segunda-feira, 31 de março de 2008

SEIS DIAS DEPOIS

Gostaria de agradecer a todos que visitam este humilde blog e ao carinho exposto através de comentários, scraps e e-mails. Muito obrigado! Hoje, posto o primeiro conto que publiquei, "Seis Dias Depois". Espero que curtam!

Júlio, apesar de trabalhar duro todo santo dia como vendedor ambulante, gostava de fazer “hora extra” após às 19:00h. Em vez dos produtos que pouco chamavam a atenção dos motoristas/consumidores, a partir daquele horário seu instrumento de trabalho era outro; um antigo revólver calibre 38 que herdou de seu pai, morto quando Júlio tinha apenas dez anos.

Todas as noites os “ganhos” eram certos. Até maiores que durante o dia. Júlio cometia assaltos mas morria de medo de ter de usar um dia aquela peça arcaica e enferrujada que carregava na cintura. De tão nervoso, nem olhava nos rostos de seus alvos. Apenas repetia aquela frase decorada com dificuldade: “Perdeu, perdeu”.

Até que em uma dessas ações o rapaz foi surpreendido, pela primeira vez, por uma vítima que embora parecesse inofensiva e medrosa reagiu ao assalto tentando lhe aplicar um golpe de defesa pessoal. Júlio não pensou, atirou, não olhou, jogou o corpo logo à frente num desfiladeiro e correu.

Em casa, chorou. Chorou, se culpou e prometeu que dali por diante trabalharia somente até às 19:00h. Era o fim dos “extras”.

Dois dias depois, 06:00h. O despertador emite o aquele temido e odiado som que parece dizer com todas as palavras: “acorde e tenha um péssimo dia”. Júlio acorda. Mas antes, como em todas as manhãs, dá um murro no aparelho que acabara de interromper o sonho mais belo de todos os seus 17 anos de vida. O rapaz quase nunca se lembrava de seus pensamentos noturnos e achava que isso tinha um motivo bem lógico; tinha o sono pesado demais. Mas naquela noite tinha sido bem diferente.

Júlio amanhecera com a impressão de ter sonhado aquela história mágica da hora em que se deitou, às 23:00h, até o momento em que se levantou da cama. Ele teria encontrado uma menina que, segundo o sonho, era a sua verdadeira alma gêmea. Aquela cujas qualidades eram infinitas e os defeitos nulos. Aquela que possuía uma personalidade que se encaixava perfeitamente em tudo aquilo que Júlio um dia pôde esperar de uma garota. Ele não sabe de onde ela veio e nem tampouco como ela apareceu em sua “vida”, mas lembra de sua graça: Míriam.

Foram sete horas de um romance perfeito. Passeios de mãos dadas por lugares jamais vistos por Júlio. Beijos que se desenvolviam em total harmonia com a canção que ouviam ao fundo. Carinhos tão sinceros que fariam qualquer sonhador duvidar que aquilo tudo era mesmo real. E infelizmente não era.

Júlio acordou com a imagem de Míriam na cabeça. Agia como se tivesse voltado aos seus 13 anos, no dia em que dera seu primeiro beijo. Abobalhado e rindo atoa, ele parecia não acreditar que aquilo tudo tinha sido apenas um sonho. Começava então, a partir daquele momento, uma busca incansável por Míriam. Procurava sem sucesso em todos os rostos, seja na rua, no ônibus, nas revistas, na TV, o semblante de Míriam. Nenhum deles chegava aos pés da beleza reproduzida por sua mente à mulher protagonista do sonho daquela noite.

Ele não guardou para si a sua procura. Contava a todos os colegas – que riam muito – sobre o tal sonho. Chegou a ponto de procurar por garotas que se chamavam Míriam. Mas nada disso o levou de encontro à sua paixão.

Mais alguns dias se passaram. A imagem de Míriam já não era mais tão nítida em sua mente. Durante esse tempo, Júlio parecia ter abordado todas as possíveis “Míriams” do planeta.

Júlio se perguntava: “Por que não sonho novamente com ela?” Ele não entendia o por quê daquele sonho. Por qual motivo ela apareceu e lhe deixou assim dessa forma. Apaixonado.

No dia seguinte, ao ler a primeira página do jornal, se depara com uma foto 3x4 daquela que teria transformado sua vida por alguns dias numa busca intensa pela felicidade. Com os olhos arregalados e uma sensação ótima de reencontro, Júlio imediatamente leu a notícia que se referia à fotografia:

“Policiais finalmente encontram corpo de Míriam Lopes dos Santos, próximo a um desfiladeiro. Assassinada com um tiro no peito, a menina estava desaparecida há seis dias”.

Conto publicado originalmente em 17 de abril de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O CICLO

Não. Não era essa melodia que Euclides procurava para terminar sua peça. Violonista clássico e conceituado que era, o músico morria de medo de apresentar, no concerto marcado para a próxima semana, um plágio de si mesmo. Euclides possuía uma vasta obra com centenas de peças para violão e sua capacidade criativa ainda aguçava cada vez mais a curiosidade de seus ouvintes em suas novas composições. Ele batia com o violão sobre as pernas e soltava berros quando não conseguia terminar determinada linha melódica. Isso o irritava. O fato de possivelmente ter plagiado uma melodia alheia ou até mesmo sua o fazia pirar e passar dias procurando em seus registros musicais a possível falha.

Diante daquela folha de partitura manchada de tanto apagar as cabeças de notas escritas, Euclides parava, levantava e se dirigia até os fundos de sua casa, onde havia um imenso jardim. Bebia um copo com água morna enquanto ouvia os pássaros a cantar sobre as árvores. Buscava na natureza e no cotidiano algo que o pudesse inspirar ou, por que não, uma melodia pronta, como já tinha feito várias vezes a partir dos uivos dos cachorros da casa vizinha. A busca pela melodia inédita e capaz de seduzir os jovens ouvidos que os seguia por todos os teatros no mundo inteiro era desgastante, era obsessiva, era doentia, era neurótica e, ao mesmo tempo, era prazerosa e recompensadora.

