregava então um sorriso que parecia me rejuvenescer. Era a alegria de um coração expresso em olhares e gestos joviais. Eu estava feliz e todos ao meu redor notavam isso.

- Você não sabe o bem que estás a fazer a um cara como eu, Ana Paula.
- Eu posso imaginar. Acha que são apenas os seus amigos que notam tal mudança?
- Você também nota?
- Claro que sim, meu amor.
- Eu estou muito feliz, sabia?
- Eu também estou, Cristóvão. Acreditas em mim?
- em você!
- Que bom, pois precisava que acreditasse em mim mais do que nunca agora.
- Por quê?
- Escute, Cristóvão. Eu preciso passar uma semana no Canadá.
- No Canadá? Para quê?
- Uns problemas de família. Possuo umas tias por lá e aconteceu uma coisa meio chata...
Ana Paula se entristecia e ensaiava um choro.
- Não chore. Olha, não precisa me contar o que houve se não quiser. OK?
- São coisas de família, Cristóvão. Só isso.
- Eu entendo. E quando vai?
- Preciso partir em no máximo duas semanas, mas preciso levantar um dinheiro. Meus pais estão desempregados, e...
- Se quiser eu posso ir com você.
- Não. Melhor não. Não será um passeio nada agradável, Cristóvão.
- Bom. E em que eu posso ajudar?
- Não sei se pode.
- Precisa de dinheiro, não é?
- Sim, mas...
- Olha. Eu pago as passagens para você.
- Mas não é justo, Cristóvão.
- Não é hora de falarmos em justiça. Você aceita, não é?
- Ora, Cristóvão. Aceito, vai. Mas eu vou lhe pagar. Eu prometo.
Ela me abraçava.

Uma semana depois, Ana Paula partia para o Canadá. Eu achava estranho estar apenas eu naquele aeroporto.
- Onde está a sua família, Ana Paula?
- Eles preferiram não vir. Detestam despedidas.
- Seja como for... Bem, espero que faça boa viagem. Mantenha-me informado sobre ti, OK? Mande e-mails. Tome isso.
Eu a presenteava com um laptop.
- Você é um amor, sabia?
Ela me dizia.
- Seu avião. Vá. Eu te amo, viu?
- Eu também te amo!
Ela partia.

Nos primeiros dias, Ana Paula me mandava e-mails contando tudo desde o momento em que chegara no Canadá. Eu sentia uma saudade enorme. Não pensava que aquele amor fosse tão forte.

No quinto dia, Ana Paula não mais se comunicava. Eu mandava várias mensagens, mas ela não respondia. Começava então a pensar que algo de ruim poderia ter acontecido com ela. Pensava em entrar em contato com os pais dela, mas me lembrava que sequer sabia onde Ana Paula morava exatamente. Só sabia o nome do bairro. A empolgação realmente me fazia não ter muitos cuidados com os detalhes. Sentia-me solitário numa ilha.

Oito dias se passavam e nada de notícias de Ana Paula. Eu já não dormia mais. Meus compromissos de início de ano foram ficando cada vez mais tumultuados, pois eu não conseguia me concentrar em mais nada a não ser no real estado de Ana Paula. Eu chegava a cogitar a hipótese de pegar um vôo para o Canadá, mas eu não tinha o endereço de suas tias naquele país. Seria loucura.

No décimo dia, Ana Paula finalmente me dava notícias suas. Não conseguia me conter ao ver uma mensagem dela na caixa de entrada. Mas a euforia durava muito pouco.

Cristóvão,

Primeiramente, me desculpe pelos dias sem me comunicar. Bem, venho através desta lhe dizer que não mais voltarei para o Brasil. Esta viagem estava planejada há anos e somente através de ti pude realizá-la. É que o grande amor da minha vida vive aqui há quatro anos e o meu sonho sempre foi o de me casar e viver com ele.

A história que lhe contei sobre o motivo de minha vinda, minhas tias etc., foi tudo mentira. E em relação aos meus pais, na verdade eles nem sabem que estou aqui. Ainda estou criando coragem para contar a eles. Espero que não esteja com vontade de me matar e que me entenda.

Tu foste muito útil a mim, Cris.

Segue anexa uma foto.

Beijos. Fique bem.


Ali eu tinha real noção do quanto eu não conhecia Ana Paula. Ela foi fria durante todo o tempo. Enganou-me. Todos aqueles beijos, aquelas noites. Tudo mentira. Ela em si era uma mentira. E eu a mais pura verdade. Era a minha vez de aprender com aquele erro imbecil. Meu coração ficava em pedaços quando resolvia abrir a foto anexa ao e-mail: Ana Paula abraçada ao namorado. Ambos sorrindo. Ao fundo, diferente do nosso pôr do sol, um céu cinza e uma rua coberta de neve. Um clima frio como Ana Paula fora comigo.

[Continua]

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A MINHA VEZ DE APRENDER

Todos me diziam que eu não tinha mais idade para aventuras amorosas. E quando digo aventuras amorosas eu me refiro a um homem quase sessentão apaixonar-se por uma mulher de vinte e seis anos. Mas esse tipo de afirmação é um tanto limitador. Então, quem tem mais de cinqüenta não mais pode se arriscar em lábios firmes ou em curvas livres de flacidez? Ora, eu estava velho? Podia até ser, mas não estava morto.

Ana Paula aparecia em minha vida de maneira um pouco confusa. Nem eu mesmo acreditava que poderia florescer um grande amor a partir de um episódio como aquele. Vou explicar. Eu lecionava economia numa universidade federal. Lá, conhecia Ana Paula, que era nova na instituição. Ingressara no curso de pós-graduação em economia da educação e vira a ser então a minha única aluna naquele semestre.

Eu jamais havia me envolvido com alguma aluna em toda a minha vida profissional. Nem no auge dos meus vinte e poucos anos. Sempre mantive uma distância da qual julgava correta para que o exercício de minha profissão fosse cumprido satisfatoriamente. Mas com Ana Paula foi totalmente diferente. Eu, no decair de minha vida, me via apaixonado pelos gestos daquela jovem.

Ana Paula era morena, tinha os cabelos negros e lisos, usava uma jóia na sobrancelha sem que aquilo causasse qualquer sentimento de rebeldia ou agressão visual. Muito pelo contrário, Ana Paula era tão doce que poderia tatuar o demônio nas costas que não faria a menor diferença. Inteligente que só, a jovem, depois de certa intimidade que me fugira o controle, passava a me trazer CDs de música clássica dos quais eu amava e só os tinha em velhos discos de vinil. Foi ela quem me apresentou o som digital e delicadamente arrancou de mim os preconceitos que eu tinha com tal evolução.

Certo dia, eu tive a impressão de que poderia ser correspondido pela jovem, o que me deixava feliz e ao mesmo tempo com muito medo das conseqüências. Era praticamente o último dia de aula do curso. Era um dia quente de dezembro.
- Bem, me resta dizer que foi um prazer enorme ser seu professor, Ana Paula. Espero que obtenha bastante sucesso na carreira escolhida e...
- Vamos à praia?
Interrompia-me Ana Paula.
- Como?
- À praia. O senhor dará mais aulas hoje?
- Bem, eu... Quero dizer... Não, não. Não darei mais aulas, mas...
- Então? Podemos ir à praia. Está um sol lindo lá fora.

Eu não sabia o que responder. Uma parte de mim queria ver Ana Paula de biquíni e compartilhar de uma tarde agradabilíssima ao lado dela sob um guarda-sol, mas minha outra parte parecia me dizer que aquilo era uma loucura. Quando uma menina naquela idade convidaria um velho para sentar-se numa areia lotada de jovens? Mas, mesmo assim, resolvia aceitar o convite.
- Bem, eu preciso ir à casa primeiro.
- OK. Eu já estou preparada para ir. Tem problema de eu ir até a sua casa com o senhor para de lá partirmos?
Oh céus. Eu pensava.
- Não. Claro que não. Vamos.

Conversávamos muito pelo caminho ao som de um de seus CDs do Dmitri Shostakovich. Ela já sabia que eu era um velho sozinho. Viúvo há mais de vinte anos e sem filhos, por isso se ofereceu a me acompanhar.

Chegando em casa, eu pedia para que me aguardasse na sala enquanto eu me aprontaria no meu quarto. Ela acenava com a cabeça de forma positiva, mas sem olhar nos meus olhos. Não tirava a vista de tudo o que havia ao seu redor.
- Sua casa é um espetáculo, professor.
- Professor não. Por aqui você pode me chamar de Cristóvão mesmo.
- Tudo bem.
Ela sorria como ninguém jamais sorrira para mim. Seus dentes extremamente brancos chegavam a combinar com algumas peças que vestia.

* * *
Já na praia, ficávamos debaixo do guarda-som e não parávamos nem um segundo de conversar. Confesso que me sentia um pouco ridículo naquela situação, já que, ao olharem para nós, era impossível não imaginar pai e filha. Mas a simpatia e o carinho de Ana Paula me faziam esquecer até mesmo de minha idade.

Os garotos que passavam não tinham escolha. Ana Paula era a menina mais vistosa num raio de centenas de metros naquela areia. Quando ia à água, eu perderia a conta se resolvesse contar quantos rapazes se chegavam a fim de um mínimo de atenção de Ana Paula, que com um gesto muito educado dizia “não”. Enquanto isso, eu pensava no que realmente aquilo tudo significava. Teria eu alguma chance?

