sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O PANETONE

- Puta que pariu, Lucas! E o panetone?

Mamãe soltou a frase quando, às oito da noite do dia vinte e quatro, se deu conta de que em nossa ceia faltava aquilo que, segundo ela mesma, não poderia faltar, de forma alguma: o maldito panetone.

Antes mesmo que ela me dissesse o que fazer, corri até a sua carteira, puxei uma nota de vinte, peguei a bicicleta e ganhei a rua dizendo voltar logo com o panetone.

- Ou não me chamo Lucas! – eu disse.

- Ou eu te mato, seu imbecil! – disse mamãe.

Pedalei. E muito. Mas tudo o que eu via eram mercados descendo suas portas de metal, além de pessoas, já arrumadas, rumo às casas de seus familiares.

Enquanto riscava o asfalto, de tão veloz, pensava onde eu poderia comprar um panetone àquela hora. “Mamãe me mata se eu não chegar com essa merda de panetone em casa!”, eu pensava. Fui em todos os estabelecimentos de meu bairro, mas sem sucesso; estavam todos fechados.

Eu parava numa calçada para descansar, porque minhas pernas doíam. Foi quando Isadora, uma grande amiga, me tocou as costas.

- O que está fazendo por aqui, Lucas? – perguntou-me Isadora.

- Se eu te contasse...

- Diga!

- Estou atrás de um panetone, acredita?

- Às nove horas de um dia como hoje? Está maluco?

- Mamãe me dera tal missão ontem, mas... esqueci.

- Lucas, seu doido! Vamos, lá em casa deve ter mais de um. Acho que minha mãe não se incomodará se eu te der um dos nossos panetones.

- Não, que isso?, imagina... Não precisa se preocupar, Isadora.

- Não custa nada, Lucas. E Natal sem panetone não é Natal!

- Pensas como mamãe...

Isadora, então, sempre muito fofa, me deu um de seus panetones. Agradeci e ofereci os vinte reais a ela.

- Deixe isso para lá, Lucas! – ela disse, recusando a nota – Agora vá, que sua mãe deve estar aflita!

- Te devo essa, amiga!

Voltei veloz pelo mesmo caminho e, quase chegando à minha rua, eis que me surge um mendigo – que na verdade não era bem um mendigo, mas meu pai, posto para fora de casa havia dois meses, por conta do alcoolismo. Ele estava bêbado, como sempre.

- Lucas, meu filho! Diga a sua mãe para me aceitar de volta, por favor! É Natal...

- Papai, você está bêbado de novo! Como quer que mamãe lhe aceite?

- Meu filho, eu não estou... bêbado – disse-me ele, trocando as pernas –, eu só bebi um vinhozinho... o que tem de mais nisso? É Natal, porra!

- Papai, me dói muito lhe ver neste estado, mas não posso fazer muita coisa...

- Tenho fome, filho... Muita fome...

Na mesma hora peguei o panetone que Isadora me dera e:

- Segure, papai. É um panetone. Feliz Natal...

Papai não me respondeu; abriu a caixa do panetone como um animal faminto, o que me partiu mais ainda meu coração. Então, peguei a bicicleta e segui para casa.

Chegando:

- Conseguiu o panetone, Lucas? – perguntou-me mamãe.

- Consegui, mamãe, mas não o trouxe.

- Como “não o trouxe”, Lucas?

- Encontrei-me com papai. Ele estava com fome, e...

- Não credito que alimentou aquele animal como o nosso panetone, Lucas!

Meu sangue ferveu ao ver mamãe falando daquela forma do papai. Chamá-lo de animal? E o que havia de errado em alimentar papai se até nossos cachorros comiam bem lá em casa?

- Mamãe, a senhora e eu já comemos muitos panetones pagos por papai! Pense nisso!

Mamãe emudeceu.

- Ah! – eu continuei – e o panetone que dei a ele não lhe custou nada! Estão aqui os seus vinte reais! Engula-os!