Voltava para o seu violão, depois de uma pausa de mais ou menos meia hora, e continuava a pensar. Executava todos os movimentos por dezenas, às vezes centenas de vezes até obter o lampejo para a conclusão de seus problemas musicais. Naquele dia, acontecia o que por mais de trinta anos Euclides buscava incansavelmente. A melodia final que foi capaz de tirar lágrimas de seus próprios olhos. O velho músico não entendia como era capaz de emocionar as platéias lotadas e mudas que o cercavam durante sua vida sem comover a si mesmo. Mas isso finalmente havia acontecido. Como uma obra divina, Euclides terminava uma de suas mais trabalhosas peças e, de maneira celestial, conseguia também emocionar a si mesmo pela primeira vez com a criação.

Rapidamente, Euclides transcrevia em pautas limpas todo aquele suor derramado durante dias. Disposto a apresentar a nova peça no próximo concerto, o profissional se acomodava na velha cadeira da sala e exaustivamente a ensaiava em busca da execução perfeita. Euclides concentrava-se em exprimir de seu instrumento apenas o som das notas, omitindo qualquer tipo de sonoridade vinda do arraste de suas mãos sobre o braço do violão. Essa era uma de suas marcas registradas.

No dia do tão esperado concerto de Euclides Romero, no Teatro Municipal de sua cidade natal, uma fila enorme na portaria tornava o local ainda mais lindo e atraente. Durante o espetáculo, Euclides executava suas peças mais famosas – que também eram as mais rebuscadas – sob o olhar boquiaberto do público presente. No final, apresentava-lhes sua mais nova criação dividida em três movimentos: “Ao meu próprio coração”. A platéia continuava intacta e hipnotizada por aquelas cordas. Ao final do terceiro e último movimento, Euclides novamente chorava.

Terminada a peça, direcionava os olhos para frente e deparava-se com um certo desconforto daqueles que o apreciava. Focos de pequenas conversas apareciam diante de Euclides. Notava que justamente a música que lhe tirava lágrimas não surtiu o efeito aos presentes no teatro. O público somente se dava conta de que era o fim da peça quando o violonista levantava-se para receber os aplausos.

Findado o concerto, Euclides não se dirigiu ao Café do teatro para os autógrafos. Permaneceu no camarim até que a última pessoa se retirasse do recinto. Tomava ali como falha sua nova composição e entrava em intenso conflito com a música que produzia. Depois de tantos anos de carreira, entendia agora que o caminho da onda de emoção transmitida por sua obra era de seu coração para o violão, do violão para o público e finalmente, do público para o seu coração novamente. Um ciclo no qual todos precisam de todos para se emocionar.

quarta-feira, 26 de março de 2008

A EXCEÇÃO

- Eu posso sentar-me aqui?
Perguntou Leandro.
- Claro!
Respondeu Michele.

Às 7h da manhã, naquele assento da estação Carioca do Metrô, dois pontos distantes se aproximavam. Ele esperava o trem no sentido Sul. Ela, sentido Norte. Leandro ofereceu um biscoito do pacote que havia guardado desde o fim da tarde do dia anterior. Michele, em jejum, morrendo de fome, ainda assim não aceitou, puxou um livro esquecido na bolsa e começara a ler.



- Já li.
Atirou Leandro.
- Que bom.
Rebate Michele.

Naquele momento, a menina já começa a suspeitar que Leandro a qualquer custo pretende iniciar algum assunto, seja ele qual for. Biscoito, livro... Michele continua lendo enquanto aperta a barriga que tanto doía.

- Devia ter aceitado o biscoito.
Diz Leandro.
- Por que?
- Porque estás com fome. Está estampado.
- Engano seu. Acabei de tomar um café delicioso com o meu namorado e estou super bem, não precisa se preocupar.

Michele nem namorado tinha e sua geladeira pela manhã só tinha uma garrafa de água e um iogurte que deixara para Betina, sua irmã mais nova, levar para o colégio. Michele partia com a única garantia do almoço servido no refeitório da empresa onde trabalhava. Já se passava do dia 27 e seu salário, assim como as compras, já era coisa do passado. Inventara aquele “café da manhã romântico” para afastar o rapaz inconveniente. E conseguiu.

Leandro levantou-se e esperou o trem em pé. Foi quando Michele conseguiu enfim olhá-lo. Olhou-o dos pés à cabeça. Olhou o pacote de biscoito ainda pela metade. Observou os farelos do alimento que saltavam da boca de Leandro sem repulsa. A dor na sua barriga aumentou. Levantou e foi até o rapaz.

- Acho que vou aceitar seu biscoito.
- Seu namorado tomou o café todo sozinho?
- Não tenho namorado.
Respondeu Michele com um sorriso sem graça.
- Foi o que imaginei.
- Por que? Por que eu não poderia ter um namorado?
- Porque eu acredito que o destino não seria tão cruel a ponto de colocar no caminho de um homem solitário e com um pacote de biscoito uma menina comprometida e sem fome.

Michele sorriu diante da frase, retirou dois biscoitos do pacote e saciou-se. O trem de Leandro se aproximou.

- Quer ficar com o pacote?
Ofereceu Leandro.
- Não, obrigada.
- Tem certeza?
- Tenho. Estou bem.
- Quero lhe ver mais vezes. Como faço?
- Vai perder o trem.
Respondeu sorrindo.
- Não quero lhe perder. Qual seu nome?
- Michele.
- O meu é Leandro. Amanhã nesse horário e nessa estação? Pode ser?
- Estarei aqui.

O tempo passou e os dois passaram a se encontrar pontualmente todos os dias pela manhã naquela estação. Eles se conheciam cada vez mais enquanto o carinho demonstrado por Leandro crescia proporcionalmente. A defensiva de Michele só ajudava ainda mais a vontade de Leandro em beijá-la. O rapaz foi paciente e deixou que a intimidade entre os dois surgisse naturalmente. E foi o que aconteceu depois de três semanas.

