quarta-feira, 29 de abril de 2009

CONTO BUKOWSKIANO

Cinco horas da tarde. Fazia muito frio e eu precisava esquentar as coisas. Como de costume, parava no Clube do Carlão, que era nada mais que um apartamento mofado lotado de bebidas e meninas. Os sofás onde sentávamos eram cobertos de manchas amareladas e queimaduras de cigarro. Mas quem se importava com o aspecto dos sofás? O Carlão tinha uma “equipe” de primeira. Uma dezena, pelo menos, e todas as meninas muito lindas.

Olhar eu olhava para todas aquelas beldades do submundo, porém, meu coração era apenas de uma: Andressa. Era chamada de “caçulinha” pelas demais, pois tinha apenas vinte e três aninhos e começara naquela vida há apenas dois.

Com medidas que iam de médias a pequenas, Andressa tinha algo que faltava em todas as outras ali: carisma. Quando eu chegava, ela podia estar no colo de quem fosse, mas se levantava, balançava a longa cabeleira negra, cuspia o chiclete, ajeitava a (minúscula) saia, alisava os seus médios seios e vinha falar comigo.

- Dudu, meu amor! – ela dizia, como sempre.

Quase sempre o cara que estivesse com ela no momento se irritava. Muitas das vezes já se dirigia a mim com um casco de cerveja virado, pronto para me acertar um golpe. Mas o Carlão logo gritava de trás daquele balcão imundo:

- Se chegar perto do Dudu eu te mato, seu verme!

As coisas se acalmavam.

Carlão sabia que a quantia que eu pagava pela exclusividade de Andressa cobria a transa e toda a bebida de um vagabundo como aquele. O “meu amor”, pronunciado com sensualidade por Andressa, não podia ser de graça. Eu era a garantia de bons lucros para Carlão.

- Demorou, meu amor, por quê?

Andressa pulava sobre mim e me beijava o rosto.

- Preciso trabalhar, ora. De onde você acha que sai a grana que paga o seu corpinho?
- Não importa! Vamos pro quarto?
- Espere, preciso beber um pouco.
- OK.

Ali, Andressa e eu bebíamos bastante. Ficávamos conversando com Carlão sobre coisas sem muito sentido. Conforme o tempo ia passando e os copos esvaziando, as coisas iam ficando cada vez mais sem sentido. Ríamos bastante, sempre.

As outras meninas, apesar de demonstrarem muito carinho pela “caçulinha”, me passavam certa inveja nos olhares. Na certa por terem que trepar o dia inteiro para arrecadar o que Andressa arrecadava só com a minha companhia. Não posso negar que as outras meninas sonhavam com a posição de Andressa, que bebia, beijava-me com um carinho comprado e, às vezes, nem precisava transar.

Depois de muitas e muitas doses de whisky:

- Vamos, Andressa – eu dizia.
- Vamos.

Íamos para o quarto.

Chegando lá, eu desabava sobre a cama, como sempre.

- Não vai tirar sua roupa, Dudu?
- Antes, tire a sua!
- Está bem.
- Ah! E, por favor, não me chama de Dudu quando estivermos na cama, eu já te pedi.
- Desculpe-me.

Ela se despia, mas de um jeito que, meu Deus, já valia toda a minha conta.

- Onde você aprende essas coisas, Andressa?
- A vida é uma escola, Dudu.
- Eduardo!
- Desculpe-me. A vida é uma escola, Eduardo.
- Anda dando para muitos outros, não anda?
- Não muitos.
- Claro que anda! Eles estão te ensinando coisas, não é?
- Você está bêbado, Eduardo. Homens não ensinam nada! São as meninas que me passam sempre umas dicas, ora.
- Sei. As meninas.
- É sério! Mas deixe de papo! Vamos ao que interessa, meu amor!

Ela começava a tirar a minha roupa. Eu parecia um gambá, mas estava sentindo tudo.

- Hoje, você não vai fazer esforço algum, OK? – dizia ela.
- OK, Andressa. Mostre-me o que aprendeu em suas “aulas”.

Andressa me levava às nuvens, como sempre. Mas daquela vez fora diferente; parecia ter feito pós-graduação em língua!

Depois de tudo:

- Andressa, eu te amo, sabia?
- Eu também te amo, Eduardo!
- Ama nada. Se um dia meu dinheiro acabar, sequer olharás na minha cara.
- Não é verdade, Eduardo. Sou grata pela vida que me dá.
- Chama isso de vida?
- Foi a que precisei agarrar, Eduardo. Não tive muita escolha.
- Hum... Acha que teve sorte em me encontrar?
- Sim. Agradeço a Deus por ter colocado você no meu caminho.
- Como pode envolver Deus numa coisa suja como essa?
- Você me acha suja?
- Você não, Andressa, mas tudo isso aqui. Isso nos levará ao inferno depois da morte, você sabia?
- A minha vida já é meio que um inferno, Eduardo. Você não acha?
- Faço ideia. Mas você deseja mudar isso um dia?
- Sim, desejo.
- Como?
- Sei lá.
- Por que não nos casamos?
- O quê?
- É! Na igreja! Perante a Deus!
- Está me gozando, Eduardo? Não se casaria com uma puta.
- Por que não?
- Porque sou uma puta!
- E daí?
- E daí que ninguém quer chegar para a família e apresentar uma ex-puta como noiva.
- Eu não tenho família, Andressa. Posso dizer que só tenho você. E me incomoda muito saber que você não tem só a mim, mas todos que chegarem com uma boa quantia.
- ...
- Larga essa porra de vida e vem morar comigo.