Fui para o meu quarto e chorei. Chorei porque não consegui compreender como um simples panetone pode estragar o Natal de uns e ao mesmo tempo fazer o Natal de outros, ainda mais sendo ambos os lados meus pais.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

OITO ANOS DEPOIS

O tempo é realmente algo formidável, não? Ele transforma profundos aborrecimentos em coisas sem importância; bons colegas em velhos amigos, bons momentos em belas lembranças... Transforma crianças em jovens, e, logicamente, jovens em adultos. Ah, o tempo... Está aqui, ali, aí, neste e em todos os nossos momentos, agindo, tratando de transformar tudo e todos. Mas só fui dar tal importância ao tempo de uns dois anos para cá, quando fui convidado a passar o Natal na casa de um grande amigo, o Gerson, em Minas Gerais.

Na ocasião, eu estava por lá a trabalho; participava da (exaustiva) gravação da trilha sonora de um filme – que não emplacou, mas isso é outra história. Gerson é meu amigo de infância. Nascidos e criados em Niterói, Gerson e eu somos como irmãos. Fazia uns oito anos que Gerson – também músico – residia por lá com a esposa, um casal de bebês gêmeos e sua irmã mais nova, a Paulinha. E é justamente sobre Paulinha que quero falar.

Entre Paulinha e eu há uma distância de uns sete anos, por aí. Quando eles se mudaram para Minas, Paulinha era uma moleca, chata, de treze anos, se não me engano. Eu, na época com vinte anos, não podia, logicamente, imaginar a linda jovem que esta se tornaria. E a surpresa me veio naquele Natal.

Rever Gerson e conhecer sua prole foi demais. Aquele casal de bebês era tão lindo; completava, de fato, a harmonia daquela casa. Mariana, esposa de Gerson, era uma mulher muito atenciosa – sempre foi, diga-se de passagem, desde quando eles apenas namoravam – e me tratou muito bem sob aquele teto humilde e aconchegante.

- Quanto tempo, Juliano! – dizia-me Mariana a sorrir e me abraçar, assim que cheguei.

- Puta merda, Juliano, dá um abraço! – dizia-me um Gerson com nítidas lágrimas nos olhos – Como andas, rapaz? E essa gravação que veio fazer? Termina ou não termina? Soube que o produtor é o Duarte, né? Ele é um “carne de pescoço”.

- Pois é, Gerson, essa gravina está me consumindo. Sopro esse sax de manhã e só paro de madrugada...

- Nossa... Ah! Trouxe o sax, né? Vamos fazer um som mais tarde! Ainda aguenta?

- Claro! Acha que iria vir aqui e deixar de fazer um som contigo, Gerson?

Gerson e eu nos sentávamos no sofá a fim de colocar aquele papo, oito anos atrasado, em dia. Mariana nos servia doses de whisky e charutos; ela sabia exatamente como nos fazer feliz naquele momento.

- E Paulinha, Gerson? Ela mora com vocês, não é?

- Paulinha está no quarto dela, certamente. Não larga aquele computador nem à paulada. Mas deixe-me chamá-la – e berrou – PAULINHA! VENHA ATÉ AQUI! JULIANO QUER TE VER!

Eis que me chega à sala Paulinha. Aquele corpo franzino da “moleca chata” de outrora se transformara numa coisa de louco! Paulinha era agora uma negra alta de uns vinte e um anos. Assim como Gerson, a menina puxara a pele escura do pai, mas os cabelos lisos e, no seu caso especificamente, ondulados da mãe branca. Essa combinação, unida aos traços finos de seu semblante e às suas medidas “fartas”, fazia de Paulinha uma menina dona de uma beleza tipicamente brasileira, porém, rara!

- Juliano! Que saudade! – dizia-me Paulinha muito surpresa.

Eu me levantava para abraçá-la, mas, confesso, não sabia para onde olhar. Seu decote exibia um par de seios que eram uma afronta; seu short curto porém decente deixava à mostra pernas brilhantes de tão rígidas. O sorriso de dentes brancos e perfeitos... um convite!

