quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

UM NATAL PARA LUANA

Dezembro já batera à porta. O casal Marcos e Patrícia, numa das raras folga no escritório, conversava sobre o que deveria fazer naquele Natal. Aquela família, que incluía ainda a jovem Luana, filha de Marcos, se acostumara a Natais sempre muito corridos por conta da administração dos negócios – dois supermercados. “Nessa época do ano, as coisas fervem”, dizia Marcos. Sendo assim, em casa, aquela data passava quase que “em branco”.

Marcos lembrava que no último Natal Luana passara com os tios e os primos, mas que não tinha sido uma boa ideia [vide
O Natal de Luana e Gisele]. Mas Patrícia entendia que o Natal deste ano, pelo menos para Luana, deveria ser diferente. A menina perdera recentemente o primo-namorado de maneira trágica [vide Opus I], não poderia ser somada a mais tristeza, apesar de há poucos dias Luana ter demonstrado uma melhora considerável em seu estado emocional [vide A Última Despedida].

- Mesmo que trabalhemos no dia 24, Marcos. Neste Natal, deveríamos dar uma atenção especial à Luana. Essa época do ano é terrível para os sentimentos, sabia? Tive lendo que a tendência à depressão é enorme. Tenho medo da menina ter uma recaída, Marcos.

- Acho que você tem razão. Que tal começarmos de hoje, Patrícia? Uma árvore! Que tal? Compraremos uma árvore e a enfeitaremos os três juntos; Luana, você e eu. O que acha?

- Excelente ideia!

Durante a hora do almoço, Marcos e Patrícia saíram à busca de uma árvore de Natal. Compraram a maior que puderam, a fim de que o tempo preciso para enfeitá-la fosse o maior possível.

- Acho que essa está boa, Marcos! – dizia Patrícia entusiasmada.

- Será essa!

À noite, ao chegarem em casa, Luana e sua gatinha de estimação Mimi assistiam Celeste, a empregada, a preparar o jantar. Celeste, sempre muito bem-humorada, contava histórias de seu passado. Luana, como sempre, se divertia.

- Oi, gente! – dizia Marcos ao cruzar a porta.

- Oi, papai! Oi, Patrícia! – dizia Luana – Que caixa enorme é essa?

- Uma árvore de Natal, filha! Vamos montá-la depois do jantar?

- O que deu em vocês? O máximo que faziam eram colocar aquela arvorezinha na mesa de centro.

- Pois é – dizia Patrícia –, fazíamos. Esse Natal será diferente. Passaremos mais unidos. Que tal?

- Eu ia adorar.

- Pois será assim! – dizia Marcos.

Luana, embora recebesse bem a notícia, sorria, mas, talvez, não tanto quanto o esperado pelo casal. A verdade é que Luana se recuperava muito lentamente da perda de Rômulo. Já não permanecia na cama o dia inteiro, verdade, mas ainda se notava na menina uma saudade dolorida, que vez em quando se manifestava num fio de lágrima.

A ideia de Marcos e Patrícia com a árvore era a de descontrair Luana; fazer com que suas presenças, aos poucos, suprissem a falta de Rômulo naquele pedacinho de vida.

- Não me parece tão feliz, filha – dizia Marcos.

- Mas estou, papai. Pode ter certeza. – dizia Luana se soltando um pouco mais.

Após o jantar, como combinado entre os três, a montagem da árvore se iniciava. O mastro central, montado, media quase dois metros de altura. Luana se surpreendia ao imaginar a árvore completamente enfeitada. “Ela é enorme, papai”. Enquanto Marcos e Patrícia montavam o restante da base, Luana tratava de desembalar as bolas e todos os outros enfeites. Ao pegar uma bola de cor prata, se viu refletida. Maravilhada com a beleza do ornamento, soltou um suspiro: “Que linda...”. Marcos e Patrícia não podiam deixar de notar o comportamento de Luana, que mais parecia uma menina de cinco anos.

- Você se lembra, minha filha – dizia Marcos –, de quando você era bem pequena? Nós tínhamos uma árvore também. Mas foi um ano só que a montamos.

- Não, não me lembro, papai.

- Pois é. Você adorava.

Naquele momento, o telefone tocava. Marcos soltava as peças da árvore e pensava: “Aposto que é trabalho. Nem montar uma árvore de Natal com a minha família eu posso”.

- Alô. (...) Oi, Matheus, diga. (...) Ah! Sim, claro, eu já ia me esquecendo! (...) Pode, pode sim! Inclusive, eu tenho mesmo uns papéis aqui que eu quero que você leve junto. (...) OK! Estou te esperando. Anote o endereço...

Segundos depois:

- O que o Matheus queria, Marcos? – dizia Patrícia.

- É que amanhã, logo bem cedo, ele está indo ao litoral levar uns documentos. Sobre aquela mulher que processou o supermercado, lembra?

- Sim, lembro.

- Então. Eu esqueci de assinar a procuração. Ele vai passar aqui para que eu a assine.

- Quem é Matheus, papai? – dizia Luana.

- É um estagiário de Direito que eu admiti há alguns dias. Ele está ajudando na parte jurídica dos supermercados.

- Ah, sim.

Minutos depois, Matheus estava ao portão.

- Luana – dizia Marcos –, vai lá e abra o portão para o Matheus. Peça que ele entre e me espere aí na sala. Vou pegar uns papéis no escritório.

- OK.

Luana calçava as sandálias ao mesmo tempo em que, meio desengonçada, corria até o portão. De cabeça baixa, tentando ainda encaixar os pezinhos nas sandálias, sequer olhou o rapaz. Mas ao chegar ao portão, com os fios de cabelo embaraçados sobre o rosto, o viu.

- Calma, menina! – dizia Matheus rindo.

- Oi... – ela ria da situação – É que papai pediu que entrasse, e...

- Tu és filha do Marcos? Não sabia que ele tinha uma filha tão crescida. Ele sempre fala em “Luaninha”, “minha menininha”.

- Ora, o Papai... Entre, entre...

Matheus era um rapaz muito simpático. Ele vestia no momento um terno que lhe caía muito bem. Matheus então seguia Luana até a sala. Um pouco mais alto que Luana, o rapaz tinha os cabelos castanhos bem curtos, porém, cultivava os fios do alto, que, charmosamente, lhe caiam sobre os olhos esverdeados.

- Oi Matheus, tudo bom? – dizia Patrícia – Sente-se. O Marcos já vem.

- OK! Que árvore enorme, hein? – brincava Matheus.

- É mesmo. Vai ficar linda!

- Eu adoro montar árvores! Lá em casa, minha mãe deixa sob minha responsabilidade os enfeites natalinos.

- Hum... Que prendado! – brincava Patrícia.

Luana, já ajoelhada a separar os enfeites da árvore, sorriu, mas manteve os olhos nos enfeites.

Matheus, enquanto aguardava Marcos, acabou ajudando Luana a separar as bolas. “Essas bolinhas menores, você coloca na parte de cima da árvore...”. Luana aceitava a ajuda de Matheus com breves sorrisos.

- PATRÍCIA! – gritava Marcos do escritório – AJUDE-ME A PROCURAR ESSES DOCUMENTOS... VENHA CÁ!

- JÁ VOU! Já volto, Matheus – saía de cena Patrícia.

Na sala, Matheus continuava, mesmo ainda sentado no sofá, a ajudar Luana nos enfeites. O rapaz, na verdade, não tirava os olhos do rosto da menina, que por sua vez, não o olhava. Até que:

- Quantos anos você tem, Luana?

- Dezessete...

Matheus se assustava, pois a graciosidade rara de Luana não condizia com a sua idade. De fato o rapaz estava longe de, ali, naquele momento, constatar a maturidade daquela menina (que também não condizia com os dezessete anos), mas, diante do que tinha em vista, era apenas uma menina. Mas uma menina apaixonante.

- E você? – perguntava Luana.

- Tenho vinte e um.

- Está gostando de trabalhar com meu pai?

- Muito. Estou aprendendo bastante lá. Sou estagiário, sabe como é.

- Entendo...

Nessa conversa sem muitas pretensões – pelo menos naquele momento –, os dois jovens pareciam se conhecer um pouco mais. Muito pouco, é verdade, mas o suficiente para deixar Matheus em estado de encantamento. O rapaz sorria abobalhado ao ver Luana dando muito mais atenção àquela árvore que às suas frases.

Luana vestia um short jeans cuja bainha trazia “Ramones” escrito à caneta.

- Gosta dos Ramones? – perguntava Matheus.

- Sim! Muito!

- Eu também!

Pronto. O primeiro (e tão simples) ponto em comum fazia de Matheus o cara mais esperançoso do universo – seus olhos brilhavam.

Minutos depois:

- Aqui estão, Matheus – dizia Marcos –, os documentos. Deixe-me assinar a procuração.

- Aqui.

Terminadas as burocracias. Marcos acompanha Matheus até o portão.

- Bonitinho ele, não, Luana? – dizia Patrícia.

- Não reparei.

- Ih! Essa caneta aí no chão é do Matheus, não é?

Luana a pegava e constatava que sim, por conta de seu nome gravado.

- É dele mesmo! Vou lá entregar.

Da mesma forma que na primeira vez, Luana corria a tentar encaixar os pezinhos nas sandálias. Marcos já cruzava a porta da cozinha, quando Luana quase o atropela.

- Ele esqueceu a caneta, papai.

- Ah, sim, ele ainda deve estar na rua. Corre lá, faz favor.

Luana chegava até o portão e: “MATHEUS”. Mas o rapaz já a esperava próximo à caixinha de correspondências.

- Minha caneta, não é?

- Sim... Mas... Você já estava esperando?

- Sim. Eu a esqueci de propósito, Luana.

- Ah?

Matheus pousava suas mãos sobre as de Luana e:

- Bem, eu não tive como dizer lá dentro... Eu poderia lhe roubar um beijo, se fosse um louco e não merecesse um simples olhar de sua parte, mas prefiro, pelo menos nesse nosso primeiro contato, lhe dizer que você é a coisa mais linda que eu já vi. Espero, do fundo do meu coração, que possamos nos ver mais vezes.

- ...

- Um “Feliz Natal” seu, no dia 24, me dirá tudo. Ou nada. Beijo.

Matheus lhe entregava um papel com o número de seu celular e sumia em direção à rua principal. Luana, anestesiada num misto de constatações e conflitos, apenas sorria de forma discreta.

* * *
Durante todo o dia 24 de dezembro, Marcos, Patrícia e Luana, conforme combinado, permaneceram juntos e felizes. A enorme árvore enfeitava a sala e, de certa forma, contribuía para a união daquela família. Luana se mostrava muito feliz com a presença do pai, da madrasta e de sua gatinha.

Próximo à meia-noite, Luana, que durante semanas sentia que as palavras de Matheus não lhe deixavam em “paz”, corria para o seu quarto atrás do celular para de escrever uma mensagem de Natal à Giovanna, sua melhor amiga. Ao fim, resolvia mandar mais outra mensagem.

Feliz Natal, Matheus.

Luana, ainda sem saber o que realmente acabara de fazer, abria sua janela e sorria, mas sem que nenhum vento se manifestasse em seu semblante.

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.
Mais contos sobre Luana em
LUANA, DUAS, O NATAL DE LUANA, GISELE, JANEIRO MEU, VERDADES DE LUANA, MINHA PRIMA LUANA, OPUS I e A ÚLTIMA DESPEDIDA.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

AS LEMBRANÇAS DE KARINA

Enquanto a árvore de Natal era montada, Karina sentia o fio de lágrima rolar sobre a bochecha. Procurava disfarçar o pranto mudo com sorrisos tímidos. Seus olhares ficavam voltados para os ornamentos que lotavam a pequena sala de sua casa. D. Laura, mãe de Karina, já percebera o sentimento da filha, mas ficava calada, preferia não tocar no assunto motivo de tal cena.