* * *
Cheguei até o balcão:

- Carlão, Andressa está indo morar comigo.
- Boa piada, Dudu.
- Não é piada. É sério.
- Se vocês têm amor à vida de vocês, não façam isso.
- Por quê?
- Simples: Andressa é minha e você tem que pagar por ela!
- Mas eu pagaria uma boa quantia para levá-la comigo, Carlão.
- Ah... Começou a falar a minha língua! Quanto?
- Toma aqui!

Eu acertei um soco no meio do nariz de Carlão, que caiu sobre as garrafas. Peguei Andressa pelo braço e parti sob os olhares arregalados das meninas e da clientela.

Somos casados há seis anos e temos uma filhinha linda chamada Libertad!

segunda-feira, 27 de abril de 2009

3

- Oi. Demorei? – eu dizia.
- Não. Acabei de chegar. Tudo bom? Sente-se! – respondia-me Érica.
- Ah, que bom.

Eu puxava uma cadeira.

- Por que escolheu esse restaurante? – eu perguntava.
- Para ser secreto.
- Sim, mas não precisava ser tão escondido? Demorei a achar.
- Não importa. Importa é que estamos aqui.
- É.

Enquanto preparávamos nosso diálogo, eu passava os olhos naquele local. Era bem requintado. Não só as mesas, mas todo o restaurante possuía um tom avermelhado. Um aspecto que caminhava entre o sombrio e o aconchegante.

- Bem, vamos ao que interessa? – dizia-me Érica.
- Sim, claro. O que você tem para me contar?
- O problema não está bem no que vou lhe contar, sabe? Mas no que vamos fazer a partir de então.
- Você está me deixando preocupado.
- OK! Vou ser direta. Jonas, eu estou esperando um filho seu!

Aquela frase me vinha como um projétil. Senti meu corpo gelar e minha garganta secar.

- O quê? Você ficou maluca?
- Você sabe que não, Jonas! Temos história o suficiente para que isso seja palpável.
- Mas não pode ser! E o remédio? Não vinha tomando?
- Vinha. Quer dizer, andei esquecendo em alguns dias...
- Alguns dias? Como que você me faz uma coisa dessas, Érica?
- Escute aqui, Jonas, eu não sonhei com um filho seu, se é o que quer saber! Não agora.
- Meu Deus...
- Mas sabe que eu te amo e...
- Ora, a merda já está feita! Temos então é que acabar com essa história sem que sua irmã suspeite de nada!
- Deixe-me ver se entendi. Você quer “acabar com essa história”, não é? Então, você quer abortar o nosso filho?
- E você tem alguma outra ideia, Érica?
- Sim! Tenho! Por que não sumimos daqui? Nós três!
- Pirou de vez... Alô! Acorde, Érica! Eu sou casado com a sua irmã! Esqueceu?
- Por isso mesmo! Ou você quer que tenhamos o nosso filho na frente dela?
- Meu Deus... Se Eliza descobre isso, Érica...
- Ela não vai descobrir. Escondemos o nosso romance há mais de seis anos, Jonas!
- Um romance, Érica! Mas um filho?

Na minha cabeça, só vinha o rosto ingênuo de Eliza, minha esposa. Naquele momento, tive inveja daquela calma que ela possuía. Pois se eu tivesse tal qualidade, jamais teria me envolvido com Érica. Ali, naquele momento, eu só pensava que, com essa mesma calma, Eliza passaria a ignorar a mim e a sua irmã. Seria o silêncio mais duro de suportar. Senti, naquela hora, o amor adormecido que sentia por Eliza transformar-se numa monstruosa presença.

- Jonas, nós podemos pensar melhor na ideia. Ninguém nos achará por aqui. Temos tempo. Tome alguma coisa.
- Não quero tomar nada. Onde está o exame?

Eu perguntava na intenção de desmascarar uma possível farsa. Mas...

- Aqui! – ela dizia.

Ela me mostrava um exame positivo.

- Merda!
- Não fale assim, Jonas! É nosso filho!
- Vou-me embora.
- Espere aí, Jonas! Aonde você vai?
- Para casa! Para minha esposa!
- E quanto a mim?
- Érica, entenda! Eu não posso! O que Eliza irá pensar? O que a sua família irá pensar?
- No que você pensava quando me levava para a cama, Jonas?
- Não complique as coisas, Érica!
- Não estou complicando! Quero saber o que via em mim! Um passatempo?
- Seis anos, Érica! Há seis anos que estamos enganando sua irmã! O que você esperava? Um casamento entre nós dois?
- Mas por que você nunca deixou que eu me aproximasse de nenhum outro rapaz? Por que dizia que tinha ciúmes de mim? Por que me dizia que eu era o seu verdadeiro amor?

E eu realmente dizia tudo aquilo. Érica tinha tudo que Eliza não tinha. Seis anos mais jovem que sua irmã, Érica me levava a estágios sentimentais que Eliza jamais me levara. A libido presente naqueles seus vinte e quatro aninhos foi capaz de me tornar no mais escroto dos homens. Um cara indigno do amor de Eliza. Uma bosta ambulante. Uma bosta que trepa com a própria cunhada.

- Está bem, Érica. Você espera que eu assuma uma vida ao seu lado, é isso?
- É o que eu sempre esperei. Eu repito: eu não programei essa criança! Eu juro! Mas...
- Espere sentada, Érica. Adeus.

* * *
Eliza me esperava no portão de casa.

- Oi amor. – eu dizia.
- Amor? Faz um filho na minha irmã e me chama de amor, seu cretino?
- Do que está falando?
- Não se faça de desentendido!

Eliza enfiava a mão no bolso de meu paletó e puxava um bilhete.