Eu notava que Ana Paula repetidamente conferia a hora em seu celular. Não sei o porquê, mas de certa forma aquilo me incomodava.
- Está preocupada com a hora, Ana Paula?
- Não. É que estou esperando uma pessoa.
- Ah... Uma pessoa... Entendi.
- AH! ELE CHEGOU!
- Ele?
Ana Paula se levantava como um raio. Um raio de corpo perfeito, mas um raio. Corria em direção a um rapaz bonito com uma prancha de surf debaixo do braço e o abraçava forte.

Eu nem sei explicar o que eu sentia naquele momento. Um misto de ciúme e impotência. A idade que se distanciava de mim enquanto conversava com Ana Paula voltava naquele instante com mais força. Sentia-me com uns cento e vinte anos. Ela puxava o rapaz pela mão até a mim.
- Glauber, eu preciso lhe apresentar uma pessoa.
Dizia Ana Paula ao rapaz.
- Esse é o meu professor. Um dos melhores que já tive.
- Por favor, Ana Paula...
Eu dizia tentando encurtar o meu processo de fracasso total.
- Glauber, esse é o professor Cristóvão. Professor Cristóvão, esse é o Glauber, meu irmão que tanto amo.
- Ah! Irmão! Quer dizer que ele é seu irmão?
- Sim, professor. Por quê? Não nos parecemos?
De fato não se pareciam nem um pouquinho.
- Ah sim, claro! São muito parecidos. Prazer, Glauber.
Eu apertava a mão do Glauber, que logo se despedia rumo às ondas.

* * *
O sol começava a se pôr quando Ana Paula se dirigia a mim de forma diferente.
- O que achou do dia, Cristóvão?
- Um dos melhores da minha vida.
- Por quê?
- Precisa explicar, Ana Paula?
- Ah precisa.
- Então está bem. Some um dia sem aulas na parte da tarde a uma praia maravilhosa a um sol como esse a uma companhia como a sua...
- Falta alguma coisa?
Claro que faltava, mas eu não sabia como dizer.
- Você acha que falta, Ana Paula?
- Eu acho.
- O que falta?
- Isso.
Ana Paula colava seus lábios nos meus me fazendo rejuvenescer uns quarenta anos. Sentia-me um menino na posse daquela boca.
- Ana Paula. Não sei se isso está certo. Afinal, eu sou seu professor.
- Não. O senhor foi o meu professor até a aula de hoje. Não és mais.
Dizia ela com malícia.
- Pensando dessa forma... Acho que só me resta deixar que você me ensine algumas coisas. Você sabe...
- Também acho!
Ela confirmava com os olhos brilhantes tendo um lindo pôr do sol ao fundo. Seria uma noite ainda mais agradável que aquela tarde.

[Continua]

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

AQUELE VERÃO

Durante as férias de fim de ano, a falta de um apoio financeiro por parte dos meus pais me forçava a passar aqueles dias quentes debruçado na janela do meu prédio olhando para o nada. Para o nada não. Na verdade eu tinha muitos alvos interessantes ao redor dos prédios vizinhos. É que as meninas dos blocos C e D, as mais gatas daquele condomínio, diga-se de passagem, iam à praia quase todos os dias. Algumas delas já haviam adquirido um tom de bronzeado tão forte que podiam ser facilmente confundidas com as nossas índias.

Às 8h, saía o primeiro grupo, o do bloco D, com Letícia, Carolzinha, Amanda, Layana, Bruninha e Fernanda. Todas lindas demais. Era difícil focar apenas uma, já que naquele grupo tinha quase todo o tipo de menina. Duas louras, uma morena, uma nipônica, uma ruiva e uma mulata. Eu chegava a fazer uma espécie de rodízio no qual eu procurava dar atenção especial a apenas um daqueles corpos em cada dia da semana, mas em vão. Exibindo as cores de seus biquínis elas conseguiam confundir tudo aquilo que eu julgava organizado. Oswaldo, o porteiro, que o diga.

Às 9h, o grupo do bloco C dava o ar da graça. Naquele espetáculo de time tinha Bianca, Monique, Yasmin, Débora, Ludmila, Cecília, Paulinha e Thayssa. Oito coisinhas. O mesmo esforço aplicado para conseguir observar cada uma das meninas do primeiro grupo me era preciso com este segundo. Desciam a ladeira até a portaria com charme, risadas e uma predominância de cachos em seus cabelos. Das oito, apenas duas possuíam os fios lisos, os quais seguiam a direção do vento forte, porém, o cuidado capilar de todas era nítido por conta do brilho intenso em reação àquele sol escaldante.

Findada a passagem de ambos os grupos, algo me fazia permanecer na janela até às 10h. Era a vez da solitária Lívia, também vinda do bloco C, descer rumo à dose diária de areia, sal e sol. Lívia tinha um par de pernas que minha avó chamaria de “pernocas”, por serem bem torneadas. Usava shorts curtos, cada dia numa cor diferente e sempre combinando com a sandália. Os cabelos eram negros, cacheados e não menos tratados que os do grupo que saía uma hora antes. A sua pele morena ela sabia bronzear. A Lívia tinha o jeito certo de fazer, pois ela estava sempre na cor ideal. Era impressionante. Os fones no ouvido na certa não a deixavam perceber o barulho que fazia em cada passada forte, porém, sensual, em direção à portaria. Assim seguia Lívia em seu rebolar.

Na janela mais próxima à minha, Cabeção, um grande amigo.
- Tira o olho da morena, Douglas!
Ele brincava.
- Há quanto tempo está aí?
Perguntava-lhe.
- Desde de oito.
- E como não te vi?
- Na certa estava muito ocupado com as meninas, não?
- Com certeza. Você também, pelo visto.
- Claro.
- São lindas, não? No verão elas parecem estar mais lindas do que em outras estações.
- É verdade. Tem a sua preferida?
Perguntava-me Cabeção.
- Difícil dizer.
- Vamos, diga. Qual a mais gata de todas?
- Difícil, já disse.
- Eu tenho a minha!
- Qual?
Eu perguntava.
- A ruivinha do bloco D, a...
- Bruninha.
- Isso. Um filé! Mas qual é a sua, Douglas?
- Bem, eu acho que fico com a Lívia. Essa última que desceu.
- Eu sei quem é a Lívia. E quem não sabe?
- Por quê?
- Ora, Douglas, essa menina já ficou com todo o condomínio.
- O quê? Cite um!
- Cito trinta se quiser. Sandro, Orelha, Cacá, Matheus, Leandro Lelé, Chupeta...
- Porra! Chupeta? Ela ficou com Chupeta? Mas ele é feio que dói! Que menina em sua sanidade beijaria aquele ser?
- Cito uma, meu caro Douglas!
- Quem?
- Lívia.
- Vai à merda!

Eu fechava a janela e custava a acreditar nas frases de Cabeção. Mas ele dizia com tanta convicção. Queria saber mais sobre os fatos. Chamava-o então para jogarmos videogame. Era o que restava aos duros. Jogar videogame.
- Mas diga. Estava falando sério sobre Chupeta e Lívia?
- Sim, cara.
- Não posso crer.
- Olha, Douglas. Quer ficar com essa menina?
- Depois dessa? Acho que não.
- Dizem que vale a pena.
- OK. O que devo fazer, mestre Cabeção?
- Simples. Vá até ela e diga que quer beijá-la.
- Vai à merda, Cabeção!
- É sério! Cara, pensa em Chupeta! Se ele conseguiu, quem não conseguirá?
- Vai ver ele é bom de papo.
- Chupeta? Ele tem a língua presa, Douglas. Esqueceu?
- É mesmo. Quer saber? Eu sei a hora em que ela costuma chegar da praia. Vou cercá-la.
- Faça isso! Mas antes...
- O quê?
- Ligue esse videogame e vamos jogar. Antes que fiquemos loucos com essas meninas!
- Ah sim. OK!

Às 15h, Lívia apontava na portaria. Eu descia correndo e me posicionava frente ao seu prédio. Ela chegava e:
- Oi Lívia.
- Oi Douglas. Beleza?
- Beleza. Precisava falar com você.
- Diga.
- Depois que você tirar esse sal do corpo e descansar a sua beleza, sei lá, por volta de umas oito horas, poderíamos nos ver aqui em baixo?
- Era isso o que queria me falar ou falará à noite?
- À noite.
- Pode me adiantar o assunto?
- Sua boca.
- O que tem minha boca, Douglas?
- Quero beijá-la.
Lívia olhava para os lados, dava um passo à frente e alcançava meus lábios numa doçura sem igual.
- Oito horas então?
Eu perguntava.
- Sim. Tchau.
- Tchau.