Michele, àquele ponto, já se encontrava perdidamente apaixonada por todos os gestos e jeitos de Leandro. Sentia que estava na hora de abrir-se para um primeiro beijo. Chegou como sempre às 7h à estação e ali esperou pela chegada de Leandro, sempre precedida de um perfume capaz de enlouquecê-la.

- Oi Michele.
- Oi Leandro.
- O que vai fazer amanhã à noite? Estudar de novo?
- É o que costumo fazer todos os sábados à noite. Mas neste sábado estarei aberta a sugestões.
- Que ótimo. Um cinema. Que tal?
- Eu topo.
Respondeu Michele com um sorriso animadíssimo.
- Só ainda não sei bem onde moras.
Michele explicou seu endereço para Leandro e combinou um horário para que pudesse buscá-la.

No sábado, foi tudo perfeito. O filme, o beijo, o lanche, as risadas e a despedida. Michele acordou no domingo flutuando em sonhos típicos de inicio de romance. Como de costume, foi comprar pão e jornal. Com a bisnaga debaixo do braço e o jornal em direção aos olhos, se depara com a foto de Leandro no canto inferior direito da primeira página. A manchete: “Preso na madrugada de ontem, Leandro Nogueira de Sá, reconhecido por vítima sobrevivente como Maníaco do Metrô”.

Sem chão, Michele vai até a página da matéria e lê o que o coração custa a acreditar. O rapaz que conhecera na estação tinha o hábito de seguir e matar mulheres após estupro. Leandro tinha sido reconhecido por uma vizinha de Michele que o avistou no sábado e o denunciou à Polícia.

Michele procurou por Norma, a sua vizinha, para saber mais sobre o caso. Norma se assustou ao saber que Michele seria possivelmente a próxima vítima de Leandro e contou como o criminoso agiu.

- Ele me viu na estação do Metrô, tomou o mesmo trem que eu, saltou na mesma estação e me seguiu até uma rua deserta. Tentou me agarrar, mas não conseguiu. Corri muito naquele dia, mas nunca me esqueci do rosto dele e nem do odor que exalava. No sábado, quando o vi aqui pela rua, ele estava cheiroso, porém, a cara dele não me deixou dúvidas. O resto você já sabe.

Michele percebe o quanto tinha sido diferente a abordagem de Leandro à sua pessoa. Se ele era tão perigoso assim, por que lhe dera o nome verdadeiro? Por que se perfumava para ela? Por que não a seguiu em nenhum dia durante as três semanas de amizade? Muda, Michele vai para casa. Deita na cama e passa o resto do domingo divida entre a tristeza e a felicidade de ter talvez mexido e mudado um coração tão cruel.

terça-feira, 25 de março de 2008

O DONO DAS SOLUÇÕES

Afonso sempre foi um rapaz muito comunicativo. Com isso, fazer amizades era de fato algo rotineiro. A pessoa que tinha o prazer de conhecê-lo não queria mais o perder de vista. Afonso sem dúvida alguma era um cara agradável e apaixonante de lidar. Para os amigos, uma excelente companhia nas mesas dos bares, nas arquibancadas de estádios de futebol etc. Para as amigas, um ombro e um ouvido sempre por perto.

Fazendo parte da minoria de seu ciclo de amizade, Afonso mantinha um namoro de cinco anos e quatro meses com Rafaela. Minoria porque a outra parte do grupo revezavam-se entre si num verdadeiro “pega-pega” que resultava em intrigas, brigas e choros que quase sempre iriam ser confessados a Afonso. O amigão. Visitas de amigas ao seu apartamento eram de tamanha freqüência que necessitava de um agendamento prévio.

Afonso sempre tinha uma boa saída para os problemas alheios. Por isso, era chamado muitas vezes de “guru”. Porém, os seus próprios problemas ele não os conseguia resolver. Se já não bastasse o seu namoro que se tornava a cada dia mais frio e instável, Afonso se encontrava agora perdidamente apaixonado por Karen, uma das muitas amigas por ele assistidas.

O que fazer diante disso? As encrencas mais cabeludas e absurdas que lhe chegavam aos ouvidos eram resolvidas em questão de minutos, mas a situação em que se encontrava parecia um caso insolucionável. Sentia um carinho enorme por Rafaela, que em sua mente a tinha como fosse a mulher de sua vida. E realmente era. O amor que recebias da menina era incomparável a qualquer outro sentimento já recebido por Afonso. Combinavam-se nas atitudes, nos pensamentos, nos ideais. Aquilo que alguns chamam de alma gêmea. Era assim.

Karen o procurou para falar de suas frustrações profissionais no ramo das artes plásticas. Ela não conseguia manter-se com a carreira escolhida. Pois bem, quatorze horas de conversa foram suficientes para que Afonso não a tirasse mais da cabeça. Aquela menina que era um ser distante agora fazia parte de seus sonhos diários. Mas o que Karen possuía? O que quatorze horas tiveram para serem mais especiais, pelo menos momentaneamente, do que os mais de cinco anos de convivência com Rafaela?

Tomou coragem e foi até a casa de Rafaela. No caminho, pensava apenas no sorriso, num possível beijo e nas insinuações de Karen. Um fogo latente em seu peito o fazia clamar por novas experiências amorosas. Chegando à frente da casa de Rafaela já obtinha a certeza de que ali acabaria tudo. Estava ligado demais à Karen e não conseguia mais empurrar aquele namoro com a barriga. Era o desejo carnal que vencia os sonhos depositados durante tantos anos.

Foi frio. Disse que não dava mais e pronto. Rafaela, que também já se encontrava desacreditada daquele relacionamento e exausta de dividi-lo com as amigas de Afonso, apenas chorou e fechou a porta. A menina tinha em mente que se não fosse com Afonso, não seria com ninguém. Rafaela havia projetado toda uma vida ao seu lado e com apenas uma frase do rapaz, perdeu o chão. Também chorando, porém, com a leveza de quem se livra de um imenso penar, Afonso vai até a casa de Karen. Tocou a campainha diversas vezes, mas ninguém atendeu. Foi para casa tentando contato pelo seu telefone celular.

