quinta-feira, 28 de maio de 2009

MÓVEL pt.2

Naquela noite, André já começava a demonstrar a si mesmo uma espécie de princípio de loucura. Ao mesmo tempo em que pensava no que fazer primeiro, diante da “liberdade” que aquela paralisação lhe provera, mantinha os olhos ora naquela mulher em sua cama, ora na única janela de sua casa. Uma “cabeça de porco”, para falar a verdade. Tinha certo medo.

Sentia-se num misto de felicidade, incômodo e inquietação. Ficava em dúvida em relação à prioridade que deveria dar a cada coisa a ser feita. Apaixonado por carros, André ainda pensava se aquela mulher deveria ser “traçada” antes ou depois de conhecer o gosto de dirigir o veículo que quisesse – estavam todos disponíveis à sua vontade. Até que, num estalo:

- Quer saber? – dizia a si mesmo André – Traço depois! Está tarde, preciso dormir, mas quem me garante que tudo não volta ao normal daqui a pouco? Mulher que se move eu pago. Carro que se move eu já cansei de só olhar!

Firme na ideia de pilotar as maravilhas do ano, André assume novamente o volante do carro daquela desconhecida. Mas antes, passava os olhos sobre as crianças que brincavam frente a sua casa. Pareciam estar jogando futebol, já que um deles, o mais magrelo, vestia uma blusa de goleiro e, esticado como que numa ponte defensiva, permanecia paralisado com o rosto voltado ao chão. André não sabia o que fazer quanto às crianças. O sereno umedecia levemente as costas delas. Ligava o carro e partia.

Fazendo outro trajeto – desviando-se de mais batidas e incêndios –, André seguia até uma concessionária Citroën.

Lá dentro, primeiramente, deu um beijo numa das recepcionistas, uma jovem linda.

- Gostou do beijo, boneca? – dizia André à “estátua”.

A loja estava escura. Apenas algumas luzes – as que iluminavam os carros –, estavam acesas. André procurou pelos disjuntores e, então, ascendeu toda a loja.

- Yeah! – gritava o contente André.

Nesse instante, André lembrava de um detalhe: onde pilotar aquelas máquinas? As principais vias estavam tomadas por veículos batidos e pedestres paralisados. Teve que dirigir sobre calçadas e até praças para chegar até ali. “Merda”, pensava.

André voltava até a recepcionista e:

- Merda de vida hein, senhorita... – André lia o crachá – senhorita Beatriz!

O rapaz, transtornado, dava uma tapa no rosto de Beatriz, que, mesmo assim, logicamente, não tirava o sorriso do rosto. Correu até um extintor de incêndio, muniu-se do mesmo e lançou-lhe contra o vidro da frente da concessionária. Vendo todos aqueles estilhaços vindo ao chão, caiu em si; notou seu real estado emocional: o desespero.

André entrou novamente no carro que o levou até ali, girou a chave, mas lembrou que já ia esquecendo algo. Voltou até o balcão para buscar Beatriz. Colocou-a no colo e a acomodou no banco do carona.

- Já que não posso com os carros, me darei o luxo de pelo menos escolher qual das duas gatinhas eu vou “traçar” quando chegar em casa.

No caminho, na subida de uma pequena ponte, André teve a vista do mar. Pode observar que diversas embarcações se amontoavam próximo à orla. Tudo perdera a direção de uma hora para outra. André dirigiu todo o trajeto pensando na quantidade de problemas ocasionados por aquela paralisação sem sentido.

- Quem pilotava um avião, caiu. Quem dirigia um carro, bateu. Quem mexia com fogo, causou incêndio...

Foi quando passou frente a um shopping. André desligou o automóvel e:

- Fica aqui Beatriz – dizia André com certa morbidez.

André queria, na verdade, constatar o que lhe vinha em mente: o que ocorrera com as pessoas nas escadas rolantes daquele shopping? Justamente o que ele já imaginava: um amontoado de pessoas enrijecidas bloqueava as saídas das escadas. Ele foi até um desses montes e observou um barulho de pancadas que se repetia. Eram os degraus da escada rolante que batiam forte sobre a cabeça – já com um buraco imenso - de um rapaz. André olhou aquilo, mas não teve coragem para ato algum; saiu.

Antes de tomar novamente o carro, passou por uma lanchonete, logo na entrada do shopping, e roubou um salgado de queijo e presunto e um copo de refresco de kiwi.

Dirigindo até em casa, André alisava as pernas de Beatriz.

- Você ri, não é? Ri porque gosta! Não gosta? Hein?

O sorriso que Beatriz mantinha em seu rosto fazia mesmo parecer que tudo aquilo estava sendo muito prazeroso. Era um sorriso lindo. Dentes perfeitos!

- Eu ainda estou lhe mantendo vestida, senhorita Beatriz! Espere até chegarmos em casa!

Chegando em casa, já por volta de 2h da madrugada, com mais uma mulher nos ombros, André notava que uma das casas vizinhas à sua pegava fogo.

- Merda! Um incêndio agora?

André deitava Beatriz em sua cama, do lado da outra mulher, e dizia a si:

- Eu com duas beldades na minha cama? Foda-se o incêndio, ora!