* * *
Às 20h, Lívia e eu, recostados na enorme pilastra de seu prédio, éramos quase que um só. Seu corpo ainda estava quente da praia, o que contrastava com o frescor de sua boca tomada da ação de um creme dental fortíssimo, me causando uma sensação inexplicável ao beijá-la. Mas algo me incomodava. Nada me fazia aceitar que Chupeta também vivera, talvez, aquele mesmo momento.
- Posso te fazer uma pergunta?
- Pode. O que foi?
- É verdade que... É verdade que...
- Fala logo, Douglas.
- É verdade que você já ficou com Chupeta?
Lívia se distanciava de meu corpo. Puxava um elástico do bolso e ao prender seus cachos esticava os músculos de seus membros de forma estonteante. Ela respirava forte e parecia irritada com a pergunta.
- Por que quer saber?
- Curiosidade.
- É porque o acha feio, não é?
- Bem, eu...
- Pois vou lhe dizer uma coisa. Se você já ouviu falar por aí que já beijei quase todo o condomínio, tome como uma verdade. Mas saiba que o motivo é muito simples.
- Qual é?
- Não sei dizer “não” a cantadas.
- O quê? Como assim? Quer me dizer que fica com as pessoas por não conseguir dizer “não”? É isso?
- Exatamente. Mas não acontece em todos os casos. Quando o cara tem um bom papo, ele me ganha. Quando não, eu sinto pena e acabo ficando.
- E no caso do Chupeta?
- Ele me ganhou.
Eu não podia acreditar!
- E no meu caso?
- Foi pena mesmo. Até mais, Douglas.
Ela subia até o seu apartamento deixando para trás um frango. Assim que me sentia. Um frango.

* * *
Mais histórias sobre Douglas em Tapete Testemunha I e II.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

VISITA DE EMERGÊNCIA

Enfim, Valéria e eu nos entendíamos. Estávamos, veja só, namorando. Ora, depois dos trinta existe isso? Namorar? Se não existe, eu faço questão de me nomear o inventor do namoro pós-trinta. Dane-se. O fato é que meu trompete não mais a irritava. Seus aplausos agora me motivavam a estudar mais aquele instrumento tão difícil. Eu já estava até conseguindo trocar algumas notas com os meus discos do Chet Baker. Eu aproveitava suas pausas bem pensadas para enfiar minhas opiniões em forma de sopro. Estava indo bem mesmo.

Havia duas semanas que eu não aparecia no Jazz Bar. Naquele momento eu preferia programas em que a chance de esbarrar com antigos e amigos fosse praticamente nula. Valéria concordava comigo, já que da última vez que esse esbarro ocorrera, com o Oscar, ela não entendera nem a si mesma. Por um lado até que foi bom, dizia ela, pois conseguira atingir um recorde em termos de masturbações bem sucedidas. Não ficava zangado quando Valéria me contava sobre esse episódio. Foi um pouco por causa dele que no momento me esquentava nas pernas dela.

Íamos ao Bar Chorado.
- Você não tem tanta intimidade com o pessoal do chorinho, Charles?
Perguntava-me Valéria.
- Não muita. Conheço alguns, mas não tenho muito assunto com eles.
- E por que vem aqui?
- Justamente por isso. Procuro lugares onde a intimidade única seja entre você e eu.
- Ai, Charles. Não fala assim, vai.
Valéria mordia os lábios insinuando algo que eu adorava. Valéria era o sexo em pessoa.
- OK. Não falarei mais. Até porque, toda vez que falo algo desse tipo saímos do bar antes da terceira cerveja.
- A cerveja, sempre a cerveja. Prefere a cerveja, Charles?
Ela perguntava ao mesmo tempo em que subia sua perna sobre a minha por baixo da mesa.
- Agora é você quem está me provocando, Valéria.
- Responde! Prefere a cerveja?
- Claro que não!
- Então?
- Então o quê?
- Por que não saímos daqui? Estou a pingar.
Valéria sabia dizer aquilo que eu queria ouvir. Como resistir?
- Raios. Vamos!
Eu pagava a conta com a mão de Valéria dentro do meu bolso a acariciar-me.
- Você não tem vergonha, não? Está todo mundo vendo sua mão aí, Valéria!
- Eu sei. É que quero ver até que ponto aquelas meninas ali na mesa resistem. Estão a babar.
- Não tem ciúmes?
- De quê?
- Delas “estarem a babar”.
- Eu não. É só o que podem fazer. Babar sobre a mesa. Eu posso muito mais. Posso babar sobre...
- Cale essa boca, o garçom está vindo com o meu troco.
- Seu safado!
Valéria ria e apertava-me com força.

No caminho, eu não sabia ainda em qual das casas iríamos terminar a festa. A cada canto escuro daquelas ruas Valéria me puxava de forma e intenção diferentes. Quase terminava o serviço antes mesmo de por as chaves na porta.
- Valéria! Espere chegarmos em casa, por favor!
- OK, mas na minha ou na sua?
- Tanto faz. A que estiver mais perto!
- Pelo sentido que estamos, a minha é a mais próxima, Charles.
- Então será na sua. Não agüentarei andar mais dois metros até a minha.
- Safado!
Valéria mais uma vez me apertava. Estava muito acesa.

Valéria abria a porta de sua casa e me puxava pelo cinto. Ela estava realmente muito louca. Despia-me com os dentes no auge de seu tesão. Confesso que também me encontrava no auge, mas do meu medo. Àquela altura de nosso namoro eu conhecia o gosto de Valéria pelo sexo voraz, mas ainda não tinha presenciado tal comportamento. O telefone tocava.
- Não vai atender, Valéria?
- Você está brincando, não?
Respondia-me sem ar e voltava ao serviço.
- Pode ser... Aaah! Pode ser importante, Valéria.
- Isso aqui que é importante, Charles!
- Concordo. Continue.

O telefone não parava de tocar. De certa forma aquilo tirava minha concentração, mas não parecia incomodar Valéria nem um pouco. E o telefone tornava a berrar.
- Chega, Valéria!
- O que foi? Não está bom?
- Está ótimo, mas ficará melhor sem essa merda de telefone berrando, não acha? Atenda essa coisa, por favor.
- OK!
Valéria levantava e se dirigia até o aparelho, na estante de sua sala.
- Alô! Pois não? É ela! O quê? Merda! Estou indo para aí!
Desligava o telefone.

- E então, quem era?
- Uma prima minha.
- Mas o que houve? Algum problema?
- Telefone tocando há essa hora, Charles. O que acha?
- Mas o que houve, Valéria?
- Minha avó materna está muito mal no hospital e, segundo minha prima, está me chamando, coitada.
- Quer que eu vá com você?
- Se não for incômodo.
- Claro que não. Vamos.

Chegando no hospital, Valéria abraçava aquelas pessoas com certa frieza. Estava nítido para mim que ela não era bem quista entre os familiares.
- Gente, esse é o Charles, meu namorado.
Ela me apresentava àquela gente e eu apenas acenava de longe. O que dizer numa hora como aquela?

- Vou lá falar com minha avó, Charles. Já volto.
- Vai lá.
Corria a vista em cada um deles sem muito cuidado na observação, da esquerda para a direita. O tédio me batia.

Alguns minutos depois, Valéria saía do leito, despedia-se do pessoal e, junto a mim, saía do hospital. No caminho:
- Que visita rápida. O que a velha, digo, sua avó queria com você?
- Encher-me a paciência.
- Com o quê?
- Ela está para morrer, então quer reunir a todos e dizer o que acha sobre cada um.
- E o que ela acha de você?
- Quer mesmo ouvir?
- Quero. Se quiser falar, é claro.
- Disse que morrerei solteirona, quer dizer, sem casar, por ser uma vagabunda e não escolher com cuidado para quem abrir as pernas.
- Ela disse isso? Por quê?
- Deve ser porque há muitos anos atrás, quando eu tinha, sei lá, uns quatorze anos, ela me flagrou com um namorado que eu tinha.
- O que vocês estavam fazendo?
- O meu namorado, nada.
- E você?
- Nada demais, mas estava com a boca muito ocupada no momento para explicar a situação, se é que você me entende.
- Sim, claro.
Valéria me assustava, às vezes.
- Ai, Charles. Vamos parar com esse papo. Vamos voltar para casa e continuar de onde nós paramos. O que acha?
- Ótima idéia. E que ninguém nos flagre, pois estará novamente com a boca bem ocupada, Valéria.
- Safado.

Já estávamos na casa de Valéria, mais precisamente nus, um por cima do outro e no meio da sala, quando o telefone voltava a nos atormentar. Colocava-a debruçada sobre sua estante enquanto a puxava contra mim pelos seus cabelos.
- Não vai atender?
- Aaah não!
- Vai sim!
- Mas você não vai sair de dentro de mim?
- Não!
- Aaah... Então eu atendo!
Ela pegava o telefone.
- Aaah... Alô!
- Valéria? Que voz é essa? Você está bem?
Era novamente a prima de Valéria.
- Nunca estive melhor! Aaah... Diga!
- Vovó Jacira acabou de falecer e...
- Aaah... É mesmo? Então, se por acaso ela ressuscitar, diga a ela que a vagabunda aqui acha que finalmente escolheu com cuidado a quem abrir as pernas! Aaah... Passar bem!
Valéria desligava o telefone e me dava ordem de que não parasse. Eu obedecia.

* * *
Mais histórias sobre Charles e Valéria nas séries Elas (Julho de 2008) e Eles (Setembro de 2008).

terça-feira, 21 de outubro de 2008

ACREDITE!

Eu quase não parava em casa. Trabalhava feito um escravo mesmo. Mas eu devia ser grato por tudo o que o meu emprego no ramo do comércio me havia dado: Varizes, dores na coluna, perda de memória, de audição e outras coisas. Minha esposa, Betina, ficava em casa cuidando da casa e de nossos dois filhos, o Pedrinho e a Priscila.