- Paulinha, você está enorme, meu Deus – eu dizia durante aquele abraço forte e caloroso.

Mas logo Paulinha nos pedia licença e voltava, aparentemente muito feliz, saltitante, para o computador.

Era o fim da minha paz.

Conversei durante horas com Gerson, me diverti muito, mas, metade do meu pensamento estava na beleza de Paulinha, que, por sua vez, não saía daquele quarto.

As guloseimas da ceia de Mariana começavam a cheirar por toda a casa quando Gerson resolveu abrir o piano para fazermos um som. Saquei meu sax do case e pensei que tocá-lo me faria parar, pelo menos por um momento, de pensar em Paulinha.

Tocamos então aquilo que mais gostamos; Jazz, claro. Fazia anos que não tocávamos juntos, mas os temas fluíram como se aqueles nossos oito anos de jejum não existissem.

Foi quanto resolvemos tocar Say it; um tema lindo que foi capaz de tirar Paulinha do quarto – para a minha alegria.

Paulinha parou na porta da sala, se recostou na parede e, dali, ficou a me observar. Ela me inspirou na hora do improviso e, sim, fiz aquele solo para ela, olhando bem naqueles olhos castanhos. Como já estava anoitecendo, nossos corpos ali eram iluminados apenas pelas luzes da árvore de Natal, montada no canto da sala – o que deixava tudo aquilo com um clima indescritível.

Ao terminarmos aquele tema, Gerson se levantou do piano e foi até a cozinha.

- Vou pegar um vinho para a gente, Juliano! Segure aí! – dizia-me Gerson.

- OK...

Paulinha resolvia se aproximar.

- Gostou do que ouviu? – eu perguntava.

- O quê? Eu AMO essa música!

- É mesmo? E desde quando gosta de jazz?

- Como não gostar de jazz, quando você mora com um pianista como o meu irmão?

- É verdade... Então, quer dizer que você anda ouvindo os discos do Gerson.

- Sim, de vez em quando.

- Que bom...

Depois de uma pausa de exatos trinta segundos:

- Eu me lembro muito de você, sabia? – dizia-me Paulinha.

- Fico feliz, porque faz muito tempo... Lembro de você também, só que bem diferente... Você era uma criança, né... E agora...

- O que sou agora, Juliano? – dizia Paulinha rindo.

- Ah, uma mulher... Linda! Uma linda mulher...

- Lindas mulheres procuram lindos rapazes, sabia?

- Faz sentido. E a internet deve estar cheia deles, não acha?

- Impressão sua. No momento, a sala da minha casa parece mais interessante.

Estava claro que se tratava de uma conversa que nunca tivéramos; uma conversa de adultos.

- Seu irmão não ia gostar nada desse nosso papo, Paulinha.

- Não faz mal... Acredita no poder da noite de Natal e em todas as coisas boas que esta pode proporcionar? Acredita?

- Paulinha...

- Após a ceia, quando todos se recolherem, teremos um encontro, pode ser?

- Por favor, eu não quero estragar tudo, Paulinha...

- Quem falou em estragos? Estamos falando de sonhos e de realizações.

- Do que está falando?

- Você lembra de mim bem menina, não lembra?

- Sim, claro!

- Meninas possuem sonhos... Entende?

Paulinha dava meia-volta e seguia em direção ao seu quarto.

* * *
Durante a ceia, à mesa, Paulinha fez questão de se sentar à minha frente. A jovem trajava um vestido xadrez com um decote singelamente sedutor. Trocamos muitos olhares e sorrisos. Porém, as tentativas de Paulinha em roçar nossas pernas sob a mesa falharam, porque eu, covardemente, fugia.

Lá pelas duas da madrugada, já cansados, fomos todos dormir, inclusive Paulinha, que, na verdade, fingia. Fui para o quarto de hóspedes e me deitei, sem saber que, poucos minutos depois, Paulinha ali adentraria.