André pegava uma cerveja na geladeira. Dava um gole e partia para cima de Beatriz, que, imóvel, somente sorria. A jovem teve sua roupa rasgada como que por um animal selvagem.

- Ah! Que seios! – dizia André.

Como Beatriz estava sentada no momento da paralisação, sua posição não dava muitas opções a André.

- Vai “de quatro” mesmo, boneca!

André, covardemente, deliciava-se com o corpo imóvel de Beatriz. enquanto as chamas cruéis da casa vizinha levavam ao ar um sinistro odor de cremação.

[Continua]

* * *
Foto da Capa:
Renato Tavares.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

MÓVEL pt.1

Certo dia, por volta de meio-dia, André – cidadão de classe baixa, montador de móveis das Casas Bahia – ao garfar sua humilde marmita, sentiu-se tonto por alguns segundos. Viu tudo à sua volta girar numa velocidade inicialmente crescente e depois decrescente.

Conforme o mundo parava de “rodar”, André identificava, aos poucos, um cenário estranho: seus amigos, que naquele depósito também almoçavam, pareciam paralisados.

- Meu Deus, que tonteira foi essa? – dizia André com a mão à cabeça.

Sem obter colocação de nenhum de seus amigos, André concluía o surreal: todos eles estavam realmente paralisados. Uns com o garfo à boca, outros boquiabertos como se fossem comentar alguma coisa. Uma visão, acima de tudo, bizarra.

- Gente, o que houve com vocês? – dizia André.

André, que mastigava um bife de rigidez ímpar, passava os olhos nos amigos e, depois de exatos cinco segundos, largava sua marmita no chão e corria desesperadamente até o lado de fora do depósito.

- GILMAR! GILMAR! – André entrava na sala do supervisor de estoque a berrá-lo.

André notava que Gilmar também se encontrava paralisado. Corria então para loja. Descia as escadas num misto de confusão e nervosismo. Até que:

- Meu... Deus...

André avistava todos como estátuas. Como acreditar no que suas vistas lhe mostravam?

- Eu devo estar sonhando! Não é possível!

André observava as poses de cada uma daquelas pessoas. Lojistas e clientes, não escapou ninguém. Pensava, já embarcando naquela loucura, que somente o seu local de trabalho teria sido atingido por aquele “mal”. Porém, ao olhar as dezenas de TVs nas prateleiras – sintonizadas no mesmo canal –, notava que a âncora do telejornal também paralisara e, como ela, toda sua equipe, pensava André.

- Mas o que é isso, meu Deus? Está todo mundo feito um bando de árvores?

André voltava até o depósito e lá estavam seus amigos da mesma forma: como manequins. Ele corria então até à rua em busca de ajuda. Mas quem iria lhe ajudar, se, ao pisar o lado de fora da loja, avistou todo um centro urbano paralisado?

Barulhos de batidas de carro e até da queda de um avião tomavam a audição confusa de André. Logo ele entendia-os, já que paralisados de uma hora para outra, os motoristas não poderiam frear seus automóveis, assim como os pilotos de avião também não poderiam posar suas aeronaves.

André tentou pensar em quantas coisas estranhas poderiam ter acontecido com aquela paralisação na qual, pelo que parecia, somente ele se livrara.

Durante todo o resto daquele dia, André caminhou pelo Centro da cidade à procura de alguém móvel, mas sem sucesso. Por vezes estranhou aquele caos, mas não pelo caos em si, mas pela ausência de vozes humanas. Tudo o que se ouvia eram ruídos produzidos apenas por tudo aquilo que os humanos criaram.

A noite caía e, ainda sem entender o real motivo daquela loucura, André tomava sua primeira atitude a seu favor: retirou uma moça de um carro, colocou-a sentada no banco do carona e foi dirigindo até em casa.

André precisou dar uma volta imensa até o destino, já que várias vias estavam tomadas por veículos virados e até alguns incêndios. Dirigiu durante toda aquela noite à companhia daquela mulher.

- Ô mulher, me diga o que aconteceu! Por que vocês todos ficaram assim? – perguntava André sem respostas.

O silêncio daquela mulher com aquele sorriso que não saía do rosto parecia mais um deboche.

- Por que só eu me mexo? Explica, mulher! Explica! Explica!

Já em frente sua casa:

- Quer saber? Vou levar você comigo! Não vou dormir só, esta noite!

André carregou-a sobre as costas. Avistou uma vizinha na janela a “expiar”.

- O que está olhando, sua fofoqueira? – dizia André, que notava então a invalidez de sua frase.

A vizinha ali permanecia.

- Diabos. Também está paralisada – concluía André.

André entrava com a mulher ainda nas costas.

Ao colocá-la em sua cama, André se sentava numa cadeira e dizia a si mesmo:

- Se está todo mundo parado e somente eu me mexendo, eu posso fazer o que eu quiser, ora! Posso beber toda a cerveja do bar do Dedo Torto, me dar o luxo de não trabalhar amanhã... Posso beijar essa mulher, posso chupar os peitos dela, posso pegar um carro do ano, posso pilotar até um carro da Fórmula 1 se eu quiser! Ô meu Deus, obrigado por esse caos!

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Renato Tavares.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

CRY ME A RIVER

Quando perguntavam a Lúcio se ele gostava de música, a resposta era “depende”. Porque de fato dependia de qual música estavam falando, já que ele só gostava de uma única: “Cry me a river” de Arthur Hamilton.