Eu devia ser muito grato por minha família – dessa vez falando sério –, pois Betina, além de ser uma companheira maravilhosa, educava os nossos filhos de maneira exemplar. Nunca tive queixas das crianças no colégio ou em qualquer outro lugar. Que criaturinhas divinas! Só me davam alegria. O Pedrinho era o artilheiro do meu coração. Batia um bolão. A Priscila, puxando o lado da mãe, tocava piano como uma concertista profissional. Tirava-me água dos olhos. Pena que às vezes eu parecia não lhes dar o merecido valor.

A minha cabeça vivia cheia de problemas no trabalho. O cargo de gerente de uma loja de eletrodomésticos do porte da qual eu trabalhava gerava “pepinos” enormes. Betina evitava me telefonar durante o expediente, porque, de cabeça quente, quase sempre eu acabava a tratando mal. Quase não, acho que sempre. Eu tinha noção do quão troglodita eu era naqueles momentos. Mas um certo dia, pela manhã, Betina não podia esperar eu chegar em casa.
- Emerson?
- Oi Betina, tudo bom?
- Mais ou menos.
- Não me telefonou para me trazer problemas, foi? Já me bastam os meus por aqui e...
- Mas é sério, Emerson.
- OK. Um instante. NÃO! MAIS QUE 10% DE DESCONTO EU NÃO TENHO COMO! Pode dizer, Betina.
- Está muito ocupado, amor?
- Sempre, Betina, mas pode falar.
- Acabei de receber um telefonema esquisito.
- Esquisito? Como assim?
- Um homem de voz rouca disse que vai matar você, Emerson. Estou muito nervosa.
- BETINA! VOCÊ ME LIGA PARA ISSO?
- Emerson, por favor! Eu fiquei preocupada com você!
- ESTÁ PREOCUPADA COMIGO? QUER ME AJUDAR? ENTÃO PARE DE LEVAR ESSES TROTES A SÉRIO! OK?
- Como quiser, seu monstro.
Emerson pensava no seu descontrole e se desculpava.
- Desculpe-me, Betina. Desculpe-me. Olha. Fica tranqüila, OK? Isso não passa de um trote de mau gosto. À noite conversamos. Beijos.
- Beijos.

À tarde, o telefone voltava a tocar em minha mesa.
- Sua esposa. Posso passar?
- Deus. Passa, vai.
- Emerson?
- Não, o Raul Gil. Ora, Betina.
- Pára de brincadeira, Emerson. É sério. Ele voltou a ligar.
- Ele quem?
Eu já havia até me esquecido, o que deixava Betina furiosa.
- Quem, Emerson? Você não se preocupa mesmo, não é? O tal homem da voz rouca.
- Ah sim. Perdão. E o que o engraçadinho disse dessa vez?
- Disse que vai seqüestrar as crianças.
- E você acreditou?
- Emerson, ele disse com riqueza de detalhes sobre o horário de entrada e saída das crianças, no colégio, no futebol, na aula de piano. Ele sabe de tudo, Emerson!
- Acalme-se, Betina. Isso é alguém que nos conhece e está a fim de curtir com sua cara. Aposto.
- Eu não penso dessa forma. Estou ficando com medo.
- Não precisa ficar com medo, Betina. Onde estão as crianças?
- No colégio.
- OK. Logo a rota os trará de volta. Foi só um trote. Acredite.
- OK, mas chegue um pouco mais cedo, por favor.
- Pode deixar. Chegarei mais cedo. Prometo.

À noite, como prometido, eu chegava em casa duas horas mais cedo que de costume e encontrava sua casa com todas as luzes apagadas. Coisa não muito normal àquela hora. Eu abria a porta devagar. Passava a acreditar na voz rouca que falara com Betina. Colocava as chaves com cuidado sobre a mesa da cozinha e chamava por Betina e as crianças.
- Betina. Você está em casa? Pedrinho? Priscila? Onde estão vocês?
Ninguém respondia. Eu passava a tremer.
- BETINA! TEM ALGUÉM EM CASA?
Eu acendia a luz da sala e...

- SURPRESA! Parabéns pra você...
Betina, Pedrinho, Priscila e outros familiares e amigos haviam me preparado uma festa de aniversário surpresa. Eu não lembrava daquela data. Caía feito um pato.
- Betina, por que me enganou dessa forma? Podia ter me matado do coração. Fiquei preocupado, sabia?
- Preocupado? Com o quê? Foi só um trote, Emerson. Come um bolinho, vai!

Que família maravilhosa eu tenho.

* * *
Foto da capa: Fabiana Romeo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

TINTA, SANGUE E DEBOCHE

- Ele me obriga a transar com ele!
Respondia Arlete ao questionamento do delegado de polícia, o Floriano, que não entendia como uma mulher forte como ela podia ser mantida sob os poderes do marido por tanto tempo. As agressões se mostravam de forma revoltante por todo o corpo daquela mulher. Dez anos sentindo o peso das mãos de Luiz Fernando não devem ter sido nada fácies.
- Por que demorou tanto a nos procurar, D. Arlete?
Perguntava Floriano.
- Medo.
- Entendo. Você acha que precisa de proteção até que coloquemos as mãos nele?
- Não. Ele não sabe que estive aqui, doutor.
- Alguma idéia de onde ele possa estar agora?
- No circo. Ele trabalha como palhaço de circo.
Floriano forçou os lábios para não rir na frente de Arlete. Seria embaraçoso demais.
- E onde esse circo está agora?
- Aqui na cidade.
- Você também trabalha no circo?
Perguntava Floriano achando um pouco de graça no caso.
- Sim.
- Então vocês não são da cidade?
- Não. Resolvi procurar a polícia daqui, pois acho que cheguei no meu limite de tolerância, doutor. Nós não temos paradeiro. Hoje, o circo está na Praça de Todos os Santos, no Centro. Na semana que vem, nem sei.
- OK. Mandarei meus homens para lá.

Floriano convocava alguns soldados para que trouxessem Luiz Fernando à delegacia para depor. Ficava tentando imaginar o rosto de um palhaço agressivo e covarde, mas não conseguia. Embora nunca confiasse em palhaços de circo, não conseguia concretizar em sua mente a imagem de um ser que tirasse gargalhada das crianças e, ao mesmo tempo, sangue de sua esposa.

Os homens de Floriano retornavam sem sucesso.
- Onde está o Luiz Fernando?
- Não conseguimos, doutor.
- Por quê?
- Não o achamos por lá. Reviramos o circo de cabeça para baixo, mas não o achamos.
- Merda. E o que os outros circenses disseram sobre ele?
- Nada. Apenas que ele não estava por lá.
- Ninguém sabia sobre o paradeiro dele?
- Não, doutor.
- Merda. Se estiverem escondendo ele por lá eu não sei o que pode ocorrer à Arlete. Voltem para lá e protejam Arlete. Temos que por as mãos nele antes que ele ponha as dele em Arlete, entendido?
- Sim, doutor.

Floriano ia então até o circo acompanhado de seus homens. Floriano dava ordens de cercarem o circo, apesar de serem ao todo apenas cinco. Caminhando entre as lonas e os trailers à procura de Luiz Fernando, Floriano se deparava com Arlete.
- Ainda bem que chegou, delegado.
- Onde ele está.
- No nosso trailer. Ele está bêbado e tentou me agredir.
- Leve-me até lá.

Arlete conduzia Floriano até o seu trailer. No caminho, o delegado avistava diversas crianças com marcas de agressões como as de Arlete. Algumas delas se apresentaram assustadas com a presença da polícia. Começava a pensar como seria viver da arte circense. Um dia aqui, outro dia ali. Floriano via mais e mais hematomas.
- Quem são essas crianças?
- Filhos.
- Seus?
- Alguns.
- São filhos dos que trabalham no circo, então.
- Isso. Ali. Aquele é o meu trailer. Ele está lá.
- Tem mais alguém com ele?
- Sim, minha filha de 13 anos.
- Merda!

Floriano empunhava seu revolver e corria em direção ao trailer. Com um chute forte, Floriano abria a porta e em questão de segundos colava o cano na testa de Luiz Fernando, que no momento, com a mão direita, pegava a filha pelos dois braços, e com a esquerda a despia de forma violenta.
- PARADO AÍ SEU FILHO DE UMA PUTA! LARGUE A MENINA!
- Você não terá coragem de matar um pobre palhaço, vai?
Luiz Fernando, ainda maquiado da noite anterior, debochava do perigo com facilidade.
- NÃO PENSE QUE ESTOU BRINCANDO, CARA! LARGUE A MENINA!
- Não! Eu não acho que deva largá-la. Olhe bem essa bundinha, policial!
As atitudes de Luiz Fernando enojavam o delegado, que sentia o estômago embrulhar e a vista turvar.
- EU VOU ATIRAR SE NÃO SOLTAR A MENINA, SEU...
- Ora, policial, você não quer dividir esse “franguinho” comigo? Pense bem!
O calor que fazia dentro do trailer ajudava ainda mais o mal-estar de Floriano, que passava a enxergar menos por conta do enjôo.