À noite, finalmente conseguiu falar com Karen.
- Karen, eu estou apaixonado por você.
- Mas Afonso, e a Rafaela?
- Não há mais nada entre nós. Terminei por sua causa. Só penso em ti, Karen.
Karen riu sem graça, se despediu com um discurso sem sentido e desligou o telefone. Afonso preferiu esperar o dia seguinte para conversar melhor com Karen.

No dia seguinte, Afonso recebe uma ligação de uma amiga:
- Afonso?
- Sim.
- É Amanda.
- Oi Amanda. Como você está?
- Nada bem e acredito que você também não ficará.
- Por que?
- Rafaela suicidou nesta noite. Ingeriu veneno, Afonso.

Sem sentir as pernas e pensando na culpa de ter levado Rafaela a se matar, Afonso vai inconscientemente até a casa de Karen. Chegando lá, avista um grande movimento de policiais e bombeiros frente à residência. Karen deixou um bilhete explicando que havia cortado os pulsos na madrugada passada ao escolher a morte a mais uma frustração em vida, a de conseguir acabar com o relacionamento alheio.

Afonso se ajoelhou no chão vermelho da sala de Karen, chorou e entendeu que foi incapaz de resolver o seu próprio problema e que ao tentar, conseguiu matar as duas possíveis soluções.

terça-feira, 18 de março de 2008

A DESPEDIDA

Enquanto ouvia xingamentos e desaforos, juntava as duas camisas e a única calça que tinha, num saco. Pegou também seu violão e um chinelo. Ela não parava de falar. Recebeu adjetivos que jamais havia ouvido na vida e mal sabia o significado deles, mas dava para perceber que não era coisa que prestasse. Ela gritava muito.

Nos papéis ainda molhados de círculos de café, suas músicas. Pegou-as também. Secou os escritos na camisa velha que vestia, dobrou-os e enfiou junto às calças. Ela continuava gritando. Assustado com a confusão, o cachorro latia sem parar. E ela reclamava com o pobrezinho também.

Na verdade Francisco não agüentava mais ouvir a voz daquela mulher, que por sua vez não agüentava mais assistir o seu silêncio. Na opinião dela ele era um sonhador, vagabundo e que nada queria com a “hora do Brasil”. Ao ver dela, estava "desempregado", mas trabalhava de 07:00h às 17:00h como servente de pedreiro há alguns meses atrás.

Naquele dia, ele decidiu que não mais ia falar. Discutir com ela não valia nem uma gota de sua saliva, nem um movimento de sua boca, nem um pulsar mais acelerado de seu coração... Viver naquela casa não tinha mais sentido se houvessem os dois a dividindo. Aquele campo de batalha chamado quarto só teria paz com a saída de uma das tropas. Francisco retirou então a dele, que a essa altura da guerra se encontrava cansada de tanto se defender e com orgulho de nunca ter atacado.

Abriu o portão e a voz da ex-companheira já o vinha sem muito poder. Notou que o cão direcionava seu latido à sua pessoa. Era a conclusão da despedida. Baixou a cabeça com tristeza, mas ao mesmo tempo se sentia muito feliz. A liberdade e o medo do que planejava para depois daquele portão traziam uma certa alegria a Francisco. Saiu caminhando pela estrada de terra e deixando para trás apenas as marcas de seu chinelo velho no chão.

Durante vários dias, andou sem rumo. Compôs algumas canções, todas falando de despedias. Cantava-as apenas para si. A última, a mais bela que já fez, foi cantada uma única vez, poucas horas antes de morrer de fome. Francisco a compôs e cantou para depois de tantas guerras se despedir. Se despedir da vida.

Conto publicado em 31 de agosto de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas

sexta-feira, 14 de março de 2008

CONFLITOS DE CAROLINE

Caroline abraçou sua pelúcia e derramou todas aquelas lágrimas que a deixava com um andar pesado por dias. O fato de ter contado seu maior segredo para a professora à qual ela depositava enorme confiança já não mais a deixava tranquila como nas primeiras horas após a confissão. A professora Ângela já desconfiava de suas atitudes durante as aulas. Não foi difícil fazer com que a menina se abrisse em relação àquele comportamento.

As lágrimas de Caroline eram na verdade frutos de uma confusão sentimental que envolvia pais, amigos, futuro, felicidade, conceitos. A partir do momento em que a menina se livra do fato, que até então era unicamente seu, se sente como se houvesse uma pequena fresta em seu coração, possibilitando o observar crítico de Ângela sobre o seu íntimo. Isso já não a fazia bem. A homossexualidade de Caroline estava agora nas mãos de uma outra pessoa. Pessoa esta que fugia de seu controle. Seu segredo corria agora o risco de se propagar feito má notícia.

Esse fato era apenas uma parte das lágrimas de Caroline. O segredo já havia sido dividido com Ângela e isso já não tinha como mudar. Mas o que fazer diante disso tudo e de uma paixão repentina por Alexandre, seu melhor amigo? Encarar a bissexualidade estava longe de se tornar um fato para Caroline. Já era confuso demais tentar se aceitar como uma pessoa “normal” frente a tanto preconceito. Caroline lutava dia e noite contra seus próprios sentimentos como se estes fossem sujos e dignos de sua própria reprovação. E agora essa coisa louca em relação a Alexandre.

O segredo revelado, a paixão inexplicável por Alexandre, o medo dos pais, a juventude batendo à porta e os hormônios à flor da pele criavam todo um conflito interno que Caroline tentava dividir com sua pelúcia. Ficar deitada até virar um monte de pó era o que desejava ao pensar em tantas escolhas e decisões que tinha pela frente. E isso tudo era apenas o interno. Os problemas externos ela preferia esquecer. Eis uma menina de apenas quatorze anos, mas que já carregava em si todo o peso de uma sociedade; a começar pelos seus pais.