- Aqui a prova! – ela dizia.
- Prova de quê? – eu dizia sem saber que raio de bilhete era aquele.
- Érica deixou no seu bolso sem que você percebesse! Ela me ligou ainda pouco contando tudo. E disse que, como prova de que você esteve com ela, eu acharia esse bilhete.

Era um bilhete feito num panfleto do próprio restaurante. Érica já o tinha pronto e colocara em meu bolso logo assim que cheguei ao encontro. Ela só o pegaria de volta caso eu assumisse aquela criança.

Eliza, eu sei que não sou digna de seu perdão, nem mesmo de um olhar seu. Mas escrevo esse bilhete, não só para provar o quão cafajeste é Jonas, mas também para me despedir.

Dizia o bilhete.

Eliza, naquele momento, tentou entrar em contato com Érica, mas já era tarde. Sua irmã envenenara-se logo após o telefonema que fizera à Eliza.

Foi uma dor terrível. A ausência do corpo de Érica e do companheirismo de Eliza me veio como uma avalanche. Eu, que tinha dois amores, perdi-os de uma só vez... E pior: com um possível terceiro.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

DELÍRIO COLETIVO

Certo dia, o mundo amanheceu diferente, porém, igual, como ele sempre foi. Ainda estávamos em meados da década de 1950, quando todos os seres humanos, inexplicavelmente, dormiram por uma semana e tiveram o mesmo sonho: vivíamos numa era, na qual muitos dos nossos problemas e dificuldades se mostravam então sanados. Aparelhos eletrônicos capazes de fazerem tudo que se pudesse imaginar tomavam conta de grande parte daquele delírio coletivo.

No sonho, cada pessoa possuía o seu próprio aparelho telefônico. Este era, além de sem fio, bem menor do que os que tínhamos em casa. Os automóveis, com designers que se assemelhavam aos dos discos voadores que víamos nos filmes, nos indicavam os caminhos a seguir, numa espécie de mapa, instalado em seu painel. Os escritórios possuíam não mais aquele monte de máquinas de escrever e seus respectivos (barulhentos) datilógrafos, mas meia dúzia, ou menos, daquilo que chamávamos ali de computadores.

Aqueles computadores não serviam apenas para datilografar documentos, mas também para uma série de coisas. Lembro de, no meu sonho, chegar a ver desenhistas, músicos e até engenheiros tendo o computador como ferramenta imprescindível de trabalho. O jornal impresso tinha suas vendas em queda, já que no computador a gente também tinha acesso ao mesmo jornal.

Lembro também que me casara umas cinco vezes. Todas as cinco esposas que tive eu conheci através do computador. Os casamentos, na minha lembrança, não duravam mais que um ano, cada um. É que a coisa começava muito “quente”, mas, depois que nos encontrávamos pessoalmente, a coisa tendia a esfriar. Cheguei a pensar num casamento vivido completamente pelo computador. Seria lindo se não precisássemos nos ver em carne e osso.

Quando o planeta enfim acordou, um desânimo monstruoso se instalou. Mas permita-me contar como foi o “dia seguinte” a este sonho.

Na medida em que, do extremo leste da Terra para cá, as pessoas abriam seus olhos, naquela manhã de segunda-feira, o desespero do “não possuir” atingia a cada uma delas. Os jovens, achando ainda fazerem parte daquele sonho, corriam para a sala à procura do computador. Não o encontrando, procuravam seus aparelhos telefônicos portáteis a fim de informar à polícia sobre possível furto. Demoraram a entender que tudo fora um sonho. Um fotógrafo, ao ver todo aquele trabalho acumulado em seu ateliê, loucamente inconformado, cometeu o suicídio. Provavelmente, seus últimos flashes de pensamento foram sobre as maravilhas da máquina digital e da edição fotográfica feita no computador. As crianças choravam diante de seus brinquedos agora tão sem graça e sem a magia dos jogos eletrônicos sonhados instantes atrás. Os donos de indústrias lamentavam profundamente sobre a folha de pagamento; notavam com ódio a quantidade enorme de funcionários que ainda eram obrigados a empregar. Em seus sonhos, computadores gigantes faziam quase todo o trabalho industrial. Algumas donas de casa só caíram na real quando abriram suas geladeiras e não encontraram os produtos congelados para microondas.

No primeiro dia após o longo sonho, as ruas eram um misto de frustração e lamento. As pessoas passaram a não acreditar mais em suas próprias capacidades. Elas se sentiam impotentes e ao mesmo tempo desanimadas com a percepção de que tudo estava como sempre foi. As ajudas tecnocientíficas daquele sonho deixavam os corações não apenas saudosos, mas – por que não? – mortos.

- Você sonhou também? – perguntava-me um amigo.
- Sim! Dormi por sete dias! E você? – eu dizia.
- Eu também!
- Você tinha computador?
- Sim! E você?
- Tinha! E meu telefone? Eu carregava numa mochila! Ai, eu quero dormir novamente! Quero aquele sonho de volta!

E quem não queria voltar àquele sonho? Vários programas de rádio não foram ao ar naquele dia, pois seus locutores não apareceram na estação; caíram em depressão. Todo o mundo sofreu um desfalque imenso em termos de “funcionamento”.

Lembro de minha namorada:

- Você sonhou também? – ela me perguntava.
- Sim, sonhei.
- Preciso te dizer uma coisa.
- Diga.
- No sonho, namorei pelo computador.
- Eu casei cinco vezes, não ligue.
- Seu computador tinha câmera? Assim, bem minúscula, em cima da tela, tinha?
- Não. Por quê?
- O meu tinha. E... Não sei como contar, mas... Eu me mostrava nua para um monte de homens.
- Está tudo bem, foi só um sonho...
- NÃO! NÃO ESTÁ TUDO BEM, HOMEM DE DEUS! EU QUERO FAZER DE NOVO! QUERO SONHAR COM AQUILO TUDO NOVAMENTE!

