quinta-feira, 27 de maio de 2010

SOBRE A LÍNGUA

...não, não, nada de interessante mesmo. Isso. O que dizer sobre Thomaz? Um cara desinteressante não apenas às mulheres, mas aos homens também. Ou seja, não servia para o amor nem para o trabalho; não servia para o sexo nem para uma rodada de chopp.

Thomaz, um rapaz de vinte e nove anos, filho de pais paupérrimos, morador de um bairro humilde – para não dizer carente –, segundo os que o conheciam, “não fedia nem cheirava”. Para estes, Thomaz era aquele cara que “esteve aqui ainda agora e saiu”. Saía sempre porque sua permanência nos lugares de nada mudaria. Seus gestos, suas palavras, suas atitudes não moviam seus destinos, muito menos os dos outros.

Certa noite, completamente exausto do trabalho duro na construção civil, Thomaz chega em casa e se depara com seu pai a dormir sobre o sofá. O velho dormia de boca aberta e roncava tão alto quanto a TV, ligada no volume máximo – seu pai era quase surdo. Thomaz desliga o aparelho e, sem saber o que realmente estava fazendo – talvez por estar tão cansado – começa a observar por dentro da bocarra aberta do pai.

Por ter o velho acabado de jantar, seus dentes amarelados apresentavam as sobras de um feijão com arroz cuja aparência era a de quase azedar. O rapaz continuou a olhar. A fim de observar ainda mais aquela cena, Thomaz chegou o mais próximo possível daquele buraco sujo.

Foi quando, num piscar de olhos, Thomaz se viu dentro da boca do pai, mais especificamente sobre a língua. Sim. Minúsculo como uma mosca, Thomaz agora era pura saliva até os calcanhares. Ainda sem entender o que ocorrera, tentava se manter de pé, mas a quantidade de saliva o fazia escorregar e escorregar. Thomaz se levantava novamente, porém, mais uma vez caía; e levava um baita susto ao avistar um buraco negro a lhe sugar – era a garganta de seu pai.

Não demorou muito até que Thomaz deixasse de lado os pensamentos que buscavam uma resposta para aquilo tudo. O rapaz tratou logo de “se virar”, como pôde, a fim de se manter longe da garganta. A claridade que havia logo à sua frente, marcava a silhueta da ponta daquela língua. Thomaz pôde ainda avistar duas pessoas, micros, como ele, sentadas sobre aquele cume.

- Corre, cara! – disse uma daquelas pessoas a gargalhar.

Thomaz, por mais que tentasse desesperadamente chegar à ponta daquela língua, não conseguia com facilidade. Notava que havia mais umas dez pessoas na mesma situação que a dele. Algumas delas se faziam valer pela força e empurravam outras em direção à garganta. Thomaz testemunhou um homem gordo que, por conta de seu peso, não conseguia se mover em direção ao cume, mas que se divertia em arremessar mulheres e crianças em direção à garganta.

Conforme os minutos iam se passando, a quantidade de pessoas sobre aquela língua aumentava. Thomaz se desesperava ainda mais. Mesmo assim, tentava manter o foco nas duas pessoas acomodadas lá no alto, na ponta da língua.

Com muito esforço, Thomaz conseguiu chegar à metade do caminho, onde encontrou Maria, uma mulher atraente e bastante comunicativa.

- É novo por aqui? – dizia Maria.

- Depende. É a língua de meu pai. Digamos que a conheço bem, mas não desse ponto de vista.

- Gostei do seu humor. Já sabe como viver por aqui?

- Não muito bem, eu acho.

- É o seguinte: tente se manter ágil, mas não entre numa de correr demais, pois você escorrega e aí...

Thomaz mal tinha tempo de visualizar melhor Maria, que era linda. Apesar de sua calça jeans estar coberta de saliva e restos de alimentos já apodrecidos, aquela mulher era capaz de conquistar Thomaz num sopro. Os cabelos, mesmo melados de saliva e suor, deixavam claro os cuidados de Maria tempos atrás. Alva, alta, de traços finos e boca enorme, Maria era o ser sujo mais belo sobre a língua.

- Por que estamos aqui? – perguntava Thomaz à Maria.

- Ora, e eu lá sei? Só penso em descansar um pouco. Sentar sobre a ponta da língua.

- É o que todos querem por aqui?

- Sim. Cada um com a sua maneira própria de se locomover, mas com o mesmo objetivo.

- Não sei se vou aguentar. Estou muito cansado.

- Mas é o seu primeiro dia, rapaz! Anime-se! – dizia Maria tentando o ajudar a se manter de pé.

