quinta-feira, 28 de agosto de 2008

SEM QUERER - Parte 2 (Final)

No dia seguinte, eu saía mais cedo para não me deparar com o namorado da menina que havia me beijado no dia anterior. Acordava puto da vida em ter de encarar as minhas covardias. Primeiro, por não ter coragem de enfrentar aquele babaca. E segundo, por não ter pulso e nem capacidade de lutar por mais beijos vindos daquela boca maravilhosa. Eu tinha que ser manipulado pelos meus chefes mesmo. Não tinha forças nem para resolver as minhas questões pessoais, imagine as profissionais, que eu detestava!

Entrava no ônibus e começava a observar que o fluxo de pessoas era o mesmo. A sincronia dos corpos e do ônibus era a mesma, porém, tratava-se de outros corpos, outros horários. Que bom. Pelo menos aquele casal de malucos eu não veria mais. Leso engano. No “ponto da menina”, quem eu vejo? Ela mesma. A boca mais saborosa de todas. Não entendia. Perguntava-me se ela não queria me acertar novamente, prevendo o meu plano de sair mais cedo de casa. Mas eu logo concluía que isso era ridículo. Ela não trocaria a presença do namorado por umas tapas nessa minha cara feia. Ela subia no lotação com o olhar mais triste. Olhar esse que se encontrava com o meu. Mais uma vez ela se sentava ao meu lado.
- Eu gostaria de lhe pedir desculpas por ontem, eu...
Eu iniciava um diálogo. Seria melhor.
- Tudo bem. Não faz mais diferença.
- Então entende que foi você quem me beijou?
- Não faz mais diferença. OK?
Ela parecia fria.
- Tudo bem. Assunto encerrado, então?
- Mais do que encerrado. Na verdade tudo está encerrado.
- Como assim?
- Eu nem cheguei a falar com ele sobre o nosso beijo.
- Quem bom, então.
- Nós não estamos mais juntos.
- Nossa. Que pena.
(Yeah!)
- Pois é. Eu que lhe devo pedir desculpas pela tapa e pelo mal-entendido.
As frases saíam desanimadas de sua boca.
- Está tudo bem.
- Qual o seu nome?
- Eduardo. E o seu?
- Prazer. Gabriela.
- O prazer é meu, Gabriela. É a primeira em vez que me apresento a uma mulher depois de já a ter beijado. Entende? A ordem foi inversa. (Mais sem graça impossível)
Gabriela olhava fixamente em meus olhos e após dois exatos segundos de silêncio, soltava uma gargalhada que merecia ser filmada.
- É a primeira vez que me ocorre também, Eduardo.

Eu na verdade estava muito curioso quanto o que realmente havia ocorrido na noite anterior para que ela me aparecesse triste daquele jeito e com o seu relacionamento findado.
- Não quer me contar o que aconteceu com você e o...
- Felipe.
- Isso. Entre você e o Felipe.
Ela então começava a me contar do momento em que telefonara para Felipe:
- Amor?
- Oi Gabriela, tudo bem?
- Não. Não está tudo bem!
- Por que?
- Não o vi no ônibus pela manhã, Felipe. O que houve?
- Pois é Gabriela, eu tive um compromisso meio urgente.
- Compromisso? Meio urgente? Àquela hora da manhã?
- Sim, mas não dá para lhe explicar agora, OK? Eu passarei na sua casa hoje à noite.
- Não vai nem querer saber como foi o meu dia, Felipe?
- Gabi, por favor, eu estou um pouco ocupado agora. Mais tarde, na sua casa, a gente conversa. Pode ser?
- Pode. Mas é que um cara me beijou hoje cedo, no ônibus. Mas depois a gente conversa, não é?
Alfinetava Gabriela.
- OK. Depois você me conta essa história direito. Beijos.
Felipe desligava sem demonstrar sequer uma preocupação mínima em relação ao beijo citado por Gabriela, que por sua vez ficava sem ação diante de tal falta de atitude.

Anoitecia e Gabriela não conseguia esconder a raiva que estava preste a despejar sobre Felipe. Se havia uma coisa que tirava Gabriela do sério, era o pouco caso demonstrado a algo que a atingisse. A campainha enfim soava. Era Felipe.
- Entra.
- Desculpe a demora, Gabi. É que...
- Vamos, Felipe. Conte-me que raio de compromisso foi esse às 7:15h da manhã!
- Sente-se, Gabi. Eu explicarei, mas precisa me prometer que não cometerá nenhuma loucura. OK?
- Como assim?
- Eu explico. Na madrugada de ontem, uma pessoa me ligou alegando estar esperando um filho meu e...
- COMO?
- Calma.
- COMO CALMA? QUEM É ESSA PESSOA, FELIPE?
- Primeiro, deixe-me contar a história, por favor.
- ESTÁ BEM! CONTE LOGO!
- Então, para sanar qualquer dúvida, marquei com essa pessoa de nos encontrarmos em um laboratório no Centro da cidade, logo pela manhã, para fazermos um exame de sangue e pegarmos o resultado pela tarde.
- DÚVIDA? VOCÊ TINHA DÚVIDA SE HAVIA ENGRAVIDADO ESSA VAGABUNDA?
- Calma Gabriela.
- FALA LOGO! DEU POSITIVO OU NEGATIVO?
- Deu positivo, Gabi.
- PUTA QUE PARIU! QUEM É ESSA VAGABUNDA?
- A Kelly.
- KELLY? KELLY MINHA PRIMA NÃO, NÉ?
- Sim. Ela mesma.
O mundo de Gabriela caía de uma vez só.
- MAIS QUE FILHOS DE UMA PUTA! VOCÊS DOIS!
- Calma Gabi. É você quem eu amo!
- TIRA AS MÃOS DE MIM! SUMA DAQUI. EU NÃO QUERO VER A SUA CARA!
- Vamos conversar, Gabi...
Gabriela abria a porta e sem dar uma única palavra, esperava até que o último passo de Felipe passasse rumo à rua.

Gabriela fechava a porta e se desmanchava em lágrimas. Aproveitava a ausência dos pais para chorar à vontade durante horas no mesmo lugar onde caía de joelhos, logo após Felipe sair. Não conseguia entender o motivo pelo qual Felipe a traía com a própria prima. Kelly era um pouco mais velha que Gabriela, uns dois anos talvez. Linda como Gabriela, porém, levava vantagem nos quesitos experiência e sexy-appeal. Pele alva, cabelos longos, medidas perfeitas e um jeito de se vestir que passeava entre o atraente e o vulgar. Mas na hora de falar, Kelly era uma anta em forma de deusa. A cada cinco palavras, pelo menos uma seria pronunciada de forma inadequada. Colocando Gabriela e Kelly lado a lado, o intelecto da primeira falaria mais alto e desbancaria as outras qualidades de Kelly, na minha opinião, pelo menos. Gabriela esconderia a história triste do casal para os pais. Pelo menos até Felipe se pronunciar diante de toda a família sobre a gravidez de Kelly. E conhecendo os pais de Kelly, poderia se esperar também o anúncio do casamento, por bem ou por mal.

Naquele dia, durante o caminho, conversávamos muito. Gabriela me contava toda a história sobre Felipe e Kelly. Eu também acabava contando o motivo de estar mais cedo no lotação. Era nítido o sentimento de raiva alojado em seu peito por conta da situação, mas também era bastante visível o bem que meus ouvidos e minhas falas a causavam.
- Gostei de você, Eduardo.
- Eu também gostei de você, Gabriela.
- E amanhã? Pegará o ônibus mais cedo também?
- Acho que não. Pelo que me disse, não corro perigo com o Felipe.
- Mas eu corro.
- Perigo? De quê?
- De vê-lo novamente. Eu não quero. Estou muito decepcionada. Vê-lo só levará meu astral para baixo.
- Então, não nos veremos por um tempo, não é?
- A menos que tome o lotação mais cedo também.
- É que acordar nesse horário para mim é ruim demais. Dê-me um bom motivo para isso, menina.
- Dou. Agora.
Gabriela me pegava pela nuca e repetia o beijo que me desconsertava a mente.
- É um bom motivo, menina. Amanhã, às 6:45h, tomarei esse ônibus novamente.
- Oba!
- Mas caso não me encontre por aqui, não vá dormir. OK?
- Por que?
- Tu entraste na minha vida tão sem querer que já morro de medo que lhe beijem da mesma maneira.
- Seu bobo. Esteja aqui e só beijarei você. E querendo.
Ela parecia saber o poder contido nos movimentos daqueles seus lábios perfeitos. Mas não sabia. Conquistava-me há tempos. Sem querer.