Arlete adentrava e gritava para que Luiz Fernando largasse sua filha.
- SEU MONSTRO! LARGUE ELA!
- Opa! Agora são duas! Com qual delas vai ficar, policial?
Dizia Luiz Fernando alisando o corpo ainda sem curvas da filha, que chorava muito.
- AHHHH!
Junto com o berro, Floriano disparava um tiro no meio da cabeça de Luiz Fernando, que tinha agora em seu rosto um misto de tinta, sangue e deboche. Ele abrira um sorriso ao ser atingido.

- Arlete, eu sinto muito. Eu...
- Tudo bem, delegado. Já vai tarde esse desgraçado.
Dizia Arlete agarrada à filha. Ambas aos prantos.

Uma multidão cercava o trailer de Arlete a fim de saber o motivo do estrondo. Tendo conclusão do acontecido, Floriano era alvo de um linchamento por parte dos que trabalhavam no circo. Os homens de Floriano chegavam atirando e transformando aquele aglomerado de toldos coloridos num cenário bizarro de risos e morte. A poeira subia cobrindo o corpo de Floriano que jazia ainda sob pauladas, chutes e gargalhadas.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

LAURA

Na TV, apenas as noticias ruins de todos os dias. Alberto desligou-a. Subiu até o segundo andar, abriu a porta bem devagar e constatou que sua filha, Lorena, já se encontrava nos braços do mais profundo sono. Fechou a porta no mesmo cuidado que abrira e em passos lentos se dirigiu até seu quarto. Sua esposa, Laura, também se encontrava dormindo. Apagou o abajur, deitou-se como uma pluma, mas não adiantou.

- Vamos conversar?
Disse Laura, que fingia dormir.
- Ora, Laura, não temos o que conversar a essa hora da noite.
Esquivou-se Alberto.
- Não. Vamos conversar agora, homem. Não conseguirei dormir sequer mais uma noite sem antes você me explicar tudo o que houve no fim de semana.
Disse Laura muito nervosa voltando a acender o abajur.
- Está bem. O que você quer saber, Laura?
- Foi você quem matou aquela mulher, não foi?
- Não acredito que você esteja pensando que... Não, Laura, nem venha com isso. Eu encontrei aquela mulher no chão com sei lá quantas facadas no peito. Chamei a policia e eles fizeram o trabalho deles. O que mais você queria que eu fizesse? Desde domingo que você chora e não fala comigo direito. O que lhe deixou tão abalada? A gente nem conhecia aquela mulher.

Laura ficou muda e tornou a chorar. Dando socos no travesseiro e em Alberto também. Gritava - Assassino, assassino! - Alberto arregalava os olhos numa tremenda confusão de pensamentos e conclusões.
- Por que achas que matei aquela mulher? Que motivo eu teria? Não sei de onde tiraste essa idéia, Laura. Estás maluca?
- Você estava esquisito naquele dia, Alberto. Saiu de manha e só voltou àquela hora da tarde com a roupa cheia de sangue...
- Eu tentei ajudar a vitima, Laura. Pelo o amor de Deus!
- E por que você veio até em casa trocar de roupa antes de chamar a policia?
- Ah! Você queria que eu fosse o principal suspeito? Eu tentei ajudá-la, mas se a policia chegasse e me visse com aquela roupa cheia de sangue, como eu faria para provar a minha inocência, Laura?

Cinco minutos se passaram. Ambos em silencio. Até que Laura ataca.
- Alberto! Eu vi a faca suja de sangue que você deixou cair quando veio trocar de roupa! O que você quer que eu pense?
Alberto se viu encrencado e abriu o jogo.
- Laura! Eu vi durante meses você me traindo com essa vagabunda! O que você queria que eu fizesse?

Laura arregalou os olhos e sentiu o peito queimar de tristeza, mas não menos que o rosto de vergonha. Jamais poderia imaginar que seu marido sabia de seu caso homossexual com Sara, assassinada por ele com quinze facadas no peito, naquele domingo. Laura apagou o abajur e deitou-se.

* * *
Conto publicado originalmente em 25 de setembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O MOTIVADOR

O final do ano já se aproximava e os roncos de minha barriga me atacavam com mais freqüência. É que os campeonatos esportivos de quadra chegavam ao fim. O basquete, o futebol de salão, o handebol e o vôlei. Deixe-me explicar a relação entre a minha fome e o fim dos campeonatos. Sabe aquelas pessoas que entram em quadra empurrando aqueles rodos enormes a fim de secarem o piso para um melhor desempenho dos atletas? Eu era uma destas.

Eu não tinha muito orgulho do meu “emprego”. Tinha plena consciência de que só estava ali porque o meu primo, o Sandrão, era um treinador de vôlei muito respeitado. Ele, diante de minha situação financeira precária, vivia me chamando para esses “bicos”. Eu não tinha carteira assinada. Não podia nem dizer aos outros que tinha uma profissão. “Sou enxugador de quadra”. Nada. Durante os campeonatos eu estava lá em alguns jogos. Só isso. Quando se findava o ano, a minha geladeira me fazia sentir um misto de pena e raiva de mim mesmo.

- Dudu.
Era o meu primo no telefone, o Sandrão.
- Oi primo.
- Como está? Arrumou alguma coisa?
- Nada, primo.
Na verdade eu nem procurara.
- Bem, domingo será a final do estadual de vôlei feminino, lá mesmo na quadra do Clube dos Líderes. Já sabe, não é? Está a fim?
- Não tenho escolha, primo. Muito obrigado. Estarei lá.
- Sim. Esteja lá às nove.
- OK.

Não era um trabalho ruim. Era bem simples. Quando solicitavam, você empurrava o seu rodo lado a lado com os demais enxugadores numa espécie de “balé da limpeza”. Em alguns momentos você tinha de ir sozinho com o seu rodo ou um pano mesmo nas mãos para enxugar algum ponto específico da quadra. Os jogadores que pediam dessa vez. Eram geralmente muito simpáticos. Alguns dos meus colegas conseguiam autógrafos de grandes nomes do esporte nacional e internacional. Eu nunca dei muita importância aos esportistas. Na verdade eu nem sabia o nome deles. Ah! De um eu sabia, o Pelé, mas nunca o vira jogar naquelas quadras. Não me pergunte o porquê.

No domingo, eu me dirigia até a quadra do Clube dos Líderes. Uma multidão já se encontrava do lado de fora enquanto eu entrava com minha credencial. Era um dos momentos mais bacanas, pois me sentia uma pessoa em melhor situação que outra, o que era muito raro. Mas isso logo se invertia, já que lá dentro havia uma espécie de “maestro dos rodos” para nos dar instruções. As mesmas de sempre.

Eu avistava o Paulo, outro enxugador, um velho amigo, no meio do grupo.
- Oi Paulo.
- Fala, Dudu. Tudo bom?
- Nada. Eu estou aqui, não estou? Como pode estar bom?
- Não é tão mau assim, Dudu.
- Diz isso porque tens um emprego.
Paulo trabalhava numa fábrica de brinquedos. Enxugava só para estar próximo àqueles idiotas do esporte.
- Ora, Dudu. Você sempre diz isso.
- Por que será, Paulo?
- Bem, escute. Hoje, é a final do vôlei feminino!
- E?
- Como assim “e”? Já enxugou em algum jogo de vôlei feminino?
- Vários. Com você, inclusive.
- As meninas são lindas, não são?
- Algumas. Prefiro as do handebol.
- Tudo bem, mas você sabe quem vai estar em quadra hoje?
- Não me faça perguntas difíceis a essa hora da manhã, Paulo.
- A Talitinha!
- O que ela tem de melhor que as outras?
- É a melhor levantadora do Brasil e uma das melhores do mundo. Sem contar que...
- Que o quê?
- É a mais linda de todas também. Até convidaram-na para posar nua naquela revista, a...
- Que interessante.
- Eu compraria a revista pelo preço que fosse, Dudu.
- Eu não pagaria nem um real.
- Estou lhe estranhando, Dudu.
- Ora, Paulo. Quem não sabe que ela posaria com uma bola de vôlei na frente?
- Que pessimismo, Dudu.
- É. Pode ser.

Aos poucos a quadra começava a lotar de torcedores imbecis que não paravam de gritar um só instante. Era ensurdecedor. Com certeza a pior parte de ser um enxugador. Os times começavam a se aquecer para o jogo.
- Olha lá, Dudu. A Talitinha.
- A número cinco?
- Não. A número oito.
- Ah sim. Não entendo o diminutivo. Só as pernas dela parecem serem maiores que você, ainda que com os braços para o alto.
- Eu a escalaria, Dudu! Entende? Escalaria até os peitos dela.
- Seu louco. Vamos. A droga do jogo já vai começar. Tomara que seja logo um três a zero. Não quero perder todo o meu dia aqui.

Era um jogo como um outro qualquer. Bola para lá, bola para cá, torcidas, euforia, rodos (claro) e broncas, muitas broncas. Quando as equipes vinham de encontro com os seus técnicos, era hora de entrarmos em cena. Na volta, ainda pegávamos as meninas ouvindo muitos berros de seus treinadores. Dava pena.

Eu passava a observar o corpo de cada uma delas. Paulo tinha razão, pois a tal da Talitinha era uma beldade de mais ou menos um metro e noventa. Cabelos presos num rabo de cavalo que deixava exposta uma nuca suada e tentadora. Seus ombros eram bem proporcionais aos seus seios médios e empinados. As pernas, meu Deus, que pernas, eram torneadas, não musculosas, mas rigidamente atléticas, que também se encontravam muito suadas. Fazia muito calor na quadra e por isso ela levantava e abaixava a blusa do uniforme repetidamente a fim de abanar o abdômen. Era lindo o que eu via.