Levantou-se, jogou o ursinho no canto do quarto com violência, desceu as escadas em direção à mesa de jantar na qual se encontra toda sua família. Sentou-se enxugando suas lágrimas.

- O que tem para comer? – perguntou a menina.

- Por que está chorando, Caroline? – perguntou a mãe.

- O que tem para comer?

- Antes, eu quero saber o porquê de seu choro! – insistiu a mãe.

- Quer saber mesmo? Vocês todos querem saber? – ameaçou raivosamente Caroline – Eu gosto de meninas, minha professora está sabendo e estou apaixonada por um amigo! Tudo bem para vocês? Porque para mim não está nada aceitável!

Caroline conseguiu deixar ainda mais muda aquela família de indivíduos tão distantes entre si. Hamilton, o pai, se escondeu por trás do jornal – fingia ler. Carmem, a mãe, foi até a cozinha buscar os pratos. Rodolfo, o irmão, sequer ouviu o que a irmã falara, por causa dos fones de ouvido.

A menina ia se sentindo a cada segundo mais leve. E o melhor: notou que nada falaram a respeito de seus problemas.

No dia seguinte, como se nada houvesse ocorrido na noite anterior, todos em casa agiam de forma normal. Falaram-se pouco, como sempre, e de forma natural, fazendo assim cair o mito de que naquela casa o segredo de Caroline seria mal visto. A menina recebeu o mesmo beijo sem graça de todos os dias e foi para o colégio.

Chegando lá, sentiu que ainda faltava se livrar de um outro impasse: o de Alexandre.

- Alexandre, eu posso falar com você? – disse Caroline.

- Claro, diga!

- Estou apaixonada por ti.

Alexandre ficou com os olhos arregalados e completamente mudo.

- O que você me diz? – continuou a menina.

- Caroline, você é uma garota linda. É inteligente, interessante...

Caroline interrompeu os elogios e o beijou docemente. Alexandre não disse palavra e retribuiu o ato.

* * *
Chegando em casa:

- Oi mãe.

- Oi filha. Como foi a aula? – a pergunta de sempre da mãe.

- Interessante! – a resposta de sempre de Caroline.

- E o Alexandre? – uma pergunta inédita.

- Apaixonante! – uma resposta à altura.

- E quanto à sua opção sexual? Como fica?

Caroline para na escada, se vira para Carmem e responde com um enorme sorriso no rosto:

- Mamãe, não possuo mais conflitos, pois venci o maior de todos: o medo da reprovação de vocês. Era esse que acorrentava todos os outros conflitos!

Carmem continuou preparando o almoço. Caroline, diante do nulo preconceito de seus pais, passou a aceitar tranquilamente a indiferença deles. Era melhor.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

quarta-feira, 12 de março de 2008

INÉDITO SINISTRO

Sem saber que estavam sendo perseguidos por dois elementos que se confundiam na escuridão, Douglas e Marcela caminhavam até as suas casas. O casal estava “alto” demais para perceber qualquer indício de perigo. Riam, falavam coisas sem sentido e se agarravam como se fossem os últimos seres de sexo oposto existentes no planeta. No meio a tantas frases tortas, Douglas dizia o quanto seria bom ver Marcela transar com Cléber e Robson, seus melhores amigos. Tentava convencê-la.
- Porra, Marcela. Eles topariam na hora. Vamos fazer. É minha tara (risos)!
- Seu louco. Sabe quando você vai me ver trepando com outros caras? Nunca (mais risos)!
- Olha que eu te vendo para eles (e mais risos).

E nessas conversas sem fim, seguiam rindo e gozando um com a cara do outro. O cenário de uma cidade imunda e vazia não tinha efeito contra o álcool e as drogas ilícitas consumidas pelo casal algumas horas antes em algum dos inferninhos que freqüentaram naquela noite. Era como se estivessem passeando no parque de diversões.

Douglas deixaria a namorada em casa e seguiria sozinho mais uns quinze minutos até a sua. Faltavam dois quarteirões para o destino de Marcela quando os bandidos resolveram abordá-los. Sem falar uma palavra, Douglas leva um tiro no peito. Marcela não teve tempo sequer de soltar o grito que lhe veio à mente, pois no mesmo instante foi imobilizada por um deles e teve sua boca calada à força por aquelas mãos sujas que cheiravam às piores coisas existentes na madrugada.
- Quieta garota! Se gritar vai ser pior.
Disse um.
- Pode soltá-la. Ela vai colaborar.
Ordenou o outro.

Ainda chorando muito, mas completamente dopada Marcela diz:
- O que querem de mim? Olhem o que vocês fizeram! O Douglas...
- Pois é, garota! Tá “chapada”, não é? Vamos brincar um pouco?
Ameaçou.
- Não. Por favor, me deixem ir embora!
Implorou Marcela.
- Você vai embora... Depois.

Marcela resistiu, lutou e apanhou muito. Toda a força que sobrara daquela noitada ela usara contra os dois brutamontes. Sentia aqueles corpos sobre o dela. No estado em que Marcela se encontrava, seus sentimentos se confundiam entre a dor da perda, o ódio e o prazer. Dividindo o mesmo chão de paralelepípedos com as baratas e os ratos que ali passavam, Marcela tinha instantes incompreensíveis de prazer. O sangue fresco de Douglas que escorria pela calçada encontrava agora seus seios desnudos e marcados pelo tato selvagem que a dominava. Ela gostou.

Para evitar os gritos, um deles voltara a calar Marcela, que por sua vez mordia os dedos grossos e rústicos daquele ser desprezível. Mas as mordidas se revezavam com uns beijos tímidos. Os gritos de dor se trocavam com os gemidos de um tesão a ponto de ser saciado. Marcela vivia aquele inédito sinistro de duas formas diferentes, odiando e amando ao mesmo tempo.

