sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

AMOR DE QUATRO DIAS

As rodoviárias lotadas, as estradas engarrafadas, os expedientes suspensos, o sol forte, os corpos queimados, os suores, a euforia, os anúncios, as praias, os turistas, os blocos, as correrias, as despedidas, os reencontros, os planos... Tudo ao mesmo tempo. Era o início de mais um Carnaval.

Longe de todo esse tumulto, meu bairro se preparava para tal festividade. O palco já se encontrava montado desde a segunda-feira anterior; um palco pequeno como o próprio bairro. Ali, por enquanto, apenas as crianças, que corriam e brincavam sobre um tablado já gasto de outros eventos.

Na sexta-feira, a praça, já enfeitada – nunca a vira tão colorida –, acomodava um público local já contagiado por toda aquela ornamentação. Aquele Carnaval, todos os anos, fazia a alegria daqueles que, por força maior ou por escolha mesmo, não se deslocavam para a Região Oceânica. Fazer o quê? Eu, como nunca tive tal destino, fazia do Carnaval do meu bairro o meu Carnaval. Eu não gostava de agitação, mas me sentia bem a observar os foliões. Tudo o que eu queria era tomar algo gelado, me sentar e observar. Somente.

Logo no primeiro dia de atrações, sábado, tive a sorte de, antes mesmo da noite cair por completa, me deparar com uma figura cativante e animadora. A princípio, enxergava um palhaço, que brincava com as crianças e espirrava água nos rostos alheios. Em poucos minutos, um volume enorme de crianças seguia aquele ser de andar propositalmente engraçado. Um verdadeiro "barato".

Eu, sentado numa mesa a admirar não apenas o brincar daquele palhaço, mas também o lindo e quente anoitecer, sentia em mim uma gota de inveja. Inveja por não ter a ideia daquele palhaço. Devia ser legal demais causar tanta alegria como ele.

O palhaço se aproximava de minha mesa; as crianças também. A cada passo à minha direção, notava que...

- Mas não pode ser – eu dizia a mim mesmo.

Não era um palhaço. E sim, uma palhaça! E linda! Ela brincava com a minha cara de desânimo. Fazia gestos para as crianças como se tentasse espantar minha aparente depressão Carnavalesca. Ela não dizia palavra; era ótima nas mímicas. Como se puxasse suposta tristeza de minha cabeça, ela gesticulava com as mãos bem próximas à minha testa. As crianças riam e eu também.

Eu olhava fixamente nos olhos daquela mulher. Dentro de mim, surgia a impressão de conhecê-la. Enganava-me. No fundo dos meus arquivos cerebrais não me vinha ninguém com aquelas características. Cabelo, rosto. Ela não usava máscara, apenas um nariz vermelho e maquiagem. Seria fácil reconhecer qualquer folião numa fantasia como aquela.

Ela e as crianças davam voltas e mais voltas naquela praça e, por muitas vezes, paravam na minha mesa aparentemente melancólica. Ela fazia mímica representando insatisfação em relação à minha pose – estava sempre sentado. Com um braço apoiando o queixo, eu sorria. Queria demonstrá-la que não estava triste, mas apenas observando a alegria alheia. Ela, por sua vez, fazia cara de zangada.

Depois de passar pela minha mesa por mais de sete vezes, se não me engano, eu a pegava pelo braço:

- Quando termina o seu turno?

E pela primeira ela vez emitia palavra:

- Não entendi.

Sua voz era doce e juvenil.

- Quero saber a que horas terminará com as crianças.

- Ora, é Carnaval. Sei lá que horas. Por quê?

- Não quer conversar?

- Ah, não tem cabimento um palhaço se sentar à mesa para “conversar”.

- E o que os palhaços fazem, além de nos tirar sorrisos?

- Brincam, pulam, dançam... Se quiser me acompanhar...

- Não. Prefiro ficar por aqui mesmo.

- Você é quem sabe.

E se foi.

No segundo dia de Carnaval, lá estava ela novamente. As crianças – as mesmas do sábado – pareciam esperar por aquele momento. Corriam em direção àquela alegria em forma de palhaço e recomeçavam, então, toda a brincadeira.

Eu, na mesma mesa, obtinha a mesma felicidade daquelas crianças. Eu olhava para o relógio a fim de marcar a hora certa de sua aparição – seis da tarde. Outro belíssimo fim de tarde. Ao som de marchinhas empoeiradas, a alegria pedia passagem.

Como no sábado, aquela mulher novamente chegava até a mim. As crianças já sabiam o itinerário daquela brincadeira. Ela não daria sequer uma volta naquela praça sem que antes passasse à minha mesa e fizesse algumas gracinhas. Eu lhe emitia o mesmo sorriso, porém, desta vez, um sorriso enamorado. E ela sorria de volta. Naquele dia, ela resolvia unir a fala às mímicas.

- Olhem que moço triste! Será que hoje eu consigo o colocar para pular?

- Sim! – dizia a criançada.

- Será que ele vai sair desta mesa?

- Sim!

Daí, ela chegava bem perto de meu ouvido e:

- Se você der uma única voltinha conosco, converso com você após a sétima volta.

- Fala sério?

- Palavra.

- E palhaço lá tem palavra?

- Palavra de mulher, então!

- Fechado.

Eu levantava e, com minha latinha de cerveja à mão, seguia com um bando de crianças barulhentas e um palhaço cativante. Ela me rodeava a jogar serpentinas e confetes sobre mim. Era impossível não se contagiar. Sem perceber, completava mais de oito voltas com eles.

Antes da nona:

- Cumpri mais que o prometido – eu dizia.

- Sinal que foi bom!

- Sim. Foi. Mas falta você cumprir a sua parte.

- É. Você tem razão.

Ela se despedia de uma criançada já morta de cansaço e se sentava comigo

- Bebe algo? – eu perguntava.

- Água.

- OK.

Eu pedia uma água para ela.

- Vejo o quanto gosta de Carnaval – eu dizia.

- Eu amo.

Ali começava uma rotina que se repetiria pelos outros dois dias restantes do Carnaval: Às seis horas ela chegava; brincava com as crianças até umas oito e meia e, depois, já esgotada, se sentava comigo. Conversávamos muito e, no meio de tantos assuntos, me via sem espaço para dizer que estava de fato apaixonado. Fazia apelos para ver o seu rosto sem maquiagem, mas recebia como resposta “um dia, quem sabe?”.

O prefeito de nossa cidade já informara que, em todos os bairros, os eventos carnavalescos teriam o seu fim à meia-noite de terça para a quarta-feira. Após esse horário, os mascarados deveriam se revelar. Caso contrário, a polícia teria carta branca para agir.

- Mas eu não uso máscara – dizia ela.

- Eu sei, mas essa maquiagem é um tipo de máscara.

- O máximo que tirarei será o nariz. Apenas o nariz.

- Mas por quê? Hoje já é terça de Carnaval e não sei sequer o seu nome. Eu preciso dizer que...

- Diga.

- Dizer que eu acho que estou te amando!

- Não me amas. Amas uma fantasia.

- Não! Amo você! Amo a mulher que conversa comigo após a folia!

- Mas quem conversa contigo não sou eu, mas minha fantasia.

- Então, quer me dizer que mentes?

- Não exatamente.

- Quero lhe ver na quarta-feira! Sem fantasia! Aqui, em frente a este poste, às seis da tarde!

- Como quiser.

Após tal frase, ela corria em direção à multidão. Eu a perdia de vista.

Na quarta-feira de cinzas, como combinado, às seis da tarde, em frente aquele poste, eu a esperava. Pontualmente, ela aparecia. Demorava a aceitar que era a mesma mulher que durante todo o Carnaval se vestia de palhaço. Com um semblante sério, tão sério que me assustava, ela:

- Oi.

- Oi. É você mesmo?

- Claro que sim. Marcamos, não foi?

- Mas é que me parece tão...

- Tão?

- Diferente. Tão séria.

- Eu disse... Você está apaixonado por uma fantasia. Eu não sou aquilo. Eu aproveito o Carnaval para incorporar uma pessoa que eu não sou.

- Sim, mas foi capaz de me causar sentimento tão profundo que...

- Que o quê?

- Que eu sugiro que seja palhaço todo o tempo.

- Que piada.

- Não precisa de um nariz e de uma maquiagem para dar um sorriso.

- Preciso. E preciso até mais do que isso.

- Então, precisa de quê?

- De alguém que me ame como eu realmente sou.

- Mostre-me quem realmente você é e eu lhe direciono o meu amor. Que tal?

Nosso romance não deu certo. Ela era uma mulher cheia de manias, paranóias... Era pessimista, rancorosa. O extremo oposto daquela figura circense que encontrei nos dias de Carnaval. Nós nos afastamos naturalmente. Porém, decidimos que namoraríamos seriamente nos próximos Carnavais.

Há mais de uma década, quatro dias por ano, a gente vive um amor inesquecível.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O CONVITE

Punha meu pé no primeiro degrau da escada rolante, provavelmente, no mesmo momento que ela. Sendo que eu subia e ela descia. Olhamos rapidamente um para o outro. Pá! Séria, demonstrava neutralidade diante de minha pessoa. De gênio difícil, eu fazia o mesmo. Olhava para o nada para não entregar meu real sentimento, porém, apaixonava-me. Voltava a olhá-la.