O técnico da equipe de Talitinha era um monstro. Gritava demais. Era rude. Um pseudomotivador. Cara arrogante. Talitinha voltava à quadra com uma certa raiva por ser responsabilizada pelo mau desempenho do time. Elas perdiam o primeiro set por quinze a três. Uma lavada. Talitinha na verdade não era aquilo tudo que Paulo dissera em relação ao vôlei. Era mais beleza que eficiência esportiva. As estatísticas de Paulo não condiziam com o que eu via em quadra. Embora eu não entendesse nada de vôlei, era nítido para mim que ela se daria melhor nas revistas, novelas ou até mesmo num trio elétrico. Meu Deus, eu repito, que pernas.

Na primeira jogada após o retorno do time em quadra, Talitinha leva um escorregão ao tentar um passe.
- MERDA!
Gritava a atleta. Talitinha era linda até com raiva.
- Vai lá, Eduardo.
Dizia-me meu chefe.
- OK.
Eu seguia com os dois panos e o rodo à mão até a poça de suor que se encontrava sob os pés de Talitinha.
- VÊ SE LIMPA ESSA MERDA DIREITO, CARALHO!
A jogadora berrava ao meu ouvido. Aquele ser angelical sabia ser estúpido também.

O técnico de Talitinha tinha com quem gritar. Talitinha não tinha, mas criava em mim a imagem de um subalterno para que pudesse soltar sua insatisfação também. Eu reverteria de forma extrema o caminho das agressões verbais.

Eu percebia na hora que eu não era jogador de porra nenhuma e não tinha a responsabilidade de carregar uma merda de time nas minhas costas. Percebia também que se algum daqueles times perdessem, a minha vida continuaria a mesma miséria de sempre. Minha reação foi imediata, embora tenha percebido tanta coisa:
- POR QUE VOCÊ NÃO MOSTRA ESSA BUCETA DE UMA VEZ, SUA LEVANTADORA DE MERDA? DESISTE!
Eu respondia a ofensa de Talitinha em alto de bom som. As outras jogadoras tentavam me acuar, mas eu ameaçava acertá-las com o rodo. O jogo era interrompido e eu expulso da equipe de enxugadores. Talitinha ia para o banco e chorava sem parar.

No dia seguinte, os cadernos de esporte noticiavam:

Talitinha é insultada em quadra e por isso perde título estadual.

Naquela segunda-feira, eu era apontado pela mídia como o principal culpado pelo choro de milhares de torcedores. Mas alguns dias depois, me transformavam no causador da alegria de milhões de “leitores”. É que os jornais traziam a notícia mais esperada do ano:

Após receber insulto durante a final do campeonato estadual de vôlei, na semana passada, Talitinha resolve abandonar as quadras e finalmente aceita proposta para posar nua. “Aquele enxugador sem querer me abriu os olhos”, declara a sorridente Talitinha.

Com isso, eu concluo que fiz duas merdas ao me exaltar com Talitinha naquele jogo: Desfalquei, de certa forma, um time de vôlei, já que a equipe nunca mais chegaria a uma final estadual, e coloquei mais uma “ex-alguma coisa” nos assuntos “interessantes” de nossas mídias. Soube até que em breve ela estreará como apresentadora de um programa de televisão.

Pensando bem, acho que nem foi tão ruim assim, já que os responsáveis pelo Clube dos Líderes ficaram tão satisfeitos com as fotos do nudismo de Talitinha que resolveram me aceitar novamente ao grupo dos enxugadores.
- Insulte sempre as mais gostosas, Dudu.
Diziam-me.
Enfim, estávamos todos nos seus devidos lugares.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

PELA CIDADE V - O Choro dos Seis (Final)

No Bar Chorado eu encontrava meus amigos. Jovens, velhos, mancos, pobres, ricos. Não havia distinção de classes naquele recinto de azulejos raros. Todos estavam ali para apreciar um quinteto de choro, papear, beber e fumar. As mulheres ali eram conseqüência. Quase ninguém ia ali para pescar um bom peixe. Como eu já tinha pescado o meu, nada me restava a não ser curtir as cordas vibrantes de Sasá do Bandolim. Aquele ali era demais. Ah! A Carol, flautista, também dava um show.
- É samba, é o quê?
Perguntava-me Claudinha.
- Choro. Já disse.
- Isso que é choro?
- Ora, Claudinha, nunca ouviu um choro na vida?
- Só de criança.
- TEM FILHOS?
- Calma! Não tenho não.
- (Ufa!) Desculpe o susto.
- Tudo bem.
- Mas e então? Gosta do que ouve?
- Sim. É agradável. É bem diferente dos DJ’s.
- Mas claro que é! Sinta a vida desses músicos!
- E aqui? Eu encontraria alguém que valesse a pena?
- Ei. Acabamos de transar, Claudinha. Ainda procuras alguém?
- É que você me pareceu tão...
- Viril?
- Não. Fácil.
- Fácil? O que queria que eu fizesse? Que eu a jogasse naquele lixo e fugisse? Por favor.
- Não sei se você é o que procuro.
- Procuras alguém, não é? Que valha a pena! Eu sou alguém que vale a pena! Eu...
- Jorge?
Pai do céu. Catarina!

- Oi Catarina. Você por aqui? Não estava no Anexo?
- Pois é. Você também estava lá e agora está aqui!
- É. Bem, essa aqui é a Cláudia.
Apresentava uma a outra.
- Não quer sentar conosco, Catarina?
Convidava-a Claudinha.
- Sim. Posso?
- Claro. Sente-se.
Ali, as duas começavam um papo interminável sobre todas as coisas do universo. Parecia até que já se conheciam. Eu apenas bebia. O celular tocava. Pedia licença para as duas e atendia ao telefone na calçada.

- Alô.
- É o Cícero. Beleza?
- Sim. Digamos que sim.
- E a Claudinha? Vocês saíram daqui do nada. Eu...
- Está aqui comigo. Estamos no Bar Chorado. Você não vai acreditar.
- O que houve?
- A Catarina está aqui também e de papo com a Claudinha. Acredita nisso? Ela me persegue!
- Você já traçou a Claudinha?
- Já! E no melhor estilo. Depois lhe conto.
- Bem, eu já me perdi da Elaine por aqui. Despistei-me. Estou indo até aí. Segura essa Catarina na mesa que eu vou pegar.
- Naquele dia do restaurante ela nem lhe deu bola, Cícero, mas tudo bem. Venha logo.

Da calçada eu ficava alguns minutos observando as duas. Como conseguiam rir e conversar com tanta afinidade logo após se conhecerem? De um lado da mesa, a brancura coberta de pintinhas e um par de olhos verdes. Do outro, uma verdadeira índia urbana vestida para matar. Elas riam bastante. Pelos gestos que faziam estavam conversando sobre o tamanho dos seios de cada uma. Ambas pareciam estar insatisfeitas, veja só, com suas respectivas medidas. Uma parecia elogiar o formato do da outra. Cícero chegava.
- Demorei?
- Não. Veio correndo?
- Quase.
Cícero respondia ofegante.
- E então? Vamos?
Eu o chamava.
- Vamos.
Virávamos para o bar e iniciávamos uma entrada triunfal rumo a vitória. A mais bela vitória de todas as nossas noites. Eu possuiria de novo aquele corpo dourado pela natureza. Cícero tentaria a sorte antes que fosse hipnotizado pelas bolas verdes – ou as pintadas – de Catarina.

Entrávamos.
- PUTA QUE O PARIU, JORGE! QUE PORRA É ESSA?
Catarina e Claudinha beijavam-se como duas loucas.
- Eu não posso acreditar, Cícero!
- Que merda!
Dizia Cícero com a mão no queixo.
- Que merda? Você acha?
- Você não?
- Não! Vamos levá-las à minha casa. Agora!
- Cara, você pirou?
- Pirei. E como pirei!
- Elas são lésbicas!
- Claudinha é bi. No mínimo!
- Eu não sei mais de nada, Jorge.
- Mas eu sei.
Eu chegava até a mesa com uma naturalidade disfarçada:
- Meninas! Vamos acabar com essa festinha? Ou melhor, vamos começá-la de vez lá em casa?
- Jorge! Você está certo!
Dizia-me Claudinha.
- Viu só, Cícero?
Eu dizia.
- Esse lugar realmente tem gente que vale a pena! Essa garota é demais! Vamos sair daqui, Catarina?
Dizia Claudinha ao levantar-se de mãos dadas com aquele par de olhos verdes.

* * *
Cícero e eu ficávamos no Bar Chorado lamentando a opção sexual daquelas mulheres. Na minha cabeça, Catarina havia hipnotizado Claudinha e a tornado uma homossexual. Cícero me chamava de idiota diante de meus argumentos. Mas para mim, só havia essa possibilidade para Claudinha, depois de uma transa animal como aquela, sair com Catarina.

De repente, um grupo de quatro caras sobe ao pequeno palco do bar. Cícero e eu reconhecemos dois deles; o careca do restaurante e o grisalho pançudo do Anexo. Eles acompanhavam Catarina naquelas ocasiões.
- Veja, Cícero. Olhe quem está no palco!
- Ih! Aqueles coroas que comiam, ou melhor, queriam comer a Catarina!
Os quatro homens pediam um sol maior ao violonista e, juntos, ao microfone, cantavam completamente bêbados uma música esquisita na qual só se entendia o verso “Catarina não se vá”.