***
Colaboração: Fabiana Romeo
Foto da Capa: Clarissa Marinho

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

SEM QUERER

Acordar cedo para ir trabalhar é um ato mecânico do qual me irrita bastante. Faz-me sentir um cuco de relógio. As horas parecem existir para nos ajudar, mas na verdade foram inventadas apenas para nos controlar. Enfim, nunca gostei de acordar às 6:30h da manhã, porém, depois de um café e de um bom CD, que já fica preparado no aparelho de som diariamente, meu astral volta ao normal. Ou melhor, meu astral fica no nível exato para que eu consiga executar as chatíssimas tarefas do dia-a-dia.

O momento mais bacana dessa primeira parte do dia era quando tomava o lotação. Sempre carregava um fone de ouvido para ir curtindo em contagem regressiva os meus minutos matinais de liberdade. Já que ao adentrar-me na empresa, não mais era dono de minha vida, pelo menos até às 17h. Depois do expediente sim, voltava a ser Eduardo. Mas voltando a falar da hora do lotação, gostava de observar as pessoas que também o tomavam. Sempre nos mesmos horários. O veículo fazia o seu percurso sugando cada corpo em seu devido ponto como numa dança. Sincronia era a palavra. Os homens e mulheres que trabalhavam, as crianças que comiam lanches no colégio, as adolescentes que se maquiavam nas salas de aula, os idosos que zanzavam pela cidade, todos eles tinham horário certo para estar no ponto.

No meio de toda essa gente, havia um casal de jovens que muito me agradava observar. O rapaz, de estatura média, olhos verdes, corpo atlético e aparentando uns 23 anos, tomava o ônibus no mesmo ponto que eu. Alguns pontos à frente, sua namorada, como num ato combinado, tomava também o veículo. Uma jovem linda, branca, cabelos curtos na altura do pescoço, aparentando uns 20 anos, no máximo. Cheia de livros e cadernos, ela procurava pelo namorado pelos assentos. Quando o achava:
- Meu amor!
A menina lhe dava um beijo ainda antes de se acomodar. O rapaz parecia sempre que a colocaria em seu colo, mas seria demais da parte dele, no meio de tanta gente.
- Sentiu saudades?
Ela perguntava como se não o visse há tempos.
- Claro, meu amor.
E se beijavam mais. Era sempre assim. Eu achava maravilhoso. O amor daqueles jovens transbordava de seus olhos e inundava o ônibus na altura de nossas canelas.

O casal seguia trocando carícias até quase o Centro da cidade. Ela saltava antes dele, que seguia até o ponto final. Ele trabalhava e ela estudava. Isso era claro para qualquer um. Na hora de se despedir era que o amor dos dois nos afogava de vez.
- Você me liga?
Perguntava a menina.
- Claro que ligo, meu amor!
- Vai ligar mesmo?
- Claro. Alguma vez não liguei?
- Está bem. Estarei esperando.
- Pode estar certa que ligarei assim que sair para o almoço.
- Você vai lá em casa hoje?
- Claro que vou!
E assim seguia como num jogo de perguntas e respostas até o ponto em frente à faculdade da menina.

Ao deixá-la, percebia-se no semblante do rapaz a sinceridade daquele sentimento. O homem quando está amando ele fica com uma cara de babaca que entrega o seu estado a quilômetros de distância. Não tinha como negar. Aquele ali estava perdido de vez. Estava com os dois pés e as duas mãos presos ao coração da menina, que por sua vez, pelo que se via, se encontrava na mesma situação.

Certo dia, não avistava o rapaz no ponto do ônibus. Tomava o lotação já tentando imaginar o que teria acontecido. Nunca faltara. O costume de vê-los era tamanha que parecia que faziam parte de minha vida. Ainda olhei para trás enquanto o veículo saía na intenção de avistá-lo atrasado, mas não o vi. Logo depois, me deparo com a menina que trazia no rosto aquele sorriso de todos os dias. Era dessa forma que ela tomava o ônibus, sorrindo. Dava-me uma vontade de avisá-la que seu namorado não estava dessa vez, mas seria invasão demais de minha parte.

Ela subia os degraus à procura do rapaz e após passar na roleta constatava que a manhã seria sem os beijos. O sorriso dava lentamente lugar a um bico que a deixava talvez ainda mais linda. É incrível imaginar como certas mulheres não precisam controlar seus músculos faciais para nos encantar, pois chorando, com raiva, sorrindo, fazendo careta, continuam belas. Sem chão, a menina procurava um lugar para sentar-se. O assento ao meu lado era o escolhido.

Sem a boca e o carinho do namorado, nada restava àquela menina a não ser cochilar um pouco até que chegasse seu ponto. Abraçava a mochila, recostava o queixo sobre a mesma, fechava os olhos e em segundos parecia estar mergulhada no mais profundo dos sonos. Eu permanecia olhando pela janela aquele fluxo sincronizado dos usuários do lotação, mas aproveitava-me do sono daquela beldade para apreciar-lhe as pernas. Eu me odiava por isso. Sentia-me um verme. Mas por que eu tinha sempre que pensar feito uma mulher, criticando os meus próprios instintos masculinos? Enfim, mesmo assim eu olhava com desejo.

Aproximávamos do ponto da menina e ela continuava a dormir. Via-me na obrigação de acordá-la. Era o mínimo. Então lhe balançava os ombros.
- Menina! Menina!
Ainda adormecida. Eu repetia.
- Menina! Menina!
Nada de despertar. Então tinha a idéia de lhe acariciar o rosto, sem malícia, apenas a fim de que a acordasse.
- Menina. Acorda. Seu ponto está chegando.
Ela, ainda de olhos fechados, formava um sorriso e dizia:
- Meu amor...
- Não é seu namorado. Acorda.
- Vem cá...
A menina me puxava pela nuca e me roubava um beijo sem a chance de qualquer reação. Eu não sabia o que fazer. Beijava-a com imenso medo do que aconteceria ao abrir os olhos.

- QUEM É VOCÊ?
- Eu...
- SEU TARADO!
Ela me acertava o rosto com uma tapa que ecoava por todo o ônibus.
- Mas eu só quis te acordar. Foi você quem me beijou, sua louca!
- VOCÊ VAI VER SÓ. EU VOU FALAR COM MEU NAMORADO. ELE VAI ACERTAR A SUA CARA.
- Mas você já acertou! Não está satisfeita?
- SEU TARADO.
Ela descia irritadíssima.

Depois daquele dia, eu não mais podia dar chances para o azar. A mão da menina já se mostrava pesada, e eu não estava disposto a experimentar a do rapaz. O que eu já odiava fazer passava a ser ainda pior, pois passava então a acordar trinta minutos mais cedo para assim tomar o lotação das 6:45h e não mais me encontrar com aquele casal. Tudo por causa de uma das melhores bocas que já havia beijado. Contraditório, não?

***
Foto da capa: Clarissa Marinho.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

ANZHELA KUTUZOVA - Uma Criança no Cerco a Leningrado

Os dias mais terríveis de minha infância em Leningrado, na antiga União Soviética, foram entre setembro de 1941 e janeiro de 1944, quando eu ainda criança presenciei barbaridades enquanto os alemães invadiam nosso país e realizavam um verdadeiro cerco em nossa cidade. Durante esse período, um milhão de pessoas entre civis e militares morreram de fome, frio ou por doenças.

Lembro de quase sempre não ter nada para comer e de presenciar a morte de pessoas diariamente, o que fazia até mesmo nós crianças sentirmos na pele a gravidade da situação. Adolf Hitler e sua Operação Barbarossa foram cruéis durante os 900 dias em que o cerco se manteve. Quase nada chegava à Leningrado, pois os alemães capturaram os principais terminais rodoviários, o que nos deixava somente a escolha de comer pães à base de celulose ou gelatina preparada a partir de tripas de animais mortos.

Eu ouvia muito os adultos falarem em tal “rodovia da vida”, que somente mais tarde eu viria entender que se tratava do lago Ladoga que, por conta do frio intenso, congelava e servia de estrada para milhares de pessoas a fim de fuga ou de busca de suprimentos. Mas muitos ali também morriam por ataques da força aérea alemã. Meus pais nunca se arriscavam. Não na “rodovia da vida”, mas chegaram a invadir cemitérios atrás de carne humana fresca. A fome era devastadora, a ponto de movimentar um tráfico ilegal de cadáveres que manteve uma boa parte da população viva por um tempo, inclusive minha família.
- Anzhela!
Gritava meu pai.
- Tome. Divida com seu irmão.
Meu pai entregava-me uma tigela de carne sem dizer o que era.
- É carde de quê, papai?
- Anzhela, coma. Apenas coma.
Só mais tarde, ainda em cerco, tive o desprazer de imaginar que por muitos dias almocei e ainda iria almoçar os corpos de minhas amigas que a fome faziam sumir da vizinhança. A morte se tornava presente na cidade desde o primeiro ataque sofrido, em setembro de 1941. Os rostos das crianças de Leningrado possuíam o vazio de seus olhares famintos e temerosos. Poucos brincavam.