É que sete anos antes, Karina perdia seu pai num acidente de automóvel. Ainda uma criança, a menina recebeu a trágica notícia no momento em que ajudava a família a enfeitar um enorme pinheiro no quintal. É que Karina percebeu a correria desesperada de sua mãe e de seus irmãos mais velhos. A pequena, que segurava uma bola vermelha brilhante, assistia a tudo atônita. A alegria contagiante da família dava lugar a uma gritaria assustadora. Uma gota caía sobre o reflexo de seu rosto na bola.

De lá para cá, Karina, agora com treze anos, passa a chorar toda vez que monta uma árvore de Natal. Era impossível não lembrar dos momentos, embora poucos, que passara com o pai. Karina lembrava dos Natais anteriores à tragédia, nos quais recebia presentes de um Papai Noel falante e brincalhão – que era seu pai.

Separando as bolinhas para a árvore, Karina resolvia falar.

- Sete anos, não é, mamãe?

- Minha filha, esqueça isso. É Natal, tempo de alegria...

- Eu sei, eu me lembro de papai e...

- Eu também me lembro muito de seu pai, Karina. É inevitável. Mas pense o quão brincalhão ele era. Você acha que ele gostaria de te ver assim?

- Eu...

- Então? Dê-me uma bolinha azul, anda.

- Aqui.

Karina enxugava as lágrimas. D. Laura. sorria ao ver os dentes alvíssimos da filha.

- Está tão bonita a minha filha! – dizia D. Laura a fim de quebrar logo aquele clima.

E aquela mãe, apesar de levar a fama de coruja, não mentia. Karina tinha os cabelos loiros na altura do meio das costas. Eles eram tão lisos que para qualquer enfeite se manter sobre eles era um custo. Quando D. Laura lhe fazia tranças, a menina virava uma sensação; não tinha quem não comentasse. “Que menina mais linda!”, diziam. E quando sorria? Era angelical a forma como seus olhos verdes evidenciavam o brilho de sua dentição perfeita. Quando de costas, devido à sua estatura elevada em relação à idade, Karina mais parecia uma moça. Mas bastava ela mostrar o rostinho de anjo para se constatar estar frente a uma criança, na verdade. Enfim, uma menina “de comercial de TV”. Os três irmãos de Karina, todos já casados, morriam de ciúmes da pequena, que sequer beijara alguém, coitadinha. Tudo o que ela fazia era estudar, ajudar a mãe em alguns afazeres e ler. Karina lia bastante, cerca de um livro por semana, desde que se alfabetizou.

Naquele instante, um desses irmãos de Karina, o Paulo, o mais novo dos três, telefonava para a mãe.

- Mãe?

- Oi, Paulo, tudo bom?

- Sim, tudo ótimo. E vocês, tudo bem?

- Sim, tudo bem. Karina está aqui me ajudando com a árvore de Natal.

- Hum... Chorou?

- Um pouquinho, não é, Paulo? Como sempre. Mas já passou.

- Que bom. Pergunte se ela não quer ir ao shopping comigo e com Daniele. Eu passo aí em vinte minutos.

Daniele era a esposa de Paulo.

- Karina, minha filha – dizia D. Laura –, quer ir ao shopping com Paulo e Daniele?

- Que horas?

- Em vinte minutos.

- Você termina a árvore sozinha, mamãe?

- Claro. Deixe comigo.

* * *
Conforme o combinado, Paulo e a esposa buscavam Karina. Pelo caminho, o casal elogiava a roupa da menina, que se encabulava. Paulo era um irmão muito divertido, assim como fora o pai. Dos irmãos, Paulo era o que mais atenção cedia à Karina, que, logicamente, adorava sua companhia.

Nos corredores iluminados do shopping, os três conversavam, faziam compras e tomavam sorvetes. Foi quando Paulo, em meio aquela alegria toda, disse:

- Está feliz, não é, Karina?

- Sim! Adoro vocês! Adoro a companhia de vocês!

- Minha mãe me disse que você estava triste...

- Não estava triste, Paulo. Ela te disse isso?

- Sim. Disse que você chorou na montagem da árvore, como em todos os anos. Não foi?

Karina cessou o caminhar, respirou fundo, lambeu o sorvete de forma despreocupada e:

- Sim, chorei, irmão. Mas se você me trouxe ao shopping a fim de que eu esquecesse o papai, cometeu um grande erro. Para mim, é muito prazeroso lembrar dele. Ao contrário do que pensam você e mamãe, eu adoro montar a árvore de Natal.

- ...

- Olha! Que vestido lindo, irmão! Ali, naquela loja!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

PAPAI NOEL ME DEU UM QUEBRA-CABEÇA

Dezembro já se encontrava pela metade, o que significava que pelo menos boa parte dos jovens e crianças já estava de férias. Possuída por todos aqueles sentimentos de final de ano, a mocidade enfeitava as praças, as ruas, os shoppings. Os sorrisos, os cabelos a voar, as roupas coloridas, tudo se movia numa harmonia que até nós adultos, que ainda estávamos trabalhando a todo vapor, nos sentíamos contagiados.

Pode parecer pequeno, mas o mais bacana dessa época, para mim, é poder abrir a janela do escritório e observar como tudo parece estar mais vivo que nos outros onze meses. Sim, nós temos o carnaval, mas não é a mesma coisa. Embora os outdoors apelem por estéticas de um Natal que não é o nosso, fazendo sempre o uso de figuras que remetem ao frio e de pessoas com a pele tão branca quanto os flocos de neve também explorados, o bronzeado das pessoas que passam apressadas e as pernas e costas nuas são o que predominam e o que fazem todo esse clima me tomar o peito.

Em minha hora de almoço, fui até a uma praça, aqui no Centro mesmo, assistir a uma cantata de Natal. As cadeiras enfileiradas acomodavam algumas poucas pessoas, que como eu estavam ansiosas pela pequena apresentação. Fazia um calor absurdo. As roupas brancas das crianças refletiam como espelhos. O suor que escorria daquelas testas causavam um estranho contraste ao tentarmos comparar tal cena àquelas tantas vezes vistas nos filmes americanos. Um menino chorava e reclamava.

- Essa roupa pinica! – dizia ele aos prantos.

Uma das professoras ria e ao mesmo tempo tentava acalmá-lo. Era uma mulher linda. Apesar do par de óculos e do aparelho nos dentes, aquela professora foi capaz de me chamar muito a atenção. O jeito como ela tratava as crianças, sempre com um bom humor invejável, fez com que eu sentisse vontade de ser um de seus alunos, pelo menos por alguns minutos. Foi quando avistei em meio às crianças o meu afilhado, o Lucas. Virei a cabeça e logo avistei Valéria, minha irmã.

- Valéria! Não sabia que o Lucas cantaria!

- Não? Achei que ele tivesse te avisado, Vladimir!

- Não. Vim aqui por acaso.

- Esse menino...

Nos acomodamos e conversamos um pouco sobre aquelas coisas que os irmãos conversam quando se encontram: a saúde dos pais etc.

- Valéria, aquela moça ali de vermelho é a professora do Lucas?

- É sim, a Paulinha. Ela é um amor!

- Estou vendo.

Eu a respondi de forma tão tola que:

- Ih... Já sei! Achou ela “uma gracinha”, não foi?

- Ah... E não é?

- Verdade. Ela é uma gracinha mesmo. Mas está noiva, meu irmão.

- Uma pena.

Lógico! Uma professorinha como a “Paulinha” iria estar sozinha por quê? Dos óculos e do aparelho eu já disse, mas não descrevi o restante. A Paulinha tinha os cabelos na altura do pescoço, negros, e que brilhavam como espelhos, diga-se de passagem. A pele estava levemente bronzeada, o que gerava uma combinação perfeita com as cores de sua roupa – uma calça jeans escura bem justa, uma blusa vermelha de botões e uma sandália na mesma cor da blusa.

Pouco antes das crianças subirem para o pequeno palanque montado ao centro da praça, a professorinha veio até Valéria.

- Ih, ela está vindo até nós – eu dizia.

- Comporte-se, Vladimir, deve ser para falar algo sobre o Lucas, ora.

- Espero que não.

- Palhaço!

A Paulinha chegava até nós. Devo dizer que quanto mais ela se aproximava, mais admirado eu ficava. É que eu tinha sempre o receio de que minha miopia me enganasse em relação à beleza das mulheres. Mas não tinha engano. Ela era realmente linda. O seu falar adocicado a deixava ainda mais atraente.

- Valéria! Tudo bom? – disse a professorinha.

- Tudo ótimo! Como está o Lucas? Nervoso?

- Um pouco, mas é normal.

- É, ele nem dormiu essa noite, coitadinho.

- Imagino.

- Ah! Esse aqui é o meu irmão. Vladimir, Paulinha. Paulinha, Vladimir.

- Encantado! – eu disse mais que encantado.

- Prazer – disse ela sem demonstrar o mesmo.

Apertamos nossas mãos.

- Valéria – continuava Paulinha –, queria lhe entregar o convite de meu casamento. Será dia 15 de janeiro.

- Ah! Que maravilha, Paulinha! Estarei lá, com certeza!

Elas conversaram mais um pouco e logo Paulinha voltava para o seu trabalho com as crianças.

- Posso te perguntar uma coisa, irmã? – eu disse.

- Pode, irmão.

- Você acha que um dia encontrarei um grande amor?

- Ora, por que não?

- É que quando eu acho que encontrei, descubro que alguém o encontrou primeiro. É sempre assim.

Valéria me olhou como quem pensa: “Meu irmão já está beirando os quarenta e cinco anos. Acho que não tem mais jeito. A ingenuidade o atrapalha tanto”.

Naquele dia, fui para casa carregando Paulinha no pensamento. É como se eu tivesse posse de somente duas peças daquele quebra-cabeça, que eram o visual e o falar de Paulinha. Todas as outras peças, segundo minha irmã, eu só teria acesso depois de a conhecer melhor.

Besteira minha tentar buscar as outras peças. Farei como sempre faço: num cantinho especial do coração, guardarei as duas peças junto às outras tantas encontradas.

No Natal, tive o prazer de, na casa de minha irmã, atender um telefonema de Paulinha.

- A Valéria está? – dizia-me ela com aquela voz inconfundível.

- Não, ela deu uma saída, mas já volta. Eu sou o irmão dela, Paulinha. Tudo bom?

- Ah, sim! Tudo! Bom, eu ligo mais tarde se der. É que tomarei um avião em instantes. Mas de qualquer forma, um feliz Natal para vocês, OK?

- Para você também, Paulinha.

E foi só.

domingo, 6 de dezembro de 2009

O DIA DO NASCIMENTO

Naquele ano, eu passaria o Natal sozinho. É que eu estava em São Paulo a trabalho, e minha família é toda do Rio. Não tive escolha. Estava fotografando umas modelos para uma revista que já deveria estar pronta em meado de dezembro. Mas estava sendo bom para mim, já que eu estava recém separado de minha esposa, e esse clima todo de fim de ano costuma abalar minhas estruturas sentimentais – a distância veio bem a calhar.