Depois daquele “show” deprimente, eu me dirigia até o careca:
- Escute. Conheceram a Catarina? Vocês quatro?
- Sim. Você também, cara?
Perguntava-me o careca.
- Digamos que sim. Mas como foi com vocês?
- Ora, rapaz. Tudo começou quando ela me deu a notinha dos correios. Então...

Eu entendia tudo. Estávamos todos hipnotizados pelas bolas verdes. Lamentávamos os seis. Cícero, o careca, o grisalho pançudo, os dois desconhecidos e eu.

[Fim]

* * *
Foto da Capa por: Mike Vlcek.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

PELA CIDADE IV - Noite

Depois de me deparar com as bolas verdes de Catarina – leia olhos –, e, claro, não posso me esquecer, as proporcionais bolas pintadas também – leia seios –, lá no bar Anexo, Cícero e eu parávamos no Lero-Lero mesmo. Cícero conseguia me convencer àquilo. Uma boate entupida de universitários playboys e suas meninas cujo nariz detecta o cheiro de gasolina a quilômetros. As meninas até que eram umas gostosas, mas quem ali conversaria com um cara de terno aparentando trinta? Sentia que estávamos no lugar errado. Cícero logo se adaptava. Freqüentara muito o Lero-Lero nos tempos da faculdade, no mínimo.
- Não está curtindo, Jorge?
- O que você acha? Isso aqui é um formigueiro. O tumulto está inibindo a minha vontade de beber. Levaria um dia inteiro para chegar até o balcão.
- Mas esse é o bacana. Pode roçar em algumas bundas até lá.
- Que bela dica, Cícero. Deu-me até sono.
- Vamos! Esqueça os olhos daquela maluca. Olhe ali.
- Onde?
- Ali!
Cícero apontava.
- O quê?
- Está vendo aquela morena de verde?
- Sim. Aquilo é verde? Essas luzes me atrapalham, merda!
- Sim. É verde, Jorge! Mas esquece a cor. Ligue-se na morena.
- OK.
- Não é linda?
- Ô...
- Quer conhecê-la?
- Não seria nada mau, mas o que vai fazer para tirá-la das garras daquela feiosa encalhada que está ao lado dela?
- Eu conheço as duas, Jorge. Deixa comigo. Venha.
Eu seguia Cícero até elas.

- Oi Claudinha!
Cícero cumprimentava a mais gata.
- Oi Cicinho! Tudo bom?
- Tudo ótimo! Oi Elaine!
Agora a feiosa.
- Oi Cicinho! Quanto tempo!
- Pois é. Muito trabalho. E por falar em trabalho, eu gostaria de apresentar um amigo meu lá do escritório, o Jorge.
- Oi Jorge!
- Oi Jorge!
Cumprimentavam-me as duas. Eu dava dois beijinhos em cada uma e voltava ao meu lugar de “amigo de Cicinho”. Como me chamariam depois de amigos? Jorginho? Giginho?

Logo começava um papo vazio sobre coisas que só interessam a formandos de vinte e poucos anos. Eu me sentia totalmente fora do contexto. Um garçom passava com uma bandeja cheia de cervejas e as vendia ali mesmo.
- Uma aqui, por favor! Quanto é?
- Sete.
- Nossa! Por uma long neck? Que absurdo!
- É.
Respondia-me o garçom.
- Viram isso? – Eu interrompia a conversa dos três. – Sete reais!
Eles me olhavam com uma cara interrogativa. Sentia-me o alienígena mendigo. Então eu disfarçava:
- Um bom preço, não?

Depois de alguns minutos:
- Jorge, faça companhia a Claudinha, sim? Vou dar uma volta com a Elaine.
Eu não acreditava. Cícero andaria, ou melhor, tentaria andar pela boate com aquele canhão que falava e me deixaria a só com aquele espetáculo de morena? Cícero eu te amo, meu garoto! Eu pensava.

A Claudinha era o tipo de mulher que sofre de solidão por conta da covardia dos homens que a cerca. Vou explicar. Quando uma mulher possui uma beleza muito elevada, ou seja, aquele tipo de coisa que pára tudo o que há em volta, o homem se sente tão inferior – o que normalmente ele já é por natureza – que adota tal beldade como uma visão ou um “estágio” inalcançável. Dessa forma, ninguém se sente apto a conquistá-la. Ela quer alguém e todos eles a querem. Ela espera por uma atitude e eles esperam pela coragem ou por um sinal verde, mas mulheres como a Claudinha nunca dão esse tipo de sinal.

A Claudinha tinha presença. Medidas calculadas com precisão. Cabelos longos negros até o meio das costas. Olhos castanhos claros. Uma boca que... Deixa. A barriga de fora exibia uma jóia no umbigo e um abdômen que delineava um caminho rumo ao sul e sem volta. Tudo nela era digno de uma boa olhada. Dos pés à cabeça, a Claudinha era admirável. E olha quem estava trocando palavras com ela ao pé do ouvido: eu. Corpos sarados olhavam para a cena sem acreditar. Cícero tinha condições plenas de traçar aquela escultura vestida de verde, mas a jogava na minha mão.
- Conhece o Cícero há quanto tempo?
Ela me perguntava.
- Pouco tempo. Ele chegou na empresa há alguns meses. Coitado. Não sabia nada de administração. Recém formado. Tornei-o um dos mais capazes lá da empresa.
- Nossa. Você então deve ser um deles.
- Perfeitamente.
Que cascata!
- Trabalha com administração há muito tempo?
- Há uns treze anos.
- Eu me formo no fim do ano.
- Que bom. Quem sabe não lhe dou uma chance por lá?
- Faria isso?
- Claro! Por que não?
- Ficaria feliz em trabalhar numa empresa tão conceituada como a que trabalha.
- Todos ficariam. O trabalho é puxado, mas você se adapta.
Outra cascata!
- Você é bacana, Jorge.
- Obrigado. Você é bastante simpática. Tem alguém?
- Como?
- Um namorado. Sei lá.
- Não. Hoje em dia está tão difícil encontrar alguém que valha a pena.
- Mas uma mulher linda como você, com esse tipo de problema?
- Assim eu fico sem graça, Jorge.
- Sabe o que acontece? Você procura esse alguém nos lugares errados.
- Como assim?
- Acha mesmo que encontraria alguém que “valha a pena” nesse tumulto de cabeças ocas?
- Acha isso?
- Claro! Quando quiser achar esse alguém, me avise.
- Por quê?
- A levarei nos lugares certos.
- Que papo esquisito, Jorge.
- Não. Esquisito é isso aqui. Cerveja por sete reais, um monte de gente vazia por dentro, gargalhadas sem causa justa. Acha mesmo que é aqui?
- Nunca tinha parado para pensar nesse lugar dessa forma.
- Então passe a pensar nisso, Claudinha. Disse para falar comigo porque eu conheço cada canto dessa cidade e o que eles têm a oferecer de bom.
- Quero experimentar.
- O quê?
- Quero experimentar esses cantos e o que eles têm de bom a oferecer.
- OK!

* * *
Estava a beijar afoitamente cada parte daquela pele morena. Já estávamos em um beco junto a um depósito de lixo de um fast food qualquer. Ela gemia como que num ato sexual. Mas o que era aquele meu jeito de beijá-la? Aquilo era sexo puro!
- Oh! Nossa! O que você tem?
- Tesão – eu dizia – fora do controle.
- Adoro isso! Adoro!
Não era esse tipo de canto que eu queria mostrar para a Claudinha, mas saindo do Lero-Lero a caminho do Bar Chorado, a mulher me puxava pela gravata de maneira violenta e ao mesmo tempo graciosa. Eu só pensava em uma coisa: O Cícero era um cara legal! As latas de lixo exalavam um odor insuportável, mas só fomos nos dar conta disso depois, quando catávamos nossas calças no chão.
- Eu não acredito que fiz isso.
Ela dizia.
- Eu acredito.
- Seu palhaço. Para onde iria me levar?
- Ao Bar Chorado. Gosta de chorinho?
- Isso não é coisa de velho, não?
- Não. Há uma garotada muito boa renovando o chorinho e...
Caminhávamos enquanto contava-lhe quase que a história da música popular nacional.
- Você não me parece um administrador.
- Não?
- Não.
- Pareço com o quê?
- Não sei.
- Você também não parece uma estudante de administração.
- E com o que pareço?
- É... Deixa.
Avistávamos o Bar Chorado. Banhados de suor, nós precisávamos de uma boa gelada. Mas por dois reais e cinqüenta centavos dessa vez.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Gabriel Andrade [meinframmer].

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

PELA CIDADE III - Macacos!