Marcela olhou para o cadáver e reparou que o mesmo se encontrava de olhos abertos e fixos nos olhos dela. Sentiu então seu corpo queimar de um prazer jamais sentido. Prazer este que deu forças suficientes para vencer aquela mão que a calava e logo depois soltar um berro repleto de satisfação somado a uma macabra gargalhada.

- Olhe aqui Douglas. Gosta do que vê? Não era isso que você sempre quis ter? Olhe!
Em total clímax.

Conto publicado originalmente em 28 de agosto de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

terça-feira, 11 de março de 2008

VOCÊS VIRAM O SEBASTIÃO?

Na fila do banco, que ficava no térreo do prédio onde trabalhava, Adilson pensava em muitas coisas. Pensava primeiro na imensidão de tarefas a desempenhar depois daquele chá de espera, pensava na vida, em planos para melhorá-la e nunca mais ter que encarar uma merda de banco lotado como uma situação rotineira. Ali, Adilson conversava com idosos que puxavam assuntos dos mais tediosos possíveis, ouvia declarações de amor e até desavenças naquela fila, todos os dias.

Órfão de pai e mãe, Adilson morava com a tia, D.Sandra. Com dezenove anos e uma belíssima profissão de “Agente Especial de Serviços Externos do Grupo Fagundes”, vulgo “Office Boy”, Adilson sonhava em ser algo que ele nem sabia o que era. Na verdade Adilson tinha o sonho de conquistar algum cargo maior no Grupo Fagundes, seja ele qual for, desde que usasse terno e passasse todo o expediente sob o ar refrigerado do escritório como o Dr. José Roberto, o Dr. Lauro Pereira ou até mesmo o Dr. Pedro Fagundes, dos quais ele recebia além de ordens, conselhos muito importantes para sua vida, como “troca de time, flamenguista!”.

De todos os que ele conhecia ali na empresa, existia um único sujeito que ele nunca tirava como exemplo, o Sebastião, da limpeza. Adilson só cruzava com ele às oito da manhã, quando chegava e às seis da tarde, quando ia para casa. Era sempre assim:
- Bom dia, Adilson.
- Bom dia, Tião.
- Tenho uma coisa para te contar.
- Todos os dias você tem coisas para me contar, já percebeu?
- Mas é importante.
- Diga, Tião. Devo tomar cuidado com o quê hoje?
- Com nada, Adilson. Queria lhe dizer que se pensas em ser “alguém” aqui dentro, deve voltar a estudar.
- De novo, Tião? Você sempre fala isso e veja só o que você é. Um faxineiro. Acha mesmo que devo seguir os seus conselhos?
- O que acha que o Dr. Fagundes fez durante toda a sua juventude, garoto? Estudou muito para estar ali.
Adilson, embora soubesse que essa era a dura verdade, queria ouvir os mesmos conselhos vindo dos lábios do próprio Dr. Fagundes, aí sim acreditaria.

Sebastião era para Adilson uma figura estranhíssima, pois durante o expediente nunca via o senhor alto que empunhava uma vassoura. Nas festas de confraternização, Sebastião nunca estava presente, porém, Adilson nunca foi capaz de perguntar pelo Tião aos doutores, pois se eles não sentiam a falta do faxineiro por que ele mesmo sentiria? Talvez nem o convidavam.

Aguardando sua vez naquela enorme serpente humana, Adilson avistou um menino correndo dentro do banco. O menino corria de um lado a outro, chorando e chamando pelo pai. Adilson se perguntava por que ninguém ajudava aquele menino. Então soltou para um senhor à sua frente:
- Ninguém vai ajudar esse menino a achar o pai dele?
- Como? Que menino?
- Esse aí chorando.
- Onde?
- Ali, senhor.
- Usou drogas, garoto?
Adilson não acreditou que somente ele estava vendo o menino. Saiu da fila e foi em direção à criança.
- Quer ajuda?
- Quero.
Respondeu o menino chorando.
- Está perdido de seu pai?
- Sim.
- Qual o nome dele?
- Sebastião.
Lembrou-se do faxineiro rapidamente por causa do nome.
- Vou te levar até o gerente.
Pegou na mão do menino.
- Seu Gerente. Esse menino se perdeu do pai.
- Que menino?
- Esse aqui...
Adilson se deu conta de que o menino não estava mais em suas mãos. O gerente do banco fez cara de bravo e saiu.

Chegando ao escritório, mesmo assustado com o que acabara de acontecer, estava decidido a pregar uma peça em Sebastião. Pensava em zombar do faxineiro o chamando de pai desnaturado, pois acabava de encontrar o filho dele perdido no banco.
- Dr. Lauro. Viu o Sebastião por aí?
- Sebastião?
- É. Viu ele?
- Mas que Sebastião?
- O senhor da limpeza, ora.
- Da limpeza só conheço a D.Lúcia, Adilson.
Nunca trabalhou nenhum Sebastião aqui.
- Mas...

Adilson não entendeu nada. Quem era aquele senhor que lhe dava conselhos todos os dias? Perguntou a todos os doutores e outros funcionários por Sebastião, mas ninguém sabia de quem o Adilson estava falando. Chegando à sua mesa, encontrou Sebastião e o menino que ele havia visto no banco sentados em sua cadeira.
- Obrigado Adilson, por encontrar meu filho.
Disse Sebastião antes de sumir junto com o menino bem diante dos olhos de Adilson. Ali, Adilson havia entendido tudo. Sebastião e o menino perdido no banco eram pai e filho. E depois de muito pesquisar, Adilson descobriu que ambos haviam morrido num incêndio nos anos sessenta no mesmo local onde hoje funciona o banco e o Grupo Fagundes.

Ao longo dos anos, Adilson foi percebendo que diversos amigos que ele tinha ali naquele prédio eram vítimas do mesmo incêndio que matou Sebastião e o filho. Largou o emprego, sumiu de casa e não era difícil encontrar Adilson no saguão do prédio falando sozinho aos prantos com seus antigos e novos amigos.