No dia 24, fiz algumas fotos durante a manhã, mas às onze horas dispensei toda a equipe e fui direto para o hotel. Diferentemente do Rio, eu acho, em São Paulo choveu e fez até frio. Por isso, passei a tarde assistindo TV e dando goladas num vinho que comprara pelo caminho. A TV, claro, estava um porre. Desenhos bíblicos, filmes com temas natalinos, programas de auditório em versões especiais... Senti falta foi do cheiro de rabanada, que sempre tomava minha casa nos tempos em que morava com mamãe.

Anoiteceu. Como eu não estava a fim de passar o Natal na cama de um hotel, fui para a rua em busca de alguma alma solitária como a minha. Uma das modelos chegou a me convidar para dar um pulo na casa dos pais dela, mas achei que seria mais xarope ainda; inventei uma enxaqueca.

Passei por um bar pouco movimentado. Havia alguns casais e algumas pessoas sozinhas também. Eu entrei e logo avistei um bumbum pequenino a rebolar. A menina caminhava em minha direção; vinha do balcão com duas cervejas nas mãos.

- Chegou na hora certa, cara – ela dizia.

- Hora certa para quê?

- Para me ajudar com isso aqui – ela se referia às bebidas.

- OK.

Sentamos então em uma mesa que acabava de esvaziar. Numa noite de Natal, o que eu perguntaria àquela menina, a fim de começar um papo? O óbvio, claro:

- Por que passas o Natal sozinha?

- Porque sou sozinha. E na verdade prefiro assim.

- Então, deixe eu me retirar...

- Não, fique aí, cara. Eu me refiro à família. Bando de hipócritas.

- Algo de errado com sua família?

- Com todas as famílias, não? Elas ficam alienadas com todo esse comércio do Natal, se sentem forçadas a agirem de forma “agradável” com você. Como se nós devêssemos ser bons uns com os outros somente em dezembro.

- A minha família não é assim. Não estou com eles porque estou aqui a trabalho, mas...

- Carioca?

- Sim. Como soube?

- O excesso de “S”.

Começava então ali uma discussão na qual, de um lado, eu lutava para prová-la de que ainda existia amor entre os seres humanos, e, do outro lado, ela insistia em dizer que o mundo estava destinado a sumir em meio à guerra.

A conversa foi ficando cada vez mais fervorosa. Ela não aceitava o meu ponto de vista e, entre um cigarro e outro, me chamava de alienado.

- O que você faz da vida? – ela perguntava.

- Sou fotógrafo.

- Sabia! Você contribui para toda essa mentira natalina!

- Sim, talvez, mas é o meu trabalho, ora! Fotografo modelos lindas! Inclusive, você poderia ingressar nessa carreira!

- De fotógrafa?

- Não! De modelo!

Ela era uma menina linda! Magra, alta, uns vinte e três anos, no máximo. Cabelos maltratados e pintados de vinho, sim, mas isso tinha até como corrigir. Suas pernas eram longas e bem torneadas; estavam escondidas numa calça jeans bem justa, mas consigo perceber uma estrela até coberta em chamas. Ela ainda calçava um tênis e vestia uma simples blusa de malha.

- Você está me chamando de... – ela dizia com raiva.

- De linda, ora!

Ela então segurou a garrafa no intuito de me acertar a cabeça. Segurei sua mão a tempo e lhe disse:

- Olha, você pode me acertar essa garrafa na testa e continuar com a sua teoria de guerra entre os povos. Mas se preferir, você pode me dar um beijo e, dessa forma, concordar comigo que ainda exista amor no fim do frasco.

Ela me olhou com olhos de... Ah, se eu tivesse com a câmera! Olhou-me com olhos de paixão! Aquela menina de semblante de poucos amigos não ouvia um pedido daquele havia anos, no mínimo. Convidou-me para conversar porque viu na minha blusa da Lacoste um distintivo de alienação. Mas suas palavras de ódio não foram suficientes.

No dia 25 de dezembro daquele ano, nua em minha cama, nascia uma nova menina; não uma salvadora, como Jesus, mas uma salva!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

TEMPORADA DE DEZEMBRO

Durante todo o ano, eu fico cercado por um volume enorme de notas fiscais, telefones frenéticos... É que na empresa de transportes na qual trabalho as tarefas são mal divididas. Dessa forma, o que seria prático para duas pessoas resolverem se torna extremamente difícil para apenas uma. É um trabalho que me consome muito, de janeiro a novembro.

Sempre no mês de dezembro, mais precisamente a partir do dia 2, entro de férias. Mas como nunca gostei de ficar sem ter o que fazer, me junto a dois amigos, o Beto e o Jonas, que, coincidentemente, também tiram férias no último mês do ano, formamos uma banda, a Jazz Christmas, e entramos numa curta temporada num bar de um terceiro amigo meu, o Luizão. Há uns seis anos que fazemos isso.

Eu poderia falar aqui da qualidade de nosso repertório – que procura apresentar temas natalinos no formato jazz –, da quantidade de whisky que ingerimos durante todo o mês doze, ou até mesmo das gargalhadas que damos sempre que erramos algum tema. Mas preciso contar sobre uma pessoa muito especial, que durante os seis anos em que a Jazz Christmas se apresenta não perde uma nota sequer. O nome dela é Mônica Lisboa.

Mônica, quando começou a frequentar os nossos shows, era ainda uma menina, tinha seus dezessete anos, talvez. Sempre acompanhada de uma amiga que carregava o tédio nos olhos, Mônica se sentava na primeira mesa; e ali ficava a cantarolar todos os temas – eu podia notar seus lábios se mexendo em sincronia com minha guitarra.

Quando ela apareceu pela primeira vez, eu já tinha os meus vinte e sete anos. Beto e Jonas me colocavam certa “pilha” para que eu me aproximasse da jovem. Não podia! Embora solteiro, via nos nossos dez anos de diferença um abismo enorme. Sentia-me mal com os conselhos dos rapazes. Como já dito, eu calculava uns dezessete anos para ela, mas Mônica poderia ter ainda menos.

- Gente, ela gosta de jazz! Só isso! – eu dizia.

- Não! – dizia-me Beto – Ela gosta é de você!

- Besteira! Uma menina!

- Meninas viram mulheres, Rodrigo, sabia disso? – dizia-me agora o Jonas.

- OK! Quando ela virar uma mulher, eu penso no assunto! Agora, vamos tocar!

A verdade é que, todo ano, quando me deparava com aquele bar totalmente decorado com enfeites de Natal, antes mesmo dos temas que tocaríamos mais tarde, os olhos de Mônica se faziam presentes em meus pensamentos. Eu só sabia o nome dela porque, na primeira noite do Jazz Christmas, há seis anos, ela veio até a mim e se apresentou. Depois disso, apenas sorrisos e olhares; ela na mesa e eu no palco.

No ano passado, a Mônica, já com seus 22 anos, estava em sua mesa a nos assistir, como sempre. A diferença é que, ao invés de uma menina – que de certa forma já me criava certo desconforto –, havia ali uma linda mulher. Seus olhares já não vinham mais seguidos daqueles sorrisos infantis e nem daquela mão a apoiar o queixo abobalhado. Seus olhares tinham objetivos; eram penetrantes e convidativos.

Quando eu me preparava para tocar “Here Comes Santa Claus”, o Beto saltou da bateria e foi até o microfone que ficava ao centro do palco.

- Gente, gente! Para o próximo tema, “Here Comes Santa Claus”, gostaríamos de chamar ao palco Mônica Lisboa!

A menina, assustada, levou a mão à boca; não esperava pelo convite. Na verdade ninguém ali esperava.

- Ficou louco? – eu disse ao Beto.

- Louco você vai ficar quando ouvir a voz dessa mulher, Rodrigo! Vai por mim!

Mônica, ainda sem entender, subiu ao palco.

A verdade é que Mônica Lisboa já era considerada um fenômeno no bairro, e eu nem sabia. Ela já se apresentava inclusive no Jazz Bar, acompanhada pelo excelentíssimo guitarrista Alfredo Ramos. O excesso de trabalho por várias vezes nos distancia das coisas boas que acontecem ao nosso redor.

Preciso dizer que Mônica cantou “Here Comes Santa Claus” divinamente? Eu, boquiaberto, parei de tocar na metade da música; deixei a harmonia por conta do órgão de Jonas. Ela conseguiu arrancar pelo menos dois minutos ininterruptos de aplausos – sem contar os litros de saliva que de mim escorreram.

Depois disso, ela voltou à sua mesa e assistiu ao restante do show. Mas a bagunça já fora feita; minha concentração fora para o brejo. Eu estava ali completamente apaixonado pela voz e pela alma de Mônica, mas segui a apresentação.

* * *
Ao fim, fui até Mônica, antes que ela se retirasse do bar.

- Mônica!

- Sim!

- Obrigado pela “canja”. Foi magnífica!

- Eu que agradeço! Realizei um sonho!

- Que sonho? Sonhava em tocar com a gente?

- Sonhava em tocar com você!

A frase me vinha como uma flecha, bem no peito.

- Fico feliz de... – eu gaguejava.

Mônica me interrompeu tocando meus lábios com os seus.

- Para onde você vai? É Natal, e... – eu dizia depois do beijo.

- Para minha casa, ora! Meus pais me esperam.

- Mas... Eu te esperei por seis anos...

- Não! EU te esperei por seis anos!

- Amanhã, se não estiver em família, podemos almoçar, que tal?

- Claro!

- Pode ser aqui mesmo?

- Claro!

- Às 12h, então!

- Às 12h!

- Feliz Natal, então!

- Já está sendo... Feliz Natal para você também – ela dizia a sumir pela porta do bar.

Naquela noite, diante de tantas emoções, não dormi. Fiquei, talvez, a esperar a chegada de Papai Noel. Porque voltei ali a ser criança com o beijo de Mônica. E ela cantando “Here Comes Santa Claus”, meu Deus!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

PRESENTE

- E onde eles moram? – eu perguntava à Ana com lágrimas nos olhos.

Ana passaria o Natal na casa de seus avós, em Minas Gerais. Tudo bem, se nosso namoro não estivesse num misto de paixão incendiária e tesão adolescente. Eu só via Ana ao meu redor; da chaminé da fábrica à flor do meu jardim, tudo era Ana. Eu não conseguia me concentrar em absolutamente nada. E saber que passaria duas semanas sem os beijos de Ana me fazia preferir a morte. Juro!

A Ana possuía uma presença em minha alma que era possível senti-la à distância. Mas eu tinha certeza de que não estava disposto a sentir tal presença estando ela em Minas Gerais, mesmo que por míseros quinze dias; eu não aguentaria.

Os seus cabelos, sempre soltos, eram negros, lisos e escorriam até a altura dos ombros, que por sua vez mostravam uma pele morena clara e coberta de pintinhas. O rosto de Ana possuía beleza rara. Não que ela fosse uma miss, mas suas expressões faciais demonstravam uma personalidade tão apaixonante, que a busca pelo desvendamento de seu íntimo se tornava um objetivo cego dos seres que a conhecia.

Pode parecer exagero toda essa descrição sobre Ana, mas, acredite, as palavras se tornam falhas diante de tantas qualidades. Sentia que meu coração só batia de verdade ao lado dela. Enfim, eu estava perdidamente apaixonado e louco por Ana – o auge de tudo de mais belo que já sentira em minha vida.

- Quinze dias, Ana? – eu perguntava.

- Infelizmente... – respondia-me Ana com seu lábio inferior à frente do superior; uma espécie de “biquinho”.

Era incrível como seus dezoito anos se dividiam perfeitamente entre a inocência bela de uma menina e a sensualidade avassaladora de uma mulher. Eu estava em suas mãos. Essa era a verdade.