Maria e Thomaz conversaram bastante. As frases, sempre ofegantes, estimulavam um ao outro a se manterem naquela corrida. Thomaz perguntou à Maria se o medo se fazia presente em seu coração. Maria respondia que, estando sobre a língua, o medo era preciso, pois era o que a mantinha em reação.

- Thomaz – dizia Maria –, entenda que, estando sobre a língua, tudo o que tem a fazer é se focar no cume sem escorregar, manter o seu medo num grau que o ajude.

- E no meio disso tudo – dizia ofegante Thomaz, nós dois podemos nos envolver?

- Até poderíamos, se estivéssemos no cume, claro.

- E por que não no meio da língua?

- Porque podemos nos apaixonar. E a paixão nos levaria direto para a garganta. A paixão só é possível sob a tranquilidade do cume, entende? Aqui, no meio da língua, não há espaço para apaixonados. Somente os focados terão o direito de se apaixonar, desde que cheguem ao cume.

* * *
Nota do autor:

Este conto nasce de uma reflexão minha a partir de uma conversa virtual com a grande amiga Hadassa Cortês, de São Paulo. Conversávamos sobre responsabilidades da vida adulta, medos etc. Eu dizia à Hadassa que o mundo nos engole vivo se não agirmos com foco. Foi quando Hadassa me perguntou: “Então, andamos na garganta do mundo?”. Eu refleti e respondi: “Não, mas na língua dele”.

A partir daí, fui ao Twitter e “ensaiei” as seguintes ideias:

“Andamos sempre sobre a língua do mundo. Um escorregão e ele nos engole vivo”.

“Andar sobre a língua do mundo é, na verdade, correr com o cuidado de não escorregar. Chegar à ponta da língua lhe trará minutos tranquilos”.

“Ultimamente, ando no ‘meio’ da língua do mundo; busco a ponta da língua, escorrego, olho para a garganta e, com muito medo, continuo”.

“E o medo é preciso. É ele quem nos mantém em reação, na busca de se chegar à ponta da língua do mundo. A garganta nos solta um bafo quente”.

“Não existe uma língua do mundo para cada homem. Todos lutam sobre a mesma língua. Escorregam, correm e empurram uns aos outros à garganta”.

Logo depois, escrevi o conto “SOBRE A LÍNGUA”.

Hadassa Cortês e eu temos uma parceira musical. Assista aqui ao clipe de "Pára Sim, Tempo".

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O PODER DA MENTE

Certa vez, ainda criança, ouvi alguém, não lembro bem quem, dizer na TV que um olhar fixo é capaz de mover objetos, mas que esse olhar deveria ser somado ao poder da mente, que, logicamente, uns têm mais que outros – alguns sequer têm. Lembro de um exemplo que essa pessoa expôs no momento de tal declaração; segundo esta, com o poder da mente, ao olharmos fixamente para a nuca de alguém, essa pessoa “sentirá” tal olhar e se virará para quem o olha. Achei interessantíssimo isso e passei a treinar isso na escola.

Em minha classe havia uma menina, a Lívia, que era a mais linda de toda a escola. Eu estava na quarta série do antigo primeiro grau, devia ter meus dez ou onze anos, mas lembro que já sentia por Lívia o que, na época, definia como amor. Não era amor, logicamente, mas era algo muito forte.

Como eu sentava na terceira carteira atrás da de Lívia, pude colocar em prática a dica misteriosa vinda da TV. Lívia tinha os cabelos ruivos e lisos um pouco abaixo do ombro, o que deixava sua nuca totalmente coberta. Eu não me lembrava se o cabelo poderia atrapalhar ou não aquele processo mental, mas lembro que tentei mesmo assim.

Para minha sorte, aquele dia seguinte era um dia de prova. Então, esperei que todos começassem a avaliação, pois assim teria silêncio suficiente para me concentrar na nuca de Lívia. Precisei me curvar um pouco para a esquerda, a fim de obter a visão plena. Lá estava ela. Com o corpo levemente curvado para frente, por conta da prova, Lívia deixava parte da nuca à mostra – os cabelos dela eram lisos demais e, por isso, se espalhavam pelos ombros.

Sendo assim, olhei fixamente para aquele pedaço de nuca que pude enxergar. Não sabia o significado prático de “mentalizar”, então comecei a pensar como se meus olhos fossem braços elásticos e que conseguissem chegar até àquela nuca. Olhei. Fixei. Fiz isso por pelo menos cinco minutos, e nada.

- Pedro? – dizia-me a professora.

- Senhora!

