sexta-feira, 27 de novembro de 2009

EU ESTOU ÓTIMO! E VOCÊ?

Sexta-feira. Uma semana antes, eu havia recebido um convite para uma festa de despedida na casa de uma amiga de longa data, a Ruth. Publicitária de mão cheia, Ruth estava de malas prontas para uma vida profissional bem sucedida na Espanha. A festa teria tudo para ser ótima, um misto de risos e lágrimas. Mas toda confraternização que tem como objetivo reunir velhos amigos de faculdade tem uma grande porcentagem de chance de não ser nada agradável. É que acaba sempre se tornando uma briga de egos, uma enfadonha roda onde as vantagens e as histórias de sucesso são jogadas à espera de olhares surpresos ou suspiros ambiciosos. Isso me enjoa.

Como Ruth era uma amiga muito querida, fiz questão de ir à festa. Sim, fui à festa apenas pelo apreço. Eu não podia deixar de lhe dar um abraço, lhe desejar boa sorte. Do restante do pessoal eu esperava apenas um “e aí, como vai?”, nada mais. Já que eu não atuava na área em que me formara, estava condenado a ser alvo de todo tipo de piadinhas e “sorrisos de canto de boca” naquela festa. Por isso, pus como objetivo: ir até a casa de Ruth, lhe dar um abraço, tomar uma cerveja e vir embora para casa.

Diante de um armário lotado de roupas surradas, não tive muita escolha; peguei uma camisa de malha azul, uma calça jeans e o único tênis que me sobrara após minha demissão na loja de discos. “Posso imaginar as roupas descoladas que farão daquela festa um verdadeiro desfile de moda”, pensei. “Ah, foda-se”, disse a mim mesmo. Tomei um banho, me vesti e fui.

Chegando ao sobrado onde morava Ruth, pude vê-los na varanda do segundo andar. Todos riam bastante. Como previsto, uma imensa roda se formava em volta do Alan – o mais bem sucedido da turma –, que, pelo que consegui “pescar” da conversa, contava como teve a brilhante ideia para a campanha dos sabonetes Dove. Eu, particularmente, achava aquela campanha uma verdadeira bosta, mas...

Foi quando daquela varanda surgiu o berro: “Ali! É o Vinícius! Sobe aí, Vinícius”. Eu, tentando ser o mais discreto possível, falhei. Talvez pelo fato de meu fracasso ser ainda mais visível que o sucesso de todos eles juntos.

Subindo a escada para o segundo andar, me encontro com Ruth. Um sincero abraço trata então de atrapalhar o trânsito de pessoas às gargalhadas, que subiam e desciam todo o tempo.

- Muita sorte lá na Espanha, menina!

- Obrigada, Vinicius! Você é um amigão! Sabia que vinha!

A música estava alta e a cerveja bem gelada. Tratei de me enfiar num canto, mas a dona daquele berro da entrada, a Cida, me puxava até a varanda.

Por que ela fez aquilo? Eu não tinha nada a acrescentar naquela roda. Pior: não tinha nada a ouvir também. Aquilo tudo de certa forma me frustrava. Contar a minha história de derrota frente aos vitoriosos? Por quê? Ouvir histórias de sucesso sendo você um fracassado? Por quê?

- E aí, Vinicius – dizia o Alan –, criando muito? É só levantar o braço e contar sua experiência! Estamos ansiosos! Você sumiu, poxa!

- Não. Vocês podem continuar...

Todos riram – logicamente.

Um repentino vento frio me atingiu e me fez espirrar. Virei-me e desci para o primeiro andar. Peguei outra cerveja e dei uma volta pela casa.

- Vinicius?

Aquela voz a me chamar era familiar. Era uma voz doce. Ouvir aquele chamado me fez voltar no tempo. Débora! Lembrei antes de me virar.

- Débora!

- Como você está, menino? – ela me perguntava com certo nojo expresso no olhar.

- Indo... E você?

- Indo também.

- Criando muito?

- Ai, se eu parar eu morro, Vinicius! - ela continuava com o mesmo olhar, o que me incomodava muito – E você?

