quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

CAMINHOS

A paixão

Daniela acabara de viver um ótimo dia; vinha de mais uma de suas aulas de violino, porém, de uma aula especial, na qual seu professor – um sueco que vivia no Brasil há mais de dez anos – se declarara passionerad por sua pessoa. Com dezenove anos de idade, Daniela concluía que jamais sentira tamanha euforia diante de um rapaz. A verdade é que o professor de violino estava em sua mira havia meses.

Seu caminhar, pela calçada da Avenida Rio Branco, era solto, leve, quase flutuante. Os perigos que aquele fim de tarde poderia oferecer passavam longe dos pensamentos da menina, que pensava apenas naquele beijo que acabara de protagonizar junto àquele professor. Nem mesmo as crises que enfrentava com o irmão mais velho – que não aceitava seus esforços nos estudos da música, dizendo ser “coisa de vagabundo” – tinha espaço na mente de Daniela.

A ira

Flávio acabara de ser demitido por justa causa. Após ser descoberto num esquema no qual desviava verba da empresa, foi humilhado pela chefia em meio a uma reunião. Possuído, Flávio batia com força a porta de seu carro, modelo do ano – que, judicialmente, poderia nem ser mais dele nos próximos dias.

Em alta velocidade, Flávio rasgava as ruas do Centro; fazia curvas de forma veloz e inconsequente, num misto de transtorno e medo. O celular em sua bolsa não parava de tocar – provavelmente sua namorada, a fim de lhe contar sobre o vestido no qual torrara mais alguns milhares de reais –, mas Flávio sequer ouvia. Mergulhado em ira, aquele rapaz perdia os sentidos.

O encontro

Daniela esperava do semáforo o sinal para seguir na sua caminhada de “pluma ao vento”, encantada, rumo à estação das barcas. Naquele momento, no conservatório, seu professor tocava para um outro aluno uma peça que o fazia lembrar de Daniela.

Verde para os pedestres.

Daniela segue sobre a faixa, atravessando levemente a Rio Branco, quando um carro negro e muito veloz o toca as pernas. A menina voa por cima do veículo, cai de cabeça no asfalto e, sobre um melado que vinha do crânio, morre na hora.

Do carro, sai Flávio, à beira da loucura. No chão, Daniela, a irmã mais nova do atropelador.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O PLANO

Como quase todo músico, eu costumava passar horas nas lojas de instrumentos musicais; ficava de papo com os lojistas – que, em sua maioria, também eram músicos –, experimentando os lançamentos, discutindo sobre discos etc. Na verdade, era apenas em uma loja que eu costumava fazer isso, quase que diariamente: a loja do S. Lázaro, a Lázaro Som.

S. Lázaro era um senhor de quase noventa anos; herdara a loja de seu pai, um dos primeiros proprietários de loja de instrumentos musicais da cidade. S. Lázaro quase não parava na loja, mas todo mundo sabia quem ele era. Com a cabeça bem branca, ele chegava com seus passos lentos, dando bom dia a todos, e logo saía, com o mesmo bom dia.

A gente sempre escutava histórias de que S. Lázaro era um exímio violonista. Porém, nunca ninguém o vira tocar de fato. “Dizem que esse aí arrebenta no violão de sete cordas”, era o que diziam. “Das duas uma: ou S. Lázaro era de fato tudo o que diziam, ou era um mestre do marketing pessoal”, eu pensava. Até que, num certo dia, eu resolvi provocá-lo.

- S. Lázaro, por que o senhor não tira uma casquinha desse novo Di Giorgio sete cordas que chegou na loja? – eu perguntei.

- Ficou maluco? – reprimiu-me um dos lojistas – Que intimidade é essa?

S. Lázaro olhou para mim, abriu um sorriso, no canto da boca, e:

- Afine-o que eu já volto.

Toda a loja ficou eufórica, porque, enfim, veríamos S. Lázaro tocar violão. Afinamos o Di Giorgio e o esperamos com ansiedade.

Quando voltou, S. Lázaro pegou o violão e disse:

- Façam silêncio, sim?

Fizemos.

Então, S. Lázaro começou a dedilhar um choro maravilhoso, num misto inteligentíssimo de técnica clássica e popular. Ficamos todos boquiabertos.

Quando S. Lázaro terminou de tocar, disse-me:

- E você? Toca?

- Toco, sim, senhor, mas não tão bem...

- Toque, por favor.