- Quer se sentar direito, por favor? Ou quer ter sua prova recolhida?

- Desculpe-me, senhora.

“Droga”, eu pensava. Perdia totalmente a concentração. Algo me dizia que eu estava perto de conseguir. Por duas vezes Lívia esboçara uma reação. Com minha tentativa descendo pelo ralo, resolvi fazer a prova.

Os dias se passaram e eu continuei tentando. A verdade é que na minha cabeça a nuca de Lívia era só o início para um futuro de glória. Sim, eu pensei também em conseguir com o tempo levantar as saias das meninas, confesso. Mas o futuro de glória significava mais que isso. Pensava em ter o meu próprio show na TV, no qual eu moveria objetos, desvendaria mistérios, tudo com o poder da mente. Ficaria rico.

Voltando a realidade, duas semanas de tentativas se passaram e o máximo que eu havia conseguido era perceber os milímetros de crescimento capilar de Lívia. Aquela cena, a de Lívia de costas com seus cabelos sobre os ombros, se um dia eu precisasse, seria capaz de descrevê-la nos mínimos detalhes. Mesmo sem sucesso, tendo sempre Lívia como alvo, continuei o treinamento por anos.

Estudei com Lívia até a oitava série. Até então, nunca havia sido capaz de dizer o quanto a achava linda. Bem, todos os outros meninos da escola já haviam dito isso a ela, com certeza, então, minha declaração seria apenas mais uma em muitas.

Foi quando a ouvi dizer às amigas:

- Não farei o segundo grau aqui, gente. Farei prova para uma escola técnica.

Já era setembro. Sendo assim, aquela frase significava que, teoricamente, eu só teria pouco menos de três meses para dizer o quanto a queria.

Dois dias depois, eu estava na Lanchonete da Gilda com uns amigos, quando avistei Lívia a lanchar sozinha numa mesa longe da nossa.

- Gente, gente – eu dizia –, aquela ali é a Lívia, lá da escola.

- Você ainda não a esqueceu? Putz! – dizia-me Túlio.

- Que otário! – dizia-me Francis.

- Que mané! – dizia-me Rafael.

- Querem saber? Eu vou lá falar com ela! – eu dizia.

E fui. Mas antes, pelo caminho, resolvi voltar à prática mental. Olhei fixamente para a nuca de Lívia, enquanto me aproximava lentamente. Foi quando ela resolveu prender o cabelo num elástico e, extraordinariamente, sentiu um calafrio que a balançou dos ombros ao tornozelo. Segundos depois, Lívia se virava para mim e:

- Pedro!

- Oi, Lívia! Tudo bom?

- Sim, sim.

- Posso me sentar um instante?

- Claro.

- Bem, eu estou com uns amigos ali, então serei breve. Ouvi você dizer que não fará o segundo grau conosco, que tentará uma escola técnica... Eu preciso te dizer uma coisa.

- Sim – dizia-me Lívia a morder, lindamente, a ponta do canudo de seu refrigerante.

- Eu acho que te amo. Desde a quarta série.

- Eu sei disso, seu bobo.

- Ah? Sabe? Mas...

- Não sei explicar, mas sempre senti como se estivesse me olhando. Mesmo de costas, sem te ver, sentia. Como senti agora, ao se aproximar. Entende? Você me entende?

- Acho que sim, Lívia. Acho que sim – eu ria.

Nos beijamos sob a sublime constatação de que, sim, eu tinha o poder da mente!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

140

De um tempo para cá, por não haver mais tanto tempo vago na minha vida para a escrita dos contos, venho publicando no Twitter alguns microcontos; uma forma de aliviar minha vontade de escrever sem fazer com que eu perca minha tão valiosa hora de almoço. Hoje publico os 38 microcontos que joguei no mundo dos 140 caracteres. Espero que curtam.

O desenhista
"Me desenhe", disse Lia. "Mas assim?", respondi. "E que tal assim?", Lia tirava a roupa. "Me referia à minha febre", eu disse.

Foi pior
Com muito medo de levar um soco, ele disse: "Eu acho que não te amo mais". Marta deu um gole no café e: "Me passe a manteiga".

O meu pedido
"Não quero lanche", disse à atendente. "E quer o quê?", ela disse. "Que saia daí e me beije". Ela saiu, me beijou e: "Próximo".

Levante a cabeça
Cabisbaixo, procurei pela pequena Luana, que conseguiu me colocar para cima. "Saí de ti. E me orgulho disso", ela disse. Sorri.

O escritório
O mofo que tomava conta dos afazeres não se dava apenas pela falta de interesse, mas também pelas algemas. "Foda-se", disse.