- Eu já morri.

Conversamos por alguns minutos, mas minha vontade era a de passar a noite inteira com ela. Sempre fui apaixonado pela Débora, desde o primeiro período na academia. Ela era a menina mais sincera, mais amiga, mais meiga, mais linda e mais inteligente daquela classe. Porém, minha timidez, unida à minha falta de confiança, fez a distância entre nossos lábios permanecer para sempre ideal – para uma simples conversa entre amigos.

Sozinho, sentado no sofá a observar a garrafa em minhas mãos, sou surpreendido por uma menina de uns sete anos de idade, no máximo.

- Tio!

- Oi...

- Tem uma meleca no seu nariz.

Em meio àquele amontoado de feitos mirabolantes, a frase mais sincera da noite.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A ÚLTIMA DESPEDIDA

Deitada em sua cama, de barriga para cima, aquela menina de alma dilacerada, quieta, observava o teto de seu quarto, o que representava o mais completo e mórbido vazio. Retiradas já algumas folhas do calendário preso à parede daquele cômodo triste, a dor da perda no coração de Luana não se fazia presente na mesma intensidade; mas ainda estava lá. Perder o namorado para os braços da morte de forma tão estúpida era demais para os seus dezesseis anos.

Quando a lembrança resolvia lhe pregar uma peça, seja com um sorriso ou até mesmo com a voz de Rômulo a lhe dizer palavras de beleza ímpar, Luana fechava os olhos a fim de esquecer de tudo. Mas era impossível ainda tão recentemente golpeada pelo destino cruel e sem explicação cabível. A menina rezava com o rosto afogado ao travesseiro, o que não ajudava em muita coisa, já que seu pensamento estava além de suas forças; focava em Rômulo, sim, com saudades dolorosas.

Marcos e Patrícia, pai e a madrasta de Luana, tentaram de tudo naqueles meses de pranto. Fazer a menina voltar a sorrir já não era mais por uma questão emocional, mas de saúde. Aquele corpo, antes já tão delicado e frágil, agora estava ainda mais magro, expondo o seu luto interno em ossos sobressaltados e rosto abatido. Luana, menina sempre de pouquíssimas palavras, tornava-se agora quase muda.

Patrícia resolvia subir até o quarto de Luana para mais uma tentativa.

- Luana, meu amor, está bem?

- Estou...

- Posso entrar?

- Pode...

- Não quer comer alguma coisa? Celeste preparou aquele bolo que você adora...

- Não. Estou sem fome...

- Luana! Você já se pesou essa semana? Minha filha, olha o seu braço! Você vai ficar doente desse jeito! Já se passaram três meses, e...

- Patrícia, eu só quero ficar quieta...

- Mas até quando?

- Eu não sei...

- Bem, eu telefonei para a sua amiga, a Giovanna. Pedi que ela desse um pulo aqui para ter ver, OK?

- Por que fez isso?

- Porque será bom para você! Espero que ela consiga te tirar dessa cama, eu sei lá, dar um passeio... – dizia Patrícia com os olhos cheios de lágrimas.

Luana notou o estado da madrasta e pensou no quão infantil deveria estar sendo preocupando daquela forma aqueles que a amavam. Marcos chegava ao quarto de Luana logo em seguida trazendo Giovanna.

- Filha, olha quem veio te ver!

Marcos e Patrícia deixavam Giovanna e Luana a sós.

- Luana, por favor, sai dessa cama! – dizia Giovanna.

- Giovanna, se fosse tão fácil assim!

- Mas claro que é, Luana! Você só tem dezesseis anos! Não morreu! Eu entendo a tristeza que deva estar sentindo, mas precisa lutar contra ela, não? Estás deixando a dor tomar conta de você, amiga? Está um dia lindo lá fora! Vamos dar uma volta, que tal?

- Ai, Giovanna, eu...

- Ande! Levante dessa cama! Já!

Giovanna levantava Luana pelos braços resultando num forte abraço. Giovanna não pôde deixar de notar a magreza da amiga, que por sua vez, encabulada, soltou-se do abraço.