Foi assim. As pessoas enlouqueceram. Alguns artistas plásticos se uniram para criar um movimento artístico no qual o foco era recriar aquele sonho em suas obras. Chegaram a pintar quadros que causaram certo furor. Todos queriam ter aqueles pequenos fragmentos do sonho em sua sala, por exemplo.

Eu comprei e guardei um desses quadros. O nome dele é “O Encontro”. Nele, um rapaz toca a mão de sua “namorada” pela tela de seu computador. O quadro é de um realismo impressionante... Hoje, décadas depois, me sinto como no encontro vivido naquele quadro. Sendo que a mulher ali exposta pode ser perfeitamente trocada pela – tão idêntica àquele sonho – realidade de hoje.

Naquela época, muitos morreram pela falta de toda aquela modernidade vivida naquele delírio. Hoje, quando o delírio se mostra real, sou eu quem me sinto morto.

* * *
Arte usada na capa: “Operários” de Tarsila do Amaral.

domingo, 19 de abril de 2009

SER EU?

Eu acordo e tudo à minha volta parece tão atrasado. Do livro que leio à cor das paredes de meu quarto. Viro-me para o lado e avisto parte de meu par de sapatos, estes já gastos de tanto eu procurar algo que me faça sentir-me parte do mundo em que “vivo”.

Olho para o relógio e, ao contrário de todo o contexto em que me encontro, o tempo passa rápido. Confundo os minutos com os segundos, os segundos com os centésimos... O tempo corre, porém, minha vida permanece estacionada numa espécie de vaga cativa.

Levanto e escovo os dentes com um creme dental já endurecido. Seco meu rosto com toalhas cujas estampas não cairiam bem nem mesmo no século retrasado.

Sigo.

O pão que se encontra à mesa é a partícula do meu dia anterior. Talvez a única coisa que eu trouxe para o dia de hoje; comprei-o ontem, ao vir do trabalho. Trabalho, pão... Isso tem uma lógica.

Lembro-me que preciso estar no escritório às sete horas. Noto-me atrasado, mas esse tipo de atraso eu não posso aceitar, de forma alguma! Sou um membro de um corpo empresarial que precisa caminhar a passos largos; bem diferente dos meus – lentos e desatualizados em relação aos passos alheios.

Ao chegar no escritório, antes de qualquer coisa, eu preciso cuidar da minha imagem virtual. Não quero que pensem que sou todo esse fracasso exposto anteriormente. Para isso, possuo ferramentas que tratam de levantar minha aceitação numa roda de pessoas que eu nunca vi.

As frases que escrevo são falsamente otimistas e despreocupadas. O que vale ali, para mim, é a intensidade de meu presente. Um sorriso bem inspirado causa, quase sempre, uma boa impressão de minha figura, que, na verdade, monta tudo aquilo em seu último sinal de vida feliz. Basta que eu “altere” e cheque se está tudo como eu planejei parecer. Pronto! Fecho-me e dano a viver todo o contrário do que acabei de criar.

- Não está atrasado, Alfredo? – diz o meu supervisor chefe.
- Sim, estou. Mas vou correndo...
- Acho bom, pois o cliente lhe aguarda às oito.
- Eu sei...

Outra luta: Desempenhar, ao mesmo tempo, o papel de vendedor eficiente (para a empresa) e o de vendedor sincero (para o cliente). Ser sincero e eficiente onde trabalho não é tão fácil. Eu sempre preciso romper com um dos papéis, mas nunca sei qual dos dois merece fidelidade absoluta.

Eu corro atrás das coisas novas, sabe? Mas, devido a minha condição de quase escravo, nunca as agarro no momento certo; estão sempre “obsoletas” à minha mão. Quando meu celular toca, tenho vergonha imensa de atendê-lo, mas essa vergonha eu guardo para mim mesmo. Fazer o quê? Eu preciso desse aparelho. Tenho até orgulho de alguns amigos cujos números de seus telefones eu guardo com carinho na memória de meu chamado “tijolo”. Amigos estes que talvez nada saibam da minha vida real.

- Como foi lá com o cliente, Alfredo? – pergunta-me meu supervisor chefe.
- Nada feito.
- Por quê?
- Ele preferiu a concorrência. Não tive como convencê-lo do contrário. Nossos produtos parecem estar a um passo atrás, além de nossas condições de pagamento não serem lá tão vantajosas...
- E onde está o seu poder de persuasão?

Aquela pergunta me pega de jeito. Onde está?

- Hein, Alfredo? Onde está o seu poder de persuasão?

Fico mudo por alguns segundos.

- Hein, Alfredo? Onde está?
- Persuasão? É...
- Sim. É o que espero de meus vendedores, ora!
- Poder de enganação, você quer dizer!
- Que seja enganação, Alfredo! Não me importa os artifícios que use! Importa-me que venda! Só isso! Espelhe-se no Leandro! Já viu o quanto esse menino vende?

O Leandro é novo, bonito, se veste bem, é “antenado”. Talvez Leandro seja a real imagem da empresa ou, pelo menos, a imagem que a empresa deseja ter. Leandro faz a empresa parecer compromissada com o bem-estar dos clientes. Talvez, eu não.

- Sim senhor – eu respondo.
- Já estamos no dia vinte, Alfredo. Sua meta ainda está longe de ser alcançada... Eu não sei não, hein...
- Eu melhorarei. Pode deixar.

Em casa, penso no que fazer para chegar ao patamar de um vendedor como o Leandro. Ao ligar o PC, percebo que “ali dentro” eu pareço tão bem-sucedido; sou tão bem aceito – vejo isso através do interesse em me conhecerem. Chego a dar um sorriso, de tão contagiado. Porém, deito-me sem uma conclusão do que realmente fazer.