Depois de um tempo, guardas passaram a ocupar os arredores dos cemitérios da cidade a fim de conter o canibalismo de um povo desmoralizado com aquela guerra. A luta pela sobrevivência convivia lado a lado com a ansiedade de notícias favoráveis ao exército soviético. A cada inverno que se passava, sabíamos das inúmeras baixas do exército alemão, que não havia se preparado para a nossa estação mais fria e principalmente para a lama que impediam cada vez mais o seu avanço.

Meu pai e minha mãe foram recrutados para defender a cidade contra os invasores. Até minha avó teria participado da grande mobilização que Leningrado havia iniciado. Eu os assistia trabalharem sem parar. Eles pareciam incentivados com as palavras da jornalista Olga Berggolts, que através de seus poemas, pelo rádio, encorajava os moradores da cidade para que resistissem à miséria e à depressão. Meu irmão, Aleksey, mais novo que eu, não agüentaria até o fim do cerco. Não o devoramos, mas lembro de meu pai negocia-lo em outro cadáver. Assim, a refeição seria um pouco menos desagradável.

Tínhamos motivos de sobra para sermos crianças sérias e introspectivas. Uma família de vizinhos nossos não conseguiu se adaptar àqueles 900 dias e morreram todos. A filha de deles, Valeryia, se afastava quando me via com minha tigela de visual não muito agradável. Eu chorava a cada mastigada, porém, os rostos fechados de meus pais não me davam coragem para questionar o tipo de vida que levávamos. Mas algo dentro de mim me avisava que seria passageiro. Eu só não esperava que aquele inferno durasse tanto.

Em 1943, soubemos de uma ofensiva significativa por parte do exército soviético aos alemães, causando enormes baixas nazistas. Eu particularmente não entendia muito bem, mas o que diziam é que, após esse ataque, os comandantes das frentes alemães pediam a Hitler permissão para retirarem suas tropas, mas o ditador negava.
- Papai! Onde está mamãe e vovó?
- Não resistiram à fome, Anzhela.
Dizia meu pai com olhos cheios de água e repetindo alucinadamente “quando isso vai acabar meu Deus?”.

A essa altura, papai era um amontoado de ossos ambulantes. Eu já me acostumava com as notícias de mortes vizinhas como que no ato da respiração. Sabe-se hoje que morriam em média três mil pessoas por dia. Eu morria de medo, mesmo estando na maioria do tempo inconsciente por causa dos bombardeios contínuos, da fome e do frio.

Em janeiro de 1944, outra ofensiva contra os nazistas, que já se encontravam esgotados pela guerra, e mais ainda pelo frio e pela resistência do povo de Leningrado. Era o fim do cerco. O exército de nosso país acabava de vez com os alemães. Os alto-falantes da cidade anunciavam o fim do cerco. Os que ainda tinham forças, depois de quase três anos de fome, luta e sangue, comemoravam aquele momento histórico.
- Anzhela. Acabou! Acabou!
Gritava meu pai gastando o pouco de força que ainda restava em seu corpo magérrimo.
- Iremos comer comida de verdade, a partir de agora, papai?
- Sim filha, sim.
Com um enorme ferimento nos fracos braços, papai me abraçava e derramava em cada lágrima o orgulho de toda a família Kutuzova, mesmo restando apenas eu e ele.

Hoje, com 73 anos, sinto-me um pouco mal em ter me alimentado da carne de meus irmãos soviéticos, mas sinto em meu sangue o orgulho daqueles que, de algum lugar, avistaram nossa força contra o exército alemão. Eu me sentiria uma alma honrada se soubesse que minha carne havia servido de alimento para a resistência do povo de Leningrado. Dessa forma, os mortos naquele inferno permanecem vivos em nossa vitória.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A MULHER QUE SEGUIA MEU MARIDO

Tatiana nem sabia direito o que realmente tinha acontecido. Recebeu a ligação vinda do hospital que solicitava sua presença, pois seu marido, Marcos, havia sofrido um grave acidente de automóvel. Para ela isso era praticamente impossível. Marcos dirigia muito bem, era sua profissão. Marcos dirigia para uma grande empresa de transportes e era tido como um funcionário exemplar. Meio sem entender, Tatiana deixou a filha de quatro anos, Clarissa, com D. Sueli, sua vizinha mais próxima, e tomou um táxi rumo ao hospital.

Pelo caminho, Tatiana pensava o quanto o amava e o quanto ficaria frágil se algo de ruim tivesse acontecido com seu marido. Junto com Clarissa, Marcos era o grande amor da vida dela. Não saberia viver um dia sequer sem ele. “Homem honesto, meu Deus. Trabalhador, carinhoso, só faz o bem. Não pode morrer, meu Pai”.

Chegando lá, em prantos, procurou notícias de seu marido na recepção.
- O nome dele é Marcos Vinícius de Alencar Neto. Sofreu acidente de carro.
- Deixe-me ver.
Respondeu calmamente a recepcionista, contrastando com a aflição de Tatiana.
- Sim. Ele está aqui sim. Vou chamar o Dr. Haroldo.
- Mas eu quero ver meu marido, não posso?
- Senhora, acalme-se. O Dr. Haroldo já vai lhe atender.
Tatiana pensou no pior e desabou em lágrimas. Um filme terrível passava pela sua cabeça. “Não pode ser, meu Deus”, pensava Tatiana.
- Senhora. O Dr. Haroldo a espera em sua sala. A primeira porta à esquerda, por favor.
Chamou a recepcionista.
Sem responder, Tatiana segue correndo até a sala.
- Como está o meu marido, doutor? Como está ele? Responde!
- Calma. Sente-se. Quer um copo d’água?
- Quero saber como está meu marido, merda!
- Tudo bem.
O Dr. Haroldo se levanta, fecha a porta de sua sala, que Tatiana sequer teve a calma de fechar e retorna à sua mesa. Tudo sob o olhar curioso de Tatiana.
- Pois bem, Dona... Dona...
- Tatiana, doutor.
- D. Tatiana! Pois bem, D. Tatiana. Seu marido não resistiu aos ferimentos e veio a falecer ainda pouco. Vi o telefone da senhora no bolso da blusa dele e pedi imediatamente que o hospital a avisasse. Eu sinto muito, D. Tatiana. Ele não resistiu até a sua chegada. Sinto muito.
- Mas como foi que isso aconteceu? Como foi o acidente? Onde foi isso?
Totalmente descontrolada, emenda uma pergunta atrás da outra.
- Olha só. Quem o trouxe foi uma moça chamada Kátia, a qual pensei que fosse esposa da vítima, pois me pediu que cuidasse bem dele e que o amava muito. Segundo ela, o acidente foi na Avenida Rio Branco, no centro da cidade. Ele teria colidido de frente a um caminhão. É tudo o que sei, D. Tatiana.

Tatiana, cismada com a tal da Kátia, enterrou o marido no dia seguinte sem saber ao certo o que tinha ocorrido. Sabia que tinha sido um acidente de automóvel no centro da cidade, só. Ainda estava muito triste e inconformada com o acontecido.

Alguns dias se passaram até que Tatiana se mexesse por informações mais concretas sobre a misteriosa mulher. A empresa onde Marcos trabalhava já havia lhe passado que realmente o acidente ocorreu, confirmando o local e tudo mais. O que a empresa não soube explicar era quem tinha o tirado do carro e o levado ao hospital, mas isso, segundo o Dr. Haroldo, tinha ficado por conta da tal da Kátia e foi atrás dela que Tatiana foi correr.

Esteve no local do acidente. Bem em frente ao ponto onde Marcos havia colidido com o caminhão havia um bar. Tatiana foi até o bar e fez algumas perguntas ao balconista.
- Bom dia. O senhor estava aqui no dia do acidente que ocorreu aqui na frente?
- Sim senhora. Por que?
- Eu sou a viúva da vítima do carro.
- Sinto muito.
- Tudo bem. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
- Pois não.
- Você viu quem o tirou do carro para levá-lo ao hospital?
- Vi. Foi uma moça que estava atrás do carro dele.
- O que você sabe sobre ela?
- Bem. Só sei que era uma moça vistosa e que parecia conhecer ele, pois ela gritou o nome dele quando saiu do carro desesperada para socorrê-lo.