Toquei. Mas naquele momento, pressionado pelo olhar do velhinho e sem muita experiência nas sete cordas, executei um número simples, quase medíocre.

- Precisa de umas aulas, filho! – disse-me S. Lázaro – Minha neta é uma excelente professora!

- Sua neta? – questionei-o, pensando se tratar de uma criança.

- Não se assuste, rapaz. Ela tem a sua idade.

- Sei... – eu disse, ainda achando humilhante.

- Ela sabe tudo o que eu sei. Ligue para ela – disse-me ele, me dando um cartão e saindo da loja como um Deus das sete cordas.

* * *
Chegando em casa, liguei para a neta de S. Lázaro.

- Alô.

- Oi! É a Andréia?

- Sim, sou eu!

- Boa tarde. O seu avô me deu o seu cartão. Eu gostaria de tomar aulas de violão de sete cordas.

- Ah... Violão de sete cordas... Sei... Esse meu avô...

- Não entendi.

- Qual o seu nome?

- Plínio.

- Plínio, é o seguinte: eu não dou aula de violão, não sei sequer sacudir um chocalho, para você ter ideia da minha vocação musical.

- Mas...

- O meu avô acha que eu preciso de um namorado e fica por aí distribuindo cartões, que ele mesmo faz, para rapazes que ele diz “parecer boa pessoa”. Peço desculpas...

- Não, que isso? Mas o seu avô, hein... Bem, pelo menos sei que “pareço boa pessoa”, né?

- Isso é.

E, desculpe perguntar, mas... Esse plano do seu avô já funcionou alguma vez?

- Não, porque os rapazes acabam... desistindo.

- E... Você acha que precisa mesmo de um namorado?

- Não com a gravidade de vovô Lázaro. Acho que mulher nenhuma precise de um namorado. O namoro é algo natural, assim como a solidão também é.

- Ele me disse que tens a minha idade. Vinte e cinco?

- Vinte e três.

- Bem, eu não sei quanto a você, Andréia, mas eu estou com vontade de levar o plano de seu avô a sério.

- Então insiste em ter aulas de violão comigo? [risos].

- Façamos a vontade de S. Lázaro!

Resumindo, conversamos ao telefone por horas. Marcamos um encontro naquele mesmo dia, à noite. Nos conhecemos. Ela era linda, mas linda de morrer! Branquinha, cabelos castanhos e curtinhos. Boca carnuda, num batom de tom claro; corpo delicado, estatura mediana.

Depois de muito conversarmos num bar:

- Nossa, seu avô é um maluco – eu lhe disse.

- Por quê?

- Achar que uma menina linda como você precisa de ajuda para arrumar um namorado.

- Ai, o vovô... Ele acha que preciso de um namorado para me distrair até a minha...

- Não entendi.

- Deixe para lá.

- Não, me explique, por favor!

- Bem, Plínio, eu sofro de câncer... E, embora possa não parecer, tenho meus dias contados.

- ...

- Agora você vai fazer como todos os outros: pedir a conta, dizer “nós nos vemos por aí” e...

- Engana-se. Seu avô está certo. Você precisa de alguém que divida com você esses dias, que eu nem acredito que sejam poucos. Alguém que possa ser mais que a ajuda de seus familiares.

Andréia começou a chorar e:

- Que merda, Plínio! Eu acho que... Eu acho que gostei de você! Por que não foi como os outros?

- Não fui porque também gostei de ti! E por que diz “que merda”?

- Porque você não merece uma enferma!

Sequei suas lágrimas, levantei aquele rosto fino e beijei a boca como há anos não era beijada.

* * *
S. Lázaro morreu alguns dias depois – ele não andava bem de saúde. No velório, a viúva me disse que, antes pouco de morrer, sentindo muitas dores, S. Lázaro disse: “Diga ao Plínio que cuide de Andréia”.

Infelizmente, com o falecimento do avô, o câncer da neta piorou de forma assustadora. Mas eu estava lá, firme, ao seu lado, até o dia de sua morte, um mês depois.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

CRISE DOS QUATRO

Antes de me envolver em um namoro sério, ouvi algumas vezes os mais velhos falarem sobre uma tal “crise dos quatro anos”. “Quando um namoro chega a esta idade, este passa por uma recaída e pode até acabar de vez”, diziam. Como eu, com quinze anos, no auge da minha adolescência, estava mais interessado em provar das mais diversas bocas ao invés de colar em apenas uma, nunca dera importância à “crise”, mas, de alguma forma, guardara aquelas palavras.