Mais 15 minutos
Despertara com a sensação de fracasso ainda mais presente. Olhou para o teto, para os lados. Ainda deitado, decidiu: "Foda-se".

Ideia
Era Dia de São João. Acendi o pavio e corri. "BUM!" Lembrei dos meus tempos de criança e gozei ao ver o escritório em chamas.

Inesquecível
Corri 6Km porque uma amiga minha me disse que "correr nos faz esquecer o amor fracassado". Agora planejo a volta ao mundo.

Eu não queria
Acendi um charuto cubano e logo alguém perguntou: "O bebê nasceu?". Dei a primeira baforada e respondi: "Não. Eu que morri".

A fuga
Ela se sentou ao meu lado e se despediu do namorado. O ônibus partiu e, logo depois: "Livres agora?", eu disse. Então, a beijei.

Noite de outono
Ane me presenteava com o LP do She & Him. "Vamos ouvir? Trouxe um vinho", ela dizia. O presente era, na verdade, para nós dois.

O valor
Sentia-me velho. Escondi a aliança e fui até ela. "Oi", eu disse. "Não enche, tio" disse ela. Pus a aliança de volta com amor.

Microcontos de Luana #01
"Sorvete...", pensava Luana ao caminhar. "Que tal um sorvete?", surge, do nada, Denis a dizer. "Travesseiro..." pensou Luana.

Positivo
"Não foi boa ideia dormirmos no escritório", disse Isis. "Por que? Isso faz tanto tempo", disse Alan. Dois meses, dizia o exame.

Microcontos de Luana #02
"Amor, o que faria se eu morresse hoje?", disse Rômulo. "Morreria também", disse Luana. "Não! Acontecendo, viva por nós dois!".

Raquel e os dedos
No silêncio da sala de aula, me incomoda o toque dos dedinhos de Raquel sobre o iPod. "Retweetei seu conto", ela diz sorrindo.

Esquecidos
"Eu tenho certeza de que vão nos buscar, Ted", disse Bill. "Alô... Planeta Terra? Alguém na escuta? ...Terra?", tentava Bill.

O professor
Tentei por mil vezes explicá-lo como usar o 38. Perdi a paciência e, para o azar de meu aluno, o 38 estava carregado. Paciência.

A consulta
"Volte amanhã, pode ser?", disse-me a Dra. "Amanhã? Que rápido!", eu disse. "Não pelo exame... Entende?", ela disse. Eu gamei.

Acorda
Nathalia abraça o "travesseiro" do escritório e o pressiona contra o rosto. No MSN, recebo dela um "ljkfkjhsujg" e não entendo.

Raquel e o tempo
Cortando o próprio cabelo, Raquel nota que ganha tempo útil evitando salão. "Eba! Um dia inteiro para ver séries", ela dizia.

O engano de Laura
"Foi com ela que me traiu, né?", gritava Laura a atirar. Quem além da morte beijaria o Guto? Laura, foragida, sequer o velou.

O segundo beijo
"Lembra o dia em que me beijou, Victor?", disse Bia. "Sim. Sonho com isso sempre... Mas não durmo desde então!". Nos beijamos.

A escolha
Teve milésimos de segundo para desviar de uma moto. Conseguiu. Mas atropelou uma jovem que atravessava a rua; sua filha Olga.

Masturbação
"Vou mijar", disse eu à gostosa. E ela disse, como se soubesse exatamente o que faria lá: "Sim, sei... mas não demore, tá?".

A escolhida
"A seleção foi ótima, senhor. Vai gostar dela". A nova secretária então entrava à sala: "Oi, Dr. FRávio". "Que gostosa", pensei.

O dançarino
"Tire os pés de cima da mesa, Olavo!", disse-me mamãe. Não via TV, não lia... Eu só gostava de dançar... sobre a mesa de jantar.

Você não
Nervosa, não se concentrava em nada. O telefone finalmente soava: "Oi, Ana, aqui é o Beto". Ana desligava. Esperava pelo Leo.

Feriado
Subia as escadas feito louca. Atrasada para a reunião, nem notara o deserto. 6º andar, exausta, se lembrava: Dia de São Jorge.

If you want blood... You´ve got it
"Preciso de um aumento, Dr. Ciro", disse Lucas. "Antes, dê mais sangue à empresa". Lucas, convicto, acerta dois tiros em Ciro.

A mordida
"Eu não aguento mais... A morte é a solução. Só lamento morrer num local tão repleto de alegria". Decidido, Edu morde o BigMac.