Tatiana concluiu o que Dr. Haroldo havia adiantado, Kátia conhecia Marcos.
- Qual era o carro dela?
- Um Honda Civic cor de prata, se não me engano.
Um estalo fez Tatiana lembrar de sua irmã, Leila, que possui o carro do mesmo modelo e cor.
- Como ela era fisicamente, senhor?
- Olha, posso lhe dizer que ela parecia até um pouco com a senhora, morena, cabelos negros. Só um pouco mais alta que você.

“Não pode ser”. Tudo indicava à sua irmã. Mas o que Leila estaria fazendo ali? E por que não havia lhe avisado? Por que não permaneceu no hospital? Por que diria ao Dr. Haroldo que o amava muito? E por que daria um nome falso? Tatiana não queria acreditar que se tratava de uma amante, muito menos sua própria irmã.

*
Tatiana lembrou que no dia do enterro de Marcos, Leila se manteve longe dela todo o tempo. Na verdade Tatiana e Leila nunca foram muito unidas. Leila, irmã mais velha e melhor sucedida que a mais nova, se distanciou do restante da família logo assim que sua vida começou a prosperar devido aos intermináveis compromissos como executiva. As irmãs se falavam com pouca freqüência.

Como era sábado, saiu do bar e foi direto para a casa de Leila. Com aquele céu cinzento Leila só poderia estar em casa. Leila a atende com um rosto assustado.
- Tatiana. Você por aqui? Entre. Como você está, minha irmã?
Estranhando todo aquele inédito tato de Leila, respondeu:
- Estou indo, Leila, indo.
- Bebe alguma coisa?
- Não. Obrigada.
- Olha. Eu sinto muito não ter te dado tanta atenção lá no velório do Marcos, eu não sabia o que falar. Não sei confortar as pessoas em momentos tão tristes. Desculpe-me.
- Tudo bem, Leila. Não vim aqui para falar de velório, na verdade eu vim para falar sobre o dia do acidente. Você estava no local? Foi você quem o levou ao hospital? Diga a verdade, Leila, por favor.
- De onde tirou essa idéia, Tatiana? Eu só soube da morte do Marcos quando você me ligou, no dia seguinte pela manhã, não foi?
- (Gritando) O cara do bar em frente ao local do acidente disse que lhe viu. Viu você o levando para o hospital, sua mentirosa. O que é? Vocês tinham um caso? É isso?
- Tatiana, você está maluca? Que cara do bar? Como assim? Não estou te entendendo. Glorinha! Traga um copo de água com açúcar para minha irmã, por favor.
- Não quero merda de água nenhuma. Só quero a verdade, Leila. Foi você ou não foi?
- Tatiana. Na noite do acidente eu estava voltando de São Paulo. Que história mais maluca, irmã.

Tatiana, sem saber por que, acabou acreditando em Leila, mas ao mesmo tempo se viu ainda mais confusa sobre a tal Kátia. Contou todo o ocorrido à irmã e pediu ajuda.
- Me diga se não é estranho, Leila.
- Realmente. Do jeito que esse rapaz do bar falou, parecia mesmo se tratar de minha pessoa, mas dou minha palavra, não era eu, não havia caso algum entre eu e Marcos. Se quiser, vamos até esse rapaz e confirmamos.
- Não. Não precisa, Leila. Preciso confiar em você.
- OK. Quero te ajudar nisso, mas não sei como. O seu marido não tinha nenhum amigo o qual você possa fazer algumas perguntas? Alguém que Marcos fosse confidente.
- Tinha. O Antônio. Mas você conhece os homens, ainda mais amigos. Não vai me contar se Marcos tinha ou não uma amante.
- Quem sabe? Ele já não está mais entre nós, Tatiana. Aliás, para que se preocupar tanto com isso agora, Tatiana?
Tatiana pensou um pouco.
- Eu quero saber. Quero saber se vou dizer a minha filha que seu pai era um exemplo ou não ao longo do crescimento dela. Amanhã, procuro o Antônio.

Tatiana sabia onde Antônio morava. Foi até lá no dia seguinte e foi atendido pelo próprio.
- Boa tarde, Antônio.
- Oi! A que devo a honra de sua visita, Tatiana?
Tatiana sorriu meio sem querer.
- Preciso lhe fazer umas perguntas.
- Claro. Entre.
Tatiana mais uma vez repetiu toda a história com toda a riqueza de detalhes possíveis.
- E então, Antônio, me diga, o Marcos tinha ou não uma amante?
- Mas que pergunta difícil, Tatiana.
- Difícil por que?
- Porque eu não sei, oras.
- Vocês não eram amigos? Não trabalhavam juntos?
- Sim, mas e daí? Ele nunca me contou de amante nenhuma.
- Kátia. Chegou a ouvir Marcos falar sobre alguma Kátia?
- Sim! Bem, a Kátia que conhecíamos era a filha do patrão, o Cláudio.
- Como ela era?
- Morena, alta, cabelo preto. Uma moça muito bonita por sinal.
- Sabe qual o carro dela?
- Ela deve ter uns três carros diferentes.
- Quais?
- Um Fit, um Civic e um...
- Qual a cor do Civic?
- Prata. Por que?
- Obrigada. Já me ajudou muito.
- Não me diga que acha que Marcos tinha um caso com a Kátia.
- Isso é o que vou saber agora. Tem o endereço dela?
- Sim. Ela mora com o pai ainda.

Tatiana seguiu no mesmo dia, domingo, em direção à casa de Cláudio em busca de Kátia. Chegando lá, viu que toda a família se divertia em volta de uma enorme piscina ao som de um samba enredo do carnaval do ano seguinte. Não precisou de pistas para descobrir quem era Kátia no meio de toda aquela gente. Pelas características, a mesma se encontrava totalmente por fora de toda àquela alegria familiar, estava sentada em sua cadeira de praia com uma tristeza profunda capaz de ser notada mesmo por trás dos óculos de sol. Tatiana avistou o carro cor de prata na garagem e não teve dúvidas: Amante ou não, ela era a tal da Kátia, a mulher que seguia seu marido na noite do acidente e que disse que o amava.

Tocou a campainha. Ninguém ouviu, somente Kátia, que foi atendê-la.
- Pois não.
- Kátia?
- Sim.
- Conhecia meu “irmão”?
Mentiu Tatiana para conseguir uma confissão sem problemas.
- De quem está falando?
- Marcos. Que trabalhava para o seu pai.
Kátia retirou os óculos de sol e respondeu meio confusa:
- Sim. Conhecia. Eu sinto muito pela...
- Só me responda uma coisa.
- Sim.
- Foi você quem o levou para o hospital?
- Sim. Fui eu. Por que?
- O que você fazia atrás dele? E por que disse que o amava?
- Disse porque realmente o amava. Amava não. Ainda o amo! Tínhamos um caso. Naquele dia nós havíamos brigado e então o segui. Nós corríamos demais naquela noite e na tentativa de que eu o perdesse de vista, Marcos correu ainda mais. Foi quando ele perdeu o controle e deu de frente ao caminhão. Então o levei até o hospital e fui embora, pois sabia que sua esposa logo apareceria. Foi isso. Respeite a minha dor, pois foram anos de relacionamento.

Tatiana ficou chocada com tamanha frieza e cara-de-pau de Kátia. Não teve coragem de tomar nenhuma atitude, calou-se, virou-se e tomou o rumo de casa enquanto Kátia observava sem entender o real motivo da visita.

Chegando em casa, Clarissa perguntou: “Mamãe. Quando que papai volta de viagem?”. Tatiana respondeu:
- Filha. Que papai? Você nunca teve pai. Em compensação, acaba de ganhar uma madrinha; Tia Leila.

Conto publicado originalmente em 14 e 15 de novembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

ÁREA DE RISCO

Certa vez, conversando com uma grande amiga minha, a Débora, discutia sobre a verdadeira essência do amor. Eu colocava à mesa minha crença de que tal sentimento era tão forte que se tornava incapaz de ser modificado, desviado ou impedido de existir por causas externas à alma. Débora, por sua vez deixava claro sua opinião inversa. Dizia que qualquer sentimento, inclusive o próprio amor, nasceria, permaneceria igual ou diferente, vivo ou morto de acordo com a situação vivida pelo indivíduo que o sente.

