quarta-feira, 21 de julho de 2010

BALA PERDIDA

Alguns amigos próximos – aqueles, que cresceram com Carlos e hoje trajam finos ternos e ocupam cargos bacanas no mercado de trabalho – o perguntam sobre o que de fato lhe ocorreu na cabeça para optar por tal caminho. Claro que, diante desses amigos, as explicações de Carlos ficam ao vento. Mas, mesmo assim, acredito que posso convencer você, leitor, de que este rapaz possui motivos sérios para hoje resolver os seus problemas “na bala”.

De sua infância, além do vazio causado pela falta de um pai, Carlos guarda na memória as bofetadas, pernadas e pescoções que levou dos mais velhos. É que em sua busca incansável por um emprego que sustentasse seus sonhos de menino – por exemplo, uma pulseira de respeito, como a que seu irmão usava – Carlos passou pela mão de empregadores bastante cruéis.

O rapaz ainda se lembra de quando trabalhou por quatro dias em um lava a jato, perto de sua casa. O Sr.Alfredo, dono do negócio, lhe aplicava uma rasteira por cada cliente que reclamava de seu serviço. O pequeno Carlos logo percebeu que as rasteiras divertiam os clientes, que, ao entenderem o espírito da coisa, reclamavam sem motivo algum.

O lava a jato foi apenas um capítulo dentro dos inúmeros em que viveu. Carlos, como todo jovem, queria desfrutar de roupas “de marca” – na época, as populares camisas bordadas, por exemplo –, e sabendo que de sua casa não lhe sairia sequer um real, aceitar as propostas de trabalhos escravos disfarçados de emprego era a única saída para o rapaz.

Carlos passou por muitos lugares. Por cada litro de suor derramado, Carlos recebia grosseria, descaso e humilhação. E se já não bastasse o expediente, em casa a coisa ainda era mais feia; sua mãe e seus irmãos desconsideravam sua presença, haja vista a ausência de uma ajuda financeira considerável da parte de Carlos.

- Você me custa caro, Carlos! Muito caro! – dizia sua mãe ao acender um de seus infinitos cigarros.

Você, caro leitor, deve estar pensando que “nada justifica”. E eu lhe pergunto: Como nada justifica? Diante de uma situação dessa? Eu mesmo dou todo o apoio quando ele me diz resolver seus problemas “na bala”. Ora, sem escolaridade, sem ajuda familiar, sem oportunidades no mercado de trabalho e caminhando à base de violência e covardia, até eu optaria por tal caminho.

E assim, carregando injusto e pesado passado, Carlos se prepara para mais um dia de “ganho”. O rapaz se municia com o máximo que pode carregar. Afinal, nesse ramo nunca se sabe o que vai precisar. Enquanto Carlos se prepara, faz o sinal da cruz três vezes e pensa que, agora, seu patrão é ele mesmo; suas leis e seu ritmo é ele mesmo quem os define.

Com a preferência de atuação voltada para os ônibus, Carlos fica à espera de um. Seus olhos correm pelos veículos que passam em busca de pessoas que, segundo ele, “têm cara de ganho”.

Depois de alguns minutos, Carlos, enfim, escolhe o primeiro ônibus do dia. Entra pela porta da frente já fazendo um sinal para o motorista – que na maioria das vezes já sabe de todo o esquema e recebe até agrados.

Carlos averigua se suas balas estão prontas para a ação e:

- Desculpe incomodar o silêncio de vocês. Mas hão de concordar que vale a pena dessa vez. Senhoras e senhores, eu garanto a qualidade! É só olhar no verso e conferir a validade. É a bala de menta, é a bala de coco, não tem nada igual! Tem a bala de leite, tem de tamarindo, café e até mingau! Encontrada nas lojas do ramo, tá pra lá de dois e tal. Mas aqui na mão do camelô vai pagar um real!

Ele vende balas, caro leitor. Explicado?

* * *
Este conto foi baseado na música "Bala Perdida" de Vinicius Castro e é parte integrante do lançamento de seu CD "Jogo de Palavras".

terça-feira, 6 de julho de 2010

MEDO DO AMANHÃ

Fabrícia sempre foi uma menina apaixonante, ainda mais para um viúvo quase quarentão como eu. Doce, ela trazia a alegria de viver estampada nos olhos e no sorriso – aquela alegria, sabe?, que quase todos temos aos vinte e poucos anos. Dona de um espírito jovial ao extremo, a primeira pessoa a me fez pensar em mim de forma colorida foi Fabrícia – sim, antes dela, sempre pensei em mim como se fosse preto e branco. Mas isso é uma outra história.

Ela era estudante de Letras, com habilitação nas línguas portuguesa e francesa. Durante os seus primeiros semestres na faculdade, tive o prazer inenarrável de lecionar o francês para Fabrícia em aulas particulares, em minha casa. Muito disciplinada e curiosa, Fabrícia, sem querer, fez com que eu me aprofundasse ainda mais naquela língua, a fim de suprir tanto interesse de sua parte. Foi assim que nos conhecemos.