O tempo passou e, aos dezenove anos, um pouco mais maduro, já me via completamente preso a um sentimento que me tomava por completo. Milena me pegara de jeito, essa é a verdade. Das dezenas de bocas de outrora, a de Milena era a que melhor me acolhia. E a beleza, que esta carregava, com meiguice, em cada centímetro do corpo?

Milena passava um pouco longe da preferência nacional, é verdade; não havia fartura em seu corpo! Milena era magra e de medidas delicadas. Sendo assim, não possuía bumbum grande, porém, exibia uma linda cintura e um quadril bem desenhado. Os seios eram pequenos, mas o suficiente para valorizar sua a elegância. O legal é que seus dezessete anos eram bem nítidos; Milena não possuía nada que nos enganasse sobre sua idade, nem para mais, nem para menos. Por fim, aquele sorriso, que fazia questão de nascer entre suas longas, castanhas e onduladas mechas, junto àqueles olhos amendoados e às pequeninas sardas, formavam a cereja de um bolo chamado Milena.

Nosso namoro foi uma love story. Sabe quando tudo se encaixa? Sabe quando até mesmo os maldosos olhares alheios são aniquilados pela constatação de estarem diante de um casal nascido para a eternidade? Era assim. Por mais que um rapaz achasse Milena uma coisinha, ao testemunhar o nosso carinho avassalador e mútuo, este pensava duas vezes antes de qualquer atitude. Com as meninas, a mesma coisa.

Tudo vinha às mil maravilhas. Falávamos em casamento, acredita? Pois é, falávamos. Mas eis que nos surge aquilo que há anos ouvira dos mais velhos: a crise dos quatro anos de namoro. O tempo passou e as descobertas entre nós, antes tão empolgantes, não existiam mais. Era como se eu soubesse tudo sobre Milena. A criança ganha um brinquedo novo, explora todas as suas possibilidades de diversão e enjoa. Não é assim que acontece? No meu caso, porque no caso de Milena nunca existira um brinquedo e – depois concluí – muito menos uma criança enjoada.

- Milena, eu acho que não sinto mais o que sentia por ti – eu disse.

- Não me ama mais? – disse-me Milena meio sem entender.

- Será que foi amor, Milena? Sempre achei que o verdadeiro amor não acabasse nunca...

- Duvida de seu próprio sentimento agora?

- Sim, porque ele acabou. E se este sentimento acabou, é porque não era amor, Milena.

- OK, “grande conhecedor dos sentimentos”. Vou sofrer muito, sei disso, mas vejo que não posso mais mirar meu amor em alguém que sequer sabe o que este significa! – disse-me Milena nitidamente desapontada.

Engoli seco, confesso. Mas eu precisava daquele “tempo”, até mesmo para poder descobrir o que eu realmente sentia por Milena; amor ou simples costume?

Eu estava, sim, disposto a voltar àquela vida de solteiro, sabe? Sair com os amigos, voltar a experimentar aquelas bocas e, quem sabe?, encontrar um verdadeiro amor. Mas em algum momento – provavelmente num daqueles de meditação –, lembrei que aqueles mais velhos, que falavam sobre a crise, falavam também numa coisa mais ou menos assim: “o relacionamento sério é um trabalho árduo de conquista diária”. O fato é que minhas saídas com os amigos não renderam em nada. Sentia-me estranho em meio àquela banalização de sentimentos; sentia que uma saudade, mesmo que ainda tímida, tomava aos poucos meu coração.

Passados dois meses, eu constatei que aquela saudade, que então já me tomava todo o corpo e a mente, estava unicamente relacionada à Milena e aos nossos quatro anos de namoro. Fui atrás dela.

Chegando à casa de Milena, toquei a campainha. Ela abriu a porta e, sem dizer palavra, mais linda do que já era, me alcançou os lábios num beijo que marcou não apenas o nosso retorno, mas o início da fase mais linda de nosso namoro. Nos redescobrimos ao mesmo tempo em que descobrimos que nossas antigas descobertas foram apenas um aperitivo para as descobertas que estavam por vir.

Após os dois meses de “separação”, concluí que Milena ainda sentia por mim tudo o que sempre sentira. A monotonia da relação estava, na verdade, instalada na minha mente, e não na dela. Eu queria aquela novidade de quatro anos atrás, mas a merda é que eu não soube, no momento, entender que uma pessoa como Milena nunca se esgota em novidades; eu é que estava cansado em explorá-las.