Ao colar meu corpo num colchão já tão cheio de sonhos, percebo o tempo voltando ao normal. Ao meu normal: lento, atrasado e completamente desinteressante.

Durmo à espera da escolha do dia seguinte: ser eu?

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CASA DO BESOURO

Não pensei em nada. Apenas liguei o meu carro e tomei a estrada rumo à casa de meus avós, no interior do estado. Somente depois de alguns quilômetros é que comecei a analisar o real sentido daquela fuga. Por que para a casa dos meus avós? Não pela distância, mas por serem os avós mesmo. Eu podia muito bem ir para a casa de um amigo ou de uma amiga – o que na ocasião seria até melhor. Economizaria gasolina, tempo... E nem teria tempo para tal análise também.

Ah... Meus avós. Eles foram os elementos que mais prejudicaram o meu caráter, confesso. Mas, internamente, isso sempre me fez tão bem. O meu egoísmo, por exemplo, nunca me afetara. O meu temperamento agressivo também não.

Eu tinha acabado de encontrar a minha esposa, completamente embriagada, às altíssimas gargalhadas. Ela não apenas ingerira uma grande quantidade de álcool, o que seria até aceitável, mas também gozava de um frenesi junto a mais dois rapazes; na nossa cama. Estes, considerados anteriormente ao fato como grandes amigos meus, eu matei na hora. Alice não sabia da existência de uma Colt bem atrás do nosso armário.

Ao avistar tal cena surreal, mergulhei-me fundo naquele misto de loucura e ódio. Resolvi então romper o contrato social; peguei a pistola e, em disparos tão certeiros que me assustavam, deitei os corpos dos dois canalhas naquele lençol guardado por Deus Baco.

- FABRÍCIO! VOCÊ FICOU MALUCO? – gritava Alice.

Deixei a frase de Alice no ar. Poupei-a da morte nem sei por quê. Talvez por achar que aquela vagabunda que me fizera juras sobre o altar de algum São qualquer merecesse mais o peso das duas mortes em vida que a sua própria morte.

Matá-la seria dar-lhe a chance de continuar a festa e chegar ao orgasmo duplo junto àquelas almas que eu acabara de mandar para o inferno. Ela ia também, eu sei disso. Mas esse gozo ela não terá. Ao invés disso, dei-lhe o pranto aos berros sobre aquela cama, que de branca se tornava rubra.

Então, como já disse, peguei meu carro e rumei para a casa de meus avós. Eu já previa a frase clássica de meu avô após eu contar toda a história:

- Ela fez isso com você? Eu sempre soube que ela não prestava, meu neto!
- Pois é, vovô. Olha o que ela me obrigou a fazer!
- Mas foi bem feito para eles, Fabrício. Provaram o gosto dos que ousam desrespeitar um Valentim! Seu pai já sabe disso?
- Não, vovô. Você sabe do que ele seria capaz de fazer, caso soubesse.
- Pior é que sei. Aquele ali não é um Valentim. Submisso...
- Cadê a vovó?
- Foi na casa de uma amiga dela. Esses chás, você sabe...
- Sim.
- Bem, o que você pretende fazer agora, Fabrício?
- Eu esperava que o senhor, com o seu conhecimento, desse uma telefonada para aquele amigo seu, o Coronel Jairo.
- Ah, sim, claro. Vamos ligar agora mesmo.

Enquanto meu avô cuidava de minha tranquilidade, eu abria uma de suas cervejas – o velho nem bebia, mas tinha-as sempre à geladeira para o caso de alguma visita. Eu caminhava por aquela casa enorme enquanto ouvia os argumentos tortos de meu avô com o Coronel Jairo.

- Sabe como é, Jairo, o garoto agiu por legítima defesa (...) Claro que não foi, mas sei que dará um jeitinho de ser, não é mesmo? (...) Posso contar com a sua ajuda, não é? (...) Sabia que sim. Um grande abraço!

Eu chegava até ele:

- E então, vovô?
- Ele me disse que os homens dele já estão no local, por coincidência. Parece que a Alice já havia chamado a polícia.
- Vagabunda.
- Era de se esperar. Mas fique tranquilo, Fabrício. Haja o que houver, não vai dar em nada. O Jairo vai cuidar de tudo.
- Eu espero.

O tempo passou, e não mais tive notícias de Alice. Fiquei na casa de meus avós por uns dois meses. Abandonei emprego, tudo... Mas um dia, resolvi voltar para casa.

- Lembre-se, meu neto, volte como um coagido, mas nunca como um foragido. Entendeu?
- Sim, vovô. Muito obrigado por tudo.
- Qualquer coisa, saiba que estarei aqui.
- Sei disso!

Ao chegar em casa, deparava-me com Alice.

- Você ainda está aqui?! Ainda tem coragem de morar sob meu teto?
- SEU ASSASSINO!
- Sua vagabunda! Suma daqui, anda!
- SEU FILHO DA PUTA!
- Já falei para sumir daqui.
- O QUE VOCÊ VAI FAZER? VAI ME MATAR TAMBÉM? É ISSO?
- É o que você quer, não é?
- POR ONDE VOCÊ ANDOU, SEU ASSASSINO? EU ESTOU SENDO AMEAÇADA PELA POLÍCIA, VOCÊ SABIA?
- É o que mereces pela sua vagabundagem, Alice.
- Eu aposto que foi o seu avô! Já comprou a porra da polícia!
- De fato... Agora, sem querer ser chato... SUMA DAQUI!
- Vai ter que me tirar à força!
- Como quiser.