- Vai voar no vento, hein! – brincava Giovanna.

- Não brinque... Não consigo comer quase nada...

- OK, mas você continua uma gracinha, sabia?

- Boba!

- Tome seu banho. Eu te espero aqui no quarto!

- Está bem...

Luana já ia escolhendo a roupa de qualquer maneira, mas Giovanna, notando tal desleixo, correu para ajudar; escolheu roupas de cores vivas. “Essas aqui! Veste essas”. Luana obedecia calada e seguia até o banheiro.

Do andar de baixo da casa, Marcos, Patrícia e Celeste puderam ouvir o bater de uma porta e a queda d’água do chuveiro. “Luana deve sair com Giovanna”, pensavam sorridentes.

* * *
Enfim, as meninas desciam as escadas.

- Vamos dar uma volta, gente! – dizia Giovanna aos pais de Luana.

Luana, quieta, esboçava um sorriso mínimo. Vestida com uma camiseta amarela, uma bermuda jeans e sandálias brancas, a menina aparentava pelo menos um pouco de vontade de se recuperar. Patrícia abria um sorriso imenso ao constatar que a visita de Giovanna estava funcionando.

Ao pisarem os pés na calçada, Luana se mostrou um pouco incomodada com a luminosidade do sol. Pôs então a mão sobre os olhos e disse “mas que sol é esse, meu Deus?” à Giovanna.

- Estamos em novembro, Luana! O que queria? Vamos para debaixo de uma árvore, pode ser?

- Prefiro!

As duas foram até a árvore mais próxima e se sentaram sobre a grama.

- Está sendo tão difícil, Giovanna. Sabe quando tudo parece ter perdido a graça, o sentido? Mesmo sabendo que sou muito nova para pensar dessa forma, a impressão que me dá é a de que a minha alma se foi junto com a de Rômulo; como se estivesse aqui apenas o corpo. Entende o que quero dizer?

- Entendo, amiga, claro que entendo.

Ali, as duas conversaram até que o sol guardasse os seus raios. Algumas estrelas já se faziam presentes naquele céu limpo quando um vento forte passou então a se manifestar. Luana deitava na grama e deixava que aquele sopro a tomasse por completa. “Adoro esse vento”, ela dizia. Giovanna observava que um sorriso lutava contra a tristeza da amiga; e acabava por vencê-la. Luana finalmente sorria enquanto passeava as mãos pelos braços e, principalmente, pela nuca.

- Você está sorrindo, Luana... – dizia Giovanna.

- É que esse vento me toca como se fosse o Rômulo. Sempre o associo à presença de Rômulo... Por várias vezes abri a janela de meu quarto e, ao pensar nele, esse vento vem e me acaricia.

- E isso te faz bem?

- Muito... Mas é um bem instantâneo e que sempre precede um sofrimento sem igual. Por isso sei que devo esquecê-lo.

No momento em que o verbo esquecer é dito por Luana, aquele vento, de forma súbita, se vai. Os olhos puxados de Luana se transformam então em duas bolas imensas. Um vazio lhe toma o peito como se tivesse vivido ali, naquele momento, a última das despedidas; o último adeus de Rômulo. Giovanna observava calada, mas resolveu cortar:

- Vamos entrar, Luana?

- Sim... Sinto-me melhor. Bem melhor.

- Que bom!

Como se virassem pesada página na vida de Luana, as duas caminhavam para casa. Giovanna, na sua condição de amiga mais velha, beijava a testa de Luana e lhe abraçava de forma acolhedora.

- Dorme aqui essa noite, Giovanna? Amanhã é domingo mesmo... – dizia Luana a sorrir.

- Claro, claro...

* * *

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MENTIRA

Eu estava procurando um songbook do João Bosco e, por entre as prateleiras da estante, pude ver seu tórax coberto de pintinhas. Ela usava um vestido rosa bem claro com uma singela fita em laço acima dos seios. Foi tudo o que pude ver naquele primeiro momento. O interesse pelos acordes do João se desmanchou em minha mente. Eu precisava ir atrás daquela menina, ou pelo menos daquele tórax e daquele vestido.

