quinta-feira, 31 de julho de 2008

A GRANDE CHANCE

As aulas do terceiro ano do ensino médio eram apenas toleradas por Marcela, que já tinha em mente a idéia de uma vida independente dos trocados dados por seu pai semanalmente. O sonho de Marcela ia muito além do que o pouco, porém suado, dinheiro que recebia poderia lhe proporcionar. Seu pai, vendedor de uma grande loja de departamentos, dava o máximo de si para garantir o necessário e até mesmo alguns luxos à Marcela, que por sua vez era muito grata, entretanto, imaginava que merecia muito mais, não de seu pai, mas da vida.

A ambição de Marcela a fazia calcular passos maiores que as quais suas pernas podiam dar. A boa vida e o conforto exibidos por algumas amigas da escola faziam com que a jovem alçasse vôos praticamente impossíveis naquele momento. Prestes a concluir o ensino médio, resolvia que lutaria por um ótimo salário no mercado de trabalho, mas dispensava os estudos para um vestibular.
- Mas Marcela, hoje em dia sem um curso superior? Como irá conseguir esse tipo de remuneração?
Perguntava Isabelle, sua melhor amiga.
- Isa, o que é meu está guardado. Eu não precisarei de mais nenhuma aula de nada para conseguir o que quero.
- Mas o que você quer é dinheiro, luxo, conforto? Nunca lhe disseram que primeiro vem a tempestade e depois a bonança?
- Sim, mas antes de uma tempestade também há uma bonança, ou não? É essa bonança que eu quero.
- Falo sério, Marcela. Você precisa se preparar para o futuro que nos aguarda, que não é tão fácil como você costuma pensar.
- Nunca disse que será fácil, mas que será MEU será!
- Deus te ouça, viu.

Na verdade não eram claros para ninguém quais eram os planos de Marcela para alcançar seu objetivo de vida. Ela tinha a mania de dizer às amigas que no dia em que fosse rica o bastante, empregaria todas elas. Algumas se sentiam mal com as previsões de Marcela?
- Como assim? Está insinuando que seremos suas empregadas? Faça-me o favor, Marcela.
- E por que não? Muitas de vocês serão empregadas de alguém um dia. Seria melhor que fossem minhas, que sou amiga de vocês, não?
Ela ria ao falar enquanto algumas das amigas cochichavam.
- Mas é muito besta. Fala como se fosse algo certo. Como dois e dois são quatro.
- É mesmo. Deixa essa maluca sonhar. Do jeito que leva os estudos, é mais provável que termine como o pai.
- Fato.

Os meses se passaram rápidos naquele ano letivo. De agosto em diante, muitas das meninas já comemoravam suas situações na primeira fase do vestibular para a universidade estadual enquanto de Marcela recebiam um sorriso que parecia congratular de maneira fria e desinteressada.
- Marcela. No fim do ano tem mais quatro vestibulares. Não tentará?
- Não, Isa. Entenda, eu não nasci para estudar, nasci para ser estudada!
- Você parece brincar com seu futuro, amiga.
- Tu és minha amiga?
- Sim, claro, Marcela.
- Então aceite minha decisão. Pode ser?
- Claro. Não está mais aqui quem falou.
- Obrigada.

No final do ano letivo, os sorrisos estampavam os rostos das amigas de Marcela, praticamente aprovadas para uma universidade pública. Marcela não levava muito à sério os estudo, isso era fato, mas a menina era inteligente o bastante para ser aprovada sem prova final ou algo do tipo. A comemoração de Marcela parecia menor do que a de suas amigas. Ela estava livre do ensino médio, mas sem a mínima idéia do que faria no ano que se aproximava.
- Marcela!
- Diga, Isa.
- O ano letivo se findou e no ano que vem, se tudo der certo como vem dado, vou estudar História em uma universidade federal.
- Sim, eu sei.
- Então. Não seremos mais amigas de sala de aula, mas pretendo não perder contato. Eu gosto muito de nossa amizade, Marcela.
- Eu também gosto, Isa. Pode deixar. Não perderemos contato. Prometo. Eu sempre te ligarei.
- Ai Marcela, que bom! Mas...
- Mas o quê?
- Promete que vai fazer um curso, sei lá, que vai estudar, que vai batalhar por um futuro?
- Não prometerei porque não preciso de nada disso, Isa, eu...
- Você o quê? Caia na real Marcela. A não ser que queira entrar para o mundo do crime, ou...
- Ficou maluca, Isa?
- Desculpa, mas é que me preocupo com você, ora.
- Não precisa se preocupar, Isa. Você terá muitas matérias e professores para se preocupar no ano que vem.
- Sua boba.
- Eu me cuido.
- Eu espero mesmo.

Chegando em casa, Luiz Felipe, pai de Marcela faz a pergunta.
- E então filha. Passou de ano?
- Passei, pai.
- Fico feliz por você.
- Obrigada.
- E no ano que vem? O quê pretende fazer?
- Ficar rica.
- Falo sério, filha.
- Eu também falo sério.
- Pretende jogar na loteria até ganhar? É isso? Sem estudo só se fica rico nesse país desse jeito.
- Está falando como minhas amigas, papai.
- Mas elas estão certas. Aposto que passaram para uma faculdade e...
- Chega papai, por favor.
- Está certa. Só não esqueça de seu pai aqui quando ficar rica.
- Fique tranqüilo, papai. Nunca esquecerei de você. Eu te amo.
- Eu também te amo, filha.

Nas vésperas do natal daquele ano, Marcela resolve ir até o shopping para dar uma volta e se encontrar com Isabelle. Conforme havia combinado, esperava a amiga sentada na praça de alimentação. Marcela já exibia uma beleza inconfundível usando o uniforme do colégio onde estudava e mais ainda quando se vestia para seus passeios. O verão escaldante a forçava deixar as costas à mostra, usar um short curto ao mesmo comportado e os cabelos presos numa trança que finalizava no topo a perfeição de seus 18 anos. A pele bronzeada e os acessórios que usava nos pulsos eram um misto de cores tropicais estonteantes. Era a simplicidade de Marcela que fazia tudo ao seu redor se tornar simplório diante de sua presença.

Antes de Isabelle aparecer, chegava à mesa de Marcela uma mulher aparentando, além de uns 50 anos de idade, possuir uma boa situação financeira, por conta de suas jóias roupas e sacolas.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
Respondia sorrindo Marcela.
- Posso me sentar aqui?
- Claro.
- Está esperando alguém?
- Sim.
- O namorado, não é?
- Não. Minha amiga.
- Ah sim. Meu Deus, mas que calor, não?
- Sim.
- Vou pedir um suco.
Marcela achava a senhora bem divertida. Era um bom passa-tempo até Isabelle chegar. Enquanto tomava seu suco, a senhora conversava sobre coisas banais com Marcela, que por sua vez apenas sorria.
- Você é muito simpática, menina.
- Obrigada. Você também é.
- Qual sua graça?
- Marcela.
- O meu é Aparecida. Você é muito linda, sabia? Faz lembrar uma falecida neta minha.
- ...
- Bem, eu vou indo. O chato do meu genro deve estar no estacionamento me esperando furioso. Fique com Deus.
- Vai com Deus.

Minutos depois, Marcela avistava a bolsa de Aparecida esquecida sobre a cadeira onde a mesma estava sentada. Levantava rapidamente para ver se ainda achava aquela senhora a fim de entregar-lhe a bolsa. Corria em direção ao estacionamento, mas não mais encontrava a dona daquela bolsa que por si só já valia alguns milhares de reais.

Alguns minutos se passavam e então Marcela decidia vasculhar a bolsa à procura de algo que pudesse ajudar na localização de Aparecida. Ao abrir a bolsa, logo levava um susto. Bolos e bolos de notas de cem se apresentavam de maneira inédita aos olhos de Marcela. Bolos incalculáveis à primeira vista. Devia ter milhares de reais nas mãos da jovem. O quê aquela mulher fazia com todo aquele dinheiro era o que Marcela se perguntava todo momento. Tomava um táxi em poder da bolada e no caminho ligava para Isabelle para desmarcar o encontro.
- Eu te explico depois, Isa.
- Tudo bem, mas...
- Beijos.

Chegando em casa, Marcela se via trêmula por conta da situação. No compartimento externo da bolsa de Aparecida, um celular não parava de tocar. Marcela ainda não sabia se atenderia. Estava confusa entre a honestidade e a necessidade. À noite, Marcela resolvia atender.
- Alô.
Atendia Marcela.
- Quem está falando?
Era a voz de Aparecida.
- Isabelle.
Mentia.
- Isabelle? Meu Deus. Por acaso a minha bolsa está com você?
- Bolsa?
Marcela queria ganhar tempo.
- Sim. Este celular estava na bolsa que eu perdi hoje cedo.
- Sim. Sua bolsa está comigo.
Marcela escolhia a honestidade.
- Graças a Deus. Como faço para pegá-la contigo?
- Não sei. Tem muito dinheiro nela. É perigoso. Por que anda com tanto dinheiro assim, senhora? Não tem medo?
- É uma longa história, minha filha.
- Bem, vou lhe passar meu endereço e você vem aqui buscar a bolsa. Pode ser?
- Sim claro.
Marcela passava então o endereço de Isabelle.

Marcela imediatamente ligava para Isabelle e contava toda a história.
- Menina! Não acredito!
- Pois é. Mas esse dinheiro não é meu. Tenho que entregar. Eu menti sobre meu nome porque eu não tinha certeza ainda se devolveria. Basta você entregar a ela. Não precisa entrar em detalhes. Ela passará aí amanhã pela manhã. Antes, deixo a bolsa aí.
- Tudo bem.
- Ah! Ela deve lhe contar uma longa história explicando o por quê dela carregar essa grana toda na bolsa. Eu perguntei sobre.
- OK.

Como combinado, Isabelle, ainda mais honesta que Marcela, entregava a bolsa à Aparecida e como esperado, ouviu toda a história da senhora. Ligava então para Marcela.
- Marcela.
- Oi. Entregou?
- Sim, entreguei.
- Antes que eu me arrependesse.
- Fez bem, amiga. Fez bem.
- E a história? Ela te contou?
- Sim. É uma milionária maluca.
- Por que?
- Ela tinha uma neta que faleceu há alguns anos. Ela a amava muito pelo jeito, pois você acredita que ela anda com aquela bolada toda na bolsa a fim de doar, pasme, DOAR, a quem de alguma forma a fizesse lembrar da falecida?
- ISA!
- Ai que susto!
- EU A FIZ LEMBRAR DA FALECIDA, ESQUECEU?
- Jura?
- EU NÃO TE FALEI ISSO, ISA? PELO AMOR DE DEUS!
- Foi mesmo, amiga! Xii...

terça-feira, 29 de julho de 2008

DIFERENTES

Àquela altura da vida, eu já havia me decepcionado diversas vezes com as pessoas. Na minha cabeça, as pessoas existiam apenas para decepcionar umas as outras. Elas estavam sempre ali, prontas para se aproveitar de qualquer descuido. A imagem da multidão seguindo seus destinos às 7h da manhã naquela imensa praça de pedras portuguesas se mostrava repetitiva e artisticamente colorida e móvel. Parado e de olhos fixos naquele rio de gente ambiciosa que desaguava nas ruas do centro, eu pensava umas vinte vezes antes de descer as escadas e desembarcar. Eu era o peixe desgarrado de um cardume de individualistas.