Conto publicado originalmente em 09 de janeiro de 2008 no fotolog.com/lucianofreitas.

sexta-feira, 7 de março de 2008

OS SONHOS DE BRENO

Apoiou suas botas sujas de poeira na borda da lixeira da rodoviária de São Paulo a fim de apertar os cadarços já frouxos de tanto andar. Não via a hora de tomar aquele ônibus de volta para sua casa. Seus ombros já possuíam cavidades com as medidas exatas às alças de sua mochila tão pesada. Nela, seus pertences e a um mundo de saudade. Não via a esposa e o filho fazia dois anos, desde que decidira viajar a trabalho, na intenção de melhorar de vida e mais tarde buscar sua família. Breno não sabia mais o que era o abraço familiar. Nem mesmo o avanço nos meios de comunicação fez matar o aperto que sentia ao lembrar de Lívia e Leonardo, seus únicos familiares.

No interior de Minas Gerais, Lívia dava aulas de francês, mas não possuía muitos alunos e com isso sua renda era curta para ela e Leonardo. Breno, sempre muito sonhador, no bom sentido, pois era muito perseverante, vivia dizendo que era em São Paulo que ele mudaria os rumos de sua vida e de sua família. Havia seguido para a metrópole aceitando um convite de um ex-patrão que prometia muitos benefícios. Segundo mesmo, sua construtora havia descoberto a mina de ouro na construção de conjuntos habitacionais na grande cidade.
- Breno, larga essa cidadezinha fedorenta e volte a trabalhar comigo. Você acha que eu saí daí por que? Isso aqui é uma maravilha, num falta serviço por aqui. Você é o melhor engenheiro que já tive, homem.
- Doutor Machado, eu não acredito que o senhor está me chamando de volta. A sua construtora não havia falido?
- Águas passadas, Breno. Eu larguei esse lugar aí e vim para cá faz um ano. Vim morar com meu irmão e montei com ele uma nova empresa. E está “chovendo na minha horta”. Vem para cá?

Breno pensou e conversou com Lívia durante uma semana.
- Lívia, você sabe. Sempre foi meu sonho ir para São Paulo. E agora apareceu a minha chance. Eu vou levar vocês depois, prometo. É lá que as coisas acontecem.
- Espero que esteja fazendo a escolha certa, Breno.
Disse Lívia.
Depois de muito analisar, Breno resolveu e ligou para Machado dizendo - Sim.

No dia seguinte, desembarcara na tão falada São Paulo. Na rodoviária, um carro de cor azul com um enorme adesivo na porta que exibia a logomarca “Irmãos Machado Construtora Ltda.” esperava por Breno, que não acreditava no que vias. Em uma breve conversa com o motorista que o levava até a sede da empresa, concluiu que todo o papo que teve com Machado ao telefone era realmente verdade. A empresa lhe deu moradia e um salário razoável em troca de seus excelentes serviços prestados. Breno é um engenheiro de mão cheia, do tipo que vale a pena contratar.

A intenção de Breno era usar o emprego apenas para se infiltrar em São Paulo. Queria mais. Queria progredir naquela cidade e viver nela junto à sua família. Mas as coisas não foram como ele esperava. Ele não conseguia seguir os rumos que pretendia. Notou que naquela cidade a concorrência era muito maior. Uma verdadeira luta pela sobrevivência. Uma selva. E para piorar, a empresa de Machado estava envolvida num grande esquema de fraudes em licitações públicas. A empresa garantia grandes “boladas” aos responsáveis pelo esquema em troca das obras mais rentáveis daquela cidade. Era muita gente envolvida.

Machado foi morto junto com o irmão a mando de alguns envolvidos no esquema a fim de queima de arquivo. A empresa acabou e seu emprego foi para o espaço. Breno, sem outro emprego em vista, despejado e sem saber quando e nem se receberia suas contas desses dois anos de trabalho, se viu forçado a fazer o trajeto de volta para Minas Gerais.

Agora, se encontra ali, naquela mesma rodoviária na qual desembarcou dois anos antes. Aperta os cadarços com força e mesmo com os sonhos totalmente despedaçados, se ergueu, respirou fundo e veio em mente o sonho que se formou durante aqueles dois anos de distância e desilusões. O de abraçar Lívia e Leonardo.

Conto publicado originalmente em 10 de setembro de 2007 no antigo blog.
*Gráfico da Capa: Casas do Interior - Maria Ávila (MG).

Um bom fim de semana a todos!

quarta-feira, 5 de março de 2008

DÍVIDA SENTIMENTAL

No mínimo, Nelson tinha a certeza de não ter deixado sequer um rastro de seu ato sujo e cruel. Corria pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro como um pierrô solitário. Uma cena quase que cinematográfica de um carnaval um tanto quanto sangrento. No escuro e sem notar que sua faca o acompanhava aos pingos, pensava finalmente estar livre de uma dívida sentimental de meses atrás. Contrastando com sua máscara de semblante triste, Nelson sorria como um ar de liberdade sarcástica. Sua fantasia lhe faltava os guizos propositalmente para a planejada fuga silenciosa que realizava.

Uns seiscentos metros longe do corpo que deixara caído, por conta de sete facadas no abdômen, Nelson pára e toma fôlego. Cansado e com as pernas doídas, avistou um táxi que parecia que estava ali justamente à sua espera. Tirou a fantasia no breu do Beco da Cancela, entre as Ruas do Rosário e a Buenos Aires, guardou a faca no bolso da bermuda e foi em direção ao veículo. Uma sirene é disparada no meio da festança. Nelson ouve de lá e apressa ainda mais sua atitude.
- Livre?
Pergunta.
- Sim, senhor. Entre. Para onde vamos?
- Me leve onde não haja carnaval!
- (Risos) Você só pode estar brincando. Estamos no Rio de Janeiro, meu amigo.
- Vire-se! Deve haver algum lugar, não? E seja rápido!
- Opa! Você não está fugindo de confusão, não é?
- Não. Só quero sair daqui. Não estou me sentindo bem. Por favor.
- OK. Que tal a sua casa?