Peguei-a pelos cabelos e, sem que meu cigarro caísse da boca, joguei-a no meio da rua.

- EU VOU TE MATAR, SEU DESGRAÇADO!
- Vai fazer o que fez com os seus amantes, Alice? – eu dizia a fim de chamar a atenção dos vizinhos.
- SEU MONSTRO! SABE O QUE EU MAIS ME ORGULHO NESSE MOMENTO? TER DADO AQUILO QUE VOCÊ ACHAVA SER SOMENTE SEU PARA DOIS CARAS!

Não pensei. Fui até em casa, peguei a Colt novamente e executei Alice ali mesmo. Os vizinhos entraram para suas casas enquanto o corpo de Alice jorrava o mais grosso caldo vermelho.

Segui novamente para a casa de meus avós. Somente eles me entendem nessas horas.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

JE T'ADORE

De tanta saudade, mal consegui dormir naquela noite. Saber que Juliana estaria de volta ao Brasil causava-me uma euforia incontrolável.

Juliana fora à França aprofundar-se nos estudos daquela língua que tanto me atraía. Era tão gostoso apreciar sua boca pequena e delicada a pronunciar aquele francês. Lembro que eu a telefonava a fim de ouvi-la dizer "je t’adore". Ela dizia, talvez, mais convincentemente que qualquer francesa!

Juramos não terminarmos o nosso romance durante aqueles anos em que ela estivesse por lá. Mantive-me firme pelos contados 1.824 dias em que estivemos longe um do outro. A confiança que depositei em Juliana superava a minha própria fé em Cristo. Verdade! A vida que objetivava ao seu lado era a minha religião; a casa que eu construía, a minha igreja; e Juliana, o meu tudo!

Dois meses antes da data de seu retorno, eu já me encontrava numa excitação que me atrapalhava em tudo que eu ousasse fazer. Eu não conseguia estudar, nem comer, nem nada... Eu era a espera em forma de gente. Meus lábios tremiam. Era a vontade louca de tocar aquela boca novamente. E que boca, meu Deus.

Juliana tinha a estatura mediana e seus cabelos castanhos claros e ondulados davam àquele rosto de finos traços a ideia de perfeição em conjunto. A beleza de Juliana seria capaz de fazer os franceses reverem os seus próprios conceitos. Não duvidaria se soubesse que as francesas estivessem usando o penteado ou o tipo de bolsa que Juliana costumava usar. Os olhos, que me fitavam sempre num misto de carinho e tesão voraz, seguiam o tom dos cabelos.

As fotos que me enviava com frequência não eram capazes de fazer aquele aperto em meu coração cessar. As cartas, sempre tão cheias de promessas, vinham-me quase todas manchadas das lágrimas de Juliana, que caíam enquanto escrevia.

Naquela manhã de terça-feira, eu acordava de um sono muito mal dormido. Na verdade, como eu já disse, eu nem pregara os olhos. Pegava o meu Fusca e partia direto para o aeroporto.

Pernas e mãos trêmulas. Lábios secos de tanta distância. Lá estava eu nos meus sonhados últimos minutos de espera.

Um amontoado de gente começava a chegar próximo a mim. Muitos choravam, mas minha aflição me impedia uma análise mais profunda sobre aqueles prantos.

- Não pode ser! Não pode ser! – dizia uma senhora.
- Calma, mamãe! Por favor! – dizia, aparentemente, sua filha.

Aos poucos, as lágrimas alheias foram tomando todo aquele espaço. Imaginei na hora quantos anos de espera estariam ali somados naquele hall que esperava do voo vindo de Paris.

- Não sobrou ninguém, meu Deus! Deu agora no rádio! – dizia um senhor. Talvez o único, além de mim, sem lágrimas.
- Não é possível, meu Pai! – dizia uma outra senhora.
- O que está...? Por que vocês estão chorando? – eu perguntava àquele senhor.
- Esperava o avião que vinha de Paris?
- Sim, por quê?
- Meu filho, eu sinto muito... Não viu os jornais?
- Não! O que houve, pelo amor de Deus?
- O avião caiu ainda na França.
- Ah!?

Ali eu parei. Não ouvia mais choro nem nada... Eu olhava ao meu redor e o que eu via era um monte de rostos desfigurados em seus choros mudos. Tinha a sensação de que desmaiaria, mas permaneci de pé. Cheguei a ver, numa dessas alucinações que nos tomam a alma em momentos difíceis, meu corpo caído ao chão. Mas eu estava de pé.

- Gente, por favor, um pouco de calma! – dizia um funcionário da companhia aérea.

Todos calavam. Então, ele continuava:

- O avião que vinha de Paris, acredito que vocês já saibam, sofreu uma queda, logo depois de sua decolagem e...

Ali, minha vida acabava. Depois de falar e falar, aquele funcionário ditava os nomes das vítimas. No meio da lista, “Juliana Fagundes Leite”.

Eu deixava o hall e ia até o lado de fora. Surdo, mudo, um vegetal.

Até hoje me pergunto o porquê de não sabermos o que nos prepara a vida. Se soubesse de tal destino, Juliana não iria à França; continuaria com o seu francês intermediário mesmo. Eu não me importaria nem com o esquecimento total daquela língua por parte de Juliana. Aos poucos ela poderia até mesmo perder da memória a pronúncia correta do “je t’adore” ou do “je t’aime”. Porém, teria aqueles cinco e, talvez, o resto dos anos de minha vida para ouvi-la dizer o mais lindo e sonoro “eu te amo”. Meus lábios tremem até hoje.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O SOL DE ABAJUR II - Durma Com Os Anjos


De repente, lá estava eu deitado sobre aquele chão sujo e quente. Fazia um sol de rachar, mas eu não tinha escolha; permanecia deitado. As pessoas corriam, algumas até passaram por cima de mim, outras sequer me viram. Lembro de um par de sapatos – a única coisa que eu conseguia ver daquele sujeito –, que não saía do meu lado. Eu tentava recostar meu rosto sobre o solo, mas o asfalto soltava um vapor que tornava tal ato impossível.