Em seu pequeno acervo musical, Lúcio possuía quase todas as diferentes interpretações da referida música. Desde Julie London, Ella Fitzgerald, Joe Cocker até o Aerosmith. Para Lúcio, esta composição era o mais belo standard de jazz existente no planeta e por isso fora tantas vezes gravado por diversos intérpretes.

Além da melodia incrível, a letra era o que também chamava a atenção de Lúcio, que conheceu tal música na exata situação colocada nos versos da mesma. Uma ex-namorada o havia pedido perdão após ter tripudiado de seu amor. Um amigo lhe apresentou “Cry me a river” coincidentemente no dia do tal pedido. Foi assim:

- Lúcio. Sei que você não gosta de música, mas ouça isso aqui.
- Já disse que não ligo muito para esse tipo de expressão, Célio.
- Se você não gostar desse disco, eu mudo de nome.
- OK.

Tratava-se do LP Julie is her name da Julie London, de 1955. O disco abria com a canção que depois da primeira audição tornava-se para Lúcio a música de sua vida. Todo o restante do álbum o soava comum como todas as outras melodias que ouvia no cotidiano. A partir daí, o jovem viciado em livros passou também a colecionar discos que continham qualquer versão de “Cry me a river”.

Todas as versões o faziam chorar. E chorava um rio ao lembrar-se que Daniela não mais estava em sua companhia. Pensava que a música era cantada agora no intuito de fazê-lo chorar de arrependimento por não ter perdoado Daniela. Fez esforço para aprender a tocar o velho violão de seu pai, mas apenas os acordes de “Cry me a river”. Cantava-a diversas vezes por dia. Lúcio era já um mestre em “Cry me a river”.

Lúcio se via no meio de tantos discos empoeirados e fotos amareladas de Daniela. Já se passavam três anos após o último contato, mas ainda havia esperança por parte de Lúcio de que um dia iriam se encontrar novamente. O número do telefone de Daniela era escrito nas faces dos discos para que se lembrasse de ligar para ela quando ouvisse “Cry me a river”. Mas isso nunca acontecia. Medo era o que sentia. Medo de ouvir na voz de Daniela os versos que diziam “Agora você diz que me ama. Bem, para provar que sim, venha e chore-me um rio. Eu chorei um rio por você”.

Num certo dia, Lúcio tomava coragem e resolvia ligar para Daniela. Três anos. A dúvida era se o número ainda permanecia com ela. E permanecia.

- Alô.
- Pois não?- É da casa de Daniela?
- É ela quem está falando, Lúcio.

Assustado:

- Ainda lembra de minha voz?
- Claro que sim.
- Faz tanto tempo que não nos falamos.
- Por sua causa. Não recebi o seu perdão até hoje.- Pois é. Fui um idiota. Podemos nos ver?
- Claro. Quando?
- Hoje. Pode ser? Você ainda mora no mesmo local?
- Sim. Passa aqui às nove. Pode ser?- Sim. Às nove.

Lúcio desligava o telefone sentindo-se bem melhor. Levantava a agulha da vitrola e desligava-a. Eram cinco da tarde, mas o rapaz já se encontrava em total ansiedade.

21h. Lúcio batia à porta de Daniela. Enquanto esperava-a, notava o quanto tinha mudado a fachada daquela casa. Nos tempos em que namoravam, as manchas de umidade tomavam conta de toda sua frente. Agora, via que estava limpa e com nova pintura. As janelas também; eram sujas e agora brilhavam.

- Oi, Lúcio.

Daniela estava linda como sempre. Nada havia mudado. Parecia um retorno ao passado.

- Você está linda, Daniela.
- Você também, continua lindo. Entre. Vamos até o meu quarto. Preciso lhe mostrar umas coisas.

Chegado lá, Lúcio se deparava com uma imensa coleção de discos.

- Daniela! Pelo que sei, você, como eu, não era muito chegada à música. Estou certo?
- Sim, mas depois que me deixou, Célio, nosso amigo, me apresentou um disco...
- Um disco da Julie London?
- Como sabes?
- Ele fez o mesmo comigo também.

O efeito causado por “Cry me a river” foi igual em ambos. Na verdade, Célio sabia que isso iria acontecer. No dia em que o amigo apresentou-lhes a canção, o mesmo estava de partida para a França.

- Lúcio. Veja o que ele deixou dentro do meu disco – dizia Daniela –, esse bilhete:

Vocês dois nasceram um para o outro. Chore um rio por ele e deixe que ele chore um rio por você. Mas depois das lágrimas, o perdão virá por parte dos dois. Ninguém será culpado de nada.

Ao som do disco que ocasionou o reencontro, um beijo tomava conta do quarto de Daniela.

Chegado em casa, o desligado Lúcio vai até o disco que Célio lhe dera. Havia um bilhete idêntico amassado no fundo da capa. Lúcio fecha os olhos e agradece a Célio pelo feito.

* * *
Conto publicado originalmente em 21 de abril de 2008 e retirado para participação de concursos literários.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

VOCÊ VENCEU

Por que ela não podia ser como as mães normais que conheço? Por que ela tinha que usar as minhas roupas, ter confidências com as minhas amigas, frequentar os mesmos lugares que eu frequento? Por quê?