Dei a volta na estante a fim de me encontrar com o restante daquela visão. Entre um passo e outro pude imaginar seus olhos, sua boca, seu cabelo e até sua voz. “Ela deve falar bem manso” eu pensava, mas com certeza essa parte da imaginação estava sendo influenciada pela quietude daquele ambiente.

Bem vagarosamente, cheguei a um ponto onde pude ter a visão completa daquela menina. Deus! Ela era superior a qualquer coisa que eu pudesse ter imaginado segundos antes. O cabelo ruivo estava preso num apressado coque – provavelmente por conta do calor que fazia naquele dia. Notei que as pintinhas não só cobriam o tórax, mas todo o pescoço e boa parte dos braços também. De perfil, seu nariz arrebitado me passava um certo ar de arrogância, confesso, porém, sua boca, de tão pequena, me contrariava; dava-me a impressão de estar frente à menina mais meiga do mundo.

Foi quando ela se virou e direcionou sua voz pequena a uma amiga, logo atrás dela.

- Ai, não acho!

Foi o “ai, não acho” mais necessitado de ajuda que já presenciei na vida. Mesmo não sendo para mim tal pedido, tive de me apresentar.

- Posso ajudar? – eu disse.

- Você trabalha aqui? – ela respondia a me fitar com olhos castanhos enormes.

- Não, mas posso lhe ajudar, se quiser.

- É que procuro por um songbook do...

- João Bosco – eu a completei.

- Como sabia? – disse ela espantada (e linda).

- Não sabia. Apenas chutei. É que também procuro por ele.

- Que coincidência, não? Também vai participar do concurso, então!

- Que concurso?

Ela se referia a um concurso que elegeria a melhor versão de qualquer música de João Bosco. Estava sendo organizado por uma famosa rádio de música popular brasileira, mas como não tenho o costume de ouvir rádios...

- O que você toca? – ela me perguntou.

- Violão. E você?

- Canto e toco flauta transversa.

- Que legal! E já tem alguém de harmonia para lhe acompanhar no concurso?

- Sabe que não?

Diante de tamanha coincidência não tivemos outra escolha a não ser tomarmos um café no lado de fora da biblioteca. Já com os três volumes do songbook nas mãos, nós precisávamos apenas escolher a canção. Lógico que meus olhos estavam muito mais interessados naquele corpo suado que nas melodias do João, mas....

- Veja, nem nos apresentamos! Sua graça? – eu perguntei.

- Juliana.

- Prazer. Cláudio.

- Prazer.

No meio de nossas discussões sobre o concurso, não pude deixar de notar o pingente que Juliana carregava no pescoço; trazia a letra “M”. Imaginei o quão bacana deveria ser o tal “Marcelo”, ou “Márcio”, sei lá. Isso me deixou um pouco sem saber se levaria meu desejo real à frente.

Palavras e cafés à mesa e o rumo das conversas foi do “J” ao “S”, ou seja, do João Bosco ao sexo. Só sei que em menos de duas horas eu tinha em meu apartamento um violão sobre o sofá, uma flauta transversa sobre a mesa de centro da sala e uma Juliana me mostrando na cama que não era virtuosa somente na música.

Já depois de alguns cigarros e diante de uma preguiça imensa de retornar aos ensaios, disse coisas bacanas o suficiente para arrancar de Juliana os sorrisos mais lindos e doces do mundo. Ela me perguntava coisas sobre a possibilidade de se conhecer uma pessoa tão interessante de maneira tão rápida. Eu não sabia o que responder, pois me via na mesma dúvida. Eu me casaria com Juliana naquela noite, talvez.

- O que é esse “M”? – eu resolvia perguntar sobre o pingente.

- Não imagina?

- Marcelo, Márcio, sei lá... – deveria levar um soco depois dessa.

- Tenho cara de quem carrega a inicial de um homem no pescoço?

- Mesmo que fosse seu pai?