Vestindo apenas uma camiseta de malha e um short estonteante, lá estava ela, pronta para sei lá o quê.

- Menina, você ficou maluca?

- Sim! Estou maluca desde quando me mudei para cá, Juliano! Entenda! Eu sempre fui apaixonada por você!

- Não invente, Paulinha! Você era uma criança!

- Era! Disse bem! Era! Mas não sou mais! E se a minha idade o impedia de me querer, hoje não impede mais! Impede? Diz que não me quer? Diz que não para de olhar o meu corpo! – ela acertava tudo, em cheio – Diz, Juliano, que você não quer me despir e...

E foi o que eu fiz. Naquele quarto de hóspedes da casa do meu melhor amigo, amei sua irmã num misto de tesão e culpa. Durante toda a madrugada, nosso sexo forçadamente silencioso deu início a um caso amoroso e, logicamente, proibido – Gerson me mataria, fato –, que se estendeu por todos os dias que me encontrei em Minas.

Hoje, recebo do carteiro um cartão de Natal, vindo de Paulinha, que diz:

Que neste Natal o tempo seja tão generoso para ti quanto foi para mim em 2008.

Feliz Natal.


O que ela não sabe é que naquele Natal de 2008 o tempo foi generoso para mim também...

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O PRESENTE

As Meninas

Na minha adolescência, quando o fim de ano se aproximava, uma coisa estranha me tomava o peito e a alma. Não sei explicar, mas acho que acontece com todos nós nessa fase da vida. Acho que tem a ver com aquele misto de alegrias gerado pelas férias escolares, pelo verão, aquela coisa toda. Sei que a impressão era a de que tudo mudava; o clima, o astral das pessoas.

Nessa época do ano, na fase das aulas de recuperação da minha escola, quando o uniforme – que era um verdadeiro “ultraje” à feminilidade das meninas – já não era obrigatório, nós, meninos, costumávamos ter diversas surpresas. É que sem a obrigatoriedade da calça jeans, do tênis preto e da tradicional camisa polo – sem falar no jaleco –, as meninas, bem à vontade, coloriam o pátio com suas camisetinhas, shortinhos e sandalinhas.

Claro que durante o ano tínhamos oportunidades de vê-las sem uniforme, mas nada comparado aos trajes de verão. Elas exibiam suas marquinhas de biquíni e, a fim de refrescarem a nuca, prendiam seus cabelos em rabos de cavalo, tranças e coques.

Lamentávamos algumas “baixas” também; as meninas mais inteligentes (não, não eram as feiosas da sala, muito pelo contrário) não precisavam de recuperação. A Karina, por exemplo, a mais gata de toda a escola, aluna da minha classe, só tirava boas notas. Então... Se quisesse encontrar com Karina em dezembro, que fosse à praia.

Mas, no final do último ano do ensino médio, num desses períodos de recuperação, mas precisamente no dia quinze de dezembro, estávamos numa roda de papo, aguardando pela divulgação do resultado final, quando:

- Gente, Karina me ligou hoje! – dizia Rafaela – Ela disse que vem aqui ver a galera!

Rafaela era a melhor amiga de Karina, andavam sempre juntas.

- Nossa! – eu dizia aos meninos – Imaginem a Karina como deve estar, bronzeadinha...

Rafaela nos olhou com uma pontinha visível de ciúme, mas logo se refez.

Na roda estávamos Rafaela, Bianca, Laura, Gabi, Elaine, Pedro, Flávio, Bruno e eu. Nós, meninos, observávamos, ali, jogando conversa fora, a beleza de cada uma daquelas meninas.

Eu tinha lá a minha a queda por Rafaela. Mas era aquela queda de adolescente, sabe? A gente não consegue manter o foco numa queda só, então acaba tendo quedas por várias meninas... Mas confesso que a queda era, sim, mais intensa por Rafaela.