- Seus pais pensariam na hipótese de eu... ir junto?

- Jamais, Gabriel. Você sabe que nem a favor de nosso namoro eles são!

- Entendi... Na certa querem mais é que você se apaixone por um mineiro rico.

- Isso é verdade...

- Ah?!

O quê? Ela acabava de concordar com o fato de seus pais estarem lutando para a nossa separação. O reconhecimento aparentemente ingênuo de Ana me fez parar e pensar por alguns segundos. Até que:

- E você acha isso provável? – eu perguntava – Você se apaixonando por outro homem?

- A gente nunca sabe, não é? Eu não quero, mas... – respondia-me fria, mas não menos doce.

- Tudo bem. Eu confio em você! – eu dizia.

- Que bom, Gabriel!

- E quando irão?

- Amanhã à noite.

- OK.

* * *
Como combinado, Ana viajava com os pais para Minas Gerais. Deixava-me com a certeza de somente vê-la no dia 2 de janeiro. Seriam os piores quinze dias de minha vida, mas eu estava disposto a aguentar. Aguentaria porque a amava da forma mais louca e cega possível.

Durante os quatro primeiros dias de sua ausência nós nos falamos bastante, sempre pela manhã, ao telefone. Ela me dizia o quanto estava sendo difícil aguentar nossa distância; chegou até a chorar, no terceiro dia, me lembro.

No quinto dia, estranhamente, Ana não me telefonara. No sexto dia, completamente sem saber o que fazer – tamanha doença romântica que tomava meu peito –, apenas esperei. À noite, o telefone tocava. Era o pai de Ana.

- Gabriel? Podemos falar com a nossa filha? Sabemos que ela está aí!

- Como? Não estou entendendo!

- Não se faça de imbecil, Gabriel! Quero falar com minha filha, chame-a!

- Senhor, ela não está aqui! Ontem, inclusive, ela não me telefonou.

- Rapaz, você me escute bem! A Ana sumiu daqui, creio que na noite de ontem! Deixou um bilhete dizendo que não aguentava mais de saudades suas e que estava voltando para o Rio. Que história é essa, rapaz?

- Eu não sei de nada, senhor! Acredite em mim! Ela não me falou nada sobre voltar para o Rio!

Um silêncio terrível tomou a conversa de repente.

- OK! – ele desligava o telefone na minha cara.

Os dias foram passando e eu não obtinha notícias de Ana. Não tinha noção do que estava acontecendo, mas algo me dizia que não era nada bom. O jeito foi chorar e esquecer que o mundo existia. Pelo menos até o dia 2 de janeiro, quando procuraria os pais de Ana na casa deles.

No dia 2, chegando lá, encontro uma família tomada por um luto furioso. Isso porque Ana teria tomado um ônibus para o Rio, mas o mesmo se envolvera num terrível acidente, deixando ela e mais dez vítimas fatais. Os pais de Ana já estavam no Rio antes mesmo do Ano Novo. O corpo de Ana, já cremado – conforme ela mesma vivia pedindo –, sequer pude ver.

Por conta disso, Natal e Ano Novo, para mim, não se comemora mais. Nessa época do ano, é como se eu voltasse àquele ano e vivesse todo aquele sofrimento novamente. Mas uma coisa eu nunca deixei de sentir, um minuto sequer: sua presença em minha alma.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

EU ESTOU ÓTIMO! E VOCÊ?

Sexta-feira. Uma semana antes, eu havia recebido um convite para uma festa de despedida na casa de uma amiga de longa data, a Ruth. Publicitária de mão cheia, Ruth estava de malas prontas para uma vida profissional bem sucedida na Espanha. A festa teria tudo para ser ótima, um misto de risos e lágrimas. Mas toda confraternização que tem como objetivo reunir velhos amigos de faculdade tem uma grande porcentagem de chance de não ser nada agradável. É que acaba sempre se tornando uma briga de egos, uma enfadonha roda onde as vantagens e as histórias de sucesso são jogadas à espera de olhares surpresos ou suspiros ambiciosos. Isso me enjoa.

Como Ruth era uma amiga muito querida, fiz questão de ir à festa. Sim, fui à festa apenas pelo apreço. Eu não podia deixar de lhe dar um abraço, lhe desejar boa sorte. Do restante do pessoal eu esperava apenas um “e aí, como vai?”, nada mais. Já que eu não atuava na área em que me formara, estava condenado a ser alvo de todo tipo de piadinhas e “sorrisos de canto de boca” naquela festa. Por isso, pus como objetivo: ir até a casa de Ruth, lhe dar um abraço, tomar uma cerveja e vir embora para casa.

Diante de um armário lotado de roupas surradas, não tive muita escolha; peguei uma camisa de malha azul, uma calça jeans e o único tênis que me sobrara após minha demissão na loja de discos. “Posso imaginar as roupas descoladas que farão daquela festa um verdadeiro desfile de moda”, pensei. “Ah, foda-se”, disse a mim mesmo. Tomei um banho, me vesti e fui.

Chegando ao sobrado onde morava Ruth, pude vê-los na varanda do segundo andar. Todos riam bastante. Como previsto, uma imensa roda se formava em volta do Alan – o mais bem sucedido da turma –, que, pelo que consegui “pescar” da conversa, contava como teve a brilhante ideia para a campanha dos sabonetes Dove. Eu, particularmente, achava aquela campanha uma verdadeira bosta, mas...

Foi quando daquela varanda surgiu o berro: “Ali! É o Vinícius! Sobe aí, Vinícius”. Eu, tentando ser o mais discreto possível, falhei. Talvez pelo fato de meu fracasso ser ainda mais visível que o sucesso de todos eles juntos.

Subindo a escada para o segundo andar, me encontro com Ruth. Um sincero abraço trata então de atrapalhar o trânsito de pessoas às gargalhadas, que subiam e desciam todo o tempo.

- Muita sorte lá na Espanha, menina!

- Obrigada, Vinicius! Você é um amigão! Sabia que vinha!

A música estava alta e a cerveja bem gelada. Tratei de me enfiar num canto, mas a dona daquele berro da entrada, a Cida, me puxava até a varanda.

Por que ela fez aquilo? Eu não tinha nada a acrescentar naquela roda. Pior: não tinha nada a ouvir também. Aquilo tudo de certa forma me frustrava. Contar a minha história de derrota frente aos vitoriosos? Por quê? Ouvir histórias de sucesso sendo você um fracassado? Por quê?

- E aí, Vinicius – dizia o Alan –, criando muito? É só levantar o braço e contar sua experiência! Estamos ansiosos! Você sumiu, poxa!

- Não. Vocês podem continuar...

Todos riram – logicamente.

Um repentino vento frio me atingiu e me fez espirrar. Virei-me e desci para o primeiro andar. Peguei outra cerveja e dei uma volta pela casa.

- Vinicius?

Aquela voz a me chamar era familiar. Era uma voz doce. Ouvir aquele chamado me fez voltar no tempo. Débora! Lembrei antes de me virar.

- Débora!

- Como você está, menino? – ela me perguntava com certo nojo expresso no olhar.

- Indo... E você?

- Indo também.

- Criando muito?

- Ai, se eu parar eu morro, Vinicius! - ela continuava com o mesmo olhar, o que me incomodava muito – E você?

- Eu já morri.

Conversamos por alguns minutos, mas minha vontade era a de passar a noite inteira com ela. Sempre fui apaixonado pela Débora, desde o primeiro período na academia. Ela era a menina mais sincera, mais amiga, mais meiga, mais linda e mais inteligente daquela classe. Porém, minha timidez, unida à minha falta de confiança, fez a distância entre nossos lábios permanecer para sempre ideal – para uma simples conversa entre amigos.

Sozinho, sentado no sofá a observar a garrafa em minhas mãos, sou surpreendido por uma menina de uns sete anos de idade, no máximo.

- Tio!

- Oi...

- Tem uma meleca no seu nariz.

Em meio àquele amontoado de feitos mirabolantes, a frase mais sincera da noite.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A ÚLTIMA DESPEDIDA

Deitada em sua cama, de barriga para cima, aquela menina de alma dilacerada, quieta, observava o teto de seu quarto, o que representava o mais completo e mórbido vazio. Retiradas já algumas folhas do calendário preso à parede daquele cômodo triste, a dor da perda no coração de Luana não se fazia presente na mesma intensidade; mas ainda estava lá. Perder o namorado para os braços da morte de forma tão estúpida era demais para os seus dezesseis anos.

Quando a lembrança resolvia lhe pregar uma peça, seja com um sorriso ou até mesmo com a voz de Rômulo a lhe dizer palavras de beleza ímpar, Luana fechava os olhos a fim de esquecer de tudo. Mas era impossível ainda tão recentemente golpeada pelo destino cruel e sem explicação cabível. A menina rezava com o rosto afogado ao travesseiro, o que não ajudava em muita coisa, já que seu pensamento estava além de suas forças; focava em Rômulo, sim, com saudades dolorosas.

Marcos e Patrícia, pai e a madrasta de Luana, tentaram de tudo naqueles meses de pranto. Fazer a menina voltar a sorrir já não era mais por uma questão emocional, mas de saúde. Aquele corpo, antes já tão delicado e frágil, agora estava ainda mais magro, expondo o seu luto interno em ossos sobressaltados e rosto abatido. Luana, menina sempre de pouquíssimas palavras, tornava-se agora quase muda.

Patrícia resolvia subir até o quarto de Luana para mais uma tentativa.

- Luana, meu amor, está bem?

- Estou...

- Posso entrar?

- Pode...

- Não quer comer alguma coisa? Celeste preparou aquele bolo que você adora...

- Não. Estou sem fome...

- Luana! Você já se pesou essa semana? Minha filha, olha o seu braço! Você vai ficar doente desse jeito! Já se passaram três meses, e...

- Patrícia, eu só quero ficar quieta...

- Mas até quando?

- Eu não sei...

- Bem, eu telefonei para a sua amiga, a Giovanna. Pedi que ela desse um pulo aqui para ter ver, OK?

- Por que fez isso?

- Porque será bom para você! Espero que ela consiga te tirar dessa cama, eu sei lá, dar um passeio... – dizia Patrícia com os olhos cheios de lágrimas.

Luana notou o estado da madrasta e pensou no quão infantil deveria estar sendo preocupando daquela forma aqueles que a amavam. Marcos chegava ao quarto de Luana logo em seguida trazendo Giovanna.

- Filha, olha quem veio te ver!

Marcos e Patrícia deixavam Giovanna e Luana a sós.

- Luana, por favor, sai dessa cama! – dizia Giovanna.

- Giovanna, se fosse tão fácil assim!

- Mas claro que é, Luana! Você só tem dezesseis anos! Não morreu! Eu entendo a tristeza que deva estar sentindo, mas precisa lutar contra ela, não? Estás deixando a dor tomar conta de você, amiga? Está um dia lindo lá fora! Vamos dar uma volta, que tal?

- Ai, Giovanna, eu...

- Ande! Levante dessa cama! Já!

Giovanna levantava Luana pelos braços resultando num forte abraço. Giovanna não pôde deixar de notar a magreza da amiga, que por sua vez, encabulada, soltou-se do abraço.

- Vai voar no vento, hein! – brincava Giovanna.

- Não brinque... Não consigo comer quase nada...

- OK, mas você continua uma gracinha, sabia?

- Boba!

- Tome seu banho. Eu te espero aqui no quarto!

- Está bem...