Paixão
"Mas eu SEI quando estou apaixonado, Drica", disse Juan. "E eu SEI quando está se enganando, Juan. E de engano já basta o seu".

Carol
"Quando crescer quero ser como você, pai", dizia Carol. Os anos passaram e Carol se casou com uma mulher igual sua mãe. Realizou-se.

Visão apaixonada
Mia pintava as unhas; uma de cada cor. Sentia-se feliz naquele dia. À noite, recebeu o "NÃO" de sua vida. Não via mais as cores.

Vietnã
"Tenente, não podemos avançar. É suicídio", dizia o Sargento. "Permanecer também", dizia o Tenente. "Tenente? Tenente? Ten..."

Microcontos de Luana #03
"Rômulo, o que faz em meu quarto?", perguntava a jovem Luana, que, em tola tentativa, beijava o travesseiro. Luana acordava.

O café da manhã
"Quantas vezes preciso dizer que ACABOU?", disse Mary. "Mas eu te preciso...", disse Paulo diante do pote vazio de margarina.

DNA
E lá, frente à porta de Gabi, Otávio teve a notícia: "Você não é o pai", disse Gabi. Otávio chorou... feliz.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A DECLARAÇÃO SEGUNDO DANIELE


Ora, era um curso de inglês, somente isso. A confiança que depositava em Caio não me deixava pensar em ciúmes, não por conta de um simples curso de inglês. Caio sempre foi um rapaz muito estudioso; a fim de se aprimorar cada vez mais, sempre fez vários cursos, e não seria eu quem o iria impedir, mesmo. Aliás, quando pensava em Caio estudando, automaticamente pensava em um futuro melhor ao lado dele. É, estávamos juntos havia cinco anos. Nada mais justo eu pensar dessa forma, não?

O que eu mais gostava no Caio? Acho que a seriedade com a qual ele encarava tudo em sua vida, inclusive o nosso namoro. Quando a desconfiança de um possível deslize em sua fidelidade me bateu à porta – sim, em cinco anos, Luiza foi a primeira a, digamos, atrapalhar o nosso caminho –, tive que tomar uma atitude. Entendo perfeitamente uma atração física de um homem, mesmo comprometido, por uma mulher. Mas entendo também que uma simples atração pode se desenvolver e se tornar a mais ardente das paixões. Daí, para o amor é um pulo. E o amor de Caio era meu.

Tudo começou quando o Caio se mostrou desatento durante um jantar. Eu falava e falava, mas o Caio não interagia; mantinha-se quieto, apenas concordando com o balançar de uma cabeça que não estava ali naquela mesa. Poderia contar nos dedos quantas vezes o Caio me olhou nos olhos naquela noite. Ah, quando a gente está com uma mesma pessoa há cinco anos fica muito fácil notar essas coisas.

- Aconteceu alguma coisa, Caio? – eu dizia.

- Não, não. Nada – ele respondia, mas não me convencia.

Mudo, naquela noite Caio apenas comeu, o que estava muito longe de parecer com um jantar entre nós. Tempos antes aquela mesa seria pequena para tantas trocas e demonstrações de amor. Mal sabia que os efeitos de Luiza já o tomavam.

Depois do jantar, mesmo estando Caio tão longe, insisti numa noite de amor. Fomos para a cama. Eu, a fim de trazê-lo de volta, ou ao menos entender o que ocorria; e ele, nitidamente, a fim de cumprir com um protocolo já tedioso e gasto.

O que se deu foi um sexo tão monótono quanto o jantar. Meus olhos miravam o teto enquanto Caio se movimentava de maneira automática e fria sobre meu corpo. Até que, de repente, o clima esquentou. Senti Caio ressurgir das cinzas no que eu realmente entendia como sexo entre nós. Ofegante, próximo ao orgasmo, Caio comete seu maior erro: diz o nome de Luiza ao meu ouvido. No momento pensei em explodir. Mas, não sei o que me deu, preferi manter a calma e esperar pelo que Caio me diria. Mas ele não disse nada. Na certa nem percebeu o deslize.

Como eu já tinha o ouvido falar na tal “Luiza lá do curso de inglês”, que era “assim”, que era “assada”, não precisei de muito tempo para entender tudo.

No dia seguinte, com as poucas características que tinha de Luiza, fui atrás dela no curso de inglês do Caio. Logo no primeiro piso, na lanchonete, vi exatamente o que imaginava ser Luiza: uma menina linda, num vestido lindo e com um olhar tão cativante que por pouco não me fez desistir da abordagem. Eu sou sincera, ora, a Luiza é uma menina linda, fazer o quê?