A Rafaela era uma branquinha que, desde o ensino fundamental, sempre sonhei em namorar. Mas namorar mesmo! Palavra! Durante os cinco anos em que estudei com ela, não destacaria as qualidades de seu corpo muito bem feitinho e nem de seu rosto angelical, mas sim as qualidades de uma alma rara. Rafaela era amiga de todo mundo. Não tinha como não se apaixonar por ela, porque era uma menina linda, gente finíssima e confiável. Ah, e aquela coisa toda de inocência também, que Rafaela, diferentemente das demais meninas, deixava transparecer.

A menina

Por conta do jeito de ser de Rafaela, nunca havia tido oportunidade concreta de lhe dizer o que sentia. Ela parecia sempre tão desencanada em relação a namoros... Não sei explicar, mas era bem difícil levar uma conversa com ela às segundas intenções, porque ela não dava chances para que isso ocorresse. E aquele final de ano, por ser o último na escola, teoricamente, era a chance restante de dizer, enfim, o que sentia por Rafaela.

- Ih! Olha a Karina lá! – dizia Rafaela ao avistar a amiga.

Rafaela ia de encontro à Karina. As duas se abraçavam e vinham, de braços dados, de encontro ao grupo. Meu Deus, como descrever Karina naquela tarde?

Karina, bronzeadíssima, vestia um short verde guerra e uma camisetinha branca, bem leve. Seus cabelos lisos e loiros estavam presos numa trança que se portava sobre o seio esquerdo. O que mais me chamava atenção era a rigidez de suas coxas, que não eram exageradamente grossas, mas apenas grossas e lindas. Ora, Karina já era uma deusa sob o ridículo uniforme escolar, o que esperávamos?

Bianca, Laura, Gabi e Elaine emudeceram diante do nosso emudecer. Karina, ali, daquele jeito, era como uma miragem para nós.

Já era de se esperar que toda a atenção dos meninos se voltasse para Karina. E não foi diferente.

Com Pedro, Flávio e Bruno bajulando Karina, era a vez de Bianca, Laura, Gabi e Elaine tratarem de dar uma volta – talvez até para estudar um pouquinho, não sei. Foi quando me senti à vontade para, finalmente, chegar à Rafaela com as minhas reais intenções.

- Rafa! – eu dizia.

- Oi.

- Eu queria... Eu queria te contar uma coisa. Eu...

- Pode falar, Marcelo.

- Aqui não. Venha, vamos dar uma volta. Eu te conto pelo caminho, pode ser?

- Ah, Marcelo, o que é? Não estou a fim de ficar andando debaixo de sol! Fala!

- Olha, Rafaela, sem essa, vai... Durante cinco anos você criou inúmeras situações, nas quais eu sempre me vi sem armas para dizer que...

- Que o quê?

- Que eu te quero!

Rafaela ficou sem ação. E eu não sabia se olhava nos olhos dela ou se esperava por uma resposta olhando para o chão. Mas lembro que preferi olhar nos olhos, porque, no fundo, estava tomado por uma curiosidade imensa: a de saber como reagiria Rafaela diante de uma declaração como aquela.

- Você está falando sério, Marcelo?

- Estou.

- Eu não sei o que te dizer, porque...

- Não precisa me dizer nada agora, se não quiser. Aguardei cinco anos... Acho que posso aguardar mais alguns dias. Só não quero te perder de vista, Rafaela.

- OK...

A verdadeira menina

O resultado final foi colocado no mural e logo constatamos que todos nós havíamos sido, finalmente, aprovados. A felicidade foi geral, porque ninguém ali gostaria de passar mais um ano naquela escola; pensávamos em faculdade etc...

Em meio àquele misto de alívio e saudade precoce, abraçávamos uns aos outros, mas, nitidamente, evitávamos, Rafaela e eu, de nos abraçarmos, como se, calculadamente, nos programássemos para nos abraçar por último.

Quando não havia mais quem abraçar, fui em direção à Rafaela, que parecia esperar mais do que um simples abraço da minha parte. “Beijo ou não beijo? Beijo ou não beijo?”, eu pensava enquanto me aproximava.