Com os pés cansados de caminhar sem uma direção segura e tranqüila, eu me dirigia a lugares onde a minha insignificância se tornava ora maior, ora menor do que o normal. A seriedade com a qual eu lia as notícias do jornal pregado à banca contrastava com as gozações sem sentido de torcedores rivais que acompanhavam o resultado da rodada de jogos de futebol da noite anterior. Por breves momentos eu me flagrava querendo ser como eles. Aparentemente livres de qualquer frustração ou tristeza e inflados com a coragem e a força de um cordeirinho.

Eu só queria entender o que nos fazia ser diferente um dos outros já que víamos a luz basicamente de um rasgo igual em todas as mulheres. Queria entender qual era a diferença entre as classes quando dormiam ou quando defecavam. A do pico da pirâmide caminhava como fosse livre de qualquer excremento. Talvez por isso a mente opaca de minha irmã a fazia acreditar que o Tarcísio Meira não cagava e nem tirava meleca.

Na minha bolsa, apenas as ferramentas que eu precisava para reformar, construir ou modificar aquilo que ordenavam, uma cartela de cigarros e um rádio a pilhas que raramente eu ouvia, mas fazia questão de carregar comigo, mania de gente velha mesmo. Do meu lado, frente à banca de jornal, um rapaz bem mais novo que eu, vestido numa roupa social, carregava uma mochila esportiva e na mão direita um copo de morango com leite batido. Uma imagem moderna onde o seu simples silêncio afrontava a minha blusa surrada de botões faltando e minha sandália de couro remendada a terceira vez. Na verdade ele nem me olhava, o que era ainda mais irritante. Após ler o que o interessava, dava meia volta e seguia seu rumo. Eu também seguia o meu.

Mais à frente, para atravessar a rua, aquele rapaz mais uma vez se encontrava ao meu lado. De óculos escuros, ele parecia direcionar suas vistas a mim. Olhava fixo para suas lentes na expectativa do mesmo mencionar algo sobre minha pessoa socialmente inferior, mas ele virava o rosto e retirava de seu bolso um telefone celular de última linha.
- Fala, cara. Beleza? Estou chegando aí para resolver aquele “pepino”. OK. Até mais.
Ficava claro para mim que ele tinha horários, deveres e responsabilidades que talvez o fizessem merecer todo aquele conforto visível.

A minha tarefa naquele dia era a reforma do banheiro de um escritório ali no centro da cidade. Com um papel de pão amassado contendo o endereço para o qual eu me dirigia nas mãos, eu seguia pela rua de paralelepípedos. Mais uma travessia. Dessa vez, a avenida principal do centro. Mais uma vez, o rapaz parava ao meu lado à espera do sinal vermelho.
- Esse sinal é um absurdo.
Ele falava ao vento.
- Verdade.
Eu respondia como que num diálogo, mas ele nem me ouvia. Após a longa espera, atravessávamos e entrávamos no mesmo prédio e conseqüentemente no mesmo elevador, onde a presença dele foi ainda mais difícil de suportar. Seu perfume se fazia presente e sua higiene e bom trato mais uma vez me afrontava sob o silêncio medonho daquela cabine. Saíamos do elevador e entrávamos na mesma sala.

Na porta.
- O senhor é o pedreiro que vai reformar o banheiro?
- Eu tenho cara de pedreiro?
- Desculpe senhor, eu não queria...
- Por que se desculpa? Acha ruim ser chamado de pedreiro?
- Não foi isso que quis dizer...
- Ser pedreiro é ser inferior a alguém?
- Não, de maneira alguma...
- Está tudo bem. Sou eu mesmo o pedreiro. Mas antes de ser pedreiro sou o Hércules.
- Isso mesmo! Hércules! Foi comigo que o senhor falou na sexta-feira ao telefone.
- Ah sim, Eduardo.
- Como sabe meu nome?
- Ao contrário de você, eu me recordo da graça e não somente da função. Somos pessoas, não?
- Claro, claro. Vamos, entre. Vou lhe mostrar o banheiro.
Ele respondia com um sorriso envergonhado.
- Está bem.

Chegava ao banheiro a ser reformado, mas antes passava por uma série de salas compostas por divisórias onde em cada uma delas se encontrava um funcionário com a cara enfiada no computador ou com o telefone na orelha. Eles trabalhavam de maneira frenética enquanto um homem alto com um olhar fulminante circulava entre os mesmos. Eram nítidas nos ares as metas inalcançáveis que ali eram estipuladas. Não sei o por quê, mas as caras de medo de alguns funcionários fizeram me sentir um pássaro livre.
- Esse é o banheiro do qual lhe falei, Hércules.
- OK. Já lhe passo o material que precisarei.
- Por favor. Quando terminar seu levantamento, me procure ali na minha sala, sim?
- Pode deixar.

O banheiro estava realmente precisando de uma boa reforma. Infiltrações, louças e metais em péssimo estado. O cômodo contrastava totalmente com o restante do escritório, onde a brancura e a modernidade se faziam presentes. Talvez por ser o único local onde a produção não era o foco. Enquanto fazia meus pequenos cálculos para uma total reconstituição daquele banheiro, não pude deixar de notar a movimentação das pessoas que trabalhavam ali. Duas mulheres chegaram bem próximas a mim, no bebedouro, e sem querer ouvi suas conversas.
- Não adianta, Carmem. Esse supervisor é um troglodita. Você viu o que ele me disse na frente de todos?
- Eu sei, Elaine, mas o que se pode fazer?
- Eu vou sair daqui. Não agüento mais tanta humilhação.
- E quem vai pagar a operação de sua filha, o seu aluguel?
A tal Elaine silenciava e deixava uma lágrima correr. Elas voltavam ao trabalho, mas antes.
- O senhor é quem vai reformar o banheiro?
Perguntava a tal Carmem.
- Eu espero que sim.
- Ai, graças a Deus!

Eu terminava o levantamento e procurava o Eduardo para lhe dar o orçamento.
- Eduardo.
- Entre, Hércules.
- Já está pronto o orçamento.
- E então?
- Bem, o banheiro está péssimo, Eduardo.
- Eu sei, eu sei...
- Se quiser uma reforma geral, o preço de minha mão-de-obra é esse aí.
Ele olhava assustado para o papel.
- Isso somente a mão-de-obra?
- Isso. Fora o material que fica mais ou menos isso aí.
Ele levava outro susto.
- Meu Deus. Não sei se os diretores irão aceitar esse preço. Vou falar com eles. Já volto.
- OK.

Minutos depois, voltava Eduardo.
- Hércules. Nada feito. Eles acharam caro demais. Eles querem reduzir o serviço à pelo menos um quarto desse valor.
- Bem, esse orçamento que fiz é para deixar aquele banheiro idêntico ao banheiro ao lado, que está um brinco.
- Pois é, Hércules, mas aquele banheiro ao lado é o banheiro dos diretores.
- E o deplorável?
- Dos funcionários.
- Entendi.
Ali, os diretores cagavam de forma diferente.


No fim de toda a negociação, tudo o que fiz foi trocar uma torneira e pôr uma saboneteira líquida onde antes nada havia. Eu reforçava ainda mais minha conclusão sobre as pessoas. Umas devorando as outras. Era um tédio pensar que dependíamos das pessoas para sermos pessoas também. Ainda assim, a nova torneira foi brindada com uma alegria silenciosa por parte dos funcionários vigiados. Era o mínimo, mas era mais.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

CULPADOS

Eu abria a porta de casa.
- Oi.
- Oi, amor. Chegou cedo. O que houve?
Perguntava minha esposa.
- O transito resolveu dar uma trégua hoje.
- Que bom. Chegou a tempo de assistir sua filha papando.
- PAPAI, VEM PAPA COM EU!
Minha filha de dois anos berrava da cozinha.
- PAPAI JÁ VAI, FILHA!
Eu respondia tentando demonstrar alegria.
- O que foi, Paulo? Parece preocupado.
- Onde está Amanda?
Eu perguntava sobre minha filha mais velha.
- Saiu à tarde e não voltou até agora.
- Mas saiu para onde?
- Para a casa de uma amiga, a Roberta.
- Eu já falei que não a quero colada com essa Roberta. E pelo o que sei, Amanda estava de castigo, não? Minha palavra aqui nessa casa não tem mais valor? É isso?
- Paulo, Amanda já tem 17 anos, como vou prendê-la dentro de casa?
- Não quero que a prenda. Quero que Amanda me obedeça. Só isso.
- Não me respondeu sobre sua cara de preocupado, Paulo.
- Com o que eu devo estar preocupado, Alice? Amanda repete o ano no colégio, se envolve com uma amiga que todos nós sabemos que se vende a troco de maconha ali no morro e você me pergunta uma coisa dessas, Alice? Faça-me o favor.
- Paulinha me toma muito tempo, Paulo. Eu acabo me descuidando um pouco de Amanda.
- Aí é que está! Amanda tinha que estar aqui a te ajudar e não na casa de Roberta, aquele projeto de vagabunda.
- Paulo, se acalme.
- PAPAI, VEM PAPAR COM EU!
- ESTOU INDO, FILHA!
- Quer que eu ligue para Amanda, Paulo?
- Ligue e ordene que volte para casa. Quero ter uma conversa séria com essa menina.
- OK.

Dos seus 15 anos para cá, Amanda só vinha me trazendo problemas. Já havia engravidado de um cara que até hoje eu não sei quem é e abortado sem que eu e Alice soubéssemos. Recebemos as tristes notícias da pior maneira possível, com Amanda gritando por conta de uma hemorragia causada pelo medicamento abortivo que havia ingerido. No hospital, eu ouvia de um médico a mais humilhante bronca de minha vida. Mais tarde, soube que ela estava envolvida com um filhinho de papai que a enchia de tudo quanto era tipo de drogas. Entre muitas outras coisas que me tiravam o sono.

Sempre ouvia dizer que o diálogo era o melhor caminho para um bom entendimento entre pais e filhos, mas em que momento eu poderia conversar com Amanda? Durante o dia e boa parte da noite eu estava trabalhando. Quando eu chegava em casa, ou Amanda já estava dormindo ou estava na rua e totalmente incomunicável. Nos poucos momentos em que eu estava em casa, Amanda tratava de se ocupar com qualquer futilidade para que uma conversa comigo fosse sempre impossível. Alice, coitada, se desdobrava vendendo salgado para fora e ainda cuidava de Paulinha com muito empenho, porém, Amanda ficava livre para aprontar as suas sem sequer ajudar sua mãe. Isso me irritava profundamente.

Naquele dia, eu ajudava Paulinha com a janta enquanto ouvia finalmente Alice falando com Amanda ao telefone.
- Filha. Venha já para casa! Eu disse já! Seu pai está aqui furioso! Você tem 5 minutos para me aparecer aqui! Ande!
Desligava o telefone.
- O que ela disse?
- Disse que está a caminho.
- Vou tomar um banho. Se eu me estourar hoje com Amanda eu nem sei o que farei com ela...
- Paulo, se acalme.
- Essa minha calma não resolveu nada até então, Alice. Vou experimentar a raiva. Vamos ver se assim essa menina entende a minha língua.