Luana já ia escolhendo a roupa de qualquer maneira, mas Giovanna, notando tal desleixo, correu para ajudar; escolheu roupas de cores vivas. “Essas aqui! Veste essas”. Luana obedecia calada e seguia até o banheiro.

Do andar de baixo da casa, Marcos, Patrícia e Celeste puderam ouvir o bater de uma porta e a queda d’água do chuveiro. “Luana deve sair com Giovanna”, pensavam sorridentes.

* * *
Enfim, as meninas desciam as escadas.

- Vamos dar uma volta, gente! – dizia Giovanna aos pais de Luana.

Luana, quieta, esboçava um sorriso mínimo. Vestida com uma camiseta amarela, uma bermuda jeans e sandálias brancas, a menina aparentava pelo menos um pouco de vontade de se recuperar. Patrícia abria um sorriso imenso ao constatar que a visita de Giovanna estava funcionando.

Ao pisarem os pés na calçada, Luana se mostrou um pouco incomodada com a luminosidade do sol. Pôs então a mão sobre os olhos e disse “mas que sol é esse, meu Deus?” à Giovanna.

- Estamos em novembro, Luana! O que queria? Vamos para debaixo de uma árvore, pode ser?

- Prefiro!

As duas foram até a árvore mais próxima e se sentaram sobre a grama.

- Está sendo tão difícil, Giovanna. Sabe quando tudo parece ter perdido a graça, o sentido? Mesmo sabendo que sou muito nova para pensar dessa forma, a impressão que me dá é a de que a minha alma se foi junto com a de Rômulo; como se estivesse aqui apenas o corpo. Entende o que quero dizer?

- Entendo, amiga, claro que entendo.

Ali, as duas conversaram até que o sol guardasse os seus raios. Algumas estrelas já se faziam presentes naquele céu limpo quando um vento forte passou então a se manifestar. Luana deitava na grama e deixava que aquele sopro a tomasse por completa. “Adoro esse vento”, ela dizia. Giovanna observava que um sorriso lutava contra a tristeza da amiga; e acabava por vencê-la. Luana finalmente sorria enquanto passeava as mãos pelos braços e, principalmente, pela nuca.

- Você está sorrindo, Luana... – dizia Giovanna.

- É que esse vento me toca como se fosse o Rômulo. Sempre o associo à presença de Rômulo... Por várias vezes abri a janela de meu quarto e, ao pensar nele, esse vento vem e me acaricia.

- E isso te faz bem?

- Muito... Mas é um bem instantâneo e que sempre precede um sofrimento sem igual. Por isso sei que devo esquecê-lo.

No momento em que o verbo esquecer é dito por Luana, aquele vento, de forma súbita, se vai. Os olhos puxados de Luana se transformam então em duas bolas imensas. Um vazio lhe toma o peito como se tivesse vivido ali, naquele momento, a última das despedidas; o último adeus de Rômulo. Giovanna observava calada, mas resolveu cortar:

- Vamos entrar, Luana?

- Sim... Sinto-me melhor. Bem melhor.

- Que bom!

Como se virassem pesada página na vida de Luana, as duas caminhavam para casa. Giovanna, na sua condição de amiga mais velha, beijava a testa de Luana e lhe abraçava de forma acolhedora.

- Dorme aqui essa noite, Giovanna? Amanhã é domingo mesmo... – dizia Luana a sorrir.

- Claro, claro...

* * *

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MENTIRA

Eu estava procurando um songbook do João Bosco e, por entre as prateleiras da estante, pude ver seu tórax coberto de pintinhas. Ela usava um vestido rosa bem claro com uma singela fita em laço acima dos seios. Foi tudo o que pude ver naquele primeiro momento. O interesse pelos acordes do João se desmanchou em minha mente. Eu precisava ir atrás daquela menina, ou pelo menos daquele tórax e daquele vestido.

Dei a volta na estante a fim de me encontrar com o restante daquela visão. Entre um passo e outro pude imaginar seus olhos, sua boca, seu cabelo e até sua voz. “Ela deve falar bem manso” eu pensava, mas com certeza essa parte da imaginação estava sendo influenciada pela quietude daquele ambiente.

Bem vagarosamente, cheguei a um ponto onde pude ter a visão completa daquela menina. Deus! Ela era superior a qualquer coisa que eu pudesse ter imaginado segundos antes. O cabelo ruivo estava preso num apressado coque – provavelmente por conta do calor que fazia naquele dia. Notei que as pintinhas não só cobriam o tórax, mas todo o pescoço e boa parte dos braços também. De perfil, seu nariz arrebitado me passava um certo ar de arrogância, confesso, porém, sua boca, de tão pequena, me contrariava; dava-me a impressão de estar frente à menina mais meiga do mundo.

Foi quando ela se virou e direcionou sua voz pequena a uma amiga, logo atrás dela.

- Ai, não acho!

Foi o “ai, não acho” mais necessitado de ajuda que já presenciei na vida. Mesmo não sendo para mim tal pedido, tive de me apresentar.

- Posso ajudar? – eu disse.

- Você trabalha aqui? – ela respondia a me fitar com olhos castanhos enormes.

- Não, mas posso lhe ajudar, se quiser.

- É que procuro por um songbook do...

- João Bosco – eu a completei.

- Como sabia? – disse ela espantada (e linda).

- Não sabia. Apenas chutei. É que também procuro por ele.

- Que coincidência, não? Também vai participar do concurso, então!

- Que concurso?

Ela se referia a um concurso que elegeria a melhor versão de qualquer música de João Bosco. Estava sendo organizado por uma famosa rádio de música popular brasileira, mas como não tenho o costume de ouvir rádios...

- O que você toca? – ela me perguntou.

- Violão. E você?

- Canto e toco flauta transversa.

- Que legal! E já tem alguém de harmonia para lhe acompanhar no concurso?

- Sabe que não?

Diante de tamanha coincidência não tivemos outra escolha a não ser tomarmos um café no lado de fora da biblioteca. Já com os três volumes do songbook nas mãos, nós precisávamos apenas escolher a canção. Lógico que meus olhos estavam muito mais interessados naquele corpo suado que nas melodias do João, mas....

- Veja, nem nos apresentamos! Sua graça? – eu perguntei.

- Juliana.

- Prazer. Cláudio.

- Prazer.

No meio de nossas discussões sobre o concurso, não pude deixar de notar o pingente que Juliana carregava no pescoço; trazia a letra “M”. Imaginei o quão bacana deveria ser o tal “Marcelo”, ou “Márcio”, sei lá. Isso me deixou um pouco sem saber se levaria meu desejo real à frente.

Palavras e cafés à mesa e o rumo das conversas foi do “J” ao “S”, ou seja, do João Bosco ao sexo. Só sei que em menos de duas horas eu tinha em meu apartamento um violão sobre o sofá, uma flauta transversa sobre a mesa de centro da sala e uma Juliana me mostrando na cama que não era virtuosa somente na música.

Já depois de alguns cigarros e diante de uma preguiça imensa de retornar aos ensaios, disse coisas bacanas o suficiente para arrancar de Juliana os sorrisos mais lindos e doces do mundo. Ela me perguntava coisas sobre a possibilidade de se conhecer uma pessoa tão interessante de maneira tão rápida. Eu não sabia o que responder, pois me via na mesma dúvida. Eu me casaria com Juliana naquela noite, talvez.

- O que é esse “M”? – eu resolvia perguntar sobre o pingente.

- Não imagina?

- Marcelo, Márcio, sei lá... – deveria levar um soco depois dessa.

- Tenho cara de quem carrega a inicial de um homem no pescoço?

- Mesmo que fosse seu pai?

- Mesmo assim! Pescoço é lugar de coisas que te conduz!

- Muleta, então?

- Bobo!

- “M” de quê? Responde!

- “M” de música, ora! Desligado você!

- Um pouco.

- E você? O que lhe conduz?

- Bem, acho que a música também, mas bem mais a literatura!

- Leitor eu sei que tu és, pela quantidade de livros que tens aqui, mas você escreve também?

- Sim, escrevo! Sou contista!

- Contista? “Nunca confie num contista”, dizia minha mãe.

- Por quê?

- Vocês criam histórias o tempo todo! Um bando de mentirosos da vida real!

- Não é verdade!

- Viu? Já começou!

Eu nunca tinha pensado nisso, mas por que confiar numa pessoa que inventa histórias com tantos detalhes? Seria o dom de escrever o mesmo dom de mentir? Sigo nessa dúvida que me custa a desconfiança eterna de Juliana. Nos divertimos muito, sempre, até hoje, mas sei que a ruiva não acredita em nada do que lhe prometo. Aos escritores a conquista. Aos leitores a posse!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

TUDO POR BIANCA

A toalha branca era finalmente estendida no peitoril daquela janela. Eu esperava por esse momento havia dias, mas, enfim, lá estava ela; alva e cheia de significados. É que eu mantinha um caso com uma vizinha minha, a Bianca, que por sua vez era casada com um grande amigo meu, o Hugo. A toalha branca na janela era uma forma de me dizer “está tudo OK, pode vir”. Imediatamente ao avistá-la, sem que ninguém me visse, eu corria para um terreno abandonado que se estendia até os fundos da casa de Bianca.

Como dito, havia dias que não me encontrava com Bianca, mas toda aquela espera valia a pena neste caso. Ela era uma mulher fantástica em todos os sentidos. Bem, eu não vou me focar na questão da infidelidade, já que o traído não era eu; e sendo assim, para mim, ela continua sendo fantástica.

Quando digo fantástica, me refiro desde aos seus cabelos de grandes cachos negros às suas unhas dos pés – sempre muito bem cuidadas. Do meio desses dois extremos posso citar o corpo magro porém atraente, a boca singela, os olhos de sonsa (sim, sonsa e isso me atraía demais) e a cintura; hoje tão raro nas mulheres.

“Toalha na janela”, eu disse para mim mesmo ao avistá-la. Corria então para o terreno como um lobo atrás da caça. Havia um facão que eu deixava escondido logo no início daquele caminho coberto de mato. Com ele eu seguia até o muro dos fundos da casa de Bianca. Chegava sempre suado e com vários pequenos cortes pelo corpo, causados pelo enorme capim.

- Bianca! – eu a chamava em voz baixa.

- Lucas! Pode vir!

Eu pulava o muro e ia direto para o banheiro, a fim de me livrar daquele estado.

- Não! – disse-me Bianca – Quero você assim, hoje!

- Suado e sujo?

- Isso!

Eu detestava transar sujo de mato, mas como resistir a um pedido de Bianca? Os olhos eram como o azul do mar; misterioso, enigmático. E depois de cada pedido sua língua passeava lentamente sobre seus finos lábios, a fim de me seduzir ainda mais.

- Você não presta, Bianca! – eu dizia já encantado.

- Eu sei disso! E é por isso que estás aqui, não é?

- Sabes que sim!

Imediatamente, Bianca levantava o vestido florido a exibir suas pernas. Numa agilidade impressionante, descia a calcinha até cair macia sobre seus pés. Meus olhos seguiam cada gesto, cada detalhe daquele despir sempre tão inspirado. Naquele momento, como sempre, me vinha o seguinte pensamento: “O Hugo é um cara de sorte. Ter uma mulher assim todos os dias”. Como eu queria ser casado com Bianca. Invejava-o.

* * *
Passada a tarde, quando já me preparava para voltar para casa, resolvi fazer uma pergunta à Bianca:

- Casarias comigo?

- Claro que não! – ela respondia convicta.

- Por que não?

- Ora, porque não!

- E o que eu represento para você, então?