A medida em que as escadas nos levavam a um ponto comum, onde nossos olhares estariam num mesmo nível, minha imaginação cuidava de me sugerir o que ela vestia da cintura para baixo. Uma saia, talvez. Uma saia minúscula, na verdade era o que eu queria. O que estava da cintura para cima os meus olhos tratavam de constatar. Um lindo abdômen à mostra, para começar. Uma camisetinha que tapava seios maravilhosos. Não eram grandes, nem pequenos, nem médios. Eram perfeitos! Nunca vira igual. Logo acima deles, os ombros delicados. Ela trazia em seu pescoço um colar desses de artesanato. Os cabelos estavam presos numa trança enorme. Podia ver sua ponta na altura do cóccix. Confesso que, a partir daí, eu ficava curioso pelo tamanho de seus fios. A escada me levava.

Aproximávamos um do outro. Ela voltava a me olhar. O rosto trazia um nariz arrebitado e fino. Sem qualquer tipo de maquiagem, os olhos, a boca e as bochechas formavam um conjunto que passeava entre o meigo e o malicioso. Um rapaz que descia atrás dela inclinava-se levemente a fim de ver o semblante que carregava toda aquela beleza. Eu tinha a visão que ele procurava e vice-versa.

Lá estava ela, a poucos degraus de nos tornarmos próximos. O quê? Uns trinta centímetros, creio eu. As escadas que nos carregavam eram coladas uma na outra. Erro da arquitetura ou não, o que importava era que eu seria capaz de beijá-la ao passar por mim. Olho no olho. Seria difícil resistir.

Ela se aproximava mais e mais. Seu perfume eu já conseguia sentir. Aquele rapaz atrás dela já fazia tremenda cara feia ao notar que nosso interesse era comum. Ela vinha! E vinha! E vinha! Quando, de repente: as escadas pararam. Juntas. Bem na altura onde nossos corpos estavam ao lado um do outro. Então, ela soltava para si mesma:
- Ai, que saco!
- Você está descendo. E eu, que estou subindo?
Eu dizia a ela.
- É. Sorte minha.
Ela dizia sorrindo.
- É. Azar o meu.

Ela começava a descer os seus degraus e eu, a subir os meus. Foi quando eu parei e:
- Não quer fazer essa sorte ser nossa?
- O quê?
Ela se virava com uma face confusa.
- É – eu dizia ao subir –, me espere aí em baixo. Vamos tomar alguma coisa.
- Ela não respondia ao meu convite. Continuava a descer.
- Perdi.
Eu dizia a mim mesmo em voz baixa.

Ao chegar no piso superior daquele shopping, eu olhava para baixo. Esperava vê-la rebolar uma saia minúscula, mas não. Ela estava com uma calça bem larga, que, mesmo assim, acusava o volume perfeito de suas nádegas. De braços cruzados e com um sorriso no rosto, ela mexia os lábios dizendo:
- [Não vamos tomar nada?]
- [Claro!]
Eu respondia da mesma forma.

Eu descia até lá e, antes que dissesse algo, ela:
- Você é normal?
- Por quê?
- Nunca recebi um convite desses dessa forma.
Ela dizia numa simpatia que me deixava até confuso.
- É. Eu achei que não teria outra oportunidade de...
- De?
- De medir o tamanho de sua trança.
- Seu bobo. Seu nome?
- Celso. E o seu?
- Maria Eduarda.
- Lindo nome. Vamos ali, naquele quiosque?
- OK. Você é quem manda. Não conheço nada por aqui.
- Não é daqui?
- Dessa cidade não.
- Ah.

A partir dali, conversamos, tomamos um café e comemos um pedaço de bolo de laranja. Ela era musicista. Eu não esperava. Violinista solo de uma orquestra.

Eu tive de ser direto. Tive de dizer o motivo pelo qual não tirei os olhos dela durante todos aqueles intermináveis segundos.
- Você é a coisa mais linda que eu já vi.
- Que você já viu?
- Sim! E agora, depois desse nosso papo, vejo o quão bacana tu és. Agora, me responda uma coisa.
- Diga.
- Por que aceitou o meu convite? Não achou muito afoito.
- Olha, Celso, vou te contar uma coisa: Antes de eu me tornar musicista profissional, de me apresentar nos melhores teatros do Brasil e do mundo, eu era muito criticada por ser calma demais. Eu esperava muito as coisas acontecerem. Hoje, quando me entrevistam em revistas e programas especializados, afirmam que a tranquilidade foi e é a minha melhor qualidade, pois “eu soube esperar a minha vez”. Já que fui “descoberta” somente aos vinte e três anos. E eu me gabava por isso...
- E o que tem isso a ver com o meu convite repentino? Já sei. Acha que eu deveria ter “esperar a minha vez”.
- Não. Eu me gabava com as palavras da imprensa a respeito de minha tranquilidade. Gabava-me até o momento em que você me fez aquele convite. Agora, nesse instante, passo a dar razão às críticas que me faziam.
- Por quê?
- Porque não devemos mesmo esperar por nada. Por uma carreira, por um sonho, por uma viagem...
- Por um beijo. – eu a interrompia.
- É – ela dizia –, por um beijo.
Eu a beijava...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

CICLOS DA CIDADE

Chuva de verão. Um verdadeiro pé d’água, para falar a verdade. Maldita hora em que a bobina de fax foi acabar. Bobina reserva! Eu sempre falo em bobinas reservas, mas a Sra. Marta não me escuta. Há anos que aquela velha ocupa a chefia, mas, mesmo assim, ainda não aprendeu que precisamos de suprimentos reservas. Isso evitaria a minha gripe, por exemplo. Uma tremenda guerra para comprar uma merda de bobina de papel. Queria saber se a Sra. Marta enxugaria as minhas meias. Ódio.

Mas aquela ida à rua serviu para uma coisa muito boa. A caminho da papelaria, antes daquela chuva pegar a todos de surpresa, ao passar por uma rua tomada por camelôs, eu me deparava, primeiramente, com um sorriso de deixar qualquer um louco. Era de uma vendedora que expunha CDs falsificados sobre uma barraca de madeira gasta.

A princípio fora apenas o sorriso, mas, conforme eu observava cada parte daquela mulher, notava que se tratava de uma beldade em meio a todo aquele clima de ilegalidade e incertezas.

Eu parava. Bem em frente à papelaria, eu parava. Fitava aquela coisa linda de longe. Observava cada movimento seu. Cada ajeitada naquele cabelo. Ah! O cabelo! Eram negros, ondulados e enormes. A pele era morena, bem queimada de sol. Possuía cicatrizes em um dos braços. Passava-me a idéia de uma vida bem difícil.

Era a única mulher naquele monte de barracas amontoadas. Chamava a atenção de todos que passavam. Além de mulher, linda! O rosto, mesmo suado, exibia beleza rara. Nariz, boca, olhos, tudo perfeito. Olhos verdes! Dá para acreditar? Usava uma roupa típica daquela estação. Trabalhar sob aquele sol não devia ser nada fácil. Short jeans curto e uma blusa branca de malha enrolada na altura dos seios. Um belo par, aliás. Médios e firmes.

Quando me dava conta, já estava ali paralisado por bons minutos. Merda! A bobina de papel, eu pensava. Entrava na papelaria e comprava logo duas. A Sra. Marta entenderia o que eu queria dizer com bobinas reservas.

Ao sair da papelaria, o céu já não era mais o mesmo. As nuvens haviam tomado conta de tudo e já davam sinais da quantidade de água que desceria. Um estrondo chamara minha atenção para o cinza que agora abafava. Um trovão de dar medo.

Eu resolvia seguir até o escritório antes que a chuva caísse, mas as nuvens foram mais ágeis. Mandavam gotas que, ao caírem no chão, criavam rodas maiores que o meu dedão do pé, eu calculo.

Então, eu corria. Em vão. A chuva pegava a mim e as merdas das bobinas de papel. Eu passava correndo entre os camelôs, mas, mesmo naquele sufoco, me lembrava de procurar por aquela que me prendera a atenção momentos antes. Até que eu ouvia um deles gritar:
- PEGA TUDO, FERNANDA! ESTÁ MOLHANDO OS CDS!
- ESTOU TENTANDO!
Respondia Fernanda completamente enrolada ao tentar equilibrar a barraca com a mão direita e carregar umas sacolas com a esquerda.
- VEM! VEM! VEM!
O sujeito a chamava para debaixo de uma marquise.

Eu já não mais corria. Pensava em ir até a marquise onde Fernanda estava. Fernanda e todos os camelôs daquela rua, que, com seus corpos e produtos salvos da chuva, já sorriam e zombavam uns dos outros. Zombavam também de Fernanda ao perceberem o que alguns pingos d’água conseguiram fazer. É que, sem sutiã, Fernanda ficava com os mamilos expostos, por conta da transparência que tornou sua blusa molhada.
- O que é isso, hein, Fernanda?
Dizia um.
- Que delícia, hein, Fernanda?
Dizia outro.
- Meu Pai do céu, Fernanda! Isso é um assalto? Aponte essas armas para lá!
Dizia um outro.
Fernanda se tapava e respondia-os com certo conformismo com a espécie masculina e um pouco de gozação. Não parecia se irritar com aquilo. Na verdade, pareciam todos irmãos sob aquela marquise.
- Seus ridículos!
Dizia Fernanda torcendo parte da blusa.