Enquanto eu tomava um banho gelado, escutava a porta se abrir e os passos desleixados de Amanda. Podia também ouvir o diálogo entre mãe e filha.
- Meu pai está calmo?
- Não. E acho bom você ouvir o que ele tem a dizer.
- Meu pai é um porre.
- EU ESTOU OUVINDO, AMANDA! SENTE-SE NA SALA E ME ESPERE CALADA! OUVIU?
Eu gritava de dentro do banheiro em alto e bom som. O silêncio reinava.

Saía do banho já pronto para Amanda.
- Me responda uma coisa: O que eu lhe disse sobre não sair de casa sem a minha permissão.
- É que minha mãe...
- Não me interessa! Sua mãe se mata de trabalhar enquanto você fica vagabundeando por aí! E por falar em vagabunda, quantas vezes já lhe disse que não a quero com essa tal de Roberta?
- EU NÃO POSSO TER AMIGOS? MERDA!
- ABAIXE ESSA VOZ PARA FALAR COMIGO SUA...
- SUA O QUÊ? VAMOS FALE!
- SUA VAGABUNDA!
Eu acertava o rosto de Amanda com uma tapa que pela dor em minha mão eu já previa o ocorrido. O sangue descia da testa de minha filha pelo rasgo causado pelo meu anel.
- SEU FILHO DA PUTA!
Eu não me arrependia. Era aquele sangue que eu queria ver fazia tempo.
- PAULO! OLHA O QUE VOCÊ FEZ NA MENINA!
Alice danava a chorar enquanto acudia Amanda. Paulinha danava a chorar de seu quarto.
- EU VOU TE DENUNCIAR PARA A POLÍCIA, SEU MONSTRO!
Aquilo me fervia ainda mais o sangue.
- TOMA!
Acertava-lhe mais uma tapa que sem querer acertava de raspão também o braço de Alice.
- VOCÊ ESTÁ MALUCO, PAULO! PÁRA COM ISSO!
Alice tentava me conter.
- EU SEI PORQUE ELE NÃO ME QUER COM ROBERTA!
Eu me via surpreso com o tom ameaça de Amanda.
- O que você está querendo dizer, filha?
Perguntava Alice aos prantos.
- ROBERTA ME DISSE QUE JÁ SE DEITOU COM ELE!
- REPETE O QUE DISSE SUA PROSTITUTA!
- É ISSO MESMO! ROBERTA ME DISSE QUE VOCÊ JÁ PAGOU MUITA MACONHA PRA ELA EM TROCA DE UMA BOA FODA!
Alice partia para cima de mim como uma louca. No reflexo, pegava uma tesoura que estava sobre a estante da sala e a direcionava a meu peito.
- É MENTIRA DELA, ALICE! FICOU MALUCA?
Alice não me ouvia e eu não tive forças para a impedir que me fincasse por duas vezes a lâmina. Eu caía desacordado de dor.

- MAMÃE! VOCÊ O MATOU!
- ESSE CRETINO!
- Mas...
- MAS O QUÊ?
Alice estava fora de controle. Parecia não ser ela ali.
- Não era verdade o que eu disse sobre a Roberta.
Confessava Amanda desorientada.
- SUA ORDINÁRIA!
Alice lançava a tesoura feito um dardo rasgando os seios de Amanda, que ao se agachar recebia mais três golpes nas costas. Alice poupava Paulinha porque ouvia meu apelo.
- NÃO, ALICE! NÃO FAÇA ISSO!
Alice então rodava passando a vista naquele cenário de sangue inexplicável. Sem dar um pio, aplicava-se diversos golpes contra o tórax numa violência absurda. Eu nada podia fazer no estado em que me encontrava.

Paulinha e eu sobrevivíamos, mas até hoje, 15 anos depois, nos perguntamos de quem teria sido a culpa de tudo aquilo.

terça-feira, 22 de julho de 2008

A PIOR DAS PERDAS

Quando eu entrava em um ônibus, a vaga ao meu lado era sempre a última a ser ocupada. Eu culpava a minha aparência por isso. Eu trabalhava na construção naval e o estaleiro ficava um pouco longe da minha casa. Como era mais prático e econômico, eu não levava roupa de troca. Fazia os trajetos de ida e volta com minha roupa de serviço; o macacão. Já dá para imaginar o estado em que essa peça se encontrava, imunda. O máximo que eu fazia antes de ir embora era dar umas batidas para espanar-lhe a poeira e só a lavava nos fins de semana.

Minha barba fazia meus 27 anos quase dobrarem aos olhos de quem entrava na condução. A pele oleosa e as unhas negras também contribuíam para que a vaga permanecesse desocupada até que o veículo lotasse. Em algumas viagens eu ainda notava as pessoas de pé e espremidas enquanto o lugar ainda permanecia vago. Eu me apertava ao máximo contra a janela a fim de deixar espaço suficiente para que sentassem ao meu lado sem que precisassem encostar-se ao meu estado de calamidade. Mas era em vão, pois o cheiro de suor ampliava o meu limite deplorável.

Eu sabia que aquela situação chata acontecia todos os dias, mas sabia também que minha falta de cuidados comigo mesmo era um reflexo externo de um descuido mais grave ainda, o interno. Tomado por um pessimismo ímpar somado à descrença total no que o mundo poderia me oferecer, eu era constantemente atingido em cheio por uma depressão que me fazia desprender de tudo que me desse o mínimo de trabalho para pensar ou escolher. Tomar banho? Eu já havia acostumado com o meu odor. Fazer a barba? Ela escondia a minha feiúra estipulada pelos padrões. Lavar a roupa? Tudo bem, mas por uma questão de conservação daquilo que me custa dinheiro e mesmo assim eu podia usar uma mesma calça por semanas sem ver a água.

Sentia que na verdade faltava algo na minha vida que me fizesse realmente enxergar coisas boas ao meu redor. Algo que me estimulasse. Mas como me estimular diante de um caos urbano que a rotina insiste em esconder? Eu não estava nem um pouco disposto a entrar na briga por posições sociais. Eu só queria o básico, o que já me custava sacrifícios enormes à minha visão de vida. Eu perdi as contas de quantas vezes fui jantar junto aos moradores da marquise da padaria em frente a minha casa. Como eu poderia estar feliz com aquela miserabilidade invadindo nossos lares cobertos até o teto de individualismos?

Numa sexta-feira, na viagem de volta para casa, uma mulher linda, bem vestida e aparentando uns 35 anos sentava-se ao meu lado ainda com vários lugares vagos dentro do ônibus. Aquilo me causou uma certa estranheza. Por que uma mulher como aquela sentaria do lado de um quase mendigo tendo ainda tantas melhores opções? Até no teto seria mais agradável que ao meu lado.
- Boa noite.
A mulher dizia.
- Boa noite, senhora.
- Senhora? Por favor, senhora não.
- Desculpe.
- Tudo bem.
O que a fazia puxar um assunto comigo?
- Pode fechar essa janela?
Ela perguntava.
- Posso, mas é que meu cheiro...
- É que estou um pouco gripada. Esse vento...
- Tudo bem.
Eu gostava de deixar a janela aberta para que meu odor incomodasse menos a viagem, mas eu fechava a pedido daquela mulher.
- Odeio ficar resfriada.
- Ah...
- Não é horrível?
- O quê?
- Ficar resfriado.
- Ah sim, é horrível.
Eu respondia sem graça e olhando para a rua.
- Você trabalha em estaleiro?
- Sim.
- Deve ser cansativo.
- Sim. É cansativo sim.
- Deve chegar em casa louco por um banho.
- Nem sempre.
- Como não? Não me digas que dormes assim.
Mas que mulher mais enjoada. Por que não me deixava ali em paz?
- Às vezes durmo.
- Às vezes dorme sujo assim?
- Não. Disse que às vezes durmo.
Ela se espantava.
- E como agüenta ficar sem dormir?
- É mais fácil que agüentar tudo isso. A vida, a rotina, as regras...
- Deve ser um homem muito forte.
- Se fala de força física, sim, sou forte.
- E de que outra força eu poderia estar falando?
- Da força de vontade!
Conversávamos um pouco sobre a vida e a mulher abria a boca perplexa com cada frase que eu soltava.
- Nossa. Você me parece culto, mesmo que assim tão descrente e pessimista.
- Impressão sua, moça.
- “Moça”. Melhorou. Quantos anos você tem?
- Meu ponto chegou. Até mais.
Preferia não responder.
- Tome aqui o meu cartão. Gostei de conversar com você. Ligue-me quando quiser.
- OK. Ligo sim.
Eu descia do ônibus com o cartão já no bolso do macacão. Nem sequer tinha olhado o nome daquela mulher.

Chegava em casa e me lembrava que teria o sábado de folga. Jogava com algumas outras peças o macacão na máquina de lavar roupas. Preparava o jantar ao som da máquina e de um disco do Jimi Hendrix que uma antiga namorada havia esquecido lá em casa. Aquele momento era um dos poucos que me faziam dar alguns sorrisos, ainda que pequenos. “O cartão!” Eu me lembrava do cartão que àquela altura já devia estar em picadinhos na máquina de lavar.

Interrompia então o processo de lavagem e tentava encontrar o cartão. Para minha sorte, ele ainda estava no bolso do macacão, porém, completamente ensopado. Eu seguia até a luz da sala para tentar entender o conteúdo daquele pequenino papel molhado. E conseguia. O número de seu telefone não mais era possível ler, mas o nome dela sim; Esperança.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

ELAS VII - Parte Final

Naquele sofá, eu acariciava o rosto de Larissa enquanto ela ia lentamente se acalmando. As lágrimas de Valéria, do outro lado da parede, pareciam cessar também. Aos poucos Larissa pegava no sono e eu não conseguia parar de pensar no que eu estava prestes a fazer. Voar para Porto Alegre e começar uma vida totalmente nova. As únicas pessoas que eu conhecia por lá era Vanda e Larissa. Só. Seria mesmo uma escolha sábia seguir a idéia de Serginho, aquele louco? Sentia-me medroso e ao mesmo tempo disposto a ver no que daria essa viagem.

Larissa recostava-se sobre meu peito e já começava a dar indícios de um sono pesado. Não queria acordá-la. Na verdade meu tesão acumulado há semanas até queria, mas para Larissa provavelmente não haveria o clima suficiente para que ela repetisse a dose interrompida de quinta-feira. Mais cedo ou mais tarde nós teríamos um momento só nosso, no qual poderíamos usufruir um do corpo do outro.

Naquele momento, eu sentia uma mão no meu ombro. Olhava para o lado. Gelava. Não havia ninguém. Claro que não havia ninguém. Então eu continuava a zelar o sono de Larissa. Ela precisava deitar-se. Caso contrário, acordaria morrendo de dores na coluna dormindo daquele jeito, toda encolhida. Minhas pernas não deixavam que eu a pegasse no colo e a levasse a meu quarto. Aquela confusão toda havia me deixado exausto de tanto pensar. Os membros de meu corpo sempre refletiam meu cansaço mental. Lembrava de quando as músicas na orquestra do Walter Lins eram muito complexas eu levava uns 20 minutos para levantar da cadeira após o ensaio. Era terrível.

Mais uma vez, aquela mão eu sentia sobre meu ombro. Eu gelava novamente. Larissa se mexia, mas não acordava. Eu morria de medo de assombração, mas eu não queria acordar Larissa. Então me mantinha atento e ao mesmo tempo imóvel com a cabeça da menina já em meus braços.