- O que você realmente é, ora, um amante. Uma diversão. Pronto!

- E o Hugo?

- Ora, meu marido! A pessoa que eu amo...

- Não me amas, então?

- Sou TARADA por ti, Lucas, mas não me cobre amor, por favor!

- Acredita que um amor possa morrer?

- Claro que sim.

- E se esse seu amor morresse?

- Hum... – ela pensava – Aí, sim, provavelmente você seria a pessoa mais apta a substituí-lo, eu acho.

- Bom saber.

Ao me despedir de Bianca, apenas fingi ir para casa. Na verdade fiquei escondido atrás do muro a esperar pela chegada de Hugo. Assim que ouvi a voz dele, pulei para dentro da casa novamente.

- Alguém pulou nosso muro! – disse Hugo à Bianca, e veio até a mim – Lucas? O que faz aqui? E por que pulou meu muro?

Não disse palavra. Apenas finquei o facão na barriga de Hugo, que no chão agonizou por alguns minutos até o último suspiro.

- E agora, Bianca – eu disse –, estou apto a receber o seu amor?

Nunca tinha feito tamanha merda. Não entendi que o amor de uma mulher nunca morre depois do amado. Ou morre antes, ou tende a estar vivo no coração por toda a eternidade.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CARTAZ

Eu tinha acabado de sair do banho; ainda estava nu quando o telefone soou. Fazia um calor infernal e eu dava graças a Deus por aquela campainha não ser a da porta, já que minha intenção era a de ficar zanzando pelado pela casa durante toda aquela tarde. O aparelho já gritava pela quinta ou sexta vez quando finalmente tive forças para sair da frente do espelho. Eu marcava o meu caminho do banheiro à sala com um rastro d’água, lento.

- Alô!

Era a Márcia, minha produtora. Com uma voz animadíssima, ela me avisava que fechara uma sequência de shows pelo Rio de Janeiro. O calor típico da cidade a partir de novembro sempre rendia alguns trocados – na verdade eu não sei bem o porquê, já que sou um músico bossanovista e considerado por muitos a verdadeira “broxada do verão”.

- Quantos shows serão? – eu perguntava.

- De novembro a fevereiro, rapaz! Umas vinte apresentações! O que acha?

- Acho bom, muito bom! O que mais você tem a me dizer?

- Não me parece animado...

- É o calor...

- Ah... Bem, vou convocar os mesmos músicos que te acompanharam no ano passado, pode ser?

- Sim, pode ser!

Na verdade eu quase nunca me animava com os shows, mas é o meu sustento, o que posso fazer?
Depois de algumas semanas, um cartaz exageradamente colorido me chegava pelos correios. Tratava-se de um anúncio da minha primeira bateria de shows, num hotel bem bacana. A peça trazia “O verão, o sorriso e a flor” como nome do espetáculo. Uma forçada de barra horrível como se minha apresentação tivesse o peso e a importância do que foi “A noite do amor, do sorriso e da flor”, em 1960. E aquelas cores? Onde estava o velho preto com branco? Liguei de imediato para Márcia.

- Gostou do cartaz?

- Que mau gosto, Márcia! Que mau gosto!

- Por quê?

- Compara-me aos grandes da Bossa Nova?

- E por que não?

- Porque não sou! Simples! Não aprovo! Criem outra coisa!

- OK, mas pode ser para a próxima temporada? Porque para os shows do hotel já estão rodando esse aí...

- Você já colocou isso na rua?

- Desculpe-me! É que...

Desliguei o telefone e só fui rever Márcia na noite de estréia da temporada.

* * *
Fazia muito calor naquela noite. Durante a semana, o meu nome fora anunciado em tudo o que era jornal, e sendo muito criticado também, claro. Lembro de ler uma matéria que chamava o meu show de “a brochada, o desânimo e a dor”. Eu nunca entendi bem essas críticas, já que as pessoas – pelo menos as que compareciam aos shows – gostavam bastante de mim.

Márcia, ao me ver:

- Tinha medo que não aparecesse!

- Jamais faria isso!

- Não me falou sobre os ensaios, sobre nada! Eu NÃO sei que repertório apresentará! Eu sinto que NÃO produzi o seu show! Por que não me demite?

- Jamais faria isso!

- Mas parece insatisfeito com o meu trabalho!

- Foi só o nome do show, mas nada! Está tudo bem!

- OK! Bom show para você!

- Obrigado.

Fiz o show como sempre faço: metade músicas minhas, metade clássicos da Bossa Nova. O público, estranhamente abarrotado de jovens, adorou. Teve até uma menina, que aparentava viver em plena décima oitava primavera, no máximo, que veio até a mim e disse:

- O verão ainda não chegou, mas você é o melhor anúncio de que ele está por vir! Adoro você!

Fui até Márcia:

- Muitos jovens, você viu?

- Vi, sim, claro!

- O que fez para isso acontecer?

- Um cartaz colorido, ora!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

ÚLTIMA VIAGEM

Maria Antônia trabalhava como ascensorista de elevador num enorme prédio comercial do Centro da cidade. Depois de vinte e dois anos de dedicação às duras e cansativas jornadas diárias de seis horas, Maria era demitida por motivos que... Segundo sua supervisora, a nova chefia do edifício planejava uma mudança radical na estética daquele condomínio; e isso incluía uma “renovação de pessoal”. “Maria, você está conosco há mais de vinte anos, mas a nova gestão do prédio está em busca de ascensoristas mais jovens, entende?”, disse a supervisora ao anunciar o aviso prévio daquela empregada.

Maria cumpria então o seu último mês naquela função. Durante aqueles dias fez questão de avisar a cada conhecido daquele edifício – que não eram poucos – sobre a sua saída. “Estou de aviso prévio, sabia? É a vida, não é?”, dizia Maria, que nada ouvia como resposta. Na certa aqueles condôminos eram donos de uma mesma ideia: a de que o prédio precisava, sim, de novas ascensoristas; mais jovens e mais belas, por que não?

Maria subia e descia em média cento e dez vezes por dia naquele elevador. Dizia, também diariamente, mais ou menos setecentos e setenta vezes coisas como “bom dia”, “chegamos”, “qual o andar?” etc. Sua rotina era estar exposta a todo e qualquer tipo de doenças, que através de espirros e tosses eram arremessadas sobre sua pessoa. Naquele banquinho, ouvia de tudo um pouco; fofocas, coisas banais, coisas interessantes, notícias sobre o clima, sobre o trânsito, sobre o dólar, sobre o Lula...

No último dia de trabalho, Maria se despedia de cada passageiro que em sua cabine viajava. Recebeu até tapinhas nas costas e muitos votos de boa sorte, porém, ninguém ousou lhe oferecer uma nova vaga. Maria não estava preocupada com o futuro, pelo menos não naquele momento. A ascensorista estava mais triste pela falta que lhe faria toda aquela rotina, apesar de tudo.

Faltando dois minutos para o término de seu último dia naquele emprego, Maria, mesmo sem chamadas, subia o elevador até o último andar. Abria a porta, mas não havia ninguém a descer. No intuito de parar em todos os andares, marcou todos os botões de seu painel e desceu. Incrivelmente não houvera em nenhum dos vinte andares alguém para descer. Com o elevador vazio, porém, coberto até o teto da mais horrível solidão, Maria chegava ao térreo. Lá, uma menina de aparentemente dezenove anos, lindamente vestida com o novo uniforme do condomínio a aguardava.

- Maria Antônia? – dizia a menina.

- Sim, sou eu.

- É que pediram para que eu a rendesse.

- Você é a nova ascensorista?

- Sim.

- Ah... Boa sorte, OK?

- Obrigada!

A menina sentava-se no banquinho que por vinte e dois anos fora de Maria, fechava a porta do elevador e subia. Maria, como se fosse a peça mais antiga daquele edifício, cruzava cabisbaixa aquele hall já coberto por uma nova logomarca e um slogan que dizia: “Venha para o novo”. Ela saía.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ALLIÉS

Eu, um soldado americano em meio à Segunda Guerra, fui designado a uma missão bastante delicada: resgatar uma freira francesa das mãos de um grupo de alemãs, enquanto o restante da tropa avançava com deveres, digamos, mais emocionantes que o meu. Isso porque na minha cabeça uma única frase martelava: “que se danem as freiras desse lugar”.
“Tenente, leve o Robinson contigo. Não deve haver mais que dois naquela igrejinha”, dizia-me o capitão. O Robinson era um sargento daqueles que você prefere uma latrina cheia de merda à sua companhia; não serviria sequer para amarrar seus próprios coturnos. Mas ordens são ordens.

“Vamos, Robinson, não quero demorar por aqui”, eu dizia ao sargento, que, estabanado como sempre, derrubava sua arma ao tentar dizer um simples “sim, senhor”. Era lamentável.

Próximo à igreja daquele local já deserto, nos posicionamos. Podíamos ouvir aqueles alemães com suas risadas exageradas junto às tentativas de grito da irmã. Como o capitão previa, escutávamos apenas duas vozes masculinas. “Eles devem estar se divertindo um bocado, tenente”, dizia-me Robinson. Até a voz daquele sargento me enojava. “Robinson, você vai até a porta da igreja e, com cuidado, verifique se ela está aberta. Se estiver, dê-me sinal. Se não, volte para cá”, eu dizia.

Robinson chegou sem problemas até a porta, mas ao movimentá-la com sua delicadeza de búfalo, foi totalmente perfurado pelas MP40 dos alemães, que logo trataram de sair correndo dali. Diante disso, dei a volta por trás da igreja e me posicionei de forma que conseguisse ver os passos inimigos. Na certa eles imaginaram a presença de uma grande tropa aliada nas proximidades; sequer desconfiaram que na verdade estavam em vantagem sobre mim.

Com a fuga dos alemães, preocupado com o estado de saúde de Robinson, fui até a porta da igreja. Pela vida daquele sargento não havia mais nada a ser feito. Mas a freira permanecia viva – eu constatava pela respiração ofegante que se ouvia lá de fora. Fui até ela.

- Alliés! Américaine! – eu dizia à freira ser um aliado americano.

- Obrigada, senhor!

- Fala a minha língua, irmã?

- Sim... Eles iam me matar...

- Já passou. Vamos sair daqui.

- Para onde vamos?

- Para um lugar seguro, mas primeiro me ajude a carregar o corpo de meu amigo até a minha tropa, OK?

- Farei o possível.

Estávamos de certa forma em fuga, e aquela roupa que a irmã vestia não era nada apropriada, pois a fez tropeçar por diversas vezes. Então, parei no meio do caminho, saquei minha baioneta, fui até às pernas da irmã e rasguei metade de sua vestimenta.

- Mas tenente?!

- Isso vai lhe ajudar! – eu dizia ao mesmo tempo em que notava a beleza das pernas daquela mulher.

Eu estava naquele inferno havia pelo menos dois anos. Dois anos sem saber o que era prazer carnal. Levei minhas mãos até suas partes íntimas... Não pensei. Agi como um animal; estuprei-a.

Cheguei à tropa com um sargento morto e o silêncio temeroso de uma freira “salva”.

Mesmo assim, anos depois, retornado à minha pátria, recebi medalhas e até hoje sou considerado um herói de guerra.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

NATURALMENTE

Cabisbaixo, cheguei do trabalho e pus um antigo disco do Chet Baker para tocar. Era dezembro; fazia um calor infernal e, por isso, pus duas garrafas de Stella Artois no congelador e fui para o banho. O trompete de Chet parecia me dizer alguma coisa. Com suas frases lentas e repletas de pausas, dizia-me “calma, rapaz” – logicamente, eu o obedecia.