Eu preciso confessar que minha mãe – eu acho que pelo fato de me ganhar ainda muito jovem – não aparentava sequer ser mãe; muito menos ter a idade que realmente tinha. Juro que, às vezes, olhava-me no espelho e me sentia mãe de minha mãe. E isso em todos os sentidos! Parecia mesmo ter as rugas que ela não tinha!

Chegava da escola e:

- Mãe, eu estou morrendo de fome! O almoço está pronto? – ninguém respondia – Mãe?
- Oi filha! Espere um pouco! – respondia, finalmente, minha mãe ao telefone.
- Não é possível! Já está no telefone?

A cena que presenciava era quase revoltante: minha mãe deitada no sofá com as pernas para o alto. Com uma das mãos, segurava o telefone, e com a outra, fazia cachinhos numa das mechas coloridas de seus cabelos.

- Fernanda, depois eu te ligo – dizia minha mãe – Joana chegou aqui e já quer me dar ordens! Você precisa acalmar sua amiga e dizer a ela que tu és minha amiga também e que tenho direito de falar com você... – ela ria – Bem, até mais tarde!

Eu morria de raiva.

- Poxa, mãe!
- O que foi, Joana?
- O que você e Fernanda tanto conversam?
- Coisa nossa, minha filha!
- Mas mãe, a Fernanda tem quinze anos! O que tanto uma mulher de trinta e dois anos tem para falar com uma de quinze?
- Muitas coisas! Ela é minha amiga, Joana, só isso! Por quê? Está com ciúmes?
- Não é ciúmes, mãe! Só acho que você deveria papear com pessoas da sua idade, ora! Por que tem que ser com as minhas amigas?
- Fique calma, Joana! O almoço está quase pronto, sim? Relaxa!
- Quase? OK... eu espero.

O telefone tocava.

- Deixe que eu atendo, mãe!
- Está bem, Joana.
- Alô!
- Alô! Joana?
- Oi Fernanda!
- Chama sua mãe aí! Esqueci de falar uma coisa!
- Ah!? Mas...
- É rapidinho!
- Está bem... MÃE! É A FERNANDA!

Era assim quase todo dia. Minha mãe fazendo o papel de adolescente, e eu, por conta dela ser assim, tentando fazer o papel de mãe. Mas o que mais me irritava era aquela relação dela com meus amigos. Que ódio!

Ela terminava com o telefone e:

- Não vai acreditar no que Fernanda acabou de me contar, Joana!
- O quê? – eu respondia com aparente desânimo.
- O Pedro Henrique está a fim de mim!
- Ah!? Mas... O Pedro Henrique? O meu ex-namorado?
- Sim! Não vai ficar chateada, vai?
- Imagina, mãe! – eu ironizava.
- Ah, filha!
- Mãe! Você perdeu a noção do ridículo? O Pedro é mais novo que você doze anos! Acorda! O que meus amigos vão pensar? E, porra, precisava ser logo o Pedro Henrique?
- Mas filha, eu não fiz nada! Ele é quem está a fim!
- Mas pela empolgação que você me deu a notícia, mãe, você me pareceu bastante a fim também!
- E o que é que tem? Vocês andaram dando uns beijinhos, tudo bem. Mas, por isso, eu não posso ficar com ele?
- Beijinhos? Ele foi meu namorado! Freqüentou a nossa casa por dois anos! E “ficar”, mãe? Olha para você! “Ficar”? Não acha que está velha demais para usar tal expressão? Pior: para praticar tal ação!
- Velha? Eu? Você está é com inveja! Não conseguiu segurar o Pedro Henrique e agora está com medo dele me achar melhor do que você!
- Mãe?!

Como dizer à minha mãe o quanto me sentia envergonhada com tudo aquilo? Eu, que me julgava tão antenada e moderna, estava ali julgando as atitudes de minha mãe como se fosse o mais conservador dos seres. Mas o fato é que aquilo tudo realmente me envergonhava!

- Não é isso, filha? Inveja?
- Mãe! Eu só queria que você fosse normal!
- Normal? Eu não sou normal? Só me faltava essa!
- PELO MENOS AS MÃES DAS MINHAS AMIGAS NÃO DÃO MOLE PARA OS AMIGOS DELAS!

Minha mãe emudecia. Eu chorava. Via minha mãe, com suas mechas coloridas, pegar a panela com força e praticamente lançá-la sobre o fogão. Com gestos brutos, minha mãe começava a preparar o almoço. Nunca em minha vida vira em minha mãe semblante tão triste.

- O almoço estará pronto em breve, Joana. Vá tomar seu banho.

Ela falava de forma tão séria. Eu me sentia egoísta. Sentia-me um monstro, na verdade. Mas, mesmo assim, sentia também um delicioso frescor em meu peito. Sentia que, enfim, eu era a filha naquela relação.

- Não se preocupe. Não levarei à frente o Pedro Henrique, OK? – dizia minha mãe.
- Ô mãe... Desculpe-me, mas... Não deve ser tão difícil para você, assim tão bonita, conquistar alguém mais maduro, é?
- Está tudo bem, Joana...