- Ora, Juliano, o amor não resiste a brigas familiares, à doença, à monotonia, à distância... Isso é coisa de filmes e novelas.
- Eu tenho minhas dúvidas. De que tipo de amor você está falando?
Eu perguntava.
- De qualquer tipo.
- Então você nunca amou ninguém.
- Eu já amei sim.
- Quem?
- Não posso dizer, mas já amei.
- E não o ama mais?
- Não A amo mais!
- Era uma mulher? Sua mãe?
- Não. Amor de mãe não conta, Juliano.
- Você disse qualquer tipo, Débora.
- Ih garoto, você está me complicando.
- Eu?
- O negócio é o seguinte, eu amei uma menina.
Ela revelava.
- Como assim?
- Eu já senti uma atração muito forte por outra menina. Era amor, eu sabia que era. Porém, o preconceito que eu sabia que enfrentaria me fez esquecê-la. Depois dela, nunca mais me senti atraída por mulher alguma. Não vai contar isso a ninguém, por favor.
- Claro que não, Débora. Mas, nossa, estou bobo.
- Viu como uma questão externa à alma é capaz de anular um amor?
- O preconceito é externo, mas o medo que sentia do mesmo vem da alma, não?
- Juliano! Chega! Você está me deixando confusa. Vamos para a aula. Estamos atrasados já.
- OK.
Seguíamos rindo de nós mesmos.

Na verdade aquela discussão havia se iniciado por conta do meu primeiro amor. Tratava-se de uma namoradinha que me fazia perder o sono e a noção também. Eu ficava horas ao telefone com aquela pequena. Com isso, as broncas dos meus pais eram mensais como a contas absurdas que eles pagavam.

Bianca era uma morena de deixar as outras todas de seu colégio iguais e sem graça. Seu cabelo negro e liso tinha o peso equivalente à beleza que os fios exibiam. O tórax liso sempre à mostra era a prévia da perfeição dos seios logo abaixo. Não que Bianca fosse exibida. Não. Sua beleza era natural como o céu que se abria sempre na sua presença. Era a harmonia entre Bianca e a Terra que fazia a busca das outras meninas se tornarem inúteis.

O maior problema de nosso namoro era o local onde Bianca residia. Em quase um ano de namoro, eu ainda não tinha sequer visto a casa de Bianca. Segundo ela, morava em local de risco. Uma vez ela até me mostrou a favela onde morava, porém, insistiu que a deixasse lá em baixo.
- Bianca, deixe-me ir até sua casa, por favor. Quero conhecer seus pais.
- Um dia, quem sabe? Em outro lugar. Aqui não.
- Então marcarei um almoço na minha casa. Você os leva e então apresentamos nossas famílias. Já estamos juntos a quase um ano, Bianca.
- Eu sei, meu amor, mas é que tenho muita vergonha de onde moro. Chegando lá, verá homens armados andando tranqüilamente entre nós. Isso não é legal. Constantemente há troca de tiros com a polícia. Não quero que corra esse perigo, Juliano.
- Quero um dia poder lhe tirar daí.
- Seria um sonho.

Naquele caso com a Bianca, Débora perdia sua razão comigo. O perigo em volta de Bianca, sim, uma questão externa à alma, me impedia apenas de ir até a sua casa. O meu amor por ela aumentava a cada dia.
- E como anda o seu namorico lá com aquela menina do colégio vizinho?
Perguntava-me Débora.
- Vai bem, mas eu queira conhecer os pais dela, fazer mais parte de sua vida, mas...
- Mas?
- Ela mora em área de risco. Naquele morro ali.
Eu apontava a fim de mostrá-la. Do pátio de nossa escola avistávamos aquela área onde parecia não chegar leis, benefícios e outras coisas estatais. Um amontoado de barracos que contrastava absurdamente com o conteúdo de Bianca, que por sua vez buscava muito mais do que aquele local podia lhe oferecer. Eu me surpreendia com a capacidade de observação e de concentração daquela menina. A carência de sua comunidade não a abatia em absolutamente nada.
- E porque ela mora no meio da favela você não pode ir vê-la? Viu como tenho razão? A criminalidade vai matar o seu amor.
- Erra. Eu a amo cada vez mais. Ela apenas não quer me ver em perigo.
- Está certo. Vamos ver até quando isso vai durar e então retomaremos nossa discussão, Juliano.
Débora insistia na idéia de que meu amor não suportaria o bloqueio social que impedia a mim e a Bianca de fazermos coisas que todo casal costumava fazer. Até certo ponto ela tinha razão. Eu não podia levá-la para sair de deixá-la em casa antes das 18h, por exemplo.

Dias se passavam e aquele almoço que tinha em meus planos nunca se realizava. Bianca sempre me aparecia com alguma desculpa. Foi quando tive a idéia de furar aquele bloqueio.

Eu acabava de buscá-la no colégio onde estudava e como de costume a levava até a entrada da favela onde morava.
- Até amanhã, Juliano.
- Não. Vou levá-la até sua casa.
- Juliano, já falamos sobre isso.
- Mas eu quero. Só hoje. Por favor.
- Não.
- Então terminamos aqui!
Eu fingia perder o controle.
- Juliano. Não é para tanto.
- É sim. Parece que esconde algo de mim.
Ela ficava furiosa.
- ENTÃO ESTÁ BEM! VAMOS ATÉ MINHA CASA!
Ela me pegava pela mão me puxava pelos becos sempre subindo. Logo via alguns jovens, até mais que eu, portando armas e acenando para Bianca.
- Ô MORENA... TÁ GOSTOSA DEMAIS!
Ela sequer olhava para eles, mas demonstrava uma vergonha imensa. Eu nada podia fazer. Consumia-me numa raiva silenciosa.

Enfim, chegávamos à casa de Bianca. Frente à porta:
- Satisfeito? Conhece minha casa agora! Gostou dela?
Ela falava em tom ríspido.
- Por que está zangada?
- Por que? Como assim por que? Acha que tenho prazer em trazer a pessoa que amo nesse lugar?
Eu ficava calado.
- Responda! Acha?
Permanecia calado.

Uma rajada de metralhadora interrompe o meu silêncio.
- ABAIXE-SE!
Gritava uma experiente Bianca.
- O QUE É ISSO?
Eu perguntava aflito.
- A POLÍCIA DEVE ESTAR SUBINDO O MORRO! VAMOS ENTRE!
Eu escorregava na lama que se concentrava frente à casa de Bianca.
- LEVANTA, JULIANO!
O barulho dos tiros se aproximava e uma correria tomava conta daquele lugar. Ao levantar-me, recebia um projétil nas costas.
- JULIANO!
Eu caía aos berros.
- ENTRE, BIANCA! ENTRE!
- NÃO POSSO TE DEIXAR AQUI!
Foi a última frase de Bianca que ouvi antes do desmaio.

Acordava no hospital rodeado de familiares e amigos. Débora segurava minha mão.
- O que houve comigo?
- Descanse, Juliano. Apenas descanse.
- E Bianca? Lembro de um tiroteio e...
- Pois é. A Bianca está bem. Você, nem tanto, amigo. Precisa descansar.
- Mas onde está ela?
- Não sei, mas ela deixou um bilhete comigo lá no colégio. Quer ler?
- Claro!

“Juliano. Nunca vou me perdoar pelo ocorrido. Penso que seria ainda melhor se deixasse que terminasse o nosso namoro a subir com você. Nada disso teria acontecido se eu fosse mais firme com você naquele momento. Espero que entenda pelo menos metade do tamanho da culpa que força a distanciar-me de sua vida. O nosso amor perdeu essa batalha”.

- Ela terminou comigo, Débora.
- Não sei o que dizer, Juliano.
- Não diga nada. Bianca acaba de lhe dar razão sobre o amor. Eu continuo a descordar. Que fique claro.
Débora calava-se.

Eu não entendia o que o descaso de nossos governantes tinha a ver com os sentimentos íntimos dos cidadãos. Ambos não se relacionavam diretamente, porém, indiretamente, a folga dos seus ternos, naquele momento, de alguma forma impedia-me de viver o meu primeiro amor. Era bizarro enxergar como os meus representantes se manifestavam e se tornavam presentes não por ações concretas, mas através do medo de Bianca. Fiz questão de nunca mais vê-la.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

DANIELA III - O Futuro Que Me Fez Chorar (Final)

Eu era firme. No dia seguinte, sem retornar a ligação à Renata, seguia feliz para meu o novo emprego. A idéia de encontrar Daniela me dando ordens me amedrontava um pouco, mas mesmo que eu não estivesse contente eu não tinha escolha. Na minha idade, somente um milagre me faria trabalhar novamente no mesmo cargo. Daniela era um milagre. Melhor, a fita empoeirada de Cássio era um milagre.

Renata, a essa altura, devia estar pensando que seu perdão não havia sido aceito. E de fato não. Eu me sentia péssimo com isso, mas na verdade eu estava sendo calculista a ponto de esperar o rumo que cada um dos caminhos poderia me levar. Um caso com Daniela no fundo não estava descartado, mas o meu amor por Renata travava minhas conclusões. Renata era o motivo de talvez tudo aquilo estar acontecendo. Ora, devia eu ter de agradecer a Renata por ter me abandonado? Afinal, sem o abandono talvez eu não teria aquela crise de saudosismo, não procuraria o Cássio, que por sua vez não me mostraria aquele VHS etc. Não. Aí já seria demais.