- Mesmo assim! Pescoço é lugar de coisas que te conduz!

- Muleta, então?

- Bobo!

- “M” de quê? Responde!

- “M” de música, ora! Desligado você!

- Um pouco.

- E você? O que lhe conduz?

- Bem, acho que a música também, mas bem mais a literatura!

- Leitor eu sei que tu és, pela quantidade de livros que tens aqui, mas você escreve também?

- Sim, escrevo! Sou contista!

- Contista? “Nunca confie num contista”, dizia minha mãe.

- Por quê?

- Vocês criam histórias o tempo todo! Um bando de mentirosos da vida real!

- Não é verdade!

- Viu? Já começou!

Eu nunca tinha pensado nisso, mas por que confiar numa pessoa que inventa histórias com tantos detalhes? Seria o dom de escrever o mesmo dom de mentir? Sigo nessa dúvida que me custa a desconfiança eterna de Juliana. Nos divertimos muito, sempre, até hoje, mas sei que a ruiva não acredita em nada do que lhe prometo. Aos escritores a conquista. Aos leitores a posse!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

TUDO POR BIANCA

A toalha branca era finalmente estendida no peitoril daquela janela. Eu esperava por esse momento havia dias, mas, enfim, lá estava ela; alva e cheia de significados. É que eu mantinha um caso com uma vizinha minha, a Bianca, que por sua vez era casada com um grande amigo meu, o Hugo. A toalha branca na janela era uma forma de me dizer “está tudo OK, pode vir”. Imediatamente ao avistá-la, sem que ninguém me visse, eu corria para um terreno abandonado que se estendia até os fundos da casa de Bianca.

Como dito, havia dias que não me encontrava com Bianca, mas toda aquela espera valia a pena neste caso. Ela era uma mulher fantástica em todos os sentidos. Bem, eu não vou me focar na questão da infidelidade, já que o traído não era eu; e sendo assim, para mim, ela continua sendo fantástica.

Quando digo fantástica, me refiro desde aos seus cabelos de grandes cachos negros às suas unhas dos pés – sempre muito bem cuidadas. Do meio desses dois extremos posso citar o corpo magro porém atraente, a boca singela, os olhos de sonsa (sim, sonsa e isso me atraía demais) e a cintura; hoje tão raro nas mulheres.

“Toalha na janela”, eu disse para mim mesmo ao avistá-la. Corria então para o terreno como um lobo atrás da caça. Havia um facão que eu deixava escondido logo no início daquele caminho coberto de mato. Com ele eu seguia até o muro dos fundos da casa de Bianca. Chegava sempre suado e com vários pequenos cortes pelo corpo, causados pelo enorme capim.

- Bianca! – eu a chamava em voz baixa.

- Lucas! Pode vir!

Eu pulava o muro e ia direto para o banheiro, a fim de me livrar daquele estado.

- Não! – disse-me Bianca – Quero você assim, hoje!

- Suado e sujo?

- Isso!

Eu detestava transar sujo de mato, mas como resistir a um pedido de Bianca? Os olhos eram como o azul do mar; misterioso, enigmático. E depois de cada pedido sua língua passeava lentamente sobre seus finos lábios, a fim de me seduzir ainda mais.

- Você não presta, Bianca! – eu dizia já encantado.

- Eu sei disso! E é por isso que estás aqui, não é?

- Sabes que sim!

Imediatamente, Bianca levantava o vestido florido a exibir suas pernas. Numa agilidade impressionante, descia a calcinha até cair macia sobre seus pés. Meus olhos seguiam cada gesto, cada detalhe daquele despir sempre tão inspirado. Naquele momento, como sempre, me vinha o seguinte pensamento: “O Hugo é um cara de sorte. Ter uma mulher assim todos os dias”. Como eu queria ser casado com Bianca. Invejava-o.

* * *
Passada a tarde, quando já me preparava para voltar para casa, resolvi fazer uma pergunta à Bianca:

- Casarias comigo?

- Claro que não! – ela respondia convicta.

- Por que não?

- Ora, porque não!

- E o que eu represento para você, então?