Sem perceber, sentei-me no piso do box; deixava a água gelada cair sobre minha cabeça. Aos poucos, o sentimento de solidão que me tomara toda a tarde dava lugar a uma espécie de conforto. Sentia-me do lado de dois grandes amigos: o Chet, que tocava para eu ouvir, e a água, que me acariciava o corpo como uma mulher pronta a me satisfazer.

Os dezenove minutos do lado A daquele disco se findavam. O silêncio então me fez levantar daquele banho interminável. Sequei-me e, ainda enrolado na toalha branca coberta de mofo, pus o lado B para tocar. Fui ao congelador e notei que as cervejas estavam prestes a congelar – adoro quando isso acontece. Retirei as duas garrafas de lá e as levei comigo à mesa da sala.

Não fumo, mas nesse dia acendi um cigarro do maço que um amigo meu havia esquecido lá em casa. Sem saber como tragar, puxava pouca fumaça e logo a expulsava, passando bons minutos a observar o seu caminho rumo ao teto. Um dos cigarros eu simplesmente deixei queimar sem sequer o levar à boca. Observando-o, refleti e filosofei comigo mesmo sobre o curso natural das coisas. Por que simplesmente não deixamos “queimar”? Por que precisamos sempre tomar atitudes para que as coisas aconteçam conforme queremos? Na verdade tudo isso estava ligado a uma só pessoa: Bruna. Vou contar.

Bruna e eu éramos amigos de infância e, de forma muito natural, viramos o casal de namorados mais apaixonado do sistema solar. Estudamos juntos, cursamos a mesma faculdade e entramos para o mercado de trabalho de forma competitiva – ela e eu trabalhávamos em empresas quase inimigas. Eu jamais imaginei que tal fato fosse atrapalhar o nosso relacionamento, mas foi exatamente o que ocorreu.

Bruna fora promovida a um cargo de extrema confiança e, logo no dia seguinte à posse, passou a agir de forma muito estranha. Perguntava-me muito profundamente sobre os meus afazeres profissionais – coisa muito rara até então. Inocente, respondia a todos aqueles questionamentos; estava movido pela confiança que tinha em Bruna.

Semanas depois do “interrogatório”, a empresa em que Bruna trabalhava usava de uma estratégia de marketing que pôs meu chefe de cabelo em pé. Informações empresariais que jamais deveriam ser fornecidas foram postas por mim sobre a cama onde gozamos tantas e tantas vezes. Fora o meu erro crucial.

Até então, onde eu trabalhava, ninguém sabia sobre o meu relacionamento com uma concorrente. Mas a partir daí tudo veio como uma avalanche, que me acertava violentamente.

Perdi o emprego. Minha carreira fora manchada pelo coração gélido de Bruna. Sou hoje taxista, com muito orgulho, mas com um pouco de rancor, claro.

Onde eu estava mesmo? Ah, no cigarro! Eu o observava queimar quando o telefone danou a tocar. Levantei a agulha do toca discos e:

- Alô.

- Thiago, sou eu!

- O que foi, Bruna?

- Podemos conversar? Servi de isca naquela história toda! Estou tão envergonhada... Fui despedida e...

- Olha, se você quer minhas desculpas, está desculpada, mas se quer voltar a se deitar na minha cama, eu espero que não vire uma taxista também!

- Thiago, eu ia dizer que estou montando um negócio próprio e queria que você fizesse parte dele! O que acha?

- Não, mas mesmo assim, muito obrigado pelo convite. Boa noite.

Desliguei o telefone, desci a agulha do toca discos e passei a me sentir mais leve. A vida parecia estar voltando ao seu curso natural. Até o mofo de minha toalha sumira de forma mágica. Pus uma roupa, aumentei o som e fui até a garagem lavar meu carro. A segunda cerveja descia ainda mais saborosa.

* * *
Foto da Capa: Weeping-Willow.

domingo, 11 de outubro de 2009

EU QUERO SEGURAR SUA MÃO

Senti sua presença. Sentado no banco daquela praça, fui forçado a retirar os fones de ouvido porque senti o vento que Cecília produziu ao acomodar aquele corpo tão perfumado ao meu lado. Era na verdade uma mistura de perfumes; a colônia que usava era mais forte, mas os seus fios, ainda molhados do banho, também traziam um aroma dos deuses.

A camiseta de Cecília era amarela e trazia um enorme rosto do Paul McCartney estampando à frente. Seus seios, tão firmes e ao mesmo tempo tão singelos, me chamavam mais atenção que o próprio beatle, mas tratei de desviar o olhar, que aos poucos ia se tornando mais fixo e abobalhado.

A presença de Cecília me fazia tremer as bases. Por que ela tinha de carregar aquele sorriso sempre? Sorriso este que me tomava as manhãs, as tardes, as noites, os sonhos e todo o resto. Olhando para o chão, notava o quão limpo era o seu par de tênis, que por sinal combinava muito cruelmente com a camisa; uma covardia. Subia-lhe com os olhos escalando cada detalhe de suas pernas vestidas naquele jeans novo e de tonalidade escura; estava impecável.

Um tênis verde chegava até o nosso banco. Tratei de subir a vista até a face do intrometido. Para a minha revolta instantânea, tratava-se de um rapaz muito bonito. Os olhos dele eram tão verdes quanto o seu calçado. Trazia na mão esquerda uma pequena margarida recém retirada do jardim da praça. Delicadamente – de forma que eu jamais serei um dia –, aquele rapaz depositou a pequena flor entre os cabelos negros de Cecília. Uma pontada em meu peito se fez presente naquele mesmo momento – uma flor ali e uma faca aqui.

Esperei pela reação daquela menina, mas não por muito tempo – na verdade não cheguei nem a esperar. Cecília se levantou como uma flecha a pendurar-se no pescoço daquele rapaz. “Você aqui”, dizia ela na ponta dos pés.

- Que saudade, Cecília! – dizia aquele ser.

- Você está um gato! – dizia a acariciar o rosto do rapaz – Mamãe precisa te ver! – continuava numa empolgação inédita.

Ela, puxando o bonitão pelos braços, atravessava a rua até o seu condomínio. Os dois falavam sem parar, como se quisessem pôr todo aquele assunto aparentemente atrasado em dia.

Mudo, no mesmo lugar fiquei. O assento ao meu lado ficava vago e ao mesmo tempo muito gelado. Eu estava tão próximo de ensaiar o primeiro “oi” de nossas vidas, mas um par de olhos verdes tratou de adiar tal acontecimento histórico. De lá, através da janela do apartamento de Cecília, pude notar as silhuetas dela, de sua mãe e do rapaz a se abraçarem. “O genro perfeito chegara, talvez, de uma longa viagem”, eu pensava. Aquele cara devia ter tanta história para contar, tantas vantagens, tantas experiências mirabolantes.

Foi quando, da janela, Cecília gritou para uma amiga que passava pela portaria do condomínio.

- CARLA, MEU IRMÃO VOLTOU DE MADRID! SOBE AQUI!

Meu coração então voltou aos poucos a bater de forma tranquila. “Irmão”, eu repetia como se quisesse convencer a mim mesmo da palavra que Cecília anunciara instantes antes. Respirei fundo e me senti com o bolso cheio de fichas novamente. “Ela ainda pode ser minha”, eu pensava enquanto repunha os meus fones.

“I wanna hold your hand / I wanna hold your hand / I wanna hold your hand…”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

200.º POST


É, minha gente, o MEU chega hoje ao seu ducentésimo post. Muitas linhas foram escritas, muitos personagens criados, muitas histórias inventadas, muitas capas elaboradas, muitas fotos usadas e muitos comentários foram feitos. Foram até agora 197 textos publicados e mais de mil comentários vindos de vocês, pessoas próximas ou não, que fazem desse blog um compromisso muito prazeroso para mim.

Quero deixar aqui registrado o quanto sou agradecido pelas diárias visitas e leituras de todos! Sei que ainda não posso (e nem quero) ser comparado a escritores profissionais, que fazem de seus livros verdadeiras portas de entrada para um mundo que somente as palavras bem escritas são capazes de nos transportar, mas espero ser, pelo menos, aquele cara que procura trazer alguns minutinhos de ficção, uma espécie de passatempo mudo; que procura no mínimo ser agradável a quem por aqui passa.

Quando o MEU completou o seu 100º post, publiquei um vídeo, se lembram? Hoje, eu resolvi presenteá-los com um texto perdido em meus arquivos; trata-se de um “esboço” do que viria a ser um romance infantil, no qual Luana (a queridinha do MEU) aparece ainda muito novinha. Estava escrevendo este romance para um concurso, mas não consegui terminá-lo. O que lerão a seguir é apenas uma ideia de toda a história, que teria seu foco nas aventuras vividas pela pequena Luana a bordo de uma nuvem chamada Fofura.

Espero que curtam, embora o texto tenha um teor infantil – aproveitem que a semana da criança vem aí! O romance se chamaria “Não tenha medo, Luana!”.

A todos vocês, muito obrigado pela leitura de sempre!


O vento soprava forte e, como se fossem braços de adultos, balançavam as janelas de toda a casa. Era o prenúncio de uma frente fria carregada de chuvas e as nuvens começavam a mandar os seus sinais. Vinha muita água dos céus. “CABRUM”, ouvia-se das nuvens.

Luana, morrendo de medo dos trovões, cobria-se por completa com seu edredom. Já eram mais de duas da madrugada e a menina não pegava no sono. Pensava em descer até o quarto dos pais, mas o temor a impedia até mesmo de encarar as escadas às escuras. A menina descobria os olhos e, pelo vidro da janela, com cautela, enxergava a forte chuva que começava a cair.

De repente, assustava-se com um clarão! “CABRUM”. Luana voltava rapidamente a cobrir o rosto.

No dia seguinte, domingo, pela manhã, Luana encontrava-se com seus pais à mesa do café.

- Como passou a noite, filha? - perguntava Marcos, seu pai.

- Não muito bem, papai. Demorei a dormir por causa da chuva.

- O que tem a chuva, filha?

- Não foi bem por causa da chuva, papai. Foram os trovões que me deixaram um pouco assustada.

- Ora, Luana, você acabou de fazer cinco anos. Não deveria ter tanto medo de trovões.

- Papai, eu acho que terei medo deles até eu ficar grande.

Camila, mãe de Luana chegava à mesa:

- Bom dia, filha!

- Bom dia mamãe! Estava contando para papai o quanto sofri esta noite por causa dos trovões.

- Ainda com esse medo, Luana?

- Ainda, mamãe.

- Olha, filha, vou lhe contar uma coisa que acabará com esse seu medo. Quer ouvir?

Camila começava a contar à filha uma versão sobre os trovões.

- Você sabe por que os surgem esses barulhos das nuvens?

- Não, mamãe.

- Esses barulhos acontecem quando uma nuvem briga com a outra para ver quem vai ficar num determinado lugar. A briga é tão feia que elas começam a gritar uma com a outra.

- Mas nuvem não tem boca, mamãe!

- Quem lhe disse? Não dá para ver a boca de uma nuvem olhando daqui, mas elas têm, sim; e são capazes de gritar muito alto.

- Mas e a chuva? Por que chove quando elas brigam?

- É que as nuvens não gostam de brigar. Então, depois da briga, elas começam a chorar.

- Então, a chuva é o choro de uma nuvem, mamãe?