Chegando à sala de Daniela.
- Bom dia.
- Bom dia, senhor.
- A Daniela está? Eu sou o novo funcionário.
- Sim. Lembro-me do senhor. Vou avisá-la.
- OK.
Enquanto a secretária ligava para o ramal de Daniela, eu observava o luxo daquele recinto. A recepção poderia muito bem se chamar sala de cristal. Tudo brilhava por ali. Tudo era muito organizado por ali. No som ambiente, o óbvio; a famosa “música de elevador”. É interessante como esse tipo de música é chata, mas em determinadas situações, como aquela, por exemplo, nos traz um certo conforto. Era uma música da Sade.
- Pode entrar, senhor.
- Muito obrigado.

- Bom dia, Leandro. Pronto?
Recebia-me Daniela.
- Bom dia. Mais pronto do que nunca, Daniela.
- Que ótimo.
Daniela pegava o telefone e falava com sua secretária.
- Não estou para ninguém, OK?
Ela seguia até a porta e girava o trinco. Num movimento rápido, girava também um botão ao lado do interruptor da luz fazendo a mesma escurecer parcialmente a sala.
- Já pode entender do que se trata, Leandro?
- Como?
- Como do verbo comer?
- Não. Como de “como assim” mesmo.
Eu tentava manter a seriedade, mas eu já entendia tudo. Daniela se despia lentamente.
- Vamos com calma Daniela. Não tem medo de seus superiores.
- Superiores? Não. Não tenho medo deles. Vem.
Eu não tive como negar aquele corpo. Fizemos então algumas sacanagens, mas não fomos até os finalmente. Para o meu azar, o grande sofá da sala de Daniela não me cabia junto a ela. A mesa seria uma boa solução, mas estava lotada de coisas e a bagunça seria enorme. Não tínhamos tanto tempo. Eu envergonhava-me. Íamos um pouco além das preliminares e era tudo.
- Esperava mais de mim, não?
Eu perguntava enquanto me vestia.
- Não. Aqui não é o melhor dos lugares também. O depósito é bem melhor.
- No depósito? Quer me dizer que já transou no depósito da empresa?
- Leandro? Que horror. Foi só um comentário, ora.
Ela e emendava.
- Vamos. Preciso que você conheça sua sala e algumas pessoas.
- OK.

Saíamos da sala e eu sentia uma certa cumplicidade por parte da secretária.
- Ana Lúcia.
- Sim, doutora.
- Estou levando o Sr. Leandro para o seu local de trabalho. Não demoro.
- Tudo bem.
Respondia a secretária com um sorriso mal disfarçado.

Nos corredores da empresa, pescoços se quebravam para observar a bunda rígida de Daniela. Um verdadeiro coral de cumprimentos ecoava de todas as salas. Eu ia atrás com postura ereta. Na minha cabeça só se passava uma coisa; “Vocês podem olhar à vontade, mas essa bunda é minha”. Naquela caminhava eu fazia minha escolha. “Dane-se a Renata, aquela mercenária”. Estava disposto a ter uma vida com Daniela. Com apenas alguns minutos naquela sala à meia luz, Dani me enlouquecera. Fizera-me sentir jovem novamente.

Daniela me apresentava os funcionários que eu mais me relacionaria. Era nítido o tesão que cada um daqueles rapazes sentia por Daniela e a cada constatação desse tipo mais inflado eu me sentia, pois era a mim que ela havia escolhido. A seriedade com a qual ela falava com eles me deixava seguro, livre de qualquer ciúme.

- Leandro. É isso. Pode começar. Qualquer dúvida, o meu ramal é 2876. OK?
- OK. Agora, me diga uma coisa.
- Sim.
- O que devo pensar sobre o que aconteceu mais cedo?
- Não pense nada. Apenas aja.
- Como assim?
- Aja! Até logo e tenha um bom dia.
A maneira moderna com a qual Daniela encarava o sexo me fazia agora me sentir trinta anos mais velho que ela.

Numa pequena folga depois do horário do almoço, resolvia ligar para Renata.
- Renata?
- Oi meu amor!
- Não. Não tem essa de amor. OK?
- Mas...
- É isso mesmo. Não me ligue mais. Não deixe mais recado em minha secretária eletrônica. Enfim, esqueça que eu existo.
- Leandro. Você não pode fazer isso comigo. Onde você está?
- Estou trabalhando.
- Conseguiu um emprego?
- Não. Estou traficando entorpecente. Lógico que consegui um emprego.
- Então, Leandro. Vamos nos reconciliar. Levar nossa vida de sempre. Felizes.
- Não, Renata. Você me abandonou quando eu mais precisava de alguém e agora vem com essa conversa. Tenha dó.
- Mas eu te amo. E você também me ama. Eu sei disso.
- Olha. Já estou em outra, entendeu? Em outra! E essa outra foi quem me arrumou esse emprego. Você a conhece.
- DE QUEM VOCÊ ESTÁ FALANDO?
- Lembra da Dani? Dos tempos em que eu tocava com o Cássio.
- NÃO POSSO ACREDITAR. EU VOU MATAR ESSA PIRANHA.
- Renata. Passar bem!
Eu desligava o telefone na cara de Renata.

- Leandro. Chegue aqui, rapaz.
Um dos funcionários me chamava a uma roda de papo. O nome dele era Alberto. Na roda tinha o Ulisses e mais um que não me lembrava o nome.
- Pois não.
- Diga-nos, o que achou da Daniela?
Perguntava-me Alberto.
- Como?
- O que achou daquele rabo?
Eu ficava furioso, mas não podia dar bandeira.
- Olha, achei a Daniela gente boa.
- Boa. Isso ela é mesmo.
Gozava, Alberto. Os outros riam.
- Por que estão rindo dessa forma? A Daniela é muito profissional. Acha que daria mole para algum de nós aqui?
Eu perguntava sério.
- Fala para ele, Ulisses.
Colocava lenha, Alberto.
- Ora Leandro, sua hora vai chegar. A vez de todo mundo aqui já chegou um dia. Mas parece que ela anda dando atenção à molecada do depósito.
- Vocês estão me dizendo que todo mundo aqui já...
- Pois é. Bem, vamos voltar ao trabalho.
- A roda se desfazia e eu me via plantado feito um idiota. Um completo idiota.

Eu ligava para o ramal de Daniela.
- Ana Lúcia falando.
- Ana, gostaria de falar com a Daniela.
- Ela não está na sala dela.
- OK.
Eu pegava meu paletó com raiva e seguia até o depósito, que se encontrava completamente vazio. Adentrava-me naquele local imundo a procura de uma viva alma. Até que ouvia vozes vindo lá do fundo. Avistava mercadorias largadas no chão como se algo tivesse interrompido o trabalho daquela gente. Frente a uma porta, um rapaz enorme vestido num macacão azul permanecia feito um cão de guarda.
- O que está fazendo aí plantado?
Eu nem me intimidava com aquela cara feia.
- E quem você pensa que é para vir desse jeito?
- O cara que calcula seus benefícios no fim do mês. O que está escondendo atrás dessa porta.
Ao citar minha função eu notava um certo receio por parte do gigante.
- Vai abrir essa porta ou não?
- É uma reunião.
- Com quem?
- Com a Dra. Daniela. Ela está em reunião com os funcionários daqui do depósito. Ela pediu que não deixasse ninguém entrar.
- Mas a mim você vai deixar.
Acertava-lhe um soco certeiro no nariz. Ele caía aos prantos. Abria a porta e me deparava com a cena mais decepcionante de minha vida. Daniela cercada por cerca de quinze homens despidos. Aquilo não era sexo, não era tesão. Aquilo só podia se tratar de um distúrbio. Eu perdia a fala. Batia a porta e seguia direto para minha sala. Pelos gemidos que eu continuava ouvindo ao caminhar, Daniela não tinha se importado muito com o flagrante.

Sentado frente ao PC, eu refletia. Eu acabava de me passar um atestado de idiota completo. Imbecil, canalha e burro. Achar que Daniela substituiria o sentimento que sentia por Renata. Eu passava do ponto com Renata ao telefone e nem parava para pensar que seu pedido de perdão era realmente verdadeiro, já que o mesmo veio ainda antes da oportunidade que Daniela me cedia. Tudo indicava que eu poderia continuar me aproveitando do sexo bom de Daniela, aquela maníaca, mas não era isso que eu queria com ela.