Antes do abraço, acariciei de leve seu rosto, fui ao seu ouvido e:

- Vou ficar esperando o seu “sim”.

- Então – ela dizia –, sim.

Seus lábios ainda faziam aquele aceite quando os meus, afoitos, os tocaram, proporcionando a todos uma imagem inédita: o beijo de Rafaela.

A partir daquele momento, foi como se quiséssemos recuperar os cinco anos de silêncio mútuo. Mútuo, sim, porque logo Rafaela me confirmaria que também, por cinco anos, esperou por um sinal meu.

O sentimento recíproco é bom demais, mas na adolescência a coisa é ainda mais forte e incontrolável. Nossos encontros eram bailados ao som da descoberta; eram intensos. Ali eu sabia que, na verdade, eu não sabia nada a respeito de Rafaela. A inocência e a infantilidade que sempre relacionei à Rafaela se desmanchavam nos beijos que trocamos nos dias seguinte, até o Natal, quando:

- Marcelo – dizia-me Rafaela, pelo telefone, em pleno dia vinte e quatro –, eu quero te dar um presente. Pode vir aqui em casa agora?

- Mas agora? São duas da tarde ainda!

- É que meu presente pode, digamos, se desfazer, se não for dado agora...

- Bem, se você diz... Estou indo para aí.

Fui pelo caminho tentando decifrar o que de fato poderia se “desfazer”, mas sem sucesso.

Cheguei ao portão do prédio de Rafaela e toquei o interfone. Falei com o porteiro, que logo me deu permissão para subir.

Chegando à porta de Rafaela, toquei a campainha conforme ela me pedira: dois toques curtos.

- Entre! – ela dizia lá de dentro.

Entrei. E encontrei Rafaela a atingir o ápice do ineditismo; estava completamente nua. O pior é que Rafaela sabia fazer tudo aquilo, e parecia muito experiente ao dizer:

- Mas um pouquinho e o seu presente, ó, “puft”, já era, Marcelo...

- Mas... o que é o presente em si, Rafa?

E Rafaela, então, respondia, deixando bem claro o quanto eu a desconhecia:

- Meu tesão, Marcelo!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

EU TENHO MEDO DESTE NATAL

- Não acredito, Daiane! Mais um Natal na casa da sua mãe? – eu disse desanimado.

O problema não era a casa de minha “sogra” em si, muito pelo contrário; um palácio com piscina, churrasqueira e até um campinho de futebol, desses de se jogar quatro na linha e um no gol, maior barato! O problema todo estava no fato de, novamente, ter de encontrar os olhos da prima de minha namorada, a Luciana.

Luciana não é nem de longe mais bonita que Daiane. Enquanto minha namorada exibe um corpitcho bronzeado e de medidas perfeitas, Luciana anda aos estalar dos ossos que lhe sobressaltam; magrela, coitadinha, Luciana precisa da identidade para provar seus vinte e um anos – aparenta dezesseis, no máximo, por conta da ausência de, digamos, atributos.

Vamos fazer um comparativo? Daiane: estatura mediana, morena, cabelos longos na cor do mel, na altura do meio das costas. Olhos negros num rosto de traços delicados. Seios e bumbum rijos, um abdômen hipnotizador e um par de pernas que, meu Deus... Luciana: estatura mediana também, branca como um papel, cabelos negros e longos, na altura da cintura. Rosto sardento, mas de traços finos. Seios e bumbum pequeninos de dar pena. Mas os olhos... Ah, os olhos de Luciana...

Grandes, amendoados e claros, os olhos de Luciana são – mais ainda que o abdômen de Daiane – também hipnotizadores. Por vezes me peguei paralisado frente àqueles olhos; não tem como! Palavra! É como se Deus tivesse deixado o capricho todo voltado naquele par de olhos e se esquecesse do restante de Luciana.

No Natal passado, fui flagrado três vezes por Daiane.