Eu resolvia ir até eles. Permaneceria lá até o fim do toró.
- Aqui tem uma vaga para mais um?
Eu dizia me direcionando à Fernanda.
- Tem, sim, moço. Chega aí.
Dizia-me uma simpática Fernanda.

Encolhia-me para caber ali. Ficava ao lado de Fernanda. Nossos braços se tocavam e eu sentia uma enorme vontade de abraçá-la. Eu notava que seu short se encontrava bem molhado também. A água da chuva que caía sobre a rua respingava em nossas pernas. Fernanda passava a mão nas dela, a fim de secá-las. Ao se agachar, reclamava do botão do short, que machucava sua barriga.
- Droga de botão!
Dizia Fernanda desabotoando-o.
- Ih! Vai tirar a roupa, Fernanda?
Dizia um dos camelôs.
- Vai sonhando – dizia Fernanda –, seu babaca.
Todos riam. Até ela.
- Tenham mais respeito, por favor!
Para que eu fui falar aquilo?
- Como é?
Dizia-me o piadista.
- É isso mesmo! Mais respeito com a moça, cara!

Os olhos de todos eles franziram-se para baixo. Focavam-me como seu eu fosse uma caça. Fernanda também me olhava, mas com ar de admiração.
- Meu irmão! Você vai entrar numa comigo?
Dizia um deles segurando um pedaço da madeira de sua barraca.
- Fale novamente com ela dessa forma, para você ver!
Eu respondia.
Eu não sabia o porquê daquelas minhas frases. Eu estava pronto para virar patê na mão daqueles homens. Fernanda apenas me olhava. Soltava um sorriso discreto antes de:
- Deixem o cara em paz! Ele só está sendo legal.
Dizia Fernanda firmemente.
Todos se calavam.

- Obrigado.
Eu dizia baixinho à Fernanda.
- Por que fez aquilo?
- Por que fiz o quê?
- Discutiu com eles por minha causa.
- Ora, é que você é a única mulher aqui no meio. Às mulheres devemos respeitar...
- São todos amigos, moço. Não tem maldade. Não se preocupe.
- Desculpe, mas...
- Não, tudo bem. Eu gostei do que você fez. É raro. Pelo menos na minha vida.
- Não devia ser, não é mesmo?
- É...
Fernanda abaixava a cabeça.
- Está toda molhada e...
- É. Eu sei. E sem sutiã.
- Desculpe-me. Eu nem havia reparado.
- Sei que reparou. Não precisa fazer tipo, moço.
- Bem, eu...
- Você...?
- Eu queria te oferecer a minha camisa. Afinal, a chuva vai passar e você terá que voltar a trabalhar. Não poderá atender as pessoas com um dos braços a tapar os seios.
- Não precisa. Vai secar logo. E outra: Eu espero que um desses aqui me empreste uma camisa.
- Se são seus amigos, emprestarão.
- Como eu disse, eu espero.
Fernanda ria. Parecia não se importar muito.
- Posso lhe dar uma idéia?
- Pode.
- Deixe-me pegar no seu cabelo.
- Para quê?
- Verá.
Eu aproveitava seus fios enormes e os dividia matematicamente em duas mechas, uma para cada lado do rosto.
- Fará tranças no meu cabelo, moço?
- Não precisa.
Eu continuava. Ajeitava as mechas bem acima de cada seio de Fernanda, que me fitava sem parar.
- Pronto – eu dizia –, pode tirar o braço da frente deles.
Fernanda emitia um lindo sorriso de gratidão ao notar que seus seios estavam salvos da transparência. Ela se olhava no vidro de um carro estacionado à nossa frente e:
- Você é cabeleireiro?
- Não. Só sei dizer que seus cabelos são lindos.
Eram um pouco mal tratados, mas eram, sim, lindos demais.
- Nunca usei os cabelos assim. Acredita? Sempre prendo ou jogo eles para trás.
- Passe a usar! Está linda.
- Obrigada.

A chuva terminava. Os camelôs começavam a voltar aos seus postos. Fernanda permanecia comigo sob aquela marquise.
- Você trabalha por aqui?
Perguntava Fernanda.
- Sim.
- Eu vendo CDs. Piratas, mas...
- Eu vi.
- Não quer levar um?
- CD? Não. Não sou muito chegado à música.
- Está bem.
- Levaria você. Para mim.
- Não está pensando que eu sou uma...
- De maneira alguma. A quero para mim, não a quero para a minha noite.
- Você é estranho.
- Por quê?
- O que viu em mim?
- O que talvez ninguém jamais tenha visto.
- Mas você nem me conhece.
- Não nos conhecíamos e, veja só, já salvei seus seios das maldades alheias e lhe mostrei um jeito ótimo de usar seus belos fios.
Fernanda ria.
- Vai para o seu escritório. Deixe-me trabalhar, vai, moço.
- Tudo bem. A gente se esbarra.
- Sim, se esbarra.

* * *
Uma semana depois, eu lia no jornal que ali, naquela mesma rua, acontecera uma tragédia. Num duro confronto com guardas e policiais militares, dois camelôs haviam sido mortos. Entre eles, uma mulher.

Eu largava o jornal e saía correndo para lá. Meu coração dizia que era Fernanda a mulher citada na matéria. Só podia ser ela. Era a única mulher ali.

Ao chegar àquela rua, via que apenas alguns camelôs permaneciam com suas barracas. Em meio àqueles olhares temerosos, porém, batalhadores, uma barraca chamava a minha atenção: a de CDs. Atrás dela, uma menina com a cara e os cabelos idênticos aos de Fernanda, mas aparentando pelo menos quinze anos mais nova. A idéia de uma vida ainda mais difícil me voltava à mente.

* * *
Obrigado pelo selo “Seu Blog é Roxie”, Casa do Besouro!

Eis o selo.

Aqui estão as regras para os blogs que indiquei:

1) Exibir a imagem do selo "Seu blog é ROXIE!" e escrever essas regras abaixo dele.

2) Colocar quem te deu o selo nos seus blogs indicados (amigos).

3) Escrever 5 coisas que são ROXIE (1ª sobre música, 2ª sobre televisão e cinema, 3ª três países que gostaria de conhecer, 4ª três cores favoritas e 5ª três Hobies)

4) Indicar 10 blogs que você ache ROXIE.

5) Avise aos indicados.

1) Colocando.

2) Colocado.

3) Bossa Nova, Musicais, Índia, Alemanha e Japão.

4) Indicados (Não são 10, mas...):

http://queiroz19.blogspot.com/
http://liu-loren008.blogspot.com/

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

QUATRO MAIS UM V (Final)

- Fale, Caroline. O que a gente não sabe sobre o dia do sequestro?
Atirava Carlos.
- Sim. Eu vou falar.
Caroline se recompunha das lágrimas e começava:
- Naquela quinta-feira, eu tinha acabado de almoçar com você, Carlos, no Centro da cidade. Logo depois, fui para casa. Ao descer do ônibus, já na minha rua, ouvi a voz de um homem que vinha logo atrás e puxava minha mochila. Ele disse “Espere aí, menina, você poderia me dar uma informação?” Ele não queria informação alguma. Queria apenas se aproximar e me render. Havia um carro do outro lado da rua nos esperando. Com uma arma na minha cintura, ele me levou até o carro. Havia mais dois homens dentro do veículo. Foi quando me dei conta de que estava sendo sequestrada. Eles me levaram até o cativeiro e logo depois me pediram o telefone dos meus pais para que pudessem pedir o resgate. Como meus pais estão na Bahia, achei que seria muito difícil os localizar. Então dei o celular do Carlos para que eles pudessem fazer o contato, porém, nem imaginava que Carlos conseguiria o dinheiro, quis apenas ganhar tempo, sei lá. Acho que me matariam se soubessem que não pegaram uma princesa cheia da grana, mas uma menina de renda normal. Durante o tempo em que fiquei no cativeiro, fui amordaçada e tive minhas mãos amarradas. Um deles fazia os contatos pelo telefone, outro me apontava uma arma todo o tempo e outro não tirava as mãos do meu corpo. Alisava-me, me beijava e me lambia... enfim.

Carlos sentia seu rosto queimar de raiva e ciúmes, mas preferia não interromper Caroline, que continuava:
- Eu apenas chorava. Sentia ódio deles e ao mesmo tempo não sabia por quanto tempo aquele pesadelo duraria. Até que aquele animal que me tocava resolveu que transaria comigo. Não tive como evitar. Estava amarrada. Naquela situação pensei que estava tudo perdido. Um homem imundo por cima de mim enquanto um outro me apontava uma arma e o som da voz de um terceiro que não parava de falar ao telefone.