Logo depois, Larissa acordava levemente.
- Meu Deus, eu caí no sono.
- Pois é. Vamos, vou te levar até o quarto.
Larissa se levantava e eu recebia agora leves empurrões da mesma mão que parecia antes se colocava sobre meu ombro.
- RAIOS!
Eu gritava.
- O que foi, amor?
- Nada.
Eu não queria assustar Larissa. Já bastava tudo aquilo.
- Você parece nervoso.
- Impressão sua. Venha.
Eu a conduzia até meu quarto. Então eu levava então mais um empurrão.

- ME DEIXE EM PAZ!
Eu gritava!

- Ficou maluco, Charles?
- Valéria? Mas...
- Não. A Chapeuzinho Vermelho.
- Mas...
- Acorda homem.
- Onde está Larissa? Eu...
- Larissa? Quem é Larissa? Bebeu todas na festa de ontem, não?
- Eu? Festa? Ontem?
- Ih...
- Que dia é hoje?
- Domingo. Ficou maluco, Charles? Alô. Planeta Terra.
- Mas, eu ia a Porto Alegre hoje com...
- Porto Alegre?
Eu me levantava sob aquele sol que já esquentava o meu casaco de náilon. Meu corpo se encontrava totalmente quebrado da – então assimilada – festa da noite anterior.
- Meu Deus. Eu não acredito. Eu quebrei a chave na fechadura. Que merda.
- Eu estou te chamando e te balançando faz um tempão e você nada de acordar.
- Valéria, eu tive um sonho durante o tempo que dormi aqui na porta de casa.
Eu começava a chorar feito uma criança.
- O que houve, Charles? Vamos lá para casa. Chamaremos um chaveiro, venha.

Eu ia direto ao segundo quarto de Valéria.
- O que procura?
- Por Larissa.
- Mas que raio de Larissa é essa?
- Você não tem uma sobrinha chamada Larissa?
- Nunca. Você sonhou com isso?
- Certamente. Ela era linda.
- Ih...
- Ela era filha da Vanda, sua irmã. Como anda sua irmã? Lá em Porto Alegre.
- Charles, Vanda faleceu faz cinco anos e jamais morou em Porto Alegre.
Eu não me lembrava. Na verdade eu lembrava, mas ter acordado daquela forma de um sonho como aquele me deixava “fora do ar”.
- Ela não teve uma filha?
- Não, Charles.
- Meu Deus.
- Não quer me contar o sonho, enquanto esperamos o chaveiro?
- Claro. Tem um cigarro?
- Pegue aí.
- OK.
Eu acendia o cigarro enquanto Valéria ligava para o chaveiro. Eu ficava imaginando, com uma imensa vontade de chorar novamente, da saudade que eu já começava a sentir de Larissa. As imagens daquele sonho me vinham à mente e me davam a noção do quanto o mesmo tinha sido surreal.
- Pronto. O chaveiro já virá. Agora me conte esse sonho que te deixou tão mal.
- Primeiro me responda. Você me ama?
- Como?
- Você me ama?
- Está ficando maluco, Charles. Somos amigos há tanto tempo.
- OK. Eu vou lhe contar o sonho e entenderá a minha pergunta.

À medida que eu ia contando o sonho, Valéria soltava umas gargalhadas de se escangalhar. Quando isso ocorria, me mantinha sério e olhava fixamente para ela.
- Tudo bem, Charles, continue, mas lamento lhe informar que o Serginho nunca tocou bateria e também já faleceu, no ano passado.
- Agora eu já sei Valéria, porra!
Minha alma se esfacelava a cada frase que eu soltava. Descobrir que nada daquilo que eu havia sonhado era verdade me doía. O rosto de Larissa ao me encontrar naquela sala de Valéria, as pernas dela ao tomar o café da manhã. A orquestra, o Clube dos Líderes e o maestro Walter de fato existiam, porém, eu tocava trompete tão mal que havia sido expulso ainda nos testes para tentar ingressar no conjunto. Aquele solo fabuloso de “But Not For Me”, a admiração de Larissa e de Serginho, saudoso Serginho, ao me verem tocar daquela forma. Tudo um sonho.

- Você quer dizer então que se apaixonou por minha “sobrinha”?
- Isso. Ela era a sua cara. Linda.
Valéria abaixava a cabeça.
- E que você era um excelente músico?
- Isso.
- Ora, Charles. Só lhe aturo com essa corneta...
- Corneta não! Trompete!
- Isso. Trompete. Só lhe aturo com esse trompete aqui ao lado porque é meu amigo de infância, Charles.
- Agora eu já sei, Valéria. Não precisa me fazer lembrar a derrota ambulante que sou. OK?
- OK!
Ela entristecia ao ver que me entristecia. Uma amiga!

O silêncio tomava conta daquela sala. Não era uma simples espera por um chaveiro, era o efeito do sonho se fazendo presente em nossos corações. Valéria não sabia para onde olhava. Eu também estava bastante sem graça, já que no meio da história eu havia confessado o meu amor que há tantos anos eu havia escondido e, diferente do sonho, não passara.

Eu começava a entender o sentido daquilo tudo. Aquelas meninas da festa da noite anterior, jovens e salientes me faziam voltar no tempo enquanto dormia. A partir do momento em que eu apagava frente a minha porta, revivia em sonho um sentimento da adolescência através de Larissa, que representava exatamente o que Valéria era há anos atrás. Tudo o que eu queria ter sido eu realizava naquele sonho. O valor que Larissa me dera, a disputa da tia e da sobrinha pelo meu coração, os músicos do Jazz Bar que eu sempre quis manter laços. Meu Deus. Era tudo um raio de um sonho idiota. Até os diálogos de Larissa e Valéria o meu sonho teve a inspiração de criá-los. Deviam ser os meus erros e acertos em conflitos.

- CHAVEIRO.
- Ih. O chaveiro chegou, Charles.
- É. Obrigado por tudo.
- Eu apenas lhe ouvi.
- É que ninguém jamais me ouviu.
- Eu sempre te ouvi, Charles.
- Pois é. Apenas ouviu. Nunca sentiu. Precisei dizer para que soubesse agora que durante eu a amo. Que sempre te amei.
- Charles. O chaveiro vai embora.
- Em poucos minutos todo um mundo inexistente foi embora, Valéria. O chaveiro é só um detalhe. Detalhe esse que me fará entrar em casa novamente e me deparar com a vida crua e real que eu não queria viver. Não depois de tudo o que sonhei.
- Charles, Charles...
- Vou lá.
- Homens. É difícil entender ELES.
Valéria sussurrava fechando sua porta.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

ELAS VI

Sexta-feira. Embora Mônica Lisboa fizesse naquele mais uma excelente apresentação no Jazz Bar (vide conto “JAZZ” de 25/06/08 nesse blog), depois daquele conselho de Serginho eu não queria pôr os pés naquele lugar tão cedo. Eu havia me comprometido com Larissa que a levaria para assistir um show da Mônica. Mas não iria rolar, não naquela sexta-feira. Eu estava muito confuso e sem saber que decisões tomar diante de minhas conclusões inacabadas sobre “elas”.

O telefone tocava.
- Alô.
- Fala, Charles. É o Serginho.
- Diga.
- Ficou bravo ontem?
- Eu? Imagina! Com duas mulheres para comer? Fala sério, Serginho.
- Olha, ontem eu estava alto.
- Não brinca.
- Desculpe-me. Se ainda quiser conversar, eu tenho a solução.
- Até terça, Serginho.
- Estou falando sério!
- Até terça!
Eu desligava o telefone na cara do Serginho e ficava pensando se realmente eu deveria confiar naquele filho de uma égua. “Eu não vou cair na besteira de ouvir esse cretino novamente, não vou”. Mas a curiosidade me fazia levantar do sofá e ir em direção ao telefone.
- Alô, Serginho? É o Charles!
- Seu filho de uma...
- Calma. Desculpe-me. Estamos quites agora, não?
- Vão se danar você e suas mulheres.
- Vamos, desembucha. Qual a solução?
- Você é um miserável mesmo, não? Dê um pulo aqui em casa.
- OK!
Na mesma hora eu saía em direção à casa de Serginho. Pela hora, almoçaria por lá mesmo.

Chegando à bagunça de Serginho, eu logo era servido de whisky pelo anfitrião.
- Não Serginho. Desembucha primeiro, depois bebemos. Pode ser?
- OK!
- Vamos. O que você tem para mim?
- Bem, estive pensando no seu caso. Você já sabe que a tal da Valéria sempre foi doida por você assim como você por ela, não?
- Sim.
- Agora aparece uma sobrinha, que meu Deus, que sobrinha! E está doida por você também, não?
- Sim.
- Agora me responda uma pergunta. Ainda és doido pela Valéria?
- Acho que não. Acho que passou faz tempo.
- Está doido pela Larissa?
- Você disse um pergunta, Serginho.
- Ora, Charles, não interrompa o meu raciocínio, por favor.
- E baterista lá raciocina?
- Olha!
- Tudo bem, vai, continue.
- Está doido pela Larissa?
- Sim, de certa forma estou, mas acho que não da maneira como ela parece estar por mim. Ela já pensa em irmos juntos a Porto Alegre.
- Pois bem. A tal irmã da Valéria, a mãe da pequena, a...
- Vanda.
- Isso, Vanda. Ela aceitaria você por lá?
- Eu sei lá. Eu nem sei em que condição Larissa me quer por lá. Onde eu moraria? Não pensamos em nada disso. É empolgação dela, só pode.
- Charles. Pense bem. O que você tem por aqui? Além de seu trompete?
- Nada.
- Veja com ela qual será a condição sua por lá. Pode ser uma boa. Pelo que você disse, essa menina tem grana. Pode ser a ponte para você ter uma vida melhor.
- Está sugerindo que me aproveite dos sentimentos dela?
- Pobre Charles. Você como músico deveria ter aprendido que durante toda a nossa carreira nós somos aproveitados de nossos sentimentos o tempo todo e por todos que nos cercam. O que tem de mais em se aproveitar uma única vez?
- Ora, Sérgio.
- É sério.
- O que Porto Alegre teria que aqui não tem?
- Não sei, mas posso lhe dizer o que Porto Alegre NÃO tem e que aqui tem.
- Por exemplo?
- O maestro Walter, a sua casa geminada com aquela louca da Valéria...
- Sei.
- A saudade da Larissa. Logo você também terá isso por aqui.
- OK. Acho que você está certo. Vou nessa.
- Espere. Não vai tomar o whisky? Nem almoçar?
- Não. Eu tenho uma viagem para planejar, esqueceu?

Eu ia direto para a casa de Valéria. Não sabia bem o que eu falaria para ambas, mas estava determinado a deixar meu coração decidir pelo caminho. Eu me sentia forte e ao mesmo tempo fraco em concordar em parte com as idéias de Serginho. O fato é que ele tocou na minha ferida. Fez-me enxergar uma realidade que talvez fosse o pilar de toda a minha confusão. EU NUNCA TIVE NADA! Eu batia à porta de Valéria. Larissa atendia.
- Charles?
- Sim. Vamos para Porto Alegre?
- Mas, o que o fez decidir assim?
- Não me faça perguntas, só me responda.
- Claro que vamos.
- Mas antes precisamos sanar algumas pendências.
- Que pendências?
- Onde eu ficarei por lá?
- Meus pais possuem várias casas na cidade. Algumas estão em meu nome e eu posso fazer o que bem entender com elas. Inclusive hospedar um namorado.
- Está bem. E você acha que seus pais vão aceitar isso?
- Meus pais estão para lá de ocupados com os problemas deles. Eles querem a minha felicidade e se a minha felicidade for você por perto eles aceitarão.
- Ligue para seus pais primeiro e explique tudo. Não quero atrapalhar em nada. Se tudo der certo, chegando lá, vou logo procurar algo para fazer e pagarei por cada dia em sua casa.
- Quanto a isso não precisa se preocupar.
- Bom. Vou para casa. Comunique à Valéria também e me avise caso tenha ficado tudo bem.
- Claro. Ai. Estou tão feliz.
Larissa me beijava com gosto de creme dental. Tudo nela era tão aconchegante e limpo. Eu me sentia apaixonadamente sujo.