“Calma, gente, calma!” era o que eu ouvia de alguns. Eu, abraçado à minha mochila, apenas tentava entender o que realmente ocorrera. “Não mexa nada, OK, rapaz?”, aquele par de sapatos me dizia. “Sim”, eu, sem saber o porquê, respondia.

Outro par de calçado chegava até a mim. Dessa vez um par de tênis feminino.

- David?!

Eu reconhecia aquela voz! Era da minha amiga Bianca! Bianca Tavares, a escritora!

- Bianca?!
- Sou eu, David! O que aconteceu, meu Deus?
- Eu não sei, Bianca. Só sei que...
- Não converse com ele, moça. Deixe-o respirar. E você, rapaz, fique quieto, por favor! – dizia o “par de sapatos”.
- Sim, senhor – eu respondia.

Bianca levantava-se ficava ali ao meu lado. Um par de sapatos de um lado e um par de tênis do outro.

Em poucos minutos, toda a rua estava deserta. As lojas fechavam suas portas, os camelôs corriam com suas mercadorias e os pedestres sumiam como num truque de mágica.

Sirene! Eu ouvia uma sirene.

- Eles chegaram, graças a Deus! – dizia o senhor.
- Vai ficar tudo bem, David! – dizia Bianca.
- Calma, calma! – diziam os paramédicos que acabavam de chegar.

Eu não estava entendendo nada. Talvez estivesse perdendo a consciência, não sei.

Já na maca, imobilizado, eu pude ver os rostos das pessoas. O dono do par de sapatos era um senhor aparentando seus cinquenta anos. Bianca segurava minha mão e, como sempre, usava um par de óculos de sol. Ela estava ainda mais bonita que da última vez que a vira. “Vai ficar, bem”, ela dizia.

- Eu posso ir com vocês? – perguntava Bianca.
- Sim, pode – respondia um paramédico. – Você é parente dele?
- Sou sim – mentia Bianca.

A ambulância corria demais, eu sentia. Bianca segurava mais forte minha mão e tentava me manter acordado. Um fio de lágrima corria seu rosto até o queixo.

- O que houve? – eu perguntava ao paramédico.
- Fique calmo. O senhor foi atingido nas costas por uma “bala perdida”.
- Meu Deus...
- Mas fique calmo, estamos aqui para lhe ajudar. Já estamos chegando ao hospital, sim?
- OK...

Depois desse “OK” eu apagava.

* * *
Quando eu voltei a abrir os olhos, Bianca estava à beira do meu leito.

- Como está se sentindo? – ela me perguntava.
- O que aconteceu, Bianca?
- Descanse, David. Você foi atingido por uma “bala perdida”, no Centro da cidade. Os médicos lhe trouxeram aqui, lhe operaram e é tudo que eu sei.
- Mas... Eu não me lembro de nada disso, Bianca. Quer dizer, lembro de ti apenas.
- Não importa, David. O que importa é que está tudo bem.
- Será? Sinto-me estranho.
- Sente-se como?
- Pela metade.
- Como assim, David?
- Não sinto minhas pernas, Bianca.
- Ah?!

Naquele momento, entrava um médico.

- Sr. David?
- Sim.
- Boa noite, David. Eu sou o Dr. Cláudio Moreira e preciso ter uma conversa com o senhor, pode ser?
- Sim, claro, doutor.
- Você é esposa dele?
- Namorada... – dizia Bianca. Na certa para não ser convidada a se retirar daquele assunto.

Um misto de “calma profissional” e de certa gravidade tomava o semblante do Dr. Cláudio. Ele se sentava numa cadeira e, sem tirar os olhos de uma prancheta, começava:

- Bem, Sr. David, acho que já deve saber o que lhe trouxe a esse hospital, não?
- Sim. Levei um tiro nas costas, não foi isso?
- Sim. Você foi submetido a uma cirurgia para a retirada do projétil, que ficou alojado na...
- Doutor, me poupe dos detalhes, por favor. Eu vou voltar a andar?
- !!!
- Só me responda isso, doutor. Porque já não sinto minhas pernas! Estou paraplégico, não estou?
- Fique calmo, senhor.
- Estou ou não estou?
- Sim, infelizmente, você está paraplégico – dizia o médico meio sem jeito.

Bianca, como num sobro, dizia “não”. Senti nela um penar mudo. Como se ela estivesse escondendo milhões de gritos.

Depois que o médico saiu, Bianca ainda permaneceu um pouco ao meu lado. Com palavras que só uma escritora de imaginação fértil como a dela seria capaz de dizer, tentava me acalmar diante da catástrofe.

Eu começava a imaginar se a história do “namorada” fosse verdade. Seria tão bom...

Por fim, ao se despedir, ela dizia:

- Amanhã eu volto, está bem?
- Promete?
- Sim, prometo. Tentamos avisar alguém da sua família, mas não achamos seu celular na sua bolsa. Quer que eu os avise?
- Por favor.

Eu passava os números de alguns telefones para Bianca.

- Você vai superar isso, David.
- Assim espero. Não consigo pensar em nada... Só me vem à mente uma estrada imensa, sem fim. Estrada essa em que nunca mais poderei caminhar.
- Deixa de besteira, David... Bem, eu já vou indo. Quer que apague a luz?
- Sim, por favor, mas deixe aceso o abajur.
- Pegaste minha mania, é?
- É o tipo de sol que me lembra você.
- Bobo. Boa noite, David. Dorme com os anjos.