Thiago e Sabrina não tinham sequer expressões faciais. Estavam pasmos. Caroline continuava:
- Até que o ouvi falando “A aí, playboy? Arrumou a grana? (...) Certo. Estarei esperando por você”. Logo pensei que finalmente estaria salva. Carlos havia arrumado um jeito de me tirar dali, eu pensava. Alguns minutos se passaram e eu apenas esperava o momento em que Carlos adentrasse pela porta e me arrancasse debaixo daquele ser desprezível. Ouvi uns passos estranhos na sala daquela casa e uma voz que dizia “Resgate. Venho em paz”. Era o Ciro. Um deles disse “Quem é você, coroa?”. Dessa frase em diante não ouvi mais nenhuma voz. Apenas os três tiros certeiros que Ciro distribuiu em cada um dos bandidos com um tipo de um revolver silencioso, não sei direito. Ciro foi tão certeiro que com o barulho da queda dos dois primeiros corpos, o que estava sobre mim se ergueu para ver o que havia de errado. Este recebeu uma bala no meio do crânio.
- Então o Ciro salvou você dessa forma? Ele matou os seqüestradores? Mas e o dinheiro do resgate?
Perguntava Carlos.
- Dentro da mala ele carregava sua arma junto ao dinheiro do resgate. Ele não entraria ali indefeso sem saber com quem estava lidando. Ele foi para pagar ou matar. Pois bem, depois de ter assassinado os três sequestradores, Ciro veio até a mim, se apresentou como chefe de Carlos, explicou tudo o que aconteceu e me fez uma proposta.
- Proposta?
Perguntavam Carlos, Thiago e Sabrina em uníssono.
- Sim. Ciro me tira do bolso uma foto de sua primeira esposa, esta falecida há mais de quinze anos. Eu olhei a foto e vi meu rosto nela. Foi impressionante ver uma pessoa tão idêntica a mim numa foto tão antiga. Então ele disse “Olhe Caroline. Isso só pode ser uma obra divina. Vi você hoje no restaurante com o Carlos e não acreditei. Você é exatamente igual a minha primeira esposa, Sueli, meu único amor. Sueli foi morta por um câncer em 1990. E agora, acabo de lhe salvar disso tudo. Não poderia deixar de lhe pedir... Um beijo”. Eu realmente me peguei tomada por um sentimento de gratidão e de alívio tão grande por ele ter me tirado daquela situação que, confesso, senti uma espécie de atração momentânea por Ciro. Então... o beijei.
- NÃO ACREDITO, CAROLINE!
Interrompia Carlos possuído pelo ódio.
- Calma Carlos. Eu achei que nunca mais precisaria cruzar com esse cara na minha vida. Mas agora ele é quase um de nós, não me deixa em paz um minuto. Vocês notam como ele me deseja? Eu precisava contar isso a vocês. Desculpe-me, Carlos. Mas eu não sabia que um simples beijo iria se tornar nesse pesadelo. Desculpe-me, por favor.
- SIMPLES BEIJO? VOCÊ É UMA VAGABUNDA!
Atacava Carlos.
- Calma gente, calma.
Tentava Thiago.

Carlos saía da mesa em disparada sem dar explicações aos outros três e seguia em direção à casa de Ciro.

Chegando lá, era recebido por Milena, a empregada de Ciro, que levava um empurrão de um irado Carlos.
- Onde está o Ciro?
- O que é isso? O que houve?
- Onde está o canalha do Ciro?
Ciro aparecia na sala.
- O que é isso, garoto?
- Não me chama de garoto, seu filho de uma puta! Por que você fez aquilo? Gostou da Caroline, não é? Ela é a cara da sua defunta, não é? Ela me contou tudo!
- Garoto, você está me desrespeitando na minha casa. Não vou admitir uma coisa dessas!
- O que você vai fazer? Vai me matar, assim como você fez com aqueles três no dia do sequestro?

Na mesma hora, adentravam Caroline, Thiago e Sabrina. Caroline gritava por Carlos bem no ápice da confusão, no momento em que Ciro puxava uma pistola da gaveta, apontava para Carlos e disparava um tiro. Atendendo ao grito de Caroline, Carlos se virava para trás se desviando sem querer do tiro de Ciro, que atingia em cheio o peito de Caroline.

Transtornado, Ciro disparava um tiro em cada jovem, todos certeiros, inclusive em Milena. Por último, tomado pelo mais terrível choro, acabava por compor um cenário mórbido em meio à beleza natural de Búzios - punha seu crânio como alvo e atirava.

[Fim]

Conto publicado originalmente entre 09 e 13 de outubro de 2007, no fotolog.com/lucianofreitas.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

QUATRO MAIS UM IV

Sentado com os óculos de sol, um laptop no colo e uma lata de cerveja na mão esquerda, Ciro parecia uma miragem, uma aparição diante de Carlos.
- Dr. Ciro?
- O que foi, garoto? Viu um fantasma? E sem essa de doutor.
Thiago e Sabrina se olhavam e entendiam tudo. Aquele era o chefe de Carlos. O tal que resgatara Caroline.
- Não vai me apresentar seus amigos, Carlos?
- Claro. Esses são Thiago e Sabrina. Gente, esse é o doutor..., digo, Ciro.

Cumprimentavam-se e logo iniciavam uma conversa inaugural sobre a beleza local. Carlos ficava calado e com medo de perguntar, mas estranhava encontrar Ciro na mesma cidade e praia. Na verdade ele não sabia nem onde situava a casa de praia do chefe. Poderia ser em Búzios também. Por que não?

Caroline saía da água e vinha caminhando de maneira angelical em direção aos amigos na areia. Ajeitava os longos cabelos negros. As ondas batendo em câmera lenta faziam um pano de fundo maravilhoso para o andar de Caroline. Ciro percebia sua chegada. Desviava a atenção das frases chatas de Thiago e Sabrina e passava a observar a menina que se aproximava. Carlos assistia aquilo com muito ciúme, mas se segurava. Afinal, o velho não teria a menor chance.

Quando Caroline chegava até o corpo de Carlos, que se encontrava em pé a sua espera, abraçava-lhe e dava de cara com Ciro. Arregalava os olhos e soltava em voz baixa:
- O que esse homem está fazendo aqui?
- Não sei, amor. Não sei.
Respondia Carlos também em voz baixa.
- Mais que merda. Esse cara aqui também?
- Caroline. Foi ele quem lhe salvou. Já se esqueceu?
Caroline abaixava a cabeça e ficava em silêncio. Ia até Ciro, o cumprimentava e agradecia a pedidos de Carlos.
- Não há de que, Caroline. O que importa é como você está. Você está bem?
- Sim, estou. Mas prefiro não tocar no dia de ontem.
- Como quiser, Caroline.
Concordava Ciro lentamente enquanto analisava cada curva de Caroline. Thiago e Sabrina assistiam a tudo calados.

- Vocês aceitam almoçar lá em casa?
- Obrigado. Mas não precisa, Ciro.
Respondia Carlos.
- A Caroline é quem vai responder. Quer almoçar lá em casa, Caroline?
Caroline pensava e respondia com um pouco de frieza - Sim, por que não?
Carlos não entendia a atitude de Ciro, muito menos a de Caroline. Começava a suspeitar de que algo não cheirava bem naquela cena.
- Ótimo. Minha casa fica logo ali, assim que vocês quiserem ir, me avisem.
Carlos e Caroline ficavam sérios e sem jeito enquanto Thiago e Sabrina se mostravam ansiosos com o convite.
- Não estou gostando nada disso.
Dizia Carlos a Thiago.
- Ora, Carlos. Vamos almoçar na casa do magnata. Deve ter tudo do bom e do melhor na casa dele. Imagina.
- Não, Thiago. Não é disso que eu estou falando. Estou me referindo ao jeito com que Ciro vem tratando Caroline.
- Não vai me dizer que está com ciúmes. Aquele coroa?
Duvidava Thiago em tom de deboche.
- Não sei não, Thiago.

No caminho, iam Carlos, Thiago e Sabrina no banco traseiro e Caroline no banco do carona, ao lado de Ciro a pedidos do mesmo.
- Sabe, Caroline? Seu namorado é um de meus melhores funcionários.
Caroline apenas sorria sem querer.
- Tem nas mãos um garoto de ouro.
Carlos nunca havia dito, mas odiava ser chamado de garoto, ainda mais por Ciro. No meio de um monte de frases tediosas de Ciro, apenas Thiago e Sabrina se interessavam.

Chegavam à casa de Ciro e lá conheciam Milena, sua empregada.
- Milena trabalha comigo há anos. A levo para onde vou. Eu e minha família não vivemos sem ela. Não é mesmo, Milena?
- É sim, doutor. Os jovens vieram para o almoço?
- Sim. Prepare algo enquanto papeamos na varanda.
Respondia Ciro.
- Sim, doutor.

Pronto. Começava ali uma série de quatro dias em que Carlos, Caroline, Thiago e Sabrina não fariam nada sem a presença de Ciro. Ele os convidava para programas e se convidava para os programas dos jovens. Carlos se via sem graça de negar ao chefe, mas já no primeiro dia de viajem se encontrava entediado com a presença de Ciro. Praia, almoços, jantares, festas locais, tudo era com a companhia de Ciro, que pagava praticamente todas as despesas. Se não bastasse a companhia indesejável, Ciro não desgrudava de Caroline com suas frases maliciosas. Carlos já não aguentava mais. Thiago e Sabrina também não.