- Sim, filha. E as nuvens não gostam quando de ficamos prestando atenção nas conversas delas. Por isso, quando você ouvir os trovões, tente esquecê-los e deixe que as nuvens se entendam.

- Que engraçado.

- Viu? O que há de assustador nisso?

- Você contando assim, nada. Mas à noite me dá muito medo, mamãe.

- Deixe as nuvens discutirem em paz, Luana. Dessa forma, elas vão dizer que você é uma fofoqueira. Você quer isso?

- Eu não!

- Então? Ficamos combinadas assim? Você deixará as nuvens em paz e procurará dormir?

- Vou sim, mamãe!

Marcos ficava sem saber se a explicação de Camila para Luana a respeito dos trovões fora convincente. A menina acabava de tomar o seu leite com torradas aparentando estar bem mais tranquila.

Na noite daquele domingo, Luana perguntava ao pai se Mimi, sua gatinha de estimação, poderia dormir com ela em seu quarto, no segundo andar da casa.

- Luana, eu não sei se isso é uma boa idéia. Não quero essa gata em sua cama.

- Papai, ela dormirá no tapete. Eu juro!

- Deixe-a, Marcos, – dizia Camila – isso fará Luana se sentir menos sozinha durante a noite.

- Tudo bem, Luana. Mas se ela não se comportar, coloque-a de volta para baixo, entendeu? – dizia Marcos.

- Tudo bem, papai!

O céu permanecera nublado durante todo o dia. À noite, a chuva voltava a cair. Luana não se preocupava com a chuva nem com os trovões; estava com sua atenção totalmente voltada para Mimi. As mãos pequenas de Luana acariciavam a testa da gatinha, que ia lentamente pegando no sono.

A chuva apertava. Fazia um barulho forte ao bater na janela do quarto de Luana. A menina, após Mimi fechar os olhos, passava novamente a fixar seus pensamentos na chuva e nos trovões. “CABRUM”. Um forte trovão parecia trazer ainda mais chuva. Mimi acordava assustada com o estrondo.

- Fique tranquila, Mimi. Mamãe me disse que isso é só uma briguinha entre nuvens. Uma delas está chorando. Por isso toda essa chuva.

Mimi arregalava os olhos para Luana.

- Não precisa ter medo, Mimi. Eu estou aqui. E não fique prestando atenção na conversa das nuvens. Elas te chamarão de fofoqueira! Você quer ser chamada de fofoqueira, Mimi?

Mimi, numa atitude repentina, corria para debaixo da cama de Luana. A menina ria e tentava acalmá-la com carinhos.

- Venha para cá, Mimi. Deixa de ser medrosa.

“CABRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUM”.

Este último estrondo havia sido o mais alto e assustador de toda a tempestade. Luana calava-se e arregalava os olhos como Mimi.

“CABRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUM”.

Luana puxava Mimi de debaixo da cama e a segurava no colo. As duas morriam de medo, mas permaneciam quietas diante dos clarões e do barulho da chuva.

- Fique quietinha, Mimi. Já vai passar. A briga entre essas nuvens está feia hoje.

Mimi aconchegava-se no colo da dona a fim de proteger-se.

Depois de algumas horas, a chuva dava uma trégua. Os trovões ficavam fracos até sumirem de vez. Batia em Luana uma curiosidade de saber qual das nuvens lá fora havia vencido a discussão. “Se os trovões pararam, é porque a discussão entre as nuvens já acabou. E se a chuva não cai mais, é porque não há mais nenhuma nuvem chorando lá fora”, pensava a menina.

Luana pensava em abrir a janela para que pudesse conhecer a grande nuvem que gritara tão alto durante horas. Ela seguia até a janela com cautela. Mimi ficava ao chão a observar os movimentos da dona.

Então, Luana abria a janela e se deparava com uma nuvem muito simpática.

- Luana?

- Sim...

- Eu me chamo Fofura! Tudo bom?

- Tudo...

As bochechas de Fofura eram enormes. A nuvem parecia estar sorrindo para Luana.

- Você não deve ter reparado, mas eu estou aqui nesse mesmo lugar há uns cinco dias. Durante o dia, isso aqui fica uma calmaria. À noite, outras nuvens vêm aqui tentar tomar o meu lugar e...

- Já sei! Mamãe me falou! Vocês discutem para ver quem vai ficar com o lugar, não é?

- É isso mesmo, Luana.

- Mas falando assim com você, nem parece que a mesma nuvem faz todo aquele barulho.

- Pois é. Mas é que para defender nosso lugar, a gente precisa gritar de vez em quando.

Fofura e Luana conversaram por alguns minutos. Logo aparecia Soprão, o vento particular de Fofura, aquele que a levava para onde ela ordenava. A nuvem então fazia um convite à menina: um passeio pela cidade.

- Mas eu não disse nada aos meus pais. Se eles acordarem e não me encontrarem aqui no quarto, ficarão preocupados – dizia Luana.

- Eu trago vocês de volta antes do amanhecer. Prometo! – dizia Soprão.

Luana pensava um pouco, mas a ideia de voar a bordo de uma nuvem parecia tão fantástica que não via motivos para recusar ao convite.

- Vamos!

Luana e Mimi então fizeram um longo passeio com Fofura e Soprão. Sobrevoaram toda a cidade e puderam inclusive ver outras nuvens a passear com outras crianças. Durante toda a madrugada, os quatro viveram aventuras inesquecíveis.

E, conforme combinado, Soprão e Fofura deixavam Luana e Mimi em casa ainda antes do amanhecer.

Pela manhã, Marcos e Camila subiam até o quarto da filha para saber como passara aquela noite chuvosa.

- E então, Luana? Tudo bem com os trovões de ontem?

- Sim! Tudo ótimo! Mimi e eu conhecemos uma nuvem e um vento, a Fofura e o Soprão! Eles nos levaram para passear e...

Marcos olhava para Camila como quem diz “a sua história funcionou, mas e agora?”. O casal sorria um para o outro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O MENINO DAS FRUTAS

Eu era só uma menina, tinha onze ou doze anos, não lembro bem. Toda manhã, sempre que chegava à escola, acompanhada de minha mãe, me deparava com um grande caminhão que vendia frutas; uma espécie de barraca de feira ambulante. Dentro daquele baú, trabalhavam o S. Adalberto, que era um senhor barrigudo e muito simpático, e seu filho Pedrinho, que deveria ter a minha idade.

Enquanto minha mãe comprava algumas frutas, eu observava os movimentos de Pedrinho. É que, apesar de pequeno e magro, aquele menino demonstrava força e muita habilidade ao manusear os produtos, geralmente depositados em sacos aparentemente muito pesados. Aquele menino trabalhava muito mais que o pai, no meu ponto de vista. S. Adalberto tratava de atender muito bem a clientela, enquanto Pedrinho parecia se encarregar de todo o trabalho duro. O menino suava muito dentro daquele baú.

Pedrinho tinha o cabelo bem liso e os olhos eram de um verde inédito a mim. Poucas vezes pude notar sua dentição, mas posso dizer que era, embora amarelada, perfeita. As camisetas que vestia geralmente traziam personagens de desenhos animados. Lembro que, mesmo sendo muito nova, eu conseguia capturar o contraste entre os sorrisos do Mickey, por exemplo, e a realidade de Pedrinho.

“Será que o Pedrinho estuda?”, pensava a minha cabecinha infantil. Os olhos daquele menino eram tristes a ponto de denunciar uma ausência de amizades, de uma vida de criança, de amor, de carinho. Eu tinha uma imensa vontade de perguntar a ele sobre essas coisas, mas eu teria de gritar para que ele me ouvisse lá no fundo daquele baú; preferia ficar calada e apenas o observar.

Ao meio-dia, enquanto eu saía da escola, S. Adalberto e Pedrinho atendiam seus últimos clientes, pois o caminhão logo estaria partindo. No portão da escola, à espera de minha mãe, via que o trabalho de Pedrinho no fim do expediente era ainda mais pesado. O menino ensacava aquela quantidade imensa de frutas sob os avisos sempre iguais de seu pai. “Não vá me colocar os mamões embaixo das melancias, pelo amor de Deus, Pedro!”, dizia o pai. “Já sei”, era o que o menino sempre respondia.

Em alguns momentos, nossos olhares se encontravam. Pedrinho, hoje consigo entender, sentia muita vergonha de trabalhar tão duro bem em frente a uma escola. O vai e vem daquelas crianças a sorrir e brincar devia causar no coração do menino um sentimento terrível e indescritível. Eu cheguei a imaginar que ele pudesse estudar no turno da tarde, mas, em conversa com minha mãe, soube que não.

- O Pedrinho estuda, mamãe? – eu perguntava.

- O menino do caminhão de frutas?

- É!

- Não, minha filha. Ele ajuda o pai.

- Mas não estuda por quê?

- Porque precisa ajudar o pai no caminhão, ora!

- Mas o caminhão só funciona pela manhã, não é?

- Não. O S. Adalberto me disse uma vez que eles saem dali e vão para um outro ponto na parte da tarde. Por isso, creio eu, que Pedrinho não estude. Aquele menino fala tudo errado, nunca ouviu?

- Não.

Ficava um pouco chateada ao perceber que minha não dera a mínima importância ao sofrimento de Pedrinho. Pareceu-me muito normal quando ela disse “por que precisa ajudar o pai no caminhão, ora”; pareceu um motivo óbvio, correto e sem possibilidade de questionamentos.

O tempo passou e o caminhão de frutas continuou por ali durante todos os anos em que eu estive naquela escola. S. Adalberto já mostrava sinais de uma saúde debilitada, enquanto Pedrinho, no auge de sua juventude, trocava o corpo franzino por músculos bem definidos. Agora, além do trabalho pesado, ele também atendia a clientela.

Eu, já com dezessete anos, me preparava para, no ano seguinte, ingressar em uma faculdade; estava muito feliz em dar mais um passo ascendente rumo ao meu objetivo profissional: o de lecionar Língua Portuguesa, mas senti meu coração partir ao concluir que, talvez, jamais veria o rosto de Pedrinho novamente. Frente ao portão da escola, confessei a mim mesma: estou apaixonada pelo menino das frutas!

Então, com a coragem que sempre me faltara, fui até ele.

- Pedrinho!

- Senhora!

- Senhora não, por favor!

- Desculpa...

- Tudo bem.

- O que vai querê? Nós tem um abacaxi hoje aqui que...

- Não, não vim pelas frutas!

- ...

- Vim por você! Quero te perguntar uma coisa que há anos me incomoda.

- Pode perguntar!

- Você... – eu pausava, tomava coragem – Você estuda?

- Não senhora!

- OK! Mas tem vontade?

- Tenho sim, senhora!

- Eu... Eu poderia te ensinar alguma coisa, que tal?

- Como assim?

O restante da conversa não interessa. Interessa é que, a partir da outra semana, Pedrinho passou a frequentar a minha casa durante a noite para ter aulas de português. Não cobrava nada a ele, mas ele fazia questão de me levar algumas frutas de vez em quando; um amor de pessoa.

Com o tempo, Pedrinho e eu nos abrimos um para o outro. Até que um beijo se fez presente em meio aos sujeitos e predicados à mesa. Desse beijo em diante, mesmo sob as reclamações irritantes de mamãe, nunca mais nos largamos. Nos casamos e tivemos uma filha.

Hoje, ele é dono de três pequenos mercados de varejo, e eu, como sempre sonhei, professora.

O menino das frutas, o rapaz disciplinado das aulas... Já o chamei de tanta coisa. Hoje, o chamo de amor da minha vida.

* * *
Foto da Capa:
Katherine Davis.