- O que você realmente é, ora, um amante. Uma diversão. Pronto!

- E o Hugo?

- Ora, meu marido! A pessoa que eu amo...

- Não me amas, então?

- Sou TARADA por ti, Lucas, mas não me cobre amor, por favor!

- Acredita que um amor possa morrer?

- Claro que sim.

- E se esse seu amor morresse?

- Hum... – ela pensava – Aí, sim, provavelmente você seria a pessoa mais apta a substituí-lo, eu acho.

- Bom saber.

Ao me despedir de Bianca, apenas fingi ir para casa. Na verdade fiquei escondido atrás do muro a esperar pela chegada de Hugo. Assim que ouvi a voz dele, pulei para dentro da casa novamente.

- Alguém pulou nosso muro! – disse Hugo à Bianca, e veio até a mim – Lucas? O que faz aqui? E por que pulou meu muro?

Não disse palavra. Apenas finquei o facão na barriga de Hugo, que no chão agonizou por alguns minutos até o último suspiro.

- E agora, Bianca – eu disse –, estou apto a receber o seu amor?

Nunca tinha feito tamanha merda. Não entendi que o amor de uma mulher nunca morre depois do amado. Ou morre antes, ou tende a estar vivo no coração por toda a eternidade.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CARTAZ

Eu tinha acabado de sair do banho; ainda estava nu quando o telefone soou. Fazia um calor infernal e eu dava graças a Deus por aquela campainha não ser a da porta, já que minha intenção era a de ficar zanzando pelado pela casa durante toda aquela tarde. O aparelho já gritava pela quinta ou sexta vez quando finalmente tive forças para sair da frente do espelho. Eu marcava o meu caminho do banheiro à sala com um rastro d’água, lento.

- Alô!

Era a Márcia, minha produtora. Com uma voz animadíssima, ela me avisava que fechara uma sequência de shows pelo Rio de Janeiro. O calor típico da cidade a partir de novembro sempre rendia alguns trocados – na verdade eu não sei bem o porquê, já que sou um músico bossanovista e considerado por muitos a verdadeira “broxada do verão”.

- Quantos shows serão? – eu perguntava.

- De novembro a fevereiro, rapaz! Umas vinte apresentações! O que acha?

- Acho bom, muito bom! O que mais você tem a me dizer?

- Não me parece animado...

- É o calor...

- Ah... Bem, vou convocar os mesmos músicos que te acompanharam no ano passado, pode ser?

- Sim, pode ser!

Na verdade eu quase nunca me animava com os shows, mas é o meu sustento, o que posso fazer?
Depois de algumas semanas, um cartaz exageradamente colorido me chegava pelos correios. Tratava-se de um anúncio da minha primeira bateria de shows, num hotel bem bacana. A peça trazia “O verão, o sorriso e a flor” como nome do espetáculo. Uma forçada de barra horrível como se minha apresentação tivesse o peso e a importância do que foi “A noite do amor, do sorriso e da flor”, em 1960. E aquelas cores? Onde estava o velho preto com branco? Liguei de imediato para Márcia.

- Gostou do cartaz?

- Que mau gosto, Márcia! Que mau gosto!

- Por quê?

- Compara-me aos grandes da Bossa Nova?

- E por que não?

- Porque não sou! Simples! Não aprovo! Criem outra coisa!

- OK, mas pode ser para a próxima temporada? Porque para os shows do hotel já estão rodando esse aí...

- Você já colocou isso na rua?

- Desculpe-me! É que...

Desliguei o telefone e só fui rever Márcia na noite de estréia da temporada.

* * *
Fazia muito calor naquela noite. Durante a semana, o meu nome fora anunciado em tudo o que era jornal, e sendo muito criticado também, claro. Lembro de ler uma matéria que chamava o meu show de “a brochada, o desânimo e a dor”. Eu nunca entendi bem essas críticas, já que as pessoas – pelo menos as que compareciam aos shows – gostavam bastante de mim.

Márcia, ao me ver:

- Tinha medo que não aparecesse!