Durante quase três horas tudo que eu ouvia da minha sala eram gritos de Larissa com Valéria e vice-versa. Elas brigavam muito por conta de nossa decisão. Eu tocava o trompete com força a fim de ser mais alto que elas, mas não conseguia. Pelo que eu entendia, Vanda, após longa conversa pelo telefone, havia aceitado a condição de Larissa. Ouvia também Larissa lamentar muito pela separação dos pais. Acho que isso acabava ajudando. Vanda devia encontrar-se num estado de carência tão grande que nem deu tanta importância ao namoro da filha com um antigo colega de sua irmã.

A minha porta era batida.
- Oi Larissa.
- Arrume suas coisas. Vamos amanhã. Pode ser?
- Mas assim? Eu preciso entrar em contato com o dono da casa, com o maestro Walter, meus amigos e...
- OK. Vamos depois de amanhã então?
- Sim. Acho que dá tempo de eu me preparar.
- Posso dormir aí essa noite? Com minha tia será impossível.
- Olha...
- Por favor.
- OK. Pode.
- Arrumarei minhas coisas e volto já.
- OK.
- Te amo, Charles.
- Eu também, Larissa.

Minutos depois, Larissa aparecia na minha casa com suas malas e aos prantos.
- Calma Larissa. O que houve?
- Me desentendi feio com tia Valéria, Charles.
- Calma. Vou lhe trazer uma água.
Larissa bebia com o copo trêmulo.
- Obrigada.
- Fique calma.
- Já estou melhor.
- Como foi sua conversa com sua mãe?
- Das melhores possíveis. Ela lembrou de você. Primeiro fez inúmeras perguntas etc. Coisas de mãe. Mas senti que por um lado ficava até feliz por ser você.
- Então aquela história da Valéria de que Vanda não queria que eu me aproximasse...
- É tudo coisa daquela louca. Ela te ama, Charles. Ela me disse. Ela não está aceitando o fato de eu estar com você. É isso.
Eu ficava mudo. Conseguia também ouvir o pranto de Valéria do outro lado da parede. Sentia-me mal por estar sendo parte da causa daquilo tudo. Imaginava a tristeza de Valéria diante da rejeição da sobrinha para dormir com o homem que ela no fundo amava.

As coisas continuavam ainda mais complicadas e tensas para o meu lado. Dentro de dois dias eu mudaria completamente a minha vida sem saber se para melhor ou pior. A mudança era certa, e de fato já estava ocorrendo desde o domingo passado.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

ELAS V

No dia seguinte, quinta-feira, jurava-me não colocar a cabeça do lado de fora de casa. Eu queria um tempo para pensar em tudo o que estava acontecendo e nos rumos que minha vida, até então sem fortes emoções, estava tomando desde domingo. Desde que avistei Larissa. Tudo o que eu precisava era de alguém mais experiente que eu para me dar umas tapas na cara e colocar-me no prumo novamente. Serginho. Pensava logo no Serginho por conhecer a sorte que aquele baterista tinha com as mulheres. Então o telefonava.
- Serginho?
- Opa.
- É o Charles. Tudo bem?
- Sim, claro. Como vai?
- Bem também, mas precisava conversar com você.
- É sobre a pequena?
Como ele sabia?
- Como sabe?
- Experiência, só isso.
Eu sabia que ele era o cara certo.
- Pois bem, podemos tomar uma cerveja no Jazz Bar essa noite?
- Claro. Eu estarei acompanhando o guitarrista Alexandre Guedes, lembra dele?
- Claro que lembro. Então mato dois coelhos. Faz tempo que não o vejo.
- Passa lá então, no intervalo e depois do show nós conversamos. OK?
- OK!

O Alexandre Guedes na verdade era uma mala sem alça. Eu não gostava muito daquele cara, mas não queria estragar o clima do telefonema com Serginho. Eu esperava com muita fé que Alexandre não ficasse muito no nosso pé. Não queria falar de Larissa com ele por perto. Não tinha intimidade o bastante com ele como com Serginho. Mas uma coisa não se podia negar, o cara era uma fera nas seis cordas. Valia vê-lo tocar, ainda mais com o Serginho na bateria. Seria uma noite perfeita para negar a presença de Larissa. Estaria rodeado de músicos que eu gosto e com uma ótima chance de entender tudo aquilo que se passava entre Valéria, Larissa e eu.

Durante o dia, eu ficava a escutar alguns diálogos entre Valéria e Larissa através de nossas paredes geminadas. Pelo visto os ânimos tinham se acalmado e a paz parecia reinar naquela casa de mulheres loucas. Mas o que Larissa realmente tinha falado à Valéria eu ainda não sabia. Eu esperava que fosse exatamente aquilo que havíamos combinado, de que não nos veríamos mais, a fim de que ela permanecesse por aqui até o fim de julho. Mas eu só ouvia conversas que nada tinham a ver com o caso.
- Tia.
- Oi.
- Está passando aquele filme que você disse que iria ver.
- Qual era mesmo?
- Não sei. Acho que é alguma coisa com “chocolate”, sei lá.
- É! “A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE”! EU AMO ESSE FILME! JÁ ESTOU INDO.
Ora, nada que me fizesse realmente entender o desfeche da confusão do dia anterior. Queria saber o que ambas definiram a respeito do que sentem por mim. Mas era notável que estava tudo bem entre elas. Isso que importava.

Era quase noite quando eu escutava Valéria dizendo que ia à rua comprar cigarros e pão. Escutava a porta se abrir e depois fechar com força. Então contava 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... Até que minha porta era batida. Eu abria. Era Larissa. Não precisei contar nem 10 segundos.
- Oi Larissa.
- Oi Charles.
- Seja breve, não podemos deixar que Valéria nos veja.
- É que conversei com minha tia. Ela parece ter entendido que não mais o verei.
- Então você fica até o fim de julho?
- Fico. E fico com você, meu amor.
- Que bom!
- Vamos nos ver mais tarde?
- Hoje não, Larissa. Marquei de assistir uns amigos tocarem no Jazz Bar e...
- Posso ir com você?
- É melhor não. A discussão entre nós três ainda é recente. Não podemos dar bandeira para sua tia, lembra?
- Mas é que não me agüento de vontade de te beijar e...
Então eu a puxava para dentro de minha sala e saciava nossas vontades de entrarmos um no corpo do outro pela boca. Batia a porta com os pés segurando Larissa por aquela cintura, mas ela me jogava sobre o sofá. Ela me olhava como se estivesse pronta para ficar a noite inteira ali comigo.
- Larissa! Sua tia foi ali na padaria, não?
- Sim.
- Ela já deve estar voltando.
- Me beija.
Então a beijava mais e mais. Seu agasalho e sua camiseta já se encontravam ao chão. Sem parar de me beijar, posicionava as mãos sobre o elástico de um mini-short querendo abaixá-lo. Eu saía das garras de seus lábios, abria os olhos e avistava uma Larissa alvíssima e nua da cintura para cima.
- Menina! Se vista, por favor.
- Não quer?
- Claro que quero, mas...
- Então me beija.
E começava novamente já com o mini-short na altura dos joelhos e deixando à mostra uma calcinha verde clara comportada que Larissa parecia não querer mostrar.
- Essas calcinhas de velha.
Ela falava rindo enquanto a tirava do corpo.
- PARE!
- Por que, Charles?
- Agora não! Se Valéria chegar e não lhe encontrar virá bater aqui em casa na certa. E se nos pega nesse estado?
- Tudo bem.
Larissa se vestia e eu aos poucos me arrependia do que acabava de sugerir. Na minha vida, algumas mulheres me decepcionaram ao tirarem suas roupas, mas Larissa não. Desnuda, Larissa era capaz de fazer qualquer homem perder a cabeça e desprezar qualquer tipo de conseqüência. Até a morte eu seria capaz de enfrentar para descobrir cada canto daquele corpo, mas não fui capaz de enfrentar sequer a possibilidade de Valéria aparecer. Por que?
- Não fique triste, por favor, é para o nosso próprio bem, você sabe.
- Eu sei Charles. Deixe-me ir. O vejo amanhã?
- Sim. Vê.
- Espero que me procure.
- Procurarei. Prometo.
Larissa saía da minha casa mais uma vez me deixando em frangalhos com meus próprios conceitos sobre as mulheres, principalmente sobre Valéria e Larissa.

Às 21h eu fechava a minha casa com um cigarro na boca e uma carteira quase vazia no bolso rumo ao Jazz Bar. Chegando lá, Serginho se encontrava na porta já sob efeito de algumas doses de whisky e conversando em voz alta com alguns de nossos amigos músicos. Eu já começava a pensar que não seria mais uma boa idéia falar sobre as mulheres com Serginho naquele estado.
- CHEGOU O HOMEM DO TROMPETE! DÁ UM ABRAÇO AQUI!
- Serginho! Você não iria tocar essa noite com o Alexandre?
- E vou!
- Nesse estado?
- É quando toco melhor, meu amigo. Aqui não tem o maestro Walter!
- De fato.
- Quer conversar sobre a pequena?
- Não sei se você está em condições.
- É quando converso melhor.
- Falado. Vamos até aquela mesa. O Alexandre não está aí, está?
- Não. Não chegou ainda. Aquela “estrelinha”.
- Ótimo.

Contava tudo, exatamente tudo que havia ocorrido do domingo até então ao Serginho. Sentia que em certas partes da história Serginho ensaiava um cochilo, mas em outras parecia um lobo selvagem a imaginar o corpo de Larissa.
- E então? O que você acha que devo fazer?
- Sinceramente?
- Claro!
- Coma as duas. Essa Valéria e a pequena!
Eu sabia que não seria uma boa idéia aquele papo com Serginho.
- Fala sério?
- Eu comeria. Um sexo animal a três. O que acha?
- Você está bêbado, Serginho.
- Lhe diria a mesma coisa se estivesse sob efeito da água mais pura de Petrópolis.
- OK! Estou indo.
- Não vai ver o show?
- Não! Tenho duas mulheres para comer essa noite. Esqueceu? Vai para o inferno!
Eu saía do Jazz Bar sem nenhuma solução para toda aquela situação.