No dia seguinte, ao chegar da escola, eu encontrava minha mãe morta. Envenenara-se. Do lado de seu corpo havia um bilhete:

Joana,

Já que insistiu tanto em adiantar-me à velhice, resolvi seguir a sua linha de pensamento e adiantei-me à morte. Espero que, enfim, esteja tudo bem para você.


De certa forma, minha mãe adiantou-me às responsabilidades adultas. Aceitei sobre uma total falta de entendimento sobre certo e errado. Até hoje não sei o que sentir diante de tudo aquilo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

SAFADO NÃO! CRIATIVO!

Pela primeira vez na minha vida, talvez, eu entrava em uma loja de lingerie. Tinha o objetivo de sair de lá com um presente para Aline, estagiária lá do escritório. A minha experiência com esse tipo de compra, como já disse, era zero, logo, a chance de eu comprar algo desagradável era enorme.

- Quer alguma coisa? – perguntava-me a lojista.
- Vocês vendem extintores de incêndio?
- Não!
- Eu imaginei. Então, acho que vou querer ver lingeries, pode ser?

Ela me olhava com a cara mais feia de seu estoque. Mas o que eu posso querer numa loja de lingerie?

- Qual o seu nome, senhor?
- Silva. Jorge Silva.
- E em que posso ajudar?
- Bem, eu preciso comprar um presente para uma amiga minha, mas não tenho a mínima noção do que ela gosta de usar. Quer dizer, noção eu até tenho, mas não queria dar uma coisa que ela já estivesse careca de usar. Ih! Eu disse careca? É, mas é careca mesmo, se é que você me entende.
- Antes, posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro!
- É amiga mesmo ou é mais que isso?
- Gostei de você! Bem, é mais que amiga. Ela é estagiária de lá onde eu trabalho. Nunca me deu bola. Zoava com a minha cara, mas me provocava também. Então, quando foi no Natal...
- Chega. Não precisa entrar em detalhes, Sr. Jorge. Eu já entendi.
- Sim...
- Vamos ver. Ela faz do tipo tímida ou do tipo fatal?
- Acho que nem uma coisa nem outra. Ela não é tímida, mas também não chega a ser fatal. Simplificando: ela é uma menina normal, mas que entre quatro paredes mostra gostar muito da coisa. Sabe que, no mês passado, eu pedi a ela que vestisse uma...
- Chega, Sr. Jorge. Eu já entendi.
- Tudo bem.

Eu notava que nas duas vezes em que me empolguei e quase dei detalhes de minha intimidade com Aline, a lojista dava uns puxões na gola de sua blusa e soprava o tórax, parecendo sentir certo calor.

- Bem, Sr. Jorge, eu...
- Não me chama de senhor, por favor.
- Tudo bem.
- Obrigado.
- Então, Jorge. Eu tenho aqui algumas peças que fazem bastante sucesso. Elas são sensuais, mas, de certa forma, comportadas. Dê uma olhadinha.

Ela me mostrava uns conjuntos que faziam dos manequins verdadeiros objetos de desejo. Eu cheguei a alisar o seio de um deles, para loucura nítida da lojista.

- Jorge, por favor... Por que fez isso?
- Isso o quê?
- Você alisou o seio de um manequim!
- E daí? Quis sentir a textura das peças, não posso?
- Pode, mas...
- Ou você prefere que eu alise o seu?
- Ficou maluco?! Eu chamo o segurança!
- Foi só uma brincadeira. Como você se chama?
- Gabriele.
- Belo nome. Mas então...
- Diga.
- Eu gostei desse conjunto aqui. Acho que é a cara dela.
- OK! P, M ou G?
- Ih... Você veste qual?
- Esse conjunto para mim seria P.
- É, mas ela tem um pouco mais de corpo que você.
- Entendi. Leva M.
- Levarei.

Enquanto ela procurava a peça no meio de um monte de sacola e embrulhos, eu esperava ao balcão. Gabriele se agachava, subia numa pequena escada, andava para lá e para cá... Gabriele é uma moreninha de estatura mediana e dos cabelos cacheados. Uma gracinha. Muito bem maquiada, ela exibia um certo charme na pronúncia de certas palavras, como “chamo”, “conjunto”; fazia um biquinho engraçado. Imaginei aquela boquinha em ação.

Numa das agachadas, pude notar o detalhe da calcinha dela. Pronto! Tesão!

- Gabriele!
- Sim? – ela respondia ainda de costa.
- Você usa lingerie dessa loja?
- Sim, uso. Por quê?
- Essa calcinha que está usando é daqui?
- O quê?! Você... Você olhou minha calcinha?!
- Não exatamente. Mas é que acabou aparecendo e...
- Mas você é muito safado, não?
- Eu?!
- Seu...
- Gabriele, por favor, o que há de errado em eu ver uma simples calcinha? Aqui mesmo eu estou vendo um monte. Olha quantas há nessa loja!
- ... – ela voltava a soprar o tórax.
- Foi só uma pergunta, Gabriele.
- OK! Sim, essa calcinha que estou usando é daqui sim!
- Então, acho que vou querer também!
- OK!
- O conjunto, por favor.
- OK!
- M, sim?
- Sim, Jorge!

Depois de alguns minutos, Gabriele me entregava minha sacola.

- Muito obrigado, Gabriele.
- Obrigada a você. Espero que ela goste. E que você aproveite.