Embora eu sempre tomasse o máximo de cuidado para não me envolver com nenhuma das minhas alunas – principalmente as mais jovens –, devo confessar que diante de Fabrícia me senti, por diversas vezes, tentado às segundas intenções. Talvez por ser a única a levar aqueles momentos de estudo como realmente prazerosos. Tomávamos café, ouvíamos muita música francesa e conversávamos bastante também; tudo durante o horário da aula. Daí para o nosso primeiro beijo não demorou muito.

Começamos assim, nesse clima franco brasileiro, a namorar. A parte mais chata foi explicar à minha filha Aninha, na época com oito anos, que “aquela menina bonita de cabelo de cenoura” era, então, a namorada do papai. Aninha a chamava assim devido ao ruivo forte dos cabelos de Fabrícia, que, por sua vez, tinha o rosto coberto pelas sardas mais fofas que já vi. Os cabelos de Fabrícia eram lisos, um pouco abaixo do ombro. Não muito por sua beleza, mas por sua combinação de características é que Fabrícia chamava a minha atenção.

Sempre nos demos muito bem quando namorados, mas, infelizmente, entre Fabrícia e eu existia uma espécie de vácuo temporal. É que seus vinte e dois anos – contrastando com os meus trinta e sete – me causavam certa preguiça em acompanhá-la em certos assuntos que fugissem das nossas aulas; eu precisava largar o conforto do conhecimento sobre as minhas “antiguidades” e pisar em novos terrenos, que, diga-se de passagem, não me agradavam muito.

Mas Fabrícia também devia ter a mesma “preguiça”, já que não parecia muito fácil para ela disfarçar a “cara de paisagem” diante das coisas que para mim eram tão importantes. Enquanto eu caminhava vagarosamente, degustando com calma e critérios aquilo que me cercava, Fabrícia era a nova geração, a rapidez e o descarte em pessoa. Com a música francesa, por exemplo, enquanto ela devorava (e me fazia devorar também) dezenas de novas bandas a cada encontro, eu ainda cultuava os LPs do
Michel Delpech.

Foi muito chato quando, depois de quase um ano namorando, concluímos que nossas cabeças somente se encontravam quando o assunto era o estudo da língua francesa – isso talvez explique o motivo de nossa primeira transa ter sido sobre a mesa coberta de livros. Foi chato porque, mesmo diante de todas essas diferenças entre nós, eu me sentia ainda muito atraído e dependente dos carinhos de Fabrícia.

- Acha que foi um erro, Cláudio? – dizia-me Fabrícia.

- Louca! Isso nunca! Não me arrependo e nunca me arrependerei de nenhum momento que tivemos, Fabrícia.

- É que quando começamos a namorar eu não tinha noção dessa nossa “diferença”. As nossas idades e a Aninha nunca foram obstáculos para o meu gostar, entende?

- Sim, nem para mim. Eu sinto muito se, quando não estamos envolvidos nos estudos, lhe pareço um velho de sessenta anos.

- Não é assim também, Cláudio. Eu é que devo parecer uma adolescente boba quando puxo do bolso o meu iPod e o forço a digerir tanta coisa.

- Não é verdade...

E assim, nesse pedido mútuo de desculpas errôneas, decidimos terminar, sem brigas, o nosso namoro. Logicamente, Fabrícia mudou de professor particular; foi ter aulas com a excelente Olívia – coincidentemente, uma ex-namorada minha.

Algumas semanas se passaram sem que eu visse Fabrícia.

Até que certo dia, Olívia bate à minha porta.

- Oi – dizia Olívia.

Olívia é daquele tipo de mulher que não envelhece. Se não me engano, Olívia é apenas dois anos mais nova que eu, mas aparenta ser muito mais jovem.

- Olívia! Tudo bem? Entre!

- Não, obrigada. Não vou demorar.

- E o que a traz aqui?

- Deve saber que uma ex-aluna sua, a Fabrícia, andou tendo aulas particulares comigo, não sabe?

- Sim, sim!

- Então. Estou aqui para lhe dar uma notícia meio chata.

- O que foi? Diga!

- A Fabrícia faleceu nessa madrugada.

- Como? Como isso?

- Pois é, Cláudio. Não sei se você tinha ciência, mas parece que ela carregava um tumor no cérebro.

- Não, ela nunca me contou!

- Ela esteve internada na semana passada, mas parece que não resistiu a uma cirurgia. Eu... Eu sinto muito.

- Meu Deus...

- Vim te contar porque... Porque ela me falou. Ela... Ela me falou sobre vocês dois.

- Ah, sim... Obrigado, Olívia.

- Agora... Sei que não é o melhor momento, mas... Você gostou mesmo da Fabrícia? Quer dizer, vocês namoraram mesmo?

- Sim, Olívia. Mas terminamos por concluirmos que havia entre nós uma distância muito grande. Para mim, era como se eu namorasse alguém com uma sede de viver tudo ao mesmo tempo, entende?, numa correria, numa vida líquida.

- Entendo. E, pelo visto, ela tinha motivos, não é?

Olívia tinha razão. A euforia e a rapidez com que as coisas entravam e saíam da vida de Fabrícia era fruto de uma espécie de “medo do amanhã”. O porquê de Fabrícia nunca ter me dito sobre o tumor eu, a partir daquele momento, fiz ideia: ela percebeu que eu não era a pessoa certa para dividir com ela a tensão de cada dia.