* * *
No terceiro dia, domingo, os jovens se reuniam na pousada onde se hospedavam para terem uma conversa sobre a presença de Ciro.
- Não dá mais, Carlos. Essa viagem está se tornando a viagem nossa e do Ciro.Começava Thiago.
- Pois é. Eu também estou odiando. Não aguento mais as histórias desse velho.Emendava Sabrina.
- Sim. Eu concordo. Mas é meu chefe. Como posso destratá-lo? Ele é uma mala, mas...
Explicava Carlos.
No mesmo momento, Caroline começava a chorar.
- O que houve, Caroline?
Perguntava Carlos.
- Preciso contar uma coisa a vocês. – Respondia aos prantos Caroline – É sobre o dia do sequestro e sobre o Ciro também.
Carlos, Thiago e Sabrina emudeciam de olhos arregalados.

[Continua]

Conto publicado originalmente entre 09 e 13 de outubro de 2007, no fotolog.com/lucianofreitas.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

QUATRO MAIS UM III

Ronaldo, Ciro, Caroline e Carlos seguiam até a casa do último.
- Dr. Ciro, eu não sei como agradecer e nem como pagar.
Dizia Carlos.
- Esquece isso garoto. Seu empenho em minha empresa vem me gerando lucros bem maiores do que alguns reais. Não se sinta um devedor. Fiz o que achei que deveria fazer.
- Obrigado. O senhor teve muita coragem. Não teve medo?
- Com o dinheiro na mão não tinha motivos para ter medo, Carlos. O dinheiro vence qualquer marginal. Eles queriam o dinheiro, só isso. Agora vão. Vocês têm uma viagem pela frente, já se esqueceram?
- Não. Não sei se há mais clima para viagem. Não depois disso tudo.
Dizia Carlos cabisbaixo.
- Deixem de serem bobos. Têm motivos de sobra para comemorarem. Correu tudo bem. Foi só um susto, não é mesmo, Caroline?
- Pensando por esse lado. Acho que o senhor tem razão, Dr. Ciro.
Soltava Carlos um pouco mais calmo.
- Então, boa viagem para vocês. Vamos Ronaldo, ainda tenho que arrumar as minhas malas.

Chegando em casa. Carlos se dava conta que já faltavam poucos minutos para as oito horas. Carlos ligava para Thiago para explicar o atraso.
- Thiago?
- Fala Carlão! Vamos ou não vamos?
- Thiago, aconteceu uma coisa muito chata.
- Diga!

Carlos contava todo o ocorrido a Thiago. Caroline se encontrava muda. Não dizia uma única palavra.
- Carlos. Estamos indo para aí.
Dizia Thiago aflito.

Chegando à casa de Carlos, Thiago e Sabrina conversavam melhor com o casal e só então entendiam todo o caso. Sabrina tentava acalmar Caroline enquanto Carlos e Thiago a perguntavam como tudo aconteceu. Mas Caroline continuava muda. A menina parecia ter visto um fantasma. Embora tivesse tudo terminado bem, Carlos ainda se preocupava com o estado de sua namorada.
- Não podemos viajar nesse clima, Thiago. Se vocês quiserem ir, tudo bem. Caroline e eu não estamos em condições.
- Carlos, Caroline está em estado de choque, é normal. Amanhã ela amanhecerá um pouco melhor e a gente vê no que dá. Essa viagem mais do que nunca será importante para ela. Ajudará a esquecer o episódio de hoje.
Thiago tentava animar Carlos.
- É. Você tem razão. Amanhã é um novo dia.
Dizia Carlos.
- Eu ligo para a pousada para explicar o ocorrido.
- Obrigado, Thiago.
Agradecia Carlos não muito confiante de que viajariam no dia seguinte.

* * *
A sexta-feira amanhecia com um lindo céu azul e uma brisa fresca em conflito com o calor que começava a se impor. Caroline havia dormido na casa de Carlos, que por sua vez preferia não contar o ocorrido aos pais da menina. Isso poderia colocar sua viagem e a chance de Caroline esquecer de tudo por água abaixo.

Com um beijo em sua nuca, Carlos acordava aquela beldade de 21 aninhos. Caroline era uma morena que lembrava o verão. Seus cabelos lisos espalhavam-se pelas suas costas. Caroline despertava e finalmente falava:
- Que dia lindo, amor!
- É. Hoje, eu quero que você esqueça tudo que ocorreu ontem. OK?
Caroline silenciava-se uns trinta segundos e dizia:
- Carlos. Apague o dia de ontem. Nem mesmo fale no dia de ontem. Promete?
- Prometo.
- Vamos viajar? Quero esquecer o dia de ontem.
- Era isso mesmo que eu ia lhe propor, Caroline.

Contente com o otimismo de Caroline, Carlos imediatamente ligava para Thiago e confirmava a partida para as dez horas da manhã. O sorriso voltava a tomar os rostos dos quatro amigos.

Na hora marcada, Carlos e Caroline passavam na casa de Thiago e Sabrina para seguirem viagem. Antes de entrarem no carro, Carlos sussurrava:
- Não comentem nada sobre ontem, OK? Ajam como se o dia de ontem não existisse.
- Tudo bem, Carlos. Vai ser melhor assim.
Concordava o casal.

* * *
Algumas horas depois, os dois casais chegavam à pousada na cidade de Armação de Búzios. Caroline já era a mesma de sempre. Exibia seu sorriso costumeiro e não parava de abraçar e de dizer a Carlos o quanto estava feliz. Carlos se sentia mais feliz ainda ao perceber que o sequestro não havia deixado nenhum trauma aparente em Caroline.

Chegavam, se acomodavam, trocavam de roupa e partiam em direção à praia.
Da areia, Carlos, Thiago e Sabrina sorriam e comemoravam ao observarem Caroline se banhar.
- Cara, quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo, não?
Dizia Carlos.
- É mesmo. Um sequestro relâmpago, uma viagem e, agora, a nossa alegria!
- Thiago tem razão.
Emendava Sabrina.
- É. Mas nisso tudo tem uma coisa que ainda me incomoda. Como pagarei ao Dr. Ciro o valor do resgate.
Eis que surge uma voz familiar bem atrás dos três jovens:
- Eu já disse que não precisa pagar, garoto!
Com os olhos arregalados, Carlos se depara com nada mais nada menos que Ciro, ali, em carne e osso.

[Continua]

Conto publicado originalmente entre 09 e 13 de outubro de 2007, no fotolog.com/lucianofreitas.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

QUATRO MAIS UM II

Às quatro da tarde, Ciro se despedia de seus funcionários e desejava um bom feriado para todos. Olhava diretamente para Carlos e soltava: “Para você também, garoto”. Carlos retribuía meio sem graça. Seu pensamento não mais estava em sua viagem, mas no que diabos Ciro quis com aquele convite esquisito. E, agora, com aquela frase direcionada a sua pessoa.

Faltava apenas uma hora para Carlos largar do trabalho. Como bom funcionário que sempre foi, deixava suas tarefas todas encaminhadas e preparadas para terça-feira. Afrouxava a gravata, esticava as pernas e ficava ali, sentado e olhando para o relógio e para a foto de Caroline no porta-retrato.

Quinze minutos para a saída. Tocava o celular. Era Caroline aos prantos.
- Carlos.
- Oi amor, o que houve? Está chorando?
- Carlos, por favor, me tire daqui, faça o que eles estão mandando...
- Eles quem? O que está acontecendo?
Uma voz rouca e nervosa de um homem tomava o lugar do choro de Caroline.
- É o Carlos não é?
- Sim sou eu. Quem é você?
- Não interessa quem sou. A única coisa que lhe interessa no momento é a vida da gostosa aqui. É o seguinte, a menina está aqui conosco e pra você tê-la de volta é bom seguir exatamente o que eu mandar. OK?
- Sim, sim.
Respondia Carlos nervoso.

O homem lhe passava um endereço e o valor do resgate. Cinqüenta mil reais. Queria o dinheiro até a meia noite no local indicado.
- Eu não tenho esse dinheiro, cara. Seqüestraram a pessoa errada, por favor, solte a Caroline e eu não envolverei ninguém nisso.
- Ah! Não tem o dinheiro? Então não tem a menina. Você escolhe, meu irmão.
- OK! Façam novo contato em uma hora. Mas antes, deixe-me falar com Caroline.
- Não! Arrume o dinheiro. E nem pense em polícia! Entendeu?

Pensando se tratar de um golpe, ligava para o celular de Caroline. O mesmo homem atendia.
- Está pensando que estou de brincadeira? Quanto mais você demorar mais será prazeroso para os meus amigos aqui.
Carlos imediatamente ligava para a primeira pessoa que lhe vinha à mente; Ciro, que atendia com imensa satisfação.
- Olha só! Eu sabia que você pensaria melhor na minha proposta, Carlos. Como vai?
- Escuta, Dr. Ciro. Caroline foi seqüestrada. Querem cinqüenta mil reais pelo resgate. Por favor, me ajude. O que eu faço?
- O que é isso? Isso é muito grave. Já chamou a polícia?
- Não! Nem pense nisso. Eles matam a Caroline.
- E em que posso ajudar, Carlos?
- Você não poderia me emprestar esse dinheiro, Dr. Ciro? Tu és a única pessoa que conheço que poderia ter essa quantia.
- OK! Onde entregaremos essa grana?
- Eles ligarão em uma hora.
- Aguarde-me na frente do prédio. Estou passando aí para lhe pegar. Vamos juntos entregar esse dinheiro. Fique calmo, garoto.
- Tudo bem.