- O que tanto você olha para a Luciana, Saulo? – perguntou-me Daiane já no terceiro flagrante.

- De novo com essa história, Daiane? Que coisa!

- “Que coisa” é uma ova! Já é a quarta...

- Terceira!

- Que seja! Já é a terceira vez que te pego olhando para essa magrela! O que é que tá rolando?

Eu sentia nas palavras de Daiane uma convicção numa espécie de superioridade de beleza em relação à sua prima. Era como se fosse, segundo Daiane, impossível um homem trocar o “conjunto da obra” por um par de olhos. Realmente é impossível, você deve estar pensando. Mas, diante de Luciana, você treme na base.

- Vamos parar com esse assunto, Daiane! – eu dizia. – Nem falo direito com a sua prima! Está viajando com essa paranóia.

- Paranóia, né, Saulo? Paranóia? Na próxima vez que eu o vir fitando Luciana, Saulo, eu faço um escândalo, ouviu?

- OK, Daiane... OK...

Mas o pior ainda estava por vir... eu havia tirado a Luciana no amigo oculto da família. Como não olhar nos olhos de um amigo oculto? Confesso que por muito pouco não troquei os presentes com o Guilherme, irmão de Daiane – um grande amigo, que me entenderia.

Na hora de entregar o meu presente, tive que, como todos os participantes da brincadeira, dar pistas sobre o meu amigo oculto.

- Bem – eu começava –, não tenho muito a dizer sobre meu amigo oculto. A gente pouco se conhece e...

- O seu amigo oculto é bonito, Saulo? – perguntava um tio chato de Daiane, o Alberto.

- Bem – eu pensava no que ia falar –, posso dizer que sim, por que não, né? E...

- O que o seu amigo oculto tem de mais bonito, Saulo? – perguntava agora a chata da minha “sogra”, no mínimo achando ser ela.

- Acho que...

- Fala, Saulo! Fala logo! – insistiam.

- Pode falar, amor, que vergonha é essa? – dizia Daiane – É uma brincadeira.

- Bem... Eu acho que... Os olhos! Sim – agora com entusiasmo –, os olhos do meu amigo oculto são lindos! Lindos demais!

- Hummm – diziam, em uníssono.

- Então diga logo quem é, Saulo! – dizia minha sogra.

- É a Luciana!

Eu entregava o presente à Luciana ao mesmo tempo em que notava duas coisas engraçadas ocorrendo ali, diante de minha declaração sobre os olhos daquela menina: o desapontamento de Daiane e o silêncio daqueles familiares. Senti que ninguém via a beleza que eu via nos olhos de Luciana. E isso se confirmou mais tarde, quando todos dormiam e eu contemplava, acompanhado de um copo de vinho, o bailar das águas daquela piscina, no momento tão calmas.

- Acordado ainda, menino? – dizia-me Luciana a “surgir”.

- Sim. Perdi o sono. E você?

- Não consigo dormir.

- Entendo. Quer vinho? Ajuda...

- Quero – ela sorria.

Servi a ela um copo.

- Sabe, Saulo – ela dizia – não consegui dormir porque não paro de pensar no que disse sobre meus olhos.

- Não gostou?

- Claro que gostei, Saulo. Nunca ninguém exaltou uma beleza minha, assim, como você fez hoje.

- Que injustiça, Luciana.

- É sério. Você foi a primeira pessoa que... que me disse algo assim.

- Disse a verdade, só isso.

Luciana olhou para os lados – a fim de constatar que estávamos realmente sozinhos – e tocou-me os lábios com um beijinho rápido.

- Feliz Natal, Saulo – ela dizia, sumindo para dentro daquela casa.

Aquele momento ficou na minha memória. Marcou.

No dia seguinte, os olhares meu e de Luciana se encontraram por diversas vezes. Daiane não tocou no fato do amigo oculto e de oculto mesmo ficou aquele beijo que somente os copos de vinho testemunharam.

Tenho medo do que possa acontecer neste Natal.