Eu sentia malícia naquela frase.

- Sim. De qualquer forma eu vou tirar tudo isso com os dentes mesmo.
- Por favor, Jorge... Poupe-me! – ela ria.
- Tudo bem... Tchau!
- Ah! Jorge!
- Diga.
- Apareça mais vezes.
- Pensei que quisesse distância de um “safado”.
- Não é bem assim... Seu safado.
- Safado não, Gabriele! Criativo!
- Ah! – ela abria a boca abismada, porém, com um olhar tomado de curiosidade.
- Tchau!

Aquele provador da loja deve ter histórias boas de Gabriele para contar.

* * *
Mais histórias sobre Jorge Silva em Quem Você Quiser I e II, Pela Cidade e Nada Mau Para Um Natal.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

AQUELA PRIMAVERA

Sair do colégio às 18h e encontrar-se com Larissa era o motivo que o fazia estar por lá às 13h. As aulas lhe chegavam como um monte de palavras emboladas. A sua posição de pensador e o semblante de sonhador davam aos colegas de Otávio o prazer de uma cena patética que resultava em risos durante toda a aula.

Otávio respondia a chamada como que numa atitude mecânica. No intervalo, saía devagar e com o olhar rumo ao nada, enquanto a “manada” quase lhe atropelava pelos corredores. Era fato: Otávio estava perdidamente apaixonado por Larissa, que por sua vez, tinha dois anos a mais que ele, dezessete, e estudava numa escola vizinha.

Na saída, ele corria para frente da escola de Larissa e ali permanecia até que ela saísse. Era assim que acontecia todo dia. Ao passar pelo portão, Larissa parava, soltava seus fios loiros antes presos por um elástico, desabotoava o uniforme e dava um nó com as pontas, deixando à mostra aquela barriga livre de qualquer porcentagem de gordura. Para isso, colocava os cadernos entre as pernas fazendo subir sem querer boa parte da saia pregada que compunha aquela visão magnífica, para delírio de Otávio.

Depois dessa preparação, Larissa atravessava a rua correndo de braços abertos ao encontro de Otávio. Nesse ato, a frustração por conta dos marmanjos era visível e unânime. Os mais velhos, que chegavam à escola para o turno da noite, pareciam soar em uníssono a frase “que moleque de sorte”. E realmente ele era. Otávio era um garoto de canelas finas, ombros mal desenvolvidos e uma cabeça que, meu Deus do céu, que cabeça! Era enorme e desproporcional ao restante daquilo que ele chamava de corpo. Mas o que importava? O feioso tinha nos braços uma menina linda e mais experiente, assim digamos, do que ele. Em seus 15 anos de vida sempre fora lembrado como o esquisito da rua ao lado. Larissa na vida dele era uma verdadeira benção!

Saindo dali, os dois iam direto para a escadaria que dava no prédio de Larissa, logo ali perto. Ficavam às vezes até às 22h tentando entender através de beijos, abraços e carícias o que os faziam não querer mais largar um do outro. Larissa brincava com a bagunça que eram os cabelos encaracolados de Otávio, que ria sem parar quando ela o chamava de “meu”. Sempre comportados, se colocavam o tempo todo às vistas da mãe de Larissa, que de vez em quando dava uma vigiada lá da janela do 6º andar para ver se estava “tudo bem”. E sempre estava. Eram dois jovens apaixonados, só isso.

Quando Larissa chegava em casa:

- Larissa, Larissa. Está subindo tarde, minha filha.
- Desculpe, mamãe. É que eu e o Otávio...
- Já sei. Estão apaixonados e não conseguem se desgrudar. Já ouvi isso.
- Então.
- Mas é que se seu pai chega e te encontra às dez horas da noite, ainda de uniforme, lá em baixo com o Otávio, não será nada bom. Ele aceitou que namorasse, mas você sabe das condições, Larissa.
- Sei sim, mamãe. Mas é que ele chega dez é meia, não?
- Mas tem dias que chega mais cedo. Bem, chega de papo. Vá tomar um banho e depois venha jantar. Anda.
- Está bem.

No banheiro, Larissa se despia como uma atriz de cinema. Ligava o aparelho de som portátil, que já permanecia debaixo da pia do banheiro propositalmente, e ao som da oitava obra de Vivaldi, “As Quatro Estações”, mas especificamente o concerto denominado “Primavera”, ela começava o seu ritual que misturava interpretações de cenas de filmes que não lhe saiam da cabeça e frases, que lhe faziam morrer de paixão, ditas por Otávio momentos antes. A música clássica e o gosto por uma arte refinada foram fatores que ajudaram muito na aproximação de Larissa e Otávio. Ambos tocavam violino e se conheceram na fila do Teatro Municipal.

Naquele dia, Bernardo, pai de Larissa, chegava em casa com o astral nas nuvens.

- Cláudia! Chame Larissa, pois precisamos conversar os três.
- Sim, amor. Aconteceu algo?
- Sim, Cláudia, aconteceu!
- Algo ruim?
- Não! Algo bom! Algo muito bom!
- Então digas, homem.
- No jantar eu digo, deixe-me tomar um banho.

Após o banho de Bernardo, Cláudia e Larissa já se encontravam ansiosas à mesa.