Eu havia deixado de me encontrar com uma Larissa coberta de desejos para tentar esclarecer a minha mente com o bêbado do Serginho. Encontrar-me com Larissa naquela noite significaria mergulhar no mais profundo abismo das minhas incertezas, mas conversar com Serginho me fez permanecer na borda do mesmo abismo sem retroceder sequer um passo.

sábado, 5 de julho de 2008

ELAS IV

Na quarta-feira eu acordava com batidas fortes à minha porta. Eram contínuas e cada vez mais fortes. Eu nem havia me recuperado do que ouvira de Larissa na noite anterior, já que não era chamado de amor por uma mulher havia pelo menos uns 30 anos, nada pior para um trintão, e já me esmurravam a porta anunciando problemas.
- Já vai! Já vai!
Procurava meu par de chinelos e seguia até o impaciente.
- Pois não?
Eu abria a porta ainda com os olhos fechados por conta da luz da manhã. Eu só conseguia enxergar um quadril atraente vestido com uma calça familiar.
- Acorda Charles.
A voz denunciava logo antes de qualquer tentativa minha de adivinhar.
- Oi Valéria. Bom dia.
- Bom dia. Precisamos conversar.
- Mas a essa hora da manhã?
- Quanto mais cedo melhor.
- Tudo bem, entre.
- OK.
- Deixe-me escovar os dentes e jogar uma água no rosto, sim?
- Vai lá.
Eu seguia até o banheiro já imaginando o assunto de nossa conversa; Larissa. “No mínimo a garota deve ter contado à tia com aquela carinha de inocente que me chamou de amor ontem à noite. Estou ferrado”.

Valéria acendia um cigarro dos meus, como sempre, ligava minha TV, como sempre, e ficava passando de canal em canal, como sempre também. Nós já nos conhecíamos há anos. Com a gente não tinha cerimônia. Professora de língua portuguesa, Valéria sabia me corrigir em todos os meus erros da fala, porém, tinha péssimos hábitos de educação, pelo menos comigo.
- Pronto. Pode falar. O que lhe traz aqui à essa hora?
- Você já deve saber.
- Não. Não sei.
- Ora, Charles. Você acha que eu nasci ontem?
- Não. Eu nem estaria aqui para achar isso.
- Ridículo.
- Desembucha.
- É sobre a Larissa.
Eu sabia.
- O que tem ela?
- Sei que estás doido para se aproximar dela.
- Como sabe disso?
Eu tentava ganhar tempo enquanto acendia um cigarro.
- Acha que não noto a maneira como você a olha?
- Mas quando eu a olho? Nunca a vejo. Só à noite, quando vocês sentam na porta de casa, mas quando eu saio para fazer uma fumaçinha vocês entram, não?
- É sobre isso mesmo. Desde que a viu no domingo, tu passas a fumar um cigarrinho quanto estamos ali fora.
- Ora, Valéria, eu sempre fiz isso durante quase toda a minha vida.
- Está louco.
- Você é que nunca me reparou. Eu sempre saio por volta de umas 20h para fumar na porta de casa há mais ou menos 15 anos e a vejo sentada na sua, sendo que você sempre está acompanhada por um de seus amigos etc.
- Não me diga que nunca o reparei. Você mora do lado da minha casa, ora.
- Pois é. E não repara. Agora vem me dizer que passei a ter esse costume unicamente para notar a sua sobrinha? Faça-me o favor.
- É isso mesmo.
Valéria parecia querer que eu soltasse alguma coisa através da raiva. Ela queria me ver com raiva. Até então eu nem sabia se Valéria tinha conhecimento dos meus encontros com Larissa.
- E se fosse? Qual seria o problema? Sua sobrinha é uma graçinha e qual mal teria se eu resolvesse admirá-la?
- Não quero você perto da Larissa. Não com essas intenções.
Ela conseguia o que queria.
- E QUE OUTRAS INTENÇÕES EU TERIA COM A GOSTOSINHA DA SUA SOBRINHA?
- Eu sabia! Vou avisar a Vanda que Larissa voltará para Porto Alegre ainda essa semana!
- Mas, meu Deus! O que você pensa que eu sou? Um monstro, Valéria?
- NÃO!
- Então por que todo esse estardalhaço por causa de minha aproximação com Larissa? Você está maluca? Pirou?
- NÃO QUERO QUE ELA TENHA COM VOCÊ AQUILO QUE EU NÃO TIVE!
- Ah?
- É isso mesmo.
Naquela hora eu gelava.
- É isso mesmo, Charles, - dizia Valéria -, você acha que não sei que sempre foste caído por mim? Acha?
Eu ficava mudo. Preferia ouvir.
- Durante nossa adolescência você deu todos os sinais de que morria de amores por mim. Aquilo me balançava, porém, meus pais sempre diziam que você não era um rapaz que merecesse um coração de nenhuma de suas filhas. Meus pais sonhavam com casamentos milionários, como foi o de Vanda e César Augusto. Mas eu não tive a mesma sorte. Hoje, com 32 anos, estou longe de agradar meus pais.
- Quer dizer que nunca me deu chances por eu ser pobre?
- É.
Eu definitivamente não sabia nada sobre elas.
- Que ótimo. Nosso tempo acabou.
- Espere.
- Diga.
- Eu ainda balanço com você.
- Não me venha com essa, Valéria, por favor.
Eu a conduzia até a porta.
- É sério. Isso que demonstro na verdade é ciúme de Larissa. Nem sei por que lhe apresentei a ela no domingo.
- Apresentou porque tinha que apresentar. Agora vá.
- Não. Diga-me que não tentarás nada com Larissa. Diga.
- Não.
- Não o quê? Não tentarás?
- Não. Não atenderei o seu pedido.

- TIA!
Larissa adentrava à minha sala.
- Volte para cama, Larissa.
Respondia Valéria.
- VOCÊ PENSA QUE NÃO OUVI A CONVERSA DE VOCÊS?
Pronto. O circo começava a pegar fogo.
- Ouviu o quê, Larissa?
- COMO ASSIM O QUÊ, TIA? OUVI VOCÊ DIZENDO QUE TENS CIÚMES DE MIM COM CHARLES.
- Não, Larissa, eu...
- POIS FIQUE SABENDO QUE O AMO. SE VOCÊ NÃO SOUBE VALORIZAR O SENTIMENTO DE CHARLES QUANDO PODE, DEIXE-ME FAZÊ-LO.
- Como assim “o ama”?
- ISSO MESMO QUE VOCÊ OUVIU.
- Larissa, pare de gritar!
- NÃO. AGORA ESCUTE! EU E CHARLES ESTAMOS JUNTOS. ENTENDEU? JUNTOS!
- Mas... Escondidos de mim?
- Ora, Valéria, eu não sei o que dizer.
Eu interrompia.
- Não há nada a dizer, Charles. Larissa voltará para Porto Alegre amanhã mesmo. Deixe Vanda saber disso!
- NÃO VOLTO. NEM QUE EU FIQUE AQUI NA CASA DE CHARLES, MAS SÓ VOLTO PARA CASA NO FIM DE JULHO. SE VOLTAR!
- Charles. Faça alguma coisa. Olha no quê você transformou minha sobrinha.
- Eu?
Via-me diante de total confusão. Se eu já não entendia as mulheres, aquela cena era o ápice de meu desconhecimento. Ia então até Larissa.
- Valéria, vá para casa. Deixe-nos um minuto, por favor.
- Tudo bem.
Valéria saía pela porta com os olhos cheios de lágrimas.

- Larissa. Não precisava todo esse alvoroço.
- Como não, Charles? Ela dizendo que tem ciúmes de mim. Querendo atrapalhar um sentimento tão forte que eu nem sei direito ainda como lidar. Eu estou lhe amando, Charles. O fato de minha tia dizer que ainda “balança” por ti me deixou furiosa.
- Eu entendo.
- Me amas?
- Olha Larissa...
- Me amas?
Eu não sabia o que responder e ao mesmo tempo não queria negar uma pergunta daquela num momento daquele.
- Amo, Larissa. Amo.
- Então vamos para Porto Alegre.
- Mas...
- Mas o quê?
- Larissa, mal nos conhecemos. E além do mais, toda minha vida está aqui. Outra. O que Vanda diria? As coisas não são assim tão fáceis.
- O que você tem aqui? A orquestra do Clube dos Líderes? Você é a pessoa mais especial que eu já conheci, além de tocar trompete divinamente. Aposto que lá você teria o valor que merece.
- É cedo para falarmos nisso. Só me promete uma coisa.
- O que você quiser.
- Vá para a casa de sua tia e faça as pazes com ela.
- Mas...
- Por favor. Ela é o que nos separa, mas é também o que nos manterá junto até o fim de julho. Entende?
- Sim. Você está certo.
- Diga que não me verás mais. Manteremos nossos encontros. Eu prometo.
- Está bem.

Larissa batia fechava a porta e me deixava ainda mais confuso que minutos antes. Eu estava diante de duas loucas que de domingo para cá só me fizeram confundir mais minhas conclusões sobre o sexo feminino. Sendo mais direto, eu estava completamente enrolado num emaranhado de sentimentos e revelações que no final só me faziam querer os braços de Larissa ainda assim. Eu me enganava mais e mais.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

ELAS III

Na terça-feira, como todas as terças, eu me dirigia até o galpão do Clube dos Líderes para mais um ensaio da orquestra do maestro Walter. Chegava lá com o sono de sempre, mas também com a alegria de nunca. Larissa estava de fato mexendo comigo de uma forma que nenhuma outra mulher havia até então.
- Boa noite, Walter.
- Atrasado de novo, Charles.
- Boa noite, Walter?
- Boa noite, Charles, mas está atrasado de novo.
- Desculpe, Walter. É que...
- Não me interessam mais de suas desculpas. Sente-se aí. Estávamos TENTANDO ensaiar “But Not For Me” que, caso não se lembre, possui trinta e seis compassos de solo de trompete, segundo meu arranjo. Estou certo, Charles?
- Sim, você está certo, mas esteja certo também de que farei o melhor solo de trompete para “But Not For Me” que você já ouviu.
- Uau! Mandou ver.
Falava baixinho o Serginho da bateria.
- OK, Charles. Sente-se e acompanhe-nos.

Logo nas primeiras notas da música, a campainha do galpão é soada.
- Aaaaaaaaah!
Walter ficava furioso quando isso ocorria no meio de uma música.
- Serginho, vá ver quem é e, antes de qualquer coisa, dê uma bronca no surdo que não notou que há uma orquestra ensaiando.
Serginho era o músico que ficava mais próximo ao portão, por isso, sempre sobrava para ele. O baterista seguiu então até lá pronto para esbravejar, mas...
- Oi!
- Pois não?
Já respondia um Serginho molenga.
- O Charles está aí?
- Sim, mas estamos no meio de um ensaio e...
- Ótimo. Posso assistir? Sou amiga dele.
- Bem...
- Obrigada!
Era Larissa. De maneira angelical a menina aparece frente à orquestra dando um tchauzinho simpático unido a um sorriso que desbancou o maestro Walter na hora.
- Posso saber o que a jovem está fazendo aqui?
Perguntava Walter com uma delicadeza inédita.
- Sou amiga do Charles. Posso assistir o ensaio?
Walter olhava para mim e depois de volta para Larissa.
- Tudo bem. Desde que fique bem quietinha. OK?
- OK!

Eu não sabia o que fazer. Pedia licença a Walter e ia falar com Larissa.
- Você tem 30 segundos, Charles.
- OK.
Pegava Larissa pelo braço.
- O que está fazendo aqui? Como sabia que...
- Você me disse que ensaiava nas terças à noite, então lhe segui. Se eu lhe pedisse para me trazer não iria aceitar.
- OK. Agora sente ali e fique quietinha. O maestro é um chato.
- Está bem.