- Luiza? – eu dizia.

- Sim.

- Conhece o Caio?

- Que estuda aqui?

- Sim. Ele mesmo.

- Sim, o conheço. Por quê?

- Eu sou a Daniele, namorada dele, e precisava lhe entregar um bilhete.

Eu entregava um pedaço de papel escrito à caneta.

O Caio pensa que eu não sei. Fique longe dele, Luiza. Está me causando problemas.

Daniele.

* * *
À noite, Caio foi até minha casa com o bilhete na mão.

- O que significa isso, Daniele? – dizia Caio.

- Um bilhete, ora.

- Mas por quê?

- Caio, você lembra do que você me chamou na cama, ontem?

- Ah?

- Luiza! Você me chamou de Luiza!

Caio, paralisado, resolve se abrir:

- Desculpe-me, Daniele. Não gostei da sua atitude com Luiza, mas preciso confessar que, sim, eu estou completamente apaixonado por ela. Pronto, falei.

- Isso eu já sabia, Caio. Só que eu não vou desistir de você assim tão fácil.

- Esqueça. Não há mais nada entre nós, OK?

- O quê? É assim que você termina um namoro de cinco anos, Caio?

- Daniele, entenda, eu não consigo tirar a Luiza da cabeça, merda! E não se preocupe! Eu acabei de me declarar para ela, mas ela não sente nada por mim, OK?

- Cretino!

- Basta! Adeus.

Dessa forma tola, Caio partiu e não mais me procurou. Eu ainda o amo, mas sei que o perdi para aquela menina. Embora Caio tenha se declarado e, segundo ele, sido rejeitado, sei que o perdi.

Se tudo o que ele disse for mesmo verdade, Luiza nos separou e eu tratei de os separar também.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A DECLARAÇÃO SEGUNDO LUIZA

Leia antes A Declaração Segundo Caio

Era como um ritual. Chegar da faculdade, tomar um bom banho, fazer um lanche bem gostoso e sair correndo para o curso de inglês. Logicamente que não era pelo fato de eu ter de sair “correndo” que eu deixaria de perder alguns minutos para me arrumar. É que lá no curso tem um rapaz, o Caio, que fazia questão de elogiar os meus vestidos, meus sapatos... Até os meus brincos ele reparava. Não, não se trata de ego inflado, nada disso. É que era tão fofo da parte dele... Ele achava que eu não via, mas ele me observava bastante. O pior é que eu gostava, e muito.

O Caio é aquele tipo de cara que mexe com você nos gestos mais simples, sabe? Ele vinha com sua estatura mediana, vestindo sempre uma malha de estampas engraçadas, um jeans e um tênis, como quem não quer nada, e, de repente, soltava um “que perfume gostoso, vem de ti?”. Eu desmontava. Disfarçava. Mas desmontava. A maneira como ele deixava o cabelo desarrumado lhe dava um ar despojado, mas no exato limite da tolerância feminina. Isso! O Caio é aquele tipo de homem que te ganha por andar no limite das impressões, entende? Ele sabe cativar uma mulher, mas sem ser um grude chato. Ele sabe ignorar também, quando quer, mas sem magoar profundamente. Seus olhos castanhos claros, da mesma cor do cabelo, me olhavam sempre com muito carinho; eu sentia isso. Mas o fato é que ele mantinha um namoro de mais de cinco anos, se não me engano. Sendo assim, nunca demonstrei o meu real interesse. Não acho certo.

O meu medo maior era o de Caio e eu nos tornarmos muito amigos, a ponto de nunca termos a chance de... nos beijarmos. Sim, eu sabia que um relacionamento de cinco anos era um rival e tanto, e em nenhum momento lutei para que Caio o terminasse. Eu apenas, digamos assim, me sentia disposta a acolhê-lo imediatamente após um possível fim daquele namoro. Mas eu sentia que nossa amizade só tendia a aumentar a cada dia. O Caio era um fofo, meu Deus, e eu, sim, estava me apaixonando por ele a pequenas doses diárias, não minto. “Se ele um dia se declarasse...”, eu pensava.
.
Foi quando tive o desprazer de encontrar, pela primeira e única vez, a tal namorada do Caio, a Daniele. Não sei como ela me achou. Só sei que estava eu na cantina do curso quando:

- Luiza? – dizia Daniele.

- Sim.

- Conhece o Caio?

- Que estuda aqui?

- Sim. Ele mesmo.

- Sim, o conheço. Por quê?

- Eu sou a Daniele, namorada dele, e precisava lhe entregar um bilhete.