Tempo depois, Carlos descia correndo pelas escadas. Não queria que ninguém soubesse, a princípio, do que estava acontecendo. Ciro aparecia em seu carro blindado com seu motorista. Abria a porta de trás para que Carlos entrasse. Carlos entrava, e dizia o endereço.
- Mas esse bairro é barra pesada, patrão.
Dizia assustado o motorista.
- Não interessa, Ronaldo. Corre para lá, agora!
Carlos ficava mudo.
Durante o trajeto, o seqüestrador voltava a ligar.
- E aí, playboy? Arrumou a grana?
- Sim arrumei. Estamos chegando no local.
- Certo. Estarei esperando por você.

Vinte minutos depois, Carlos, Ciro e Ronaldo chegavam ao local. Uma estrada de terra os levava a uma casa na total escuridão. Já se passavam das seis horas.
- Fique no carro, garoto.
- Eles são perigosos, Dr. Ciro. O que pensa em fazer?
- Pegar sua garota e entregar o dinheiro do resgate. Nessa hora é preciso muita calma e você não está nada calmo.
Carlos mais uma vez emudecia.
- Ronaldo, fique com ele.
- Sim, patrão.
Carlos e Ronaldo viam Ciro sumir na escuridão em direção a casa. Não falavam uma só palavra.

Uns trinta minutos depois, Ciro voltava com Caroline nos braços. Entrava no carro e assistia com um sorriso sem graça ao reencontro de Carlos e Caroline, que nada diziam, apenas choravam.

[Continua]

Conto publicado originalmente entre 09 e 13 de outubro de 2007, no fotolog.com/lucianofreitas.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

QUATRO MAIS UM

Quinta-feira, véspera de feriado prolongado, muito sol, porém, muito trabalho também. No pulso, seu relógio ainda marcava oito horas da manhã, ou seja, ainda havia um expediente inteiro pela frente. No meio de reuniões, decisões e papeladas, Carlos só pensava naquele fim de semana de quatro dias que se aproximava a cada minuto. O movimento de pessoas apressadas para lá e para cá no Centro da cidade era admirado por ele da janela de seu escritório, situado no vigésimo andar de um imenso edifício.

Carlos planejava uma viagem com a namorada e mais um casal de amigos para o litoral. Seu celular não parava de tocar. Eram seus amigos ajustando os últimos preparativos para a viagem.
- Carlinhos, que horas você larga do escritório?
- Olha Thiago, como sempre às cinco da tarde. Estarei passando na sua casa às oito da noite. Sabrina já estará aí com você?
- Sim, sim. Já está tudo pronto por aqui. Sabrina e eu não trabalhamos hoje, então aproveitamos para adiantar as coisas por aqui.
- Ótimo! Eu não vejo a hora de sair daqui. Não paro de pensar nessa viagem. A primeira com a Caroline. Hoje já devo ter assinado uns quinhentos documentos sem nem saber do que se tratam, de tanta ansiedade.
- Carlinhos apaixonado? É isso mesmo?
- Sim, Thiago. Apaixonado.
- É isso aí! Oito horas então?
- Sim, às oito!

Nesse dia, Carlos almoçava com sua namorada, Caroline. A felicidade dos dois não cabia em seus corações. Falavam mais do que comiam e se beijavam muito também. O Centro da cidade mais parecia uma festa. Os risos, as piadas, os falatórios e os expedientes terminados mais cedo por conta da euforia de alguns, tomavam conta da avenida mais movimentada. O casal assistia a tudo e riam sem parar. Estavam realmente muito felizes.
- Já preparou sua mala, meu amor?
Perguntava Carlos à Caroline.
- Sim. Desde ontem. Hoje, na faculdade, eu não consegui prestar atenção em sequer uma palavra que o professor disse. Estou muito ansiosa com nossa viagem. Olha como o dia está lindo!
- É mesmo. Também estou nas nuvens com tudo isso. Será a nossa viagem!
- Thiago e Sabrina também estão animadíssimos, amor.
- Sim, falei com o Thiago ainda pouco.

Minutos depois, despediam-se. Caroline ia para casa e Carlos voltava para o escritório para cumprir o restante do expediente.

Chegando ao seu local de trabalho, Carlos era avisado que o Dr. Ciro, seu chefe, o aguardava em sua sala. Imediatamente, Carlos seguia em direção à sala e adentrava.
- Olá, Carlos. Sente-se.
- Diga, Dr. Ciro.
- Doutor não. Aqui nessa conversa serei apenas Ciro. OK?
- Como quiser, Ciro.
- Café?
- Não, não. Acabei de almoçar.
- Ah! É mesmo. Como pude esquecer?
- Como assim?
- É que eu o vi com sua...
- Namorada.
- Isso. Sua namorada. Vi os dois aos beijos no restaurante. É sobre ela mesmo que quero falar.
- Sobre a Caroline?
- Não exatamente, mas ela se inclui também.
- O senhor a conhece?
- Ainda não. Mas gostaria. Carlos, você trabalha comigo há muitos anos e sabe o quanto gosto de você, não sabe?
- Claro.
- Pois bem. Gostaria de lhe fazer um convite.
- Pois não.
- Gostaria que passassem, você e Caroline, logicamente, esse feriado prolongado em minha casa de praia. O que acha?
- Ciro, eu adoraria, mas já estou de viagem marcada e com reservas em uma pousada.
- Que pena. Seria ótimo recebê-los lá em casa. Minha esposa está no Canadá com as crianças e ficarei muito sozinho por lá. Não há como desmarcar?
- Eu já depositei um sinal, Ciro. Desculpe-me.
- Desculpe perguntar, mas de quanto foi o sinal?
- Uma boa quantia.
- Eu pago.
- Não, Ciro. Eu quero muito. Será minha primeira viagem com a Caroline. Vão mais dois amigos nossos e já está tudo certo. Mesmo assim, muito obrigado pelo convite.
- Tudo bem, Carlos, como quiser. Mas a propósito, para onde vão?
- Búzios, senhor.
- OK! Boa viagem, Carlos. Divirtam-se.
- Obrigado. O senhor também. Procure se divertir.
- Tudo bem, garoto.
Carlos saia da sala sem entender algumas coisas. Em dez anos que trabalhava na empresa, jamais fora convidado para sequer um café pelo chefe. O que teria motivado o Dr. Ciro a tomar tal atitude?

[Continua]

Conto publicado originalmente entre 09 e 13 de outubro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

LEMBRETE

Eu olhava pela janela. Tudo lá fora estava normal, como em toda manhã de domingo. As senhoras com suas bolsas de feira, os senhores lavando ou polindo seus automóveis e nem sinal da juventude local, que devia estar dormindo por ter chegado em casa lá pelas tantas da madrugada.

Bem, tudo lá fora podia estar na mais perfeita normalidade, mas aqui em casa não. O dia amanhecia diferente. Era um dia especial. Era o meu aniversário! Tudo bem, vai, aniversário no domingo eu nunca gostei, mas pelo menos era fim de semana.

Eu estava disposto. Sentia-me um jovem de quinze anos, mesmo completando trinta e seis. Eu passava uma flanela no telefone. Estava meio empoeirado. Tudo indicava que eu o atenderia várias vezes durante todo o dia.

Eu separava cinquenta cascos de cerveja e, indo até o depósito de bebidas, pensava em trazer também uns vinte litros de refrigerante. Achava ser o suficiente para a turma que eu esperava.

Os CDs! Separava também os CDs para tocar durante a festa. Para impressionar a Débora, escolhia os de Jazz para tocar primeiro. Isso me daria um ar de intelectual, apesar de não conhecer nenhum daqueles artistas – aqueles álbuns eram todos dos meus falecidos pais.

Cinco da tarde. Bebidas no freezer, salgados encomendados e uma camisa nova. Não avisara a ninguém, mas tinha dentro de mim a idéia de que meus amigos me ligariam e apareceriam. O sol ainda estava quente lá fora, o que me fazia crer que somente mais tarde os primeiros toques à campainha seriam dados. O primeiro CD já rodava. Um tal de Herbie Hancock. Até que me soava bem.

Eu abria as cortinas da sala a fim de ver o movimento na rua. Já não havia mais ninguém. Deviam estar vendo algum jogo do campeonato estadual de futebol ou um daqueles programas dominicais de auditório. Eu aumentava o Herbie e já bebia a primeira cerveja.

Eu sentava no sofá e ficava me olhando naquele grande espelho da minha sala. Perguntava-me “será que estou bem com essa camisa?” Tudo para causar uma boa impressão em Débora. Ela chegaria logo, eu pensava.

A campainha tocava. “Opa!” Eu ia atender. Com um sorriso no rosto eu abria a porta rapidamente.
- Os seus salgados, senhor.
Dizia-me o entregador, para a minha decepção..
- Ah! Sim! Claro!
- São 500 salgados. São setenta e cinco reais.
- Sim. Vou pegar.