- Pronto Walter.
- OK. Vamos recomeçar.
Então recomeçávamos “But Not For Me”. Aquela música linda do Gershwin George estava assassinada ali naquele arranjo cafona do Walter. A terceira idade merecia algo melhor que aquilo e era bom que Serginho segurasse bem o ritmo, pois eu estava determinado a “quebrar tudo” no meu solo. Os trinta e seis compassos em branco na partitura escrito “solo de trompete” me animavam a chegar até lá. Com Larissa e seu olhar encantado eu me sentia ainda mais confiante com o improviso. Nos compassos que antecediam o solo, podia ouvir Serginho atacar a caixa mais forte no intuito de chamar minha atenção. Eu olhei.
- Quebra tudo que eu seguro. A menina é uma gracinha.
Dizia Serginho parecendo já saber da minha intenção de exibir-me para Larissa. Serginho era um ótimo observador. Sacava tudo.
- Pode deixar.
Então começava meu solo. Serginho ainda olhava para Lúcio do contrabaixo e com um olhar raivoso parecia dizer “segura firme”. E era preciso mesmo, já que eu adiantava, atrasava e às vezes fritava a melodia tema com as notas que me vinham à mente. Feito a Mônica Lisboa lá do Jazz Bar (vide conto “JAZZ” de 25/06/08 nesse blog). Eu dava uma olhadinha para Larissa ali sentada e ela parecia ainda mais maravilhada com minhas “piruetas”.
- Manda, manda.
Dizia Serginho para que eu oitavasse a nota final do solo. E eu oitavava.
- Mandou!
Serginho ria ao tocar.

Findada a música, Walter levava a mão à cabeça e soprava forte. Um silêncio tomava conta do galpão. A orquestra estava à espera do aval do maestro.
- Charles.
- Sim, maestro.
- Tens sorte de tocar aqui.
- Por que diz isso?
- Tive que segurar esse bando com minha batuta porque seu solo o conduzia ao erro. Somos uma orquestra que toca em bailes da terceira idade do Clube dos Líderes, e não um trio do Jazz Bar. A orquestra não se resume a você, ao Serginho e ao Lúcio.
- Maestro, a orquestra segurou muito bem, na minha opinião e...
- COMO ESPERA QUE ALGUMA DAQUELAS VELHAS GORDAS DANCE COM VOCÊ E O SERGINHO FAZENDO CAMBALHOTAS COM O MEU ARRANJO?
- Desculpe, Walter.
- PRESTEM MAIS ATENÇÃO NOS MEUS ARRANJOS. EU NÃO PERCO MINHAS NOITES ESCREVENDO ESSAS PARTITURAS PARA VOCÊS VIREM AQUI E TOCAREM O QUE QUISEREM!
Larissa estava horrorizada.
- Tudo bem, Walter.
Eu concordava com o coração queimando em ódio.

No fim do ensaio, Serginho chegava até a mim.
- Que velho filho de uma puta.
- Deixa. Ele é o dono dessa merda mesmo. É proibido ousar por aqui.
- É mesmo. Mas, mudando de assunto, quem é a pequena?
- Uma amiga.
- Amiga? Sei.
- Sim. Uma amiga. Agora me deixe levá-la daqui.
- OK. Olha...
- Oi.
- Ela se amarrou no solo. Tenho certeza.
Eu ria.

Chegava até Larissa com um ar de derrotado. Tinha certeza de que ela havia admirado minha participação no ensaio, porém, aquela bronca de Walter me deixava cabisbaixo e sem coragem para nada.
- Oi Larissa. Vamos embora daqui.
- Sim, mas vamos porque temos coisas melhores a fazer do que ficar por aqui, só por isso. Você foi brilhante. Está a muitos anos luz à frente dessa orquestra.
- Pode até ser. Mas não gostei de levar uma bronca do Walter na sua frente.
- Charles, a bronca eu nem lembro mais. Lembro somente de quando você se levantou da cadeira e executou o melhor solo de trompete para “But Not For Me” que eu já ouvi.
- Nem o Chet Baker?
- Charles Baker!
Eu ria.

Saíamos dali e fomos direto ao Jazz Bar. Queria mostrar a ela a voz da Mônica Lisboa. Ela se apresentava todas as sextas-feiras com um guitarrista que eu admirava muito também, o Alfredo Ramos. Como se tratava de uma terça-feira, ficamos apenas ouvindo as gravações dos shows dela que rolavam no som ambiente do bar durante os outros dias da semana.
- É. Ela tem uma voz linda, Charles. E “quebra tudo” também.
- Sim. Isso sim. Se eu fosse aqueles coroas largava os bailes do Clube dos Líderes e vinha para cá.
- O seu maestro ia ficar louco.
- E eu sem dinheiro. Melhor deixar como está.
- Isso. Deixa como está, meu amor.
- O que disse?
- Meu amor.
Eu permanecia calado. Após repetir o que disse, Larissa me beijava o rosto. Eu me enganava novamente.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

ELAS II

Leia a primeira parte de ELAS aqui: http://muitosemum.blogspot.com/2008/07/elas.html

Fazia frio naquela segunda-feira. O mês de junho estava no fim e já demonstrava mais ou menos como seria o meu mês de julho, pois com a aparição de Larissa na minha vida, ou seria de relembranças ardentes de um inexistente relacionamento com sua tia Valéria, ou seria repleto de problemas por conta da proibição imposta pela própria tia de nos "conhecermos melhor".

Na noite passada, Larissa foi para casa já altas horas da madrugada. Valéria tinha um sono pesado e isso facilitou o restinho do meu domingo. Pude vasculhar cada cantinho dos lábios de Larissa ainda na minha porta.
- Vamos entrar. Está frio aqui fora.
- Não. Minha tia não pode nem saber que lhe beijei. Eu sei bem o que pretende com minha entrada à sua casa. Não quero dar razão à idéia de minha tia.
- E que idéia ela faz de mim?
- Ah, não sabe?
- Imagino.
- Esquece. Vem, me beija.
- OK.

Foi bacana. Tínhamos marcado de nos encontrar na segunda-feira no centro da cidade. Ela inventaria alguma desculpa para Valéria e eu estaria esperando-a no ponto final do 345. Eu pretendia levá-la a algum local onde pudéssemos conversar. Queria que ela soubesse o quanto e o por quê que sua fisionomia fazia sentir-me tão bem, mas corria o risco dela achar que na verdade era à Valéria que eu depositava o meu desejo. E na verdade era. Não tinha sido uma boa idéia. Conversaríamos sobre coisas banais. É mais prático e menos perigoso. Não podia deixar escapar uma princesinha daquela por conta de um passado que nem existiu.

Eu estava vendo TV quando da minha sala ouvia Larissa.
- Tia. Vou tomar um banho e vou dar um pulo lá no centro.
- Vai fazer o quê lá?
Questionava uma já desconfiada Valéria.
- Dar uma volta. Um shopping. Sei lá.
- Mas nesse frio? Que animação.
- Adoro frio.
- Trouxe casaco?
- Trouxe.
Eu já estava de banho tomado. Arrumei-me e parti para o local combinado.

Eram 17:15h e o céu exibia um fim de tarde bastante agradável. Apesar do vento frio de cortar, meu corpo permanecia quente por causa da vontade louca de sentir o lado agora não tão obscuro de Larissa. E pensar que aquela menina de sorriso singelo que apareceu na sala de Valéria no domingo estaria no dia seguinte prestes a me dizer coisas que nem a tia nem a mãe dela poderiam sequer imaginar. Pelo menos naquele momento eu desejava muito que Larissa me dissesse coisas contrastantes com aquele seu olhar inocente.

Ela chegava. Vestia um moletom azul marinho, calça jeans clara bem justa e com os cabelos presos num rabo de cavalo que a deixava menos parecida com a tia, melhor, a deixava ainda mais bonita. Fiquei anestesiado por uns segundos analisando cada centímetro de sua delicadeza aparente naquele caminhar à minha direção. Para retirar uma possível poeira de seu bumbum redondo e comprimido pelo jeans, Larissa se retorcia inclinando a ponta do pé direito e dobrando o pescoço para trás, dava duas tapas no alvo de meus olhares e já vinha rindo e dizendo: "Que ônibus sujo, meu Deus". Eu ria também.
- Demorei?
Dava um pulinho na minha frente e perguntava.
- Imagina. Ouvi você falando com sua tia e me mandei logo depois.
- Então demorei.
- Digamos que eu tenha me adiantado.
- OK. Para onde vamos? Não conheço nada da sua cidade, Charles.
- Eu conheço um lugar onde podemos conversar e...
- Conversar? Vejo que tia Valéria erra sobre você.
- Então está atrás de um cara grosso com gosto de fumo no beijo?
- Não é bem assim. Acho que o homem pode ser sensível, mas sem deixar largar o modo rústico de ser.
Eu me enganava sobre elas sempre.
- Que bom. Então vamos conversar. É um barzinho muito aconchegante logo ali.
- OK. Vamos.

- Uma cerveja, por favor.
Eu pedia.
- Uma água. Sem gás.
Ela pedia.
- O que traz uma princesa sulista a essa cidade imunda do sudeste?
- Minha mãe está passando por momentos muito difíceis com meu pai e então sugeriu que eu passasse as férias de inverno aqui com minha tia. Ela prefere estar sozinha com ele para resolverem seus problemas conjugais.
- Lembro da sua mãe. Vanda.
- Pois é.
- E quando vai embora?
- No fim de julho.
- Teremos então um mês para nos conhecermos melhor?
- Sim. Se minha tia deixar.
- Ela não precisa saber.
- Não é assim. Queria que ela aceitasse caso ficássemos juntos durante esse período.
Enganava-me novamente.
- Acho difícil Valéria aceitar um relacionamento entre nós. Para ela eu não passo de um sujeito sem futuro.
- Me faça descordar. Mostre-me que é mais do que isso.
- Preciso? Creio que não seja bem um futuro que você espera de mim.
- Erra na crença.
Enganava-me novamente com as mulheres.

Naquele início de noite eu contava toda a minha vida àquela guria e podia ver, assustado, os olhos dela brilharem. Na certa deve ter achado super atraente um cara perder os pais aos 17 anos viver a vida perambulando em bicos musicais que pouco lhe rendiam. Eu não gostava de falar sobre minha carreira musical fracassada com ninguém. Os bailes da terceira idade nos quais eu tocava trompete sob o comando da batuta do Maestro Walter Lins não me deixavam muito à vontade. Na verdade eu me envergonhava e muito com eles. Eu só vestia aquele terno azul anil já nos clubes. Só apareciam vestidos os músicos que possuíam automóvel. Eu não seria louco de andar feito um palhaço no 702. Seria o fim dos finalmente.

- Tocaria para eu ver?
- Trompete?
- O que mais você toca?
- Deixa para lá.
- Tocaria para mim?
- Sim, mas o trompete é um instrumento melódico, ou seja, sem alguém acompanhando ficaria meio chato.
- Eu posso acompanhá-lo.
- Você é musicista?
- Sim. Não sou profissional, mas estudei onze anos de piano.
- Nossa. Mas onde arrumaríamos o piano?
- Depois a gente pensa.
Ela falava cada frase como num filme em câmera lenta. O rosto perfeito ficava apoiado sobre as duas mãos na bochecha e os cotovelos sobre a mesa.
- Vamos dar uma volta?
Eu emendava para espantar o silêncio que a gigantesca admiração de Larissa proporcionava cada vez que ela fazia aquela cara de quem estava imaginando uma vida ao meu lado.
- Vamos.
Durante todo o papo, a única coisa que ela me disse sobre sua vida é que gostava de cantar ainda com os cabelos molhados do banho frente ao espelho. "É a coisa mais interessante sobre mim". Eu ria.