Nesse momento, Nelson avista policiais que seguindo as gotas de sangue de sua faca ensopada chegam até o táxi. Assustado, sai do carro e joga a lâmina vermelha e prata para longe. Um dos policiais não pensou duas vezes diante daquele ato de confissão e disparou um tiro certeiro na nuca de Nelson. O taxista, sem ação, fica paralisado em meio à atitude do soldado, mas logo depois é assistido pelo restante da tropa. Terminava ali a louca trajetória de Nelson.

O corpo que Nelson havia deixado na Avenida Rio Branco no meio do tumulto carnavalesco era de sua ex-namorada, Amanda, de 21 anos. O namoro dos dois completava uns quatro ciclos lunares por conta do próprio Nelson, que alegava não ter mais paciência para o jogo duro da pequena. Sua barba já de mechas brancas não o deixava aturar a frase “sexo só depois do casamento” que Amanda fazia questão de frisar durante os encontros de portão.

Terminou o relacionamento, assistiu de longe o sofrimento de Amanda, mas foi também obrigado a assistir o renascimento de sua alma na companhia de um novo namorado, o Carlos, de 25 anos. Teve ainda de ouvir nos bares que a “gracinha da Amanda” já não era mais a “pura do Nelsinho”. É que Carlos conseguira em duas semanas de namoro aquilo que Nelson não fez em dois anos, deflorar aquela morena de olhos verdes que nem mais pensava em se casar! Isso foi demais para um homem de quase quarenta.

Nelson então esperou a terça-feira de carnaval chegar para fazer em cima da alegria de uma cidade inteira a tristeza eterna de todos que a cercavam. Vestido de pierrô e completamente alucinado de lança perfume Rodo, de vergonha e de ódio, aproximou-se de Amanda, que brincava ao som de um animadíssimo naipe, e esfaqueou-a sete vezes.

Os amigos de Nelson associaram na quarta-feira de cinzas o assassinato às frases ditas por ele tantas vezes desde as notícias eróticas de Carlos nos bares do Centro: “Hoje o bar inteiro ri enquanto eu choro. Chegarás um dia em que toda a cidade cessará as gargalhadas para a entrada triunfal de um choro enquanto eu rio”.

terça-feira, 4 de março de 2008

O INCAPAZ

Teve de se contentar com o adeus frio como o vento que a cortava. Deixou de lado aquela visão romântica e doce e imediatamente vestiu o vermelho que necessitava de prazeres puramente carnais. Ao vê-lo partir e diminuindo de tamanho em direção ao horizonte, Cíntia, ainda chorando, decidiu que não mais viveria um conto de fadas. Ser trocada na mais cruel das infidelidades fora o fim de uma menina sonhadora com o amanhã, mas também o início de uma mulher que vive o hoje.

Sandro a fez encarar aquela chuva para dizer o não mais covarde de ambas as vidas. Molhada e fervendo por dentro, Cíntia teve vontade de esmurrar a cara de Sandro. Nunca passara na cabeça que ele poderia concretizar aquilo que para o casal não passava de uma fantasia sem cabimento. Como ele foi capaz de levar a sério suas loucuras? Levar a melhor amiga de Cíntia, a Mônica, para a cama, provar do sabor jamais conhecido que eram suas curvas e concluir de forma rápida de que era ali que seu corpo melhor se completava. Isso foi demais para Cíntia.

Por mais que Cíntia demonstrasse sua ligeira atração pelo corpo de Mônica, ela deixava claro que tudo não passava de um estopim para as loucuras sexuais que viriam a partir daquelas suposições. Provocar Sandro com o fato de Mônica obter habilidades incríveis para com o próprio corpo – constatado por Cíntia em diversos banheiros de casas noturnas – era um hábito nas noites em que sua mãe não estava em casa. Sem perceber, inaugurava no rapaz uma curiosidade incontrolada que o fez tomar tal decisão e conseqüentemente tal conclusão.

Hoje, Cíntia não mais namora. Fica. Transa. Trepa. Sacia-se das vontades que possuí. Ouvir de Sandro que Mônica era a mulher da vida dele lhe fez ter idéias tão absurdas quanto as anteriores. Naquela altura, tudo já era possível. O incabível já havia se concretizado. Por que não? Então, semanas depois, ligou para Mônica.
- Oi, Mônica.
- Oi... Cíntia. Não sei o que dizer. Sandro está aqui em casa.
- Não diga nada. Quando Sandro sair, me ligue.
Horas depois:
- Oi, Cíntia.
- Ele já foi?
- Já!
- Transou com ele?
- Amiga...
- Responda!
- Sim. Agora pouco.
- Estou indo para aí.
- Para?
- Para transar contigo também!

Mônica ficou muda e esperou que Cíntia chegasse a seu apartamento para tentar compreender melhor o que se passava. A campainha toca. Mônica abre a porta e é surpreendida por um beijo voraz de Cíntia.
- Ficou maluca?
- Sim. Não diga que não gostou porque eu não vou acreditar!
- Mas Cíntia...
- Cale a boca. Eu falava de você para o Sandro e ele me trocou por você. Deve haver algo em você de muito interessante. Eu quero que me mostre!

Mônica que já demonstrara várias vezes a Cíntia como se fazia para alcançar o ápice num momento íntimo, entendeu tudo no olhar da amiga. Ambas deixaram as máscaras na sala e seguiram de olhos fechados por um beijo ainda mais ardente até o quarto. Lá, colocaram em prática tudo aquilo que Cíntia fantasiava nas madrugadas de insônia.

Depois de tudo, completamente suada, Cíntia solta:
- E o Sandro?
- O que tem ele?
- É seu namorado agora. Como o encarará depois de hoje?
Mônica tragou o cigarro e numa risada incontrolável respondeu:
- Como um incapaz!