Seis e meia da tarde. Os salgados ainda estavam bem quentinhos. Aquelas caixas de papelão forradas de papel alumínio funcionavam mesmo. Eu comia. E bebia mais cerveja.

Impaciente com o Herbie e seu piano, eu trocava o CD por um dos Ramones. Eu sei, uma mudança radical, mas é que a demora de meus amigos começava a me deixar aflito e com vontade de ouvir algo mais energético.

A tarde caiu, a noite chegou e o telefone não tocou sequer uma vez. A campainha, sim, tocou, quando os salgados chegaram. Pensava na normalidade que eu presenciara na rua, pela manhã, e constatava que dentro de minha casa a coisa estava ainda mais mórbida. A geladeira, o aparelho de som e eu, preparados para tudo e envolvidos pelo nada. Nem mesmo Débora foi capaz de me telefonar.

A cerveja já descia mal. Dez e quarenta e cinco da noite e eu, desolado, já assistia TV. Aquela música de encerramento do Fantástico já me causava calafrios. Naquele dia, me causou pânico.

O teste fora feito. Era fato. Ninguém lembrou de meu aniversário. Ninguém! Os salgados foram a minha janta por longas semanas.

Na segunda-feira, chegando no escritório, eu avistava uma foto minha, junto com as de mais uns sete funcionários. Acima delas, uma tipografia – já batida e sem graça – em fontes coloridas dizia: “Aniversariantes do Mês”. Aquilo me gerou saudades. Saudades do domingo, pois aquele quadro de fotos conseguia ser ainda mais deprimente que meu dia anterior. Eu não recebi nenhum “feliz aniversário”, apesar daquele lembrete tão... autêntico.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O SOL DE ABAJUR

Difícil entender o porquê de uma mulher, em pleno Brasil, um país tropical, não suportar a estação mais quente do ano, eu pensava. Toda aquela agitação das praias, um misto de férias, festa, sol, mar... Tudo num esquema tradicional, cultural e pré-carnavalesco tão envolvente. Uma euforia que transforma tudo em cores, sorrisos, sensações inexplicáveis... É como se no verão tudo fosse felicidade.

Claro. Somar dias longe do trabalho ou estudos às situações bacanas que dão origens àquelas fotos que guardamos para os nossos netos, nos leva a resultados que só podem ser encarados como felizes. Ou não? Não! Esqueça todo o lado bom destes parágrafos ao falarmos de Bianca.

Conheci Bianca na época do colégio. Conheci? Bem, eu a via passar para cá e para lá, apenas. Sabia o seu nome, mas não lembro de como tomei conhecimento. Bianca estudava numa sala ao lado da minha. Ela era sempre a última a entrar. Ficava, como eu, encostada na porta até que o professor chegasse. Por mais que a minha porta ficasse a apenas dois metros, se não me engano, da sua, nós não nos falávamos. Ela não olhava para mim. Se olhasse eu nem saberia, pois estava sempre de óculos escuros.

O ensino médio chegava ao fim e, como todos ali, inclusive os colegas de minha classe, Bianca sumia da minha vida. Bem, os da minha classe reduziram-se a cumprimentos apressados pelo Centro da cidade – nossas tardes são muito mais corridas hoje em dia. Mas e Bianca? Essa eu só voltaria a ver... Deixe-me ver... Semana passada! Sim! Na semana passada eu a vi! Isso! É por isso que estou escrevendo, meu Deus! Vou contar.

Eu estava num ponto de ônibus. Fazia um sol de rachar e o asfalto parecia querer pular em nossos colos. Tipo "vem dar um abraço aqui no seu asfaltinho quente, vem". Então, bem por aí. Eu estava a caminho do escritório, mas só passaria por lá para pegar as minhas coisas e logo depois partiria para casa. Já pensava em um sábado sob uma sombra, com os pés na areia e cercado de amigos e cervejas. Até que um "oi" mudaria todos os meus planos.

- Oi - e
u respondia ainda de costas. Virava-me imediatamente.
- Lembra de mim? - dizia ela.
- Você é aquela menina que estudava...
- Isso! Lembro de ti.
- Eu também lembro de ti. Bianca, não é mesmo?
- Como sabe meu nome?
- Não sei. Mas sei que sei. O meu você não deve saber, não é?
- Não mesmo. Desculpe-me.
- Que isso, tudo bem. Nós nem nos falávamos. Meu nome é David.
- Prazer, David.

Ela ria.

Era outra mulher. Jamais imaginaria que Bianca viria falar comigo. Sempre me pareceu tão esnobe e anti-social. E o sorriso? Nunca vira aquele sorriso. Nunca estive de frente à Bianca, para falar a verdade.

- E o que anda fazendo? - perguntava Bianca.
- Trabalhando. E muito.
- Sim, mas em que você trabalha?

"Claro, seu idiota", eu pensava.

- Ah! Sim! Eu trabalho com criação e vendas de softwares.
- Bacana.
- E você?
- Escritora.
- Isso sim é bacana. Vive disso?
- Sim. Não me vem muito, mas dá para viver sim.

Eu notava que Bianca, apesar de demonstrar muita simplicidade ao falar de seu emprego, vestia-se muito bem. Sua pele era branca, os cabelos estavam cortados num feitio que não sei descrever, mas me pareceu bem moderno. Ela usava uma calça larga de cor branca, que me passava uma sensação de conforto enorme. Uma camiseta bacana, uns colares, um par de óculos de sol – como sempre –, uma mochila verde musgo e uma garrafinha de água mineral na mão direita completavam minha visão. Ela sempre foi uma menina muito bonita e havia se tornado, eu concluía, uma mulher mais linda ainda.

- E você escreve livros sobre o quê?
- São romances.
- Hum... Interessante. Eu não sou muito chegado à leitura, confesso, mas, a pedido de uma amiga lá do escritório, estou lendo um que... Deixe-me pegar aqui na pasta... Estou adorando. Um tal de "O Sol de...".
- "O Sol de Abajur".
- Isso! Você conhece? Claro! Escritores lêem muito, não é?
- Sim. E escrevem muito também. Esse livro é meu, David.
- O quê?

Eu pegava o livro e, só então, me atentava ao nome do autor. Ou melhor, da autora. "Bianca Tavares".

- Nossa! Mas... Mas que bacana! Escreves muito bem!
- Obrigada.
- Você possui quantos livros publicados?
- Sete romances e quatro coletâneas de contos. Esse que está lendo foi o meu último lançamento.
- Nossa! Que coincidência. Eu, você, o seu livro aqui na minha bolsa. Estranho.
- Estranho mesmo. Como esse calor. Como está quente, não?
- É. Mas eu adoro esse sol. E você?
- Não. Eu não. Detesto o verão.
- Está brincando!

Na verdade eu já imaginava, por conta de sua pele tão alva.

- Juro! Só estou aqui nesse sol porque precisei passar na editora. Sabe como é. Burocracias.
- Posso imaginar. Mas vem cá. Uma bebida, à noite, você não curte? As noites de verão são boas, vai.
- Sim. Se estiver ventando bem, eu gosto sim.
- Bem, eu acho que temos bastante coisa para conversar. Os tempos do colégio, sua carreira tão fascinante e até algumas dúvidas que me surgiram em seu romance "O Sol de Abajur". Podemos nos ver? Prometo que só lhe busco se estiver ventando bem!
- Bem, eu não tenho nada marcado para hoje à noite. Acho que será legal sim.

Bianca me dava o endereço de sua casa, que ficava – pasme – bem em frente à praia que eu mais freqüentava. Vida de escritora não devia ser nada fácil mesmo, eu pensava ironicamente.

Eu passava em sua casa a umas nove da noite, como combinado. Mas, no caminho, uma tempestade de verão quase me fazia desistir.

Em frente à casa de Bianca, de dentro do carro, eu ligava para ela.

- Bianca, eu cheguei, mas não para de chover. O que eu faço?
- Ora, já que está aqui, acho melhor você entrar, não?
- Se não for atrapalhar.
- Nada. Estou indo aí.

Ela abria a porta:

- Nossa! Está todo molhado. Deixe-me pegar uma toalha.
- OK.
Eu reparava a casa de Bianca. Era linda. Uma organização de dar inveja. Uma casa pequena, sim, mas muito bem localizada e perfeitamente decorada.
- Aqui. Seque-se e entre, por favor.
- Sim.
- Um Whisky?
- Aceito. Com gelo, por favor.
- Uhum.

Eu sentava no sofá de Bianca. Ela trazia dois copos de seu lindíssimo bar.

- Bem, não deixamos de estar bebendo numa noite de verão, não é mesmo? - dizia Bianca.
- Pois é. Mas à sua maneira, não? Com o verão momentaneamente distante.
- Bem, eu me propus à sua, mas a chuva agiu a meu favor. Dá-lhe São Pedro!
- É.
- Mas diga. Antes de entrarmos em papos saudosistas de colégio – dizia Bianca –, me fale sobre sua dúvida a respeito de meu romance.
- Ah! Sim! É que já estou no último capítulo e ainda não entendi o sentido do título. "O Sol de Abajur". Tudo que leio é sobre uma menina introspectiva que tem lá suas análises, etc.
- Bem, longe de querer estragar a sua leitura, mas já estragando, devo lhe dizer que este romance é autobiográfico. Aliás, deixe me fazer uma coisa.