Daniele me entregava um pedaço de papel escrito à caneta. E saía sorrindo.

Confusa, rapidamente li o bilhete.

O Caio pensa que eu não sei. Fique longe dele, Luiza. Está me causando problemas.

Daniele.


Gelei. Não sabia o que fazer. A Daniele agiu de forma tão fria e estranha. Naquele momento eu só pensava em me distanciar daquilo tudo. Pedi um suco de laranja e fiquei a esperar o Caio – ele sempre me encontrava por ali, antes de subirmos para a sala.

- Olá – dizia Caio ao chegar.

- Que bom que chegou cedo, Caio. Precisava mesmo falar contigo – eu dizia.

- Pois não. Diga.

- Eu não sei bem como dizer, sabe? Eu tenho muito medo do que pode vir a acontecer depois desse nosso papo.

- Nossa! Fiquei curioso. Prossiga.

- É o seguinte: eu sei que você morre de amores pela sua namorada, a...

- Daniele – ele me completava.

- Isso, a Daniele. E eu, pelo amor de Deus, Caio, acredite em mim, não quero jamais estragar um relacionamento tão bacana.

- Ora, mas por que diz isso?

- Bem, vou direto ao assunto. Acho melhor nos distanciarmos, Caio.

- Por que isso? Ainda não entendi. Somos amigos, não somos?

- Caio, eu não sei como dizer. Só sei que será melhor para nós dois.

- Luiza, o que é isso? Não está sendo leal comigo. Diga-me realmente o que sente. Só assim poderei aceitar ou não esse distanciamento. Você está gostando de mim? É isso? Pois fique sabendo que eu estou perdidamente apaixonado por ti, Luiza! E nada, nem mesmo a Daniele será capaz de apagar o que sinto.

Meu Deus! Quando ele falou aquilo eu não acreditei. Por que esperou tanto pare se declarar? Por que esperou a Daniele me ameaçar para dizer isso? Eu estava tão nervosa que, indo contra tudo o que planejei para um momento como esse, dizia:

- Ficou maluco, Caio?

- Sim! Maluco por ti!

- Ah... Mas... Não é nada disso, Caio. O que sinto por ti é a mais pura amizade. Eu... Ai, meu Deus... Queria me distanciar de ti porque sua namorada esteve aqui e me deixou esse bilhete.

Sem jeito, eu me levantava, jogava o bilhete sobre a mesa e saía. Ainda o vi lendo o bilhete e passando a mão sobre a cabeça.

De lá para cá, não falei mais com o Caio direito. Ainda o quero, sei disso, mas não estou a fim de me meter em confusão. A Daniele me pareceu uma psicopata. Tive medo, muito medo.

Enquanto a Daniele estiver na vida dele, prefiro direcionar meus sorrisos a direções incertas. Embora meu coração ainda esteja disponível a uma segunda tentativa por parte dele...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A DECLARAÇÃO SEGUNDO CAIO

O fim de tarde era sempre o início. O início de mais uma chance de dizer à Luiza o tamanho da reviravolta que me causava. É que todos os dias, das seis da tarde às oito da noite, eu me sentava ao seu lado, no curso de inglês. Eu, que namorava a Daniele seriamente havia cinco anos, me via, naquele momento, tomado por sentimentos que, sei lá, não sei explicar... Queria Luiza para mim. Sabia disso. Apesar de um amor ainda enorme à Daniele, queria Luiza para mim!

Descrever Luiza não é fácil. Com sua estatura baixa e medidas perfeitamente distribuídas, Luiza compactava em si as mais singelas qualidades que uma mulher poderia ter. Quando sorria, assemelhava-se a uma criança; quando séria, mostrava a mulher madura que seus vinte anos muitas vezes escondia. Enquanto assistia às aulas, por vezes me pegava a observá-la. É que seus olhos negros e bem desenhados, num misto de atenção e curiosidade, junto àquele semblante meigo e àquela pinta próximo ao canto da pequena boca, me hipnotizavam. Quando ela surgia envolta num vestido florido – o meu preferido –, ficava ainda mais difícil prestar atenção à minha volta; meus olhos eram seus. Os cabelos lisos e cortados na altura do ombro não possuíam um desenho elaborado, mas não me importava com isso. Debaixo daqueles fios eu me perderia por completo em sua nuca coberta de mais pintinhas como a do canto da boca. Na ponta das orelhas, um par de brincos tão meigos quanto a dona – geralmente com frutinhas – era a cereja do bolo.