- Conta logo, pai. O que aconteceu de tão bom?
- Pois bem, filha. Fui promovido!

As duas comemoraram e se abraçaram como num gol da seleção em final de copa.

- E fui transferido também – continuava Bernardo – Irei ocupar um ótimo cargo em São Paulo. É isso. Voltaremos a nossa querida cidade, família.

Na mesma hora, Larissa calava-se, abaixava a cabeça e danava-se a chorar. Cláudia, já desconfiando o motivo das lágrimas, fazia sinal a Bernardo para que não dissesse mais nada.

Larissa corria para o seu quarto aos prantos.

Logo depois, chegava sua mãe.

- Larissa. Não fique assim. Isso é muito importante para o seu pai e para nós também.
- Eu sei mamãe. Vou pedir desculpas ao papai depois, pois sei o quanto é promissor para ele, mas é que não agüentei pensar em ter de deixar o Otávio. Nunca senti nada igual ao que sinto por ele – respondia soluçando Larissa.
- Eu entendo, filha. Mas pense que isso não significa o fim do namoro de vocês. Podem se ver nas férias. Que tal?
- Nas férias, mamãe? Nas férias? Não consigo ficar um dia sem vê-lo. Como farei? Acho que não quero voltar para São Paulo.
- E vai ficar como por aqui? Nossa família é toda de lá. E além do mais, seria eu quem não conseguiria viver sem você, Larissa.
- Eu já tenho 17 anos, mamãe. Eu poderia ficar nesse apartamento mesmo.
- E viveria do quê? Você não trabalha, Larissa. Esqueceu?

Larissa criava maneiras de driblar os fatos, mas tinha ciência de que as mesmas não tinham chances contra o ocorrido.

- Deixe-me sozinha, mamãe.
- Claro, filha.

Concordava Cláudia, que ia até a sala fazer companhia ao desatento Bernardo.

A menina não pensava duas vezes. Ligava para Otávio.

- “Meu”.
- Oi amor.
- Papai chegou aqui com uma péssima notícia.
- O que houve?
- Por conta do trabalho dele, teremos que voltar para São Paulo. Mas eu não quero, “meu”.
- Nossa! Eu também não quero que vá, mas como faremos?
- Não tenho a mínima ideia.

No dia seguinte, já tendo conhecimento de toda situação, Bernardo chega em casa e encontra uma Larissa tristonha e chorosa.

- Larissa! – chamava-a Bernardo.
- Oi papai.
- Quero falar com o Otávio.
- Sobre?
- Conversa de homem, filha. Ligue para ele e me ponha na linha.

Surpresa, Larissa respondia:

- Está bem.

Larissa fazia o que o pai mandava e:

- Otávio? – dizia Bernardo.
- Quem fala?
- Bernardo, o pai de Larissa. Tudo bom?
- Sim. Claro.

Respondia o menino sem entender a causa de tal ligação.

- Você já deve estar sabendo de nossa volta para São Paulo, não?
- Sim senhor. Larissa me contou.
- Pois bem, agora me diga o que sentes por minha filha.

Otávio usava então todo seu talento com as palavras, o mesmo que conquistou de vez a Larissa. Contava exatamente tudo o que aquela loirinha de sotaque engraçado representava para ele.

Ao desligar o telefone, sob o olhar confuso de Larissa, Bernardo ligava para o seu chefe e dizia que não aceitaria mais o cargo.

- Mas papai. Por que rejeitou o cargo? Tudo o que você mais queria era voltar para São Paulo.

- Simples. Outras oportunidades aparecerão para o seu “véio” aqui, mas outro sentimento tão sincero quanto o que ouvi de Otávio por você, eu já não teria tanta certeza.

* * *
No dia seguinte, Larissa e Otávio pareciam não caberem neles mesmos. Uma aparente alegria tomava conta dos dois e transmitia a quem olhasse para aquele casal de aparências tão diferentes a ideia de que nada seria capaz de derrotar um laço tão forte como o que os unia. Às 18h horas, eles começaram tudo de novo, mas de uma forma especial; como se a paixão de ambos estivesse reflorescendo.

* * *
Foto da Capa: Carina B.

Conto publicado originalmente em 11 de abril de 2008 e retirado para participação de concursos literários.

terça-feira, 5 de maio de 2009

MINHA PRIMA LUANA

- Hoje à tarde, iremos à casa de meu primo Marcos.

Tive dúvidas diante daquela frase de minha mãe.

- Primo Marcos? Não conheço! – eu dizia.
- Conhece sim, Douglas, só que não se lembra. Na última vez que vocês se viram, você devia ter uns três anos. Luana nem era nascida, eu acho.
- Luana?
- Sim. Luana, sua prima. Filha de Marcos. Ela deve estar hoje com uns quinze ou dezesseis anos.
- Nunca me falou sobre eles, mãe!
- Eles são distantes mesmo. O Marcos é dono de uma pequena rede de supermercados. É um homem muito ocupado.
- E por que vamos lá? Aniversário de alguém?
- Não. Marcos nos ligou esses dias pedindo para que passássemos lá. Parece que ele quer solicitar os serviços advocatícios de seu pai.
- Entendi.