- Jamais faria isso!

- Não me falou sobre os ensaios, sobre nada! Eu NÃO sei que repertório apresentará! Eu sinto que NÃO produzi o seu show! Por que não me demite?

- Jamais faria isso!

- Mas parece insatisfeito com o meu trabalho!

- Foi só o nome do show, mas nada! Está tudo bem!

- OK! Bom show para você!

- Obrigado.

Fiz o show como sempre faço: metade músicas minhas, metade clássicos da Bossa Nova. O público, estranhamente abarrotado de jovens, adorou. Teve até uma menina, que aparentava viver em plena décima oitava primavera, no máximo, que veio até a mim e disse:

- O verão ainda não chegou, mas você é o melhor anúncio de que ele está por vir! Adoro você!

Fui até Márcia:

- Muitos jovens, você viu?

- Vi, sim, claro!

- O que fez para isso acontecer?

- Um cartaz colorido, ora!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

ÚLTIMA VIAGEM

Maria Antônia trabalhava como ascensorista de elevador num enorme prédio comercial do Centro da cidade. Depois de vinte e dois anos de dedicação às duras e cansativas jornadas diárias de seis horas, Maria era demitida por motivos que... Segundo sua supervisora, a nova chefia do edifício planejava uma mudança radical na estética daquele condomínio; e isso incluía uma “renovação de pessoal”. “Maria, você está conosco há mais de vinte anos, mas a nova gestão do prédio está em busca de ascensoristas mais jovens, entende?”, disse a supervisora ao anunciar o aviso prévio daquela empregada.

Maria cumpria então o seu último mês naquela função. Durante aqueles dias fez questão de avisar a cada conhecido daquele edifício – que não eram poucos – sobre a sua saída. “Estou de aviso prévio, sabia? É a vida, não é?”, dizia Maria, que nada ouvia como resposta. Na certa aqueles condôminos eram donos de uma mesma ideia: a de que o prédio precisava, sim, de novas ascensoristas; mais jovens e mais belas, por que não?

Maria subia e descia em média cento e dez vezes por dia naquele elevador. Dizia, também diariamente, mais ou menos setecentos e setenta vezes coisas como “bom dia”, “chegamos”, “qual o andar?” etc. Sua rotina era estar exposta a todo e qualquer tipo de doenças, que através de espirros e tosses eram arremessadas sobre sua pessoa. Naquele banquinho, ouvia de tudo um pouco; fofocas, coisas banais, coisas interessantes, notícias sobre o clima, sobre o trânsito, sobre o dólar, sobre o Lula...

No último dia de trabalho, Maria se despedia de cada passageiro que em sua cabine viajava. Recebeu até tapinhas nas costas e muitos votos de boa sorte, porém, ninguém ousou lhe oferecer uma nova vaga. Maria não estava preocupada com o futuro, pelo menos não naquele momento. A ascensorista estava mais triste pela falta que lhe faria toda aquela rotina, apesar de tudo.

Faltando dois minutos para o término de seu último dia naquele emprego, Maria, mesmo sem chamadas, subia o elevador até o último andar. Abria a porta, mas não havia ninguém a descer. No intuito de parar em todos os andares, marcou todos os botões de seu painel e desceu. Incrivelmente não houvera em nenhum dos vinte andares alguém para descer. Com o elevador vazio, porém, coberto até o teto da mais horrível solidão, Maria chegava ao térreo. Lá, uma menina de aparentemente dezenove anos, lindamente vestida com o novo uniforme do condomínio a aguardava.

- Maria Antônia? – dizia a menina.

- Sim, sou eu.

- É que pediram para que eu a rendesse.

- Você é a nova ascensorista?

- Sim.

- Ah... Boa sorte, OK?

- Obrigada!

A menina sentava-se no banquinho que por vinte e dois anos fora de Maria, fechava a porta do elevador e subia. Maria, como se fosse a peça mais antiga daquele edifício, cruzava cabisbaixa aquele hall já coberto por uma nova logomarca e um slogan que dizia: “Venha para o novo”. Ela saía.