Enfim, adentrávamos em mais uma sexta-feira. Quem trabalhava na sexta-feira? O pessoal do setor de serviços externos sim. Sei porque por anos estive lá. Mas e o resto? Eu, por exemplo, já chegava ao escritório com a original pergunta – acho até que tenha sido eu o seu real criador – “Qual a boa de hoje?”.
- JAZZ BAR!
Gritava Cícero!
- Não! Às sextas-feiras não se pode nem falar por lá! Aquela chata da...
- Mônica Lisboa, Jorge!
- Isso aí. Que cantora nojenta. Quero ir a um lugar à altura da minha vontade de extravasar!
- Então vamos ao Lero-Lero. Quem sabe não arrumamos alguma garota por lá?
- Aquilo está infestado de crianças, Cícero, por favor! “Balada teen” não dá! Não para os nossos trinta anos!
- Opa, me tira dessa, Jorge. O velho aqui é você. Tenho vinte e seis.
- Não me faça lembrar disso, Cícero. Pensei que fosse meu amigo a ponto de dividir esse peso comigo.
- Sai fora! [Risos].

Durante o expediente nada fazíamos além de esperar ansiosamente pelo seu fim. Da grande janela eu avistava todo o Centro da cidade. Fazia sol, mas algumas nuvens cinzas começavam a mostrar suas forças por trás dos prédios. Como a cidade parecia tão mais linda vista do alto. Sem 70% do barulho que ela produzia dava vontade de ficar por ali o resto da vida. Mas a idiota da estagiária, a Aline, estragava o meu prazer levando uma daquelas gigantes folhas de vidro para o lado.
- Vou abrir, está bem? Vou fumar!
Dizia ela.
- Ora, por que não vai ao corredor fumar essa porcaria?
- Jorge!
- O quê?
- Não enche!
Eu me preparava para dar a resposta que aquela fedelha merecia, mas ela se debruçava no parapeito com tanta elegância e sensualidade que minha fala sumia. Eu que não seria o louco de arrancá-la de lá. Pensando bem, aquela zoeira que vinha lá de fora podia ser tolerada facilmente. A visão do traseiro de Aline me deixava surdo também. Ela tragava, soprava e olhava para mim com um sorriso que dizia “eu sei que você gosta, seu babaca”. Eu deixava.

Cinco horas.
- Vamos, Cícero!
- Calma. Deixe-me desligar essa carroça!
- Vamos!
- Já vou!
Eu estava desde nove horas esperando pelas cinco e Cícero esperando por uma autorização de um sistema inútil para desligar o seu computador. Eu enfiava o dedo no estabilizador e acabava com sua espera.
- Ora, Jorge! Sabe que não é bom desligá-lo assim!
- Desligou, não desligou? Agora vamos.
Tomávamos o elevador Cícero e eu.
- Já se decidiu para onde vamos?
Perguntava Cícero.
- Sim. Para um bar próximo ao teatro. O Anexo.
- Sei qual é. A bebida é cara por lá.
- E quem esquenta com isso?
- Eu! Estou juntando dinheiro, Jorge.
- Para quê? Vai casar?
- (...)
- Vai casar, homem?
- Vou!
- Meus pêsames! Mas quem é a azarenta?
- Por que não vai à merda?
- Estou brincando, Cícero. Quem será a sortuda?
- Minha namorada, ora! Não a conhece.
- Sei. E você querendo uma noite no Lero-Lero. Já começaste bem!
- Tenho que aproveitar a vida de solteiro, Jorge.
- Está certo.

Saíamos do prédio e:
- PUTA QUE O PARIU, JORGE! QUE MERDA DE CHUVA É ESSA?
- Culpa de sua demora com o computador.
- Ah! Essa foi ótima.
- Eu não vi sequer uma gota quando saímos da sala. Somente as nuvens.
- Pois é. Tem alguma outra idéia agora?
- Não. Mas o Anexo é coberto, Cícero.
- Eu sei, mas como chegaremos lá sem parecer uma cueca molhada na corda?
- De carro.
- Que carro? Nem eu nem você temos carro! Um táxi, você quer dizer?
- Não. O carro da empresa. Ele fica comigo de segunda à sexta para eventualidades.
- Disse bem. Segunda à SEXTA!
- E que dia é hoje, meu caro?
- Sexta. Mas pelo que sei não tens o direito de levar o carro para casa na sexta. Estou certo?
- Certíssimo! Mas não o levarei para casa. Levarei-o para o Anexo!
- Como você é brilhante, Jorge! Eu não vou entrar nessa. Não mesmo.
- Quer ser a cueca molhada do bar?
- Não! Irei de táxi.
- Medroso. Irei com você.
- Faz bem, Jorge. Faz bem.

A chuva parava logo que o táxi dava partida. Eu ficava com cara de otário e Cícero... Bem, ele já tinha cara de otário normalmente. Poderíamos ter ido a pé mesmo. Fora uma chuva dessas como no verão.
- Veja você, a chuva se foi.
- Eu posso perceber, Jorge. Não sou cego.
- OK. Pague o táxi e vamos beber.
- Opa! Eu? Vamos rachar, não?
- Claro, claro.
Pagávamos o táxi e seguíamos até uma mesa.
- Aquela mesa ali, Jorge.
- Não. Não venho aqui para ficar no meio de um bando de homens. Ficaremos nesta aqui. Parece-me mais “florida”.
- Como quiser, Jorge. Só preciso de uma cerveja. Estou seco.
- Também estou. DUAS AQUI, POR FAVOR!

Cícero e eu aparentemente éramos homens bastante diferentes, mas quando se tratava de observar o balanço da cidade éramos como irmãos. Eu sabia onde as coisas estavam acontecendo, tinha essa visão. Cícero, embora estivesse próximo à forca do matrimônio, também sabia dar os seus pulos certeiros. Cícero trabalhava na parte administrativa daquela empresa há mais tempo que eu. Ele se formara numa boa universidade e caiu ali sem muito vagar. Eu marchei bastante antes de ocupar uma cadeira daquela. Eu nunca estudara administração na minha vida, mas de tanto “quebrar galhos” para os graduados ali atuantes, adquiri o conceito necessário para tal função. Fácil. Tudo o que eu tinha de fazer era avaliar os custos de uma obra e dar um parecer à gerência. Sendo que eu ainda dividia esse trabalho com o Cícero, a Aline e um senhor que ficava calado no canto da sala. Não lembro o nome dele.

- Jorge.
- Diga, garoto.
- Você devia andar muito quando fazia parte do setor de entregas, não?
- O quanto você imaginar ainda será pouco.
- Conhece cada canto dessa cidade, não é mesmo?
- Sim. Mas com uma diferença.
- Qual.
- Os melhores cantos da cidade eu só conhecia pelo lado de fora.
- Como assim?
- Acha que aquele salário de entregador me dava o luxo de poder fazer o que estamos fazendo aqui? Até dava. Uma vez por mês, sei lá.
- Não é um administrador formado?
- Não. Sabe disso.
- E como conseguiu o cargo atual?
- Posso lhe assegurar que não foi pelo meu rostinho lindo, meu caro.
- Ô...
- Macacos seriam capazes de levar aquela repartição nas costas.
- Assim me ofende, Jorge.
- Mas é sério. Tudo o que a Aline faz é empinar aquele bunda ao fumar na janela. Uma macaca não seria atraente o bastante para tirar a atenção de nós dois. Correto?
- Mas seríamos macacos também, não?
- É... Deixa.
- E outra. Macacos não sabem administrar, Jorge.
- Você é quem pensa. Acha que eles passam fome? Eles racionam bananas, meu caro Cícero. Ainda que nós, seres “pensantes”, acabemos com todas as bananeiras do planeta, os macacos sobreviverão!
- Que profundo. Pensando bem...
- Caia na real. A empresa precisa de mão-de-obra para produzir. Nós precisamos daquele emprego para beber, comer, pegar umas mulheres, você sabe. É simples assim.
- Mas você não respondeu a minha pergunta, Jorge. Como conseguiu chegar até lá?
- Ih! Olhe quem acaba de chegar! Não creio! Catarina!
Eu me assustava num bom momento.
- É mesmo! E com outro cara. Pelo visto gosta dos velhotes. Naquele dia foi um careca, agora um grisalho pançudo.
- Não quero que ela me veja, Cícero.
- De novo? Deixe ela te ver, ora.
- JORGE!
Ela me avistava, pedia licença ao grisalho pançudo e vinha em minha direção.
- Não saia daqui, Cícero. Não me deixe sozinha com essa hipnotizadora.
- OK.

- Andamos nos vendo demais ultimamente, não?
Dizia Catarina com um sorriso que... Deixa.
- Pois é. Essa cidade é um ovo mesmo. Esse é meu amigo, o Cícero.
- Vem sempre aqui, Jorge?
Ela nem ligara para Cícero. Nem mesmo olhara para ele.
- Sempre não. De vez em quando. E você?
- Primeira vez. Parece agradável.
- É sim. Vai gostar daqui.
- E então? Não vai me perguntar?
- Perguntar o quê?
- Sobre o homem que me acompanha.
- Não. Não vou.
- Por que não?
- Porque não quero saber.
- Mas se eu lhe disser você vai gostar de saber.
- Por quê? Quem ele é?
- Curioso!
- (!!!) Cícero. Vamos embora!
- Mas já?
- Apenas vamos, Cícero.
- OK.
Dizia Cícero sem saber se olhava para a minha cara de babaca ou para o decote que mostrara um par de seios cheio de pintinhas. Eu também o olhava controlando as mãos.

- Jorge!
Chamava-me Cícero pelo caminho.
- Diga.
- Macacos podem ser hipnotizados?
- Não enche!

[Continua]

* * *
Foto da Capa por: Isabel Cruz [wind].