Era um domingo ensolarado e eu queria muito mais que uma tarde em família. Todos os meus amigos lá do prédio estariam assistindo a final do campeonato estadual de futebol na casa de Chupeta. E eu? Provavelmente assistindo meu pai contando as suas fabulosas histórias de fórum.

Conforme combinado, lá estávamos, às três da tarde, na casa do primo Marcos. Meu pai, minha mãe e eu. A casa era muito bonita. Ficava numa rua arborizada e calma. Na frente, uma cerca pintada de branco combinava com as esquadrias. Notei que numa das janelas, no segundo andar, havia um gato, que se levantava meio assustado.

- Será que é aqui mesmo? – perguntava meu pai.
- Pelo endereço, é sim. – dizia minha mãe.
- Toquem a campainha, ora. Só assim saberemos. – eu cortava com rispidez aquela dúvida idiota.

Meu pai tocava.

A porta da casa se abria. Uma senhora vinha nos atender:

- Olá – dizia aquela senhora.
- É aqui que mora o Marcos? – dizia meu pai.
- É sim. Vocês sãos os primos dele?
- Sim, somos. – dizia minha mãe.
- Prazer. O meu nome é Celeste, sou a empregada da casa. Entrem, por favor. Marcos os aguarda.

Nós entravamos.

O primeiro cômodo, a cozinha, nos trazia um cheiro bom de bolo de chocolate recém saído do forno. De lá, avistávamos, à sala, Marcos, sua esposa Patrícia e sua filha Luana. Depois vim a saber que Patrícia não era mãe de Luana, mas madrasta.

- Quanto tempo! – dizia o primo Marcos com empolgação.

O Marcos tratava de apresentarmos uns aos outros. Depois disso, sentávamos todos frente à TV.

Eu notei que o gato – que depois soube ser uma gata, a Mimi – já estava no colo da Luana.

- Ele é rápido, hein! Cheguei a vê-lo lá em cima – eu dizia à Luana.
- Não é ele. É ela. Na certa veio me avisar da visita. – dizia Luana sorridente.

Diante daquele domingo chato (nem a final do jogo eles assistiam ali), eu não teria escolha, a não ser papear com o único ser de idade próxima à minha: Luana.

- Nossa, como nossa família deve ser grande. Nunca soube de sua existência, Luana.
- É sim. É muito grande mesmo. Há alguns meses atrás, por exemplo, conheci um outro primo meu, o Rômulo. Daqui a pouco ele está aí, inclusive.
- Ah! Sim! O Rômulo! Eu conheço. Que toca piano e tal... Ele é meio esquisito, não?
- Esquisito? Como assim? – respondia uma espantada Luana.
- Ah, só vive tocando aquele piano. Não sai de casa quase, não faz nada de divertido...
- Ué, mas tocar piano é divertido para ele!
- Mas aquelas músicas? Parece um velório.

Eu sentia que Luana ficava séria.

- Mas... Espere aí – eu dizia – Estou me lembrando de você! Você passou o último Natal lá na casa do Rômulo, não foi? Rômulo me falou sobre você!
- Sim, passei. Pelo menos parte do Natal – ela ria graciosamente – É que somos namorados.
- Ah...
- E você? Não lembro de ter lhe visto por lá.
- É que passei em casa mesmo, com a família da parte de meu pai.
- Entendi.

Após certa pausa:

- Você conhece a Gisele? – perguntava-me Luana.
- A nossa prima? Sim, conheço.
- Ah...
- Por quê?
- Não, nada.

Na certa todo aquele “mole” que Gisele dava para Rômulo já tinha causado algum estrago.

- Será que podíamos ver o jogo da final? – eu perguntava.
- Jogo de quê?
- De futebol ora! É a final do campeonato estadual, Luana. Está passando na TV! Para que time você torce?
- Não possuo time. Na verdade, aqui em casa, ninguém se liga muito em futebol.
- Ah...

Eu passava a entender a afinidade entre Rômulo e Luana. Que menina esquisitinha, meu Deus! Ela é uma gracinha, eu confesso. Lá no meu prédio, Luana estaria entre as cinco mais gatinhas. Mas com essa personalidade...

- Você costuma ir à praia? – eu perguntava.
- Da última vez que fui não foi nada legal... E você?
- Sim... Vou sempre.
- Por que perguntou? Acha-me branca demais? – ela levemente sorria; achava graça.
- Não, imagina.

A pele branquinha de Luana era até um charme.

Rômulo chegava e cumprimentava a todos nós. Ele trazia uns três CDs e uma flor de papoula, que logo usou para enfeitar o cabelo de Luana. Eu começava a me sentir sobrar naquela sala. Levantava-me e me dirigia até o papo chato de meu pai e Marcos. Mas, de lá, pude ouvir uma frase que muito me fez pensar:

- Gosto tanto do seu jeitinho, Rômulo – dizia Luana.

Em terras onde o conteúdo intelecto-sentimental parecia valer mais que tudo, as minhas paixões pelo futebol e pelos videogames se assemelhavam, talvez, ao cocô de Mimi. Mas era tão bacana ver os dois juntos. Um lindo casal.

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais histórias sobre Luana em
Luana, Duas, O Natal de Luana, Gisele, Janeiro Meu e Verdades de Luana.
Mais histórias sobre Douglas em Tapete Testemunha I e II, Aquele Verão e Aquele Natal.