De braços dados caminhamos pelo centro sem se incomodar com a correria daqueles que não tinham a "sorte" de trabalhar apenas em alguns finais de semana, como eu. Bem no meio do calçadão, Larissa me pára.
- Me beija?
- Aqui?
Referia-me à rua.
- Não. Aqui!
Ela colocava minha mão em seus lábios referindo-se com um sorriso à boca. E que boca. Eu a beijava sem o fumo e a vodka do dia anterior e ela parecia mesmo assim gostar ainda mais.

Pela primeira vez eu conhecia uma mulher que me aceitava do jeito que era. Eu sentia que não precisava me esconder atrás da orquestra do Walter quando ela estivesse no baile a fim de me ver tocar. Sentia que a minha barba por fazer não a incomodava e, o melhor, sabia que cada história de derrota que eu contasse a ela me traria em troca um sorriso encantador, com apenas o mês de julho de validade, mas encantador.
- Tem certeza de que isso lhe renderá algo para guardar para sua vida?
Eu perguntava.
- Que profundo.
- É sério. Está sendo importante para você ou apenas uma história de mais umas férias escolares de inverno?
Eu insistia, pois queria saber até que ponto eu também poderia me entregar aos encantos de Larissa.
- Quer mesmo saber? Está sendo o inverno mais importante de toda a história das minhas estações. Está bom para você?

***
Foto da capa: Fabiana Romeo

terça-feira, 1 de julho de 2008

ELAS

- Um cigarro, por favor.
- Tome.
- Obrigado.
Acendia o fumo e seguia até o ponto de ônibus. Fazia muito frio naquela manhã de domingo e eu nem sabia para onde ir. Essas festas juninas costumam acabar tarde e de quebra acabam com a minha memória também. É que me debruço na barraca de bebidas quentes durante todo o evento. Fico ali me entupindo de álcool enquanto as meninas passam sem me despertar nenhum tipo de euforia. Essas meninas de hoje são atiradas demais e ao mesmo tempo transbordam inexperiência. Pela manhã me perco entre as outras barracas e sigo sem noção direção.

Eu achava que estava no lado certo da rua esperando a condução, que por conta do horário demorava demais a passar por ali, e realmente estava, mas só fui concluir isso muito mais tarde quando avistei minha casa pelo vidro embaçado do ônibus.
- Vou descer aí, motorista!
- Vai, desce.
- Pára o carro primeiro.
- Já está parado seu imbecil.
- OK.
Descia.

Trocando as pernas eu conseguia chegar até a porta e com muito sacrifício acertava o buraco da fechadura, porém, com a chave errada. Quanto mais eu forçava o giro do tambor mais a chave emperrava.
- Raios. Abre!
Até que a chave partia-se em duas na minha mão.
- Ora. Merda!
Sentei-me na soleira da porta. Deitei a cabeça pesada e latejante sobre os braços cruzados que já descansavam sobre os joelhos e dormi.

Logo o sol saia. O meu casaco de náilon já esquentava a pele exalando um cheiro de carne queimada. Já se passavam das 14h e eu ainda estava ali, sob o efeito das dezenas de doses da noite anterior e não mais na posição inicial. Estava deitado de barriga para cima correndo o risco de morrer feito o Bon Scott.

Acordei e me dei conta da merda que havia feito. Uma parte da chave estava no chão e a outra presa na fechadura. Como entraria em casa? Um chaveiro! Desses que atuam vinte e quatro horas. Mas onde arrumar um? Não tinha o telefone de nenhum deles à mão. Até que me chega Valéria, a vizinha do lado. Nossas casas tinham suas portas bem na beira da rua principal. Eu gostava de morar ali. O barulho dos automóveis estranhamente me ajudava a dormir.
- Oi Charles.
- Oi Valéria.
- A noite foi boa, não?
- Foi. Foi sim. A manhã é que não está sendo nada agradável.
- Mas já estamos na parte da tarde, Charles. São duas e quarenta.
- É. Eu sei. Então. O dia não está sendo agradável.
Ela era professora de português e suas correções me deixavam irritado.
- Mas o que houve?
- Minha chave. Quebrou. Enfiei a chave errada e de tanto forçar acabei quebrando-a. Tem o telefone de um chaveiro?
- Tenho em casa. Vou buscar.
- OK.
Já me sentia um pouco mais aliviado. A dor de cabeça continuava forte. Por sorte eu ainda tinha a chave correta nas mãos. A chave que eu havia quebrado era do cadeado da porta dos fundos, que dava para um quintal que pouquíssimas vezes na vida eu tive coragem de limpar. A chave não faria muita falta.

- Aqui, Charles. O telefone. Ele mora aqui por perto. Se você ligar agora, logo ele chega.
- Obrigado. Mas, será que eu poderia usar o seu telefone, Valéria? Estou sem fichas. Desculpe te incomodar novamente.
- Tudo bem, Charles. Entre, por favor.
Entrando na casa de Valéria notava um belíssimo arranjo de flores recém recebidas num jarro sobre a mesa da sala.
- Com licença.
- Tem toda. O telefone está ali na estante.
- OK.
Valéria agachava seus 32 anos frente à estante e ligava a TV. Ficava passando de canal em canal. Domingo pela manhã nunca havia nada de interessante pra assistir. Eu acho que ela queria mesmo era controlar o tempo que eu usaria o telefone dela.
- Alô. Chaveiro?
- Sim.
- Tenho um problema.
- Todos temos.
- Um problema com a chave da minha porta.
- Deve ser por isso que me liga, não?
- OK. É aqui na Rua Dr. Alcindo Ferreira, no número...
- 79
Lembrava-me Valéria ainda agachada trocando os canais.
- Isso, 79. Alcindo Ferreira, 79.
- E o que houve?
- Tem uma chave quebrada dentro da fechadura. Não é a chave certa. Eu enfiei uma chave errada e...
- Sei. Veio da festa junina ali do bairro bem encharcado de cana, não?
- Você é sempre engraçadinho assim?
- Estou indo para aí.
- Certo.

Desligava o telefone.
- Tudo certo?
Perguntava, Valéria.
- Sim. Ele está a caminho. Muito obrigado.
- Não há de quê.
- Esperarei por ele lá fora.
- Sente-se aí.
- Mas eu achei que você estava de saída.
- Estava. Mas desisti.
- Ah.
“TIA!”.
Um chamado vinha de um dos quartos de Valéria.
- Oi meu amor.
Valéria respondia.
- Já volto, Charles.
Pelo chamado eu começava a imaginar. Alguma sobrinha de Valéria estava em casa. Da sala eu ouvia Valéria: “Tem gente na sala, Larissa, ponha uma roupa”.

- Pronto. É minha sobrinha. Dormiu aqui em casa essa noite.
- Eu sei.
- Como sabe?
- Digo, eu imaginei. Pelo “tia”.
- Sim. Você deve se lembrar dela. É filha de Vanda. Larissa.
- Bem, eu ouvi você falando o nome dela, mas não me lembrei. Aquela pequenininha?
- Pequenininha? LARISSA, DEPOIS DE ESCOVAR OS DENTES VEM ATÉ AQUI! Vai levar um susto.
- Por que?
Larissa aparecia na entrada da sala. Uma jovem de uns 19 anos. Uma verdadeira réplica da juventude de Valéria. Passei muito tempo da minha vida apaixonado por Valéria, mas ela nunca correspondeu. Depois passou. Mas agora eu estava diante daquele passado novamente. Ali. Vivo.
- Você lembra do Charles, Larissa?
- Não.
Ela respondia sorrindo. Era impressionante. O mesmo sorriso de dez anos atrás da Valéria.
- Não deve se lembrar mesmo. Eu devia ter meus 14 anos quando a vi. Era um pedacinho de gente. Tudo bom com você?
- Tudo.
Ela respondia e pedia licença para tomar seu café na cozinha.
- Caramba! Mas é a sua cara, quando mais nova!
- É. Está uma gata, não?
- Está.
Respondia meio sem jeito.

Eu me sentia anestesiado por estar diante da imagem viva daquilo que tornou meus sonos tão difíceis durante aqueles anos. Eu, agora com 28 anos, estava novamente atraído por uma nova Valéria. Por Larissa. Do sofá onde eu estava conseguia avistar pela brecha do corredor as pernas de Larissa sob a mesa da cozinha. Eram as mesmas pernas. Passava também a ver os cotovelos, algumas pontas de seu cabelo e um pedaço do pão em suas mãos.

- Charles?
- Oi.
- O que está olhando? Parece hipnotizado.
- Pareço?
- Sim parece.
- Devo estar mesmo.
- Olhe aqui. Fique longe da minha sobrinha.
- Como?
- Isso mesmo. Mantenha distância. Nem eu nem Vanda queremos um cara como você na vida de Larissa. É o que ela menos precisa. Um cara como você?
- O que eu tenho de errado?
- Olhe para você e verá.
- Pensei que fossemos amigos, Valéria.
- E somos, mas amigos, amigos, sobrinhas à parte.
- Entendi. É porque vivo correndo atrás do aluguel. Não querem um ferrado na cola dela.
- Exatamente.
“CHAVEIRO”.
- O chaveiro chegou. Deixe-me ir. Obrigado pelo telefone.
- Não há de quê.

O chaveiro resolveu o meu problema em poucos minutos. Paguei a ele e finalmente adentrei-me. Arranquei os sapatos e me estiquei no sofá. Fiquei por ali até umas cinco da tarde. Tive meus motivos. Podia ouvir as vozes de Valéria e Larissa durante todo o momento que permaneci ali deitado. Nossas casas eram geminadas e o movimento de carros no domingo era bem menor.
- Tia. Esse Charles é o quê seu?
- Nada. Um vizinho.
- Bonitão ele, não?
- Não.
- Eu achei. Loiro. Olhos azuis. Só a barba mal feita, mas isso tem jeito.
- Não.
- Quantos anos ele tem, tia?
- 30, ou seja, velho para você.
- Não sei onde. 30 para 19 é uma diferença agradável. Não acha?
- LARISSA! Deixa sua mãe saber disso.
- OK.

No mesmo dia, à noite. Uma batida à minha porta. Acendi um cigarro e abri. Eu já esperava por isso. Era Larissa.
- Tudo bom?
Ela me aparecia com um sorriso ainda mais simpático que o de Valéria nos velhos tempos.
- Sim. E você?
- Também.
- O que houve?
- Nada. Achei que podíamos conversar.
- Sua tia não quer me aproxime de você.
- Ela te disse isso?
- Sim. Com todas as palavras. Então eu acho melhor que volte para a casa dela.
- Ela já está dormindo. Podíamos ficar por aqui mesmo.
- Um beijo. Depois vamos cada um para sua casa.
Apagava o cigarro e ia direto ao assunto.
- Como sabe que...
Interrompia-a com um beijo descuidado ainda com gosto de fumo e vodka. Ela correspondia com as unhas cravando em minha nuca.
- Me desculpe. Devia ter escovado meus dentes. Eu...
- Continue. Era exatamente isso que eu procurava em ti.
Ordenava aquela visão de uma Valéria rejuvenescida. Era a caretice da minha época com o fogo das meninas da festa do sábado. Eu me enganava sobre elas.

***
Foto da capa: Fabiana Romeo.