O sentimento de ter cometido os piores dos erros me fez abandonar a empresa. Eu não conseguiria mais olhar no rosto de Daniela e muito menos aturar as piadas que todos, sem exceção, contavam sobre seu estranho comportamento. Eu tinha princípios. O duro era perceber que em apenas dois dias, eu me deixava levar por um passado lindo, mudava meu presente de forma tola e por isso chorava por um futuro de horizonte vazio. Era chegada então a minha vez de esperar.

***
Arte usada na capa: "Loira" de Rono Figueiredo.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

DANIELA II - O Presente Que Me Fez Pensar

Naquela manhã eu parecia tão leve. Uma entrevista de emprego agendada e um encontro com minha então ex-mulher Renata. Porém, o rosto de Daniela ficava marcado desde a noite anterior a fim de fazer um contra-peso e assim me manter emocionalmente equilibrado. Eu estava feliz e esperançoso por um lado e atraído e confuso por outro. Àquela altura do meu declive, preferi agarrar-me primeiro naquilo que por muitos anos vinha dando certo, embora Renata tivesse com sua saída de casa me mostrado um lado bem obscuro de sua pessoa.

O velho Leandro, funcionário exemplar das Organizações Loureiro estava pronto para sua entrevista. Pronto para mostrar toda sua experiência e capacidade no mundo dos negócios. Era assim que eu me sentia naquela manhã. Leve e pronto. Eu não queria telefonar de volta para Renata. Esperava que ela me ligasse. Não queria parecer o idiota sentimental que na verdade eu era. Renata tinha de pagar um pouco por sua atitude infantil e traidora. Abandonar-me num momento como aquele era uma traição.

Chegando ao escritório para a entrevista, me deparava com uma fila de mais ou menos cinco engravatados na recepção. Jovens e anos luz à minha frente em termos de aparência, os concorrentes à vaga exalavam dinamismo. Eu também exalava o mesmo dinamismo, mas com um pouco de dificuldade devido à idade e ao excesso de peso. Para ser sincero, eu me sentia uma velha tartaruga gorda diante daqueles garotos. Minha auto-estima despencava, mas algo me fazia não desistir. Eu devia estar ainda com uma raspa no meu pote de entusiasmo da noite anterior. Foram fortes emoções.

Um a um era chamado para sua respectiva entrevista. Eu era o último. Sempre gostava de ser o último a fazer as coisas. Isso me dava uma sensação de uma fênix que ressurge das cinzas ou de um herói de filme americano, que aparece sempre no final causando toda uma reviravolta e se dando bem. É. De fato eu procurava não pensar que os últimos poderiam ser realmente os últimos e apenas isso. Isso era sinal de confiança. Mais do que isso; de esperança. Esperança de que todos os outros concorrentes tivessem ido muito mal na entrevista e o meu simples sorriso já me abriria duas cabeças de vantagem.
- Sr. Leandro Teixeira de Mello.
- Sou eu.
Lógico. Somente eu ali na recepção.
- A Dra. Daniela está à sua espera.
- DANIELA?
- Sim. Algum problema, senhor?
- Não, não. Desculpe.
- Entre, por favor.
- Sim.
Eu estava tão ligado à noite anterior que o simples nome dela me fazia pensar que seria Daniela que me entrevistaria.

Eu abria a porta.
- Com licença...
- Fique à vontade, Leandro.
- DANIELA?
- Se assustou?
- Mas o que está acontecendo? Você trabalha aqui?
- Sim. Sou Gerente de Produção.
Bem que na noite anterior eu notava que os ganhos de Daniela deveriam ser realmente gordos, já que sua casa era enorme e os cuidados com sua beleza eram realmente levados a sério. Uma mulher com aquela idade, com aquela pele e com aquele corpo, só podia ser bem empregada.
- Ficou surpreso?
- Claro. Digo, não pelo cargo, mas por ser você aqui.
- Deixa eu lhe explicar o que houve. Ontem, quando esteve lá em casa, você me disse que estava desempregado etc. Quando você foi embora, liguei para minha secretária e dei seu número para que ela ligasse e encaixasse você nessa entrevista de hoje. Resolvi lhe fazer uma surpresa.
- Bem que achei estranho um recado como aquele em pleno domingo.
- Era para ser estranho mesmo.
- Muito obrigado.
- Por nada. Vamos ao que interessa? Deixe-me ver o seu currículo?
- Claro.

Não posso negar que naquele momento eu me sentia um pouco desconfortável. Se eu fosse admitido seria um dos subordinados de Daniela. Aquela mulher linda que me dera uma noite tão esperançosa ao meu coração passaria a ser minha gerente na manhã seguinte? Fiz bem em me animar com a volta de Renata. Daniela não seria a melhor escolha. Não nessas circunstâncias.

- Bem. Seu currículo é ótimo, Leandro. Bastante experiência. Muitos cursos.
- Muito obrigado.
- Olha. Cá entre nós. Você deu um banho naquela molecada.
- Imagina.
- Vamos ficar com você, mas não pense que foi porque você é meu amigo.
- Sei que não.
- E é bom que não saia por aqui espalhando sobre nossa amizade. Qualquer proteção por aqui é altamente condenada.
- Pode ficar tranqüila, Dani.
- Daniela aqui, Leandro, por favor.
- Como quiser, Daniela.
- Começa amanhã. OK?
- Com muito prazer.
- Amanhã eu lhe apresento seus futuros colegas, sua sala etc.
- Como preferir.
- Então, até amanhã.
- Até. Passar bem.
Eu saía daquela sala sem que minha ficha tivesse caído por completa. Aquela fofa que eu resgatei na fita antiga de Cássio seria a partir do dia seguinte a minha gerente. Eu também me encontrava totalmente abobalhado e impressionado com tamanho profissionalismo da parte de Daniela. Confesso que me sentia um daqueles moleques antes entrevistados.

Pela rua, eu caminhava cada vez mais leve. À medida que eu ia tentando esquecer a situação complicada que eu começava a criar com Daniela, minhas pernas passavam a me corresponder com mais precisão. Já não sentia tanto os meus 105kg. Eu estava realmente leve com a idéia de que estava novamente empregado. Minha reserva na poupança já me pedia piedade fazia uns meses. O emprego chegava na hora certa. Ou melhor, a Daniela, por mais que fosse complicado, me aparecia na hora certa. Ou errada?

Chegava em casa e na secretária eletrônica mais um recado de Renata. “Amor. Você ouviu o meu recado? Preciso falar com você. Eu quero voltar para casa. Eu te amo”. Eu pensava se ligaria de volta ou se a faria esperar mais um pouco. Renata esperaria mais um pouco.

***
Arte usada na capa: "Loira" de Rono Figueiredo.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

DANIELA - O Passado Que Me Fez Sorrir

- Alô, Cássio?
- Sim.
- Sou eu, o Leandro. Tudo bom?
- Melhor agora. O que mandas?
- Bombas. Estou desempregado faz dois anos e minha esposa me deixou há uma semana.
- A Renata lhe deixou? Mas por que?
- Uma coisa leva a outra, Cássio.
- Desculpe, mas você lembra o que falei sobre a Renata quando ainda estavam namorando?
- Sim, Cássio. Que seus sentimentos não eram lá muito confiáveis...
- Pois é. A Renata sempre esteve do lado da grana, Cássio.
- Hoje enxergo. Mas estou te ligando para saber se posso passar na sua casa hoje para conversarmos, lembrarmos dos velhos tempos em que fazíamos um som.
- Claro. Passa aí.
- OK.

Cássio é o meu melhor amigo. Aprontamos poucas e boas na nossa juventude. Tínhamos uma banda de rock na década de 80. Naquela época eram poucos os meninos que se aventuravam a tocar algum instrumento, até porque era um hobby relativamente caro para os padrões vividos. Com aquela coisa toda de Rock in Rio, em 1985, foi que a molecada começou a se interessar mais pela coisa. Na rua onde morávamos, por exemplo, só se tinha notícia do nosso som.

Minha amizade com o Cássio continua até os dias de hoje. E num momento difícil como aquele, sem emprego e com o casamento arruinado, não haveria pessoa mais certa a se procurar. Naquele momento eu só queria me desprender do presente e recuperar a alegria que eu tinha no passado. Reviver aqueles bons anos em que as únicas coisas a se pensar eram tocar a minha guitarra e trocar uns beijinhos com as garotas, inclusive a Renata.