O meu medo maior era o de com Luiza evoluir uma amizade que não coubesse uma declaração apaixonada de minha parte. Eu tinha a convicção de que, até o final do curso, eu iria me declarar. Mas me frustraria profundamente receber em troca uma gargalhada fofa, daquelas que só ela era capaz de soltar. Mas como controlar uma aproximação quando o desejo de se dizer futuramente o real sentimento se choca a vontade louca de ser amigo, irmão e pai daquela pessoa? Ao mesmo tempo em que eu procurava não me transformar no “melhor amigo” de Luiza, agia como se já o fosse de fato. “Eu preciso dizer logo o que sinto”, eu pensava. Mas e o medo de tudo até ali acabar de repente? – a amizade de Luiza, mesmo que limitando o meu sentimento mais profundo, era muito importante para mim.

Certo dia, já cansado de todo o fim de tarde dar início à minha confusão noturna, segui para o curso confiando ser aquele o “Dia D”. “De hoje não passa”, eu pensava e, pelo caminho, chegava a dizer a mim mesmo em voz alta. Cheguei até a notar que, durante o trajeto, o semblante de Daniele não me surgira. Aliás, fazia alguns dias que não conseguia pensar em Daniele, embora, repito, eu ainda a amasse. Amava? É que o foco ali era Luiza, entende?. Eu tinha que estar entregue, de corpo e alma, àquela conquista. Foi quando pensei: “E se Luiza disser ‘sim’, o que eu faço?”. Bem, embora fosse este o meu objetivo, eu notava que realmente não havia pensado em tal possibilidade. Terminaria tudo com Daniele?

Chegando ao curso, me deparava com Luiza ocupando uma cadeira na cantina, como sempre, a saborear um atraente suco de laranja.

- Olá – eu dizia.

- Que bom que chegou cedo, Caio. Precisava mesmo falar contigo – dizia Luiza séria.

Criativo, pensei: “Já pensou se ela se declara antes de mim?”.

- Pois não. Diga.

- Eu não sei bem como dizer, sabe? Eu tenho muito medo do que pode vir a acontecer depois desse nosso papo.

- Nossa! Fiquei curioso. Prossiga.

- É o seguinte: eu sei que você morre de amores pela sua namorada, a...

- Daniele – eu a completava, enquanto pensava “ela vai se declarar, ela vai se declarar”.

- Isso, a Daniele. E eu, pelo amor de Deus, Caio, acredite em mim, não quero jamais estragar um relacionamento tão bacana.

- Ora, mas por que diz isso?

- Bem, vou direto ao assunto. Acho melhor nos distanciarmos, Caio.

- Por que isso? Ainda não entendi. Somos amigos, não somos?

Estava na cara. Luiza notara que estava apaixonada por mim, e, com medo de não ser correspondida, devido ao meu relacionamento com Daniele, queria se distanciar.

- Caio, eu não sei como dizer. Só sei que será melhor para nós dois.

- Luiza, o que é isso? Não está sendo leal comigo. Diga-me realmente o que sente. Só assim poderei aceitar ou não esse distanciamento. Você está gostando de mim? É isso? Pois fique sabendo que eu estou perdidamente apaixonado por ti, Luiza! E nada, nem mesmo a Daniele será capaz de apagar o que sinto.

Pronto. Naquele momento, eu, contrariando todo um planejamento, me declarei. Senti-me leve e ao mesmo tempo certo de que me enganava em relação ao que sentia por Daniele. Ninguém, que amasse realmente, seria capaz daquilo. É como se em questão de segundos eu descobrisse um amor e um desamor ao mesmo tempo.

- Ficou maluco, Caio? – dizia Luiza.

- Sim! Maluco por ti!

- Ah... Mas... Não é nada disso, Caio. O que sinto por ti é a mais pura amizade. Eu... Ai, meu Deus... Queria me distanciar de ti porque sua namorada esteve aqui e me deixou esse bilhete.

Luiza, nitidamente sem jeito, jogava o bilhete sobre a mesa e saía. Eu, surpreso e confuso com tudo aquilo, o li:

O Caio pensa que eu não sei. Fique longe dele, Luiza. Está me causando problemas.

Daniele.


Como Daniele havia chegado até Luiza? Eu devo ter dado alguma bandeira, sei lá. Quem sabe até dito o nome de Luiza ao pé do ouvido de Daniele. O fato claro é que Luiza já tomara mais espaço em minha vida do que eu imaginava.

Hoje, minha relação com Luiza está péssima. Ela mal fala comigo. Duro é aceitar que seus sorrisos contagiantes, que antes eram meus, já se mostram sem uma direção certa.