Bianca levantava-se, apagava as luzes da casa e acendia o abajur da sala, que clareava parcialmente seus braços. Sentava-se próximo àquela luz e, com os óculos de sol à face, dizia:

- Esse é o horário em que o sol mais me agrada.

Conversamos durante toda aquela noite e a madrugada também. Eu confessava que escrevia alguns contos de vez em quando e ela implorou que eu os mandasse para que ela pudesse ler. Claro que jamais mostrarei minhas porcarias para ela, uma escritora excelente. Rimos muito e bebemos muito também. Vivemos naquelas horas toda a amizade aprisionada naquela distância de dois metros, do tempo do colégio.

Quando o sol dava o ar da graça, lá para umas seis da manhã, eu me despedia de Bianca.

- É. Acho que já está na minha hora.
- Acho que você não está bem para dirigir, David.
- Sei que não, mas é que já é manhã, e...
- Já sei. Não pode perder a praia, os amigos, a cervejinha.
- Não. Tenho que dormir um pouco e, quando acordar, reler todo o seu romance. Quero lhe entender melhor.
- O seu entendimento sobre mim não virá de minhas páginas, David.
- Mas já é um bom começo, não?

Eu ligava o meu carro e seguia para minha casa. Completamente anestesiado de curiosidade e, sei lá de que mais. Já li o livro pela segunda vez. Entendi o lance do abajur, mas entender Bianca que é bom, nada. Mas hei de entender um dia.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo
Leia também O Sol de Abajur II.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

JANEIRO MEU VII (Final)

Giovanna e Luana chegavam à casa da última. Ainda na rua, passado o susto, as duas já sorriam e até falavam sobre aquele caminhar de Luana até a água. Luana ria sem graça aos elogios da amiga. Ao mesmo tempo, sentia-se segura por estar longe daquilo tudo e, aparentemente, livre do hipnotizar atraente de Denis.
- Juro, Luana! Você foi caminhando e os meninos não paravam de te olhar!
- Credo! Que vergonha, meu Deus! Onde eu estava com a cabeça? Você devia ter me segurado. Eu não queria tirar a roupa na frente daqueles amigos do Denis.
- É. Mas tirou. E tirou numa classe! [risos]
- Para, Giovanna.
- OK! Parei! Mas, cá entre nós...
- O quê?
- Você estava linda, amiga. A mais linda ali naquela praia. Palavra!
- Ai, Giovanna. Sabe o que eu sinto?
- O quê?
- Que fui uma tremenda idiota.
- Por ter deixado o pessoal daquele jeito?
- Não! Mas por ter ido àquela praia, por ter me encantado dessa forma pelo Denis, por ter te metido nisso tudo...
- Deixa disso, Luana. Quem iria imaginar que o Denis agiria daquela forma? Será que foi o efeito daquela porcaria que ele usou?
- Nada. Acho que a droga só serviu para mostrar o que ele realmente é. E eu achando ele super carinhoso. Ele deve agir assim com todas as que ele se interessa. Viu como ele pegou no meu braço? Olha! Está marcado! Que bicho!
- Fiquei com medo, sabia?
- E eu? Por que acha que corremos tanto? [risos]
- Pois é.

Luana abria a porta. Celeste ainda preparava o almoço. Camarão. Giovanna sentia o cheiro e lembrava de um jantar na casa da amiga [vide “Duas IV - Má Notícia”]. A comida de Celeste era celestial, pensava Giovanna.
- Meninas? Mas já voltaram?
Dizia Celeste.
- Sim, Celeste. Já voltamos.
- E então, como estava a praia? Não estava boa?
- A praia estava até bacana, mas as nossas companhias foram péssimas.
- Por quê? O que houve?
- Celeste, eu nem sei o que eu estava fazendo ali. Você acredita que, de uma hora para outra, todos ao nosso redor dividiam cigarros de maconha?
- Jesus! O Denis também?
- O Denis? Nem me fale em Denis, Celeste.
- (!!!) Olha, minha filha, desculpe-me por ter lhe dito aquelas coisas sobre sentimentos. Não devia ter me metido na sua história. Se algo acontecesse como você eu não iria me desculpar nunca!
- Está tudo bem, Celeste. Além do mais, não foi você quem me disse para ir à praia com o Denis. Fui eu mesma. E outra: Suas palavras foram muito bacanas. Nada tem a ver com o troglodita do Denis.
- E essa marca no seu braço? Foi ele?
- Foi. Mas não conta nada a papai, por favor Celeste.
- Mas minha filha...!
- Por favor, Celeste. Nem sei do que papai é capaz se souber. Foi só um apertão no braço. Já vai sumir.
- OK. Mas que isso não se repita, Luana. Não quero mais saber desse garoto por aqui.
- Não o verá mais. Assim eu espero.
- Bem, vão tomar um banho, meninas.
- OK.

Giovanna ia para o banho primeiro. Luana permanecia no quarto. Mimi, como sempre, dormia sobre a cômoda da menina. À medida que tirava a roupa, Luana pensava em tudo o que acontecera. Notara que a figura de Rômulo ficara bem distante de seus pensamentos nos últimos dois dias. Olhava a marca deixada por Denis em seu braço e enchia os olhos d’água. Já estava quase sumindo. Mas aquela cena parecia mais viva que tudo.

Ainda de biquíni, Luana deitava em sua cama e olhava para o teto. Olhava o telefone. Pela janela, olhava as folhas verdes das árvores de sua rua. Olhava o céu que, àquela altura, já se mostrava num azul forte e limpo. Olhava o telefone novamente e pegava-o. Discava um número. O de Rômulo.
- Alô.
- Oi Luana? Tudo bom?
- Agora sim. Está tudo ótimo.
- O que houve?
- Nada. Eu fui à praia com Giovanna, mas...
- Você? À praia? Mas você disse que nunca foi fã de praia!
- Pois é. E não sou mesmo. Fomos por puro tédio. Só isso. Mas não gostamos e acabamos voltando na mesma hora. Ela está aqui. Está no banho.
- Você não me parece bem, Luana. Desde ontem.
- Só estarei bem quando... A que horas você vem?
- Às quatro. Pode ser?
- Às três. Pode ser?
- Se quiser, vou até às duas.
- Uma, então.
- Menina, daqui a pouco eu estarei atrasado.
- E está! Quero te ver agora!
- Estou terminando de estudar uma peça de Chopin dificílima. Assim que eu terminar, parto para aí. Está bem assim?
- Sempre trocada pelo Chopin, não é? [risos]
- Claro que não, meu amor. Quer ouvir? Vou por o telefone perto do piano.
- Quero sim!

Rômulo executava um trecho da “Sonata nº 2” de Chopin para que Luana apreciasse. Luana ouvia as notas perfeitas do piano do namorado e não agüentava. Deixava as lágrimas rolarem aos montes. Luana viajava com aquele som e com as imagens de Rômulo que lhe vinha à mente. Entendia o que uma simples atração fora capaz de fazer com seus sentimentos. O gostar profundo que sentia por Rômulo se mostrava, ali, naquele momento, muito maior que qualquer hipnose apaixonante. Era tão oposto ao que acabara de vivenciar. Tão profundo.

* * *
Luana e Giovanna já haviam almoçado e assistiam à televisão na sala, quando a campainha soava.
- EU ATENDO!
Gritava Luana antes que Celeste se prontificasse.

A menina dava um salto do sofá às vistas de uma assustada Giovanna, que, mesmo assim, não tirava da boca um picolé de manga. Luana corria até o portão.
- Minha filha, mas se for o...
- NÃO É!
Corria Luana.

Rômulo encontrava-se de pé no portão. Trazia um sorriso que aumentava a cada passo de Luana em sua direção. A menina abria o portão como uma flecha. Pendurava-se sobre os ombros do namorado, quando:
- Luana, para que essa pressa? Eu...
- Não fala nada! Só me beija!
Os dois se beijavam como se estivessem longe um do outro há meses. Como se Rômulo voltasse da Segunda Guerra Mundial.
- Meu Deus, Luana. O que houve? Que... Que beijo!
- Só diz que me ama!
- Eu te amo, Luana. E você?
- Mais do que nunca!

Luana passava a guardar consigo um episódio longe da ciência de Rômulo, que por sua vez, também trancava ao peito momentos bem mais graves que o da namorada [vide
“O Natal de Luana” e “Gisele”]. Luana, embora não tenha agido de forma injusta em nenhum momento, não negava a fraqueza ao quase se ver rendida aos encantos de Denis.

* * *
O restante do mês de janeiro seria o suficiente para fazer com que Luana sequer lembrasse da existência de Denis. Rômulo, Giovanna, Mimi, seus livros e seus discos ocupariam todo o peito. Luana chegaria a esbarrar-se com Denis em suas idas à padaria, mas apenas uma troca de cumprimentos, um “oi”, se faria presente. A presença daquele menino dos cabelos em caracóis, concluía Luana, não surtia mais efeito. Os olhos de Denis não brilhariam mais. Não para Luana.

[Fim]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.
Montagem da Capa: Luana.
Mais histórias sobre Luana em: LUANA, DUAS, O NATAL DE LUANA e GISELE.