Cássio me atendia à porta.
- Entre aí, Leandro. Não repare a bagunça, por favor.
- Lado a lado com minha atual situação sua casa me parece um brinco, Cássio.
- Deixe de ser bobo. Isso é apenas uma fase, cara. Você vai dar a volta por cima. Tenho certeza.
- Espero.
- Trouxe a guitarra? Minha bateria ainda continua montada lá na garagem.
- E eu não sei? Claro que trouxe. Vamos fazer um som. Trouxe umas cervejas também.
- Ótimo! Mas antes, queria lhe mostrar uma coisa.
- Mostre.
- Lembra daquele show que fizemos no Clube dos Líderes?
- Nossa, se lembro. Aquele salão lotado.
- Pois é. Sabe o que achei aqui em casa?
- Diga.
- Uma fita VHS com a gravação daquele show.
- Jura? Eu nem lembrava que aquele show havia sido gravado.
- Pois é. Sente-se aí, abra uma latinha e se prepare para rir aos montes.

Cássio ainda possuía um antigo video cassete herdado de seu pai. Lembro que foi o primeiro de quatro cabeças que eu tinha visto na época. Sua família sempre esteve à frente em termos de tecnologia.

- A gravação não está lá essas coisas e além do mais a fita já sofreu demais com o tempo e umidade presente nessa casa.
- Tudo bem, Cássio, mas coloque logo essa fita. Não vejo a hora de rever tudo aquilo.
Cássio manuseava o aparelho com o cuidado de sempre. Eu analisava cada movimento de Cássio e já começava a deduzir o quão mais feliz do que eu aquele cara deveria ser. 45 anos, solteiro, cercado de quantidades enormes de Lps, Vhss, Cds, Dvds, livros etc. As preocupações de Cássio continuavam as mesmas de duas décadas atrás, manter o toca-disco sempre com uma agulha nova, para ouvir aquelas raridades, e conferir diariamente os lançamentos fonográficos. Era uma boa vida.

Enfim, Cássio colocava aquela filmagem para rodar diante de meus olhos. O filme já começava com a gente vinte anos mais novos, sem barriga ou rugas, tocando com uma energia invejável. Eu já demonstrava então em minhas lágrimas minha vontade de voltar no tempo e de talvez fazer tudo diferente. Não cursar Administração, não levar Renata tão a sério, não almejar um carro 0km...
- Mas estás chorando, Leandro?
- Pois é.
- Pensei que iríamos rir.
- Desculpe-me.
- Tudo bem.
De fato também me pegava várias vezes soltando gargalhadas por conta de nossas roupas. A moda nos anos 80 havia sido cruel, mas somente hoje reconhecemos isso.

Em um determinado momento da filmagem, já no final do show, aparecíamos todos felizes com um bando de amigas ao nosso redor, no camarim do clube. A câmera passava frente a nossos rostos bêbados e cada um dizia uma besteira. Renata, que ainda não estava em meus braços, também estava presente e dizia “Esses meninos vão ficar ricos”. Isso devia ser um aviso sobre sua ambição. Cássio dizia “Vamos tocar juntos até ficarmos velhinhos como os Rolling Stones”. Eu dizia “Tira essa câmera do meu rosto, merda”. Eu voltava a fita umas cinco ou seis vezes para conseguir entender o que eu tinha dito. Quando finalmente entendia minha frase sem graça, deixava então a filmagem rolar.

Logo depois de mim, aparecia de forma enorme naquela tela a Daniela. Loiríssima, de olhos verdes e dona de um semblante que de tão belo fez a filmagem parecer a mais tratada imagem de todos os tempos. Ela dizia “Eu amo o Leandro. Ele não é um gato?”.
- Você lembra da Dani, Leandro?
- Nossa. Volta isso aí.
- Você vai estragar meu video desse jeito.
- Volte, por favor.
Eu insistia e Cássio Voltava.
- Não se lembra?
- Agora me lembro. Dani. Meu Deus! Ela estava comigo nesse show?
- Sim. Como não se lembra dessa gata, Leandro. Pelo visto a Renata fez uma mandinga das boas.
- Só pode. Que fim levou a Dani?
- Olha, coincidentemente eu a encontrei faz uns três dias no centro da cidade.
- E como ela está?
- Olha, continua a mesma gracinha de sempre.
- Ora, Cássio. Estamos caminhando para os 50 anos. Não venha me dizer que ela...
- Leandro. Nesse video ela devia ter seus 17 ou 18 anos. O tempo passou, meu caro, mas parece ter sido um pouco mais generoso com Daniela. Palavra.
- Sabe onde ela mora?
- Ela me disse em qual rua. Lembra do estúdio onde ensaiávamos?
- Lembro, claro.
- Uma rua depois. Sabendo qual é a rua não fica difícil achá-la. Agora você pode, por favor, tirar o pause e deixar a fita rolar, Leandro?
Eu nem me tocava que a filmagem permanecia paralisada com o lindo rosto de Daniela.
- Sim, sim, claro.
- Leandro. Não vai me dizer que vai procurá-la.
- O que tenho a perder? Acha que ela ainda lembra de mim?
- Sim. Claro que se lembra. Ela perguntou por você quando a encontrei.
- Não brinca.
- Palavra.

Findada a sessão de vídeos antigos, íamos para a garagem e relembrávamos antigos sucessos radiofônicos da época. Ríamos muito e bebíamos também. Havia sido uma tarde inesquecível. Mas nada tirava o rosto de Daniela de meu pensamento. Eu só pensava em ir até a casa dela nem que fosse apenas para vê-la. Aos poucos eu ia me lembrando dos gestos bacanas que ela, um ou dois anos mais nova que eu, fazia quando estávamos juntos. Ela era um doce de menina.

Eu saía da casa de Cássio e seguia então direto à rua onde, segundo Daniela, ela residia. Era uma rua sem saída e de poucas casas onde eu avistava algumas meninas conversando no portão de uma delas.
- Boa noite meninas.
- Boa noite.
Respondiam em uníssono.
- Vocês conhecem alguma senhora chamada Daniela?
- Sim.
Respondia uma menina.
- Onde ela mora?
- Aqui. É minha mãe.
Já era de se esperar mesmo.
- Você pode chamá-la? Diga que é o Leandro, um antigo amigo dela.
- Está bem.

Eu estacionava o carro enquanto a menina chamava sua mãe. Ao fechar a porta, minha imagem refletia sobre o vidro do carro e me mostrava um Leandro barrigudo e de aspecto bastante cansado. Pensava por breves segundos se seria uma boa idéia se apresentar daquela forma à Daniela, mas já não dava mais tempo de desistir.
- LEANDRO!
Eu virava e me deparava com uma mulher linda. Daniela estava conforme Cássio havia dito. Linda como sempre.
- Lembra de mim?
- CLARO QUE LEMBRO!
- Que bom. Estou muito feliz em revê-la.
- Eu também. Mas como me achou?
- O Cássio.
- Sabia! Eu o encontrei esses dias.
- Pois é.

Ela me convidava para entrar e eu, muito sem jeito, aceitava.
- Você está casada?
- Viúva.
- Sinto muito.
- Faz muito tempo. Gabriela tinha uns dois anos.
Ela me apresentava sua filha já adolescente.

Conversávamos muito naquela noite. Ríamos muito também e o inevitável acabava acontecendo.
- Hoje, abandonado, sinto saudade do que vivemos.
Eu jogava.
- Ora, Leandro, isso faz tanto tempo. Éramos umas crianças.
- Pois é. Mas é que aquela imagem no video do Cássio me fez voltar ao passado completamente.
- Olha, Leandro. Ninguém precisa do passado para ser feliz. Precisamos é do presente.
- Você está feliz com seu presente?
Eu perguntava.
- Sim. Tenho uma filha linda, com saúde...
- Refiro-me no amor.
- Eu amo minha filha...
- Não é sobre esse amor que falo.
- Se você quer saber se estou namorando, eu lhe digo. Não. Não estou namorando.
- Então...
- Leandro. Você me aparece depois de quase 20 anos e o quer que eu me jogue nos seus braços assim? Eu te esperei por um bom tempo ainda, mas passou.
- Desculpe-me.
- Não há o que se desculpar. É a vida.
- Eu vou embora. Está tarde.
- Sim, mas você volta?
- Só se você quiser.
- Eu quero.
- Isso é uma chance?
Eu perguntava.
- Interprete.
- Sempre fui ruim nisso.
- Não será ruim dessa vez.
- Eu espero.
Eu me despedia e seguia para casa.

Em casa, a secretária eletrônica me trazia novas. Uma entrevista de emprego agendada para o dia seguinte. A primeira em dois anos. E um recado da Renata pedindo para voltar para casa. Eu não posso negar que me sentia muito feliz com ambos os recados. Um dia de encontro com o passado parecia ter sido fundamental para que o meu presente parecesse um pouco menos nebuloso, mesmo presenciando pela segunda vez a Renata me afastando de Daniela. Eu era um imbecil completamente apaixonado. Daniela esperaria mais um pouco.

***
Arte usada na capa: "Loira" de Rono Figueiredo.