Ela me beijava o rosto. Gostei de sentir seus lábios, mas lamentei sentir também certa pena de minha situação.

Bianca fecha a porta. Naquele momento o sentimento de solidão se fez imensamente presente. Durante toda aquela noite eu sonhei com Bianca. No sonho, ela tinha asas de anjo, e por diversas vezes ela me salvava. Um corpo alvo que voava todo o tempo sobre mim e me tirava de todos os perigos. Lembro que em algumas vezes tentei beijá-la, mas minhas pernas pareciam presas ao chão. Era, talvez, o meu inconsciente já se acostumando com os meus novos limites.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

NA MESMA TECLA

Isso faz tempo que aconteceu, mas ainda me lembro com riqueza de detalhes. Eu tinha um conjunto musical no qual todos eram amantes do jazz e da bossa nova. Porém, devido à falta de locais específicos para se fazer esse tipo de som, a gente tocava em bordéis e casas de strip-tease.

As músicas que nós éramos obrigados a tocar nesses lugares não eram das melhores. Para falar a verdade, eram da pior qualidade. Mas era o nosso dinheiro. O aluguel, a gasolina e o leite de algumas crianças dependiam daquelas notas de mau gosto. Fazer o quê? Tínhamos que tocar!

Certo dia, o nosso pianista, o Sávio, sofreu um acidente de automóvel e, infelizmente, partiu dessa para outra. Deixou a esposa Elaine e o filho Guto na pior. Elaine era deficiente auditiva – o que explica, talvez, tantos anos de casamento com um pianista. E Guto sonhava seguir os passos do pai; estudava piano desde cedo.

O Sávio sempre foi o mais “bem sucedido” da banda. Além de tocar conosco, ele pegava festas particulares, empresariais, de casamento etc. Nunca faltara nada à Elaine e nem ao Guto. Mas depois do acidente a coisa ficou apertada.

Foi quando o Guto, então com dezesseis anos, apareceu na minha casa.

- Fala Guto! O que te traz? Está tudo bem? – eu o recebia.
- Está sim, Cristiano. Só precisava trocar uma palavra contigo. Pode ser?
- Claro, entre.

Guto entrava e logo desabava em um de meus sofás.

- Diga – eu dizia.
- Então, Cristiano. Queria saber qual a possibilidade de eu substituir meu pai na sua banda.
- Veja bem, Guto...
- Pode falar.
- Nós estamos fazendo testes com alguns pianistas. São caras bem experientes, entende? E...
- Está querendo dizer que eu não tenho experiência para tocar com vocês? É isso?
- E não é verdade? Eu entendo que a situação sua e de sua mãe tenha se complicado, mas há outras famílias que dependem do funcionamento dessa banda. Eu queria muito ajudar vocês, mas não posso lhe colocar no cargo apenas por ser filho do antecessor.
- Deixe-me fazer o teste, então.

Eu pensava “que raios esse fedelho acha que é?”, mas sentia que havia nele uma vontade muito grande de tocar.

- OK, Guto. Vá ali naquele piano e mostre tudo o que você sabe.
- Tudo bem.

Guto aproximava-se do piano que eu conservava em minha sala. O garoto parecia muito com o Sávio quando mais novo. Até o andar. Um andar de pianista!

- O que você quer ouvir? – ele perguntava.
- Não sei. Quero que dê tudo de si. Manda ver.
- OK.

Guto, genialmente, foi de Chopin a Zeca Pagodinho. Eu não acreditei no que vi. Não sabia que o garoto estava tão bom naquilo. Ele foi muito esperto. Mostrou-me que era culto, mas sem deixar de me provar que estava preparado para todas as armadilhas da noite.

- E então? O que achou? – perguntava-me Guto.

Eu já estava com o telefone na orelha:

- É do Clube das Fatais? Preciso falar com o Fausto (o dono daquele bordel).
- Alô!
- Fausto? É o Cristiano, tudo bom?
- Tudo indo. O que é?
- Pode confirmar a nossa volta para esse sábado!
- Até que enfim, seu bando de bichas!
- Fechado!

* * *
Aquele foi o primeiro show de Guto conosco. Tivemos que molhar a mão de muita gente para que os dezesseis anos do garoto não dessem problemas para a banda ou para os clubes onde tocávamos.

Guto era divino nas teclas. Sávio – que Deus o tenha – não chegava nem aos pés do filho, que convencia-nos a colocar pelo menos três improvisos do Thenolious Monk nos repertórios. Nós nunca havíamos imaginado que um jazz faria algum sucesso naquelas casas. Não era bem o jazz, mas o carisma de Guto o responsável pelos aplausos – antes inexistentes. Em duas semanas não havia sequer uma prostituta daqueles inferninhos que não o chamasse de “meu bebê”.

Até que um produtor – em uma escapadinha básica no Clube das Fatais – assistiu o Guto numa de suas melhores apresentações. A partir dali, as coisas foram mudando. Mudaram tanto que a banda, antes chamada “O Sopro da Madrugada”, mudou seu nome para “Guto & Banda Sopro”. Gravamos apenas um disco, que nos rendeu shows em lugares que jamais imaginávamos pisar.

Durante a turnê com o show “A Madrugada de Guto”, no Canadá, nosso pianista prodígio, já com seus dezoito anos, foi atropelado por uma moto que vinha em alta velocidade. Não deu nem tempo de prestar os primeiros socorros. Guto morrera na hora. Com a banda sentimentalmente em pedaços pela segunda vez, voltávamos para o Brasil com o corpo daquele que nos levou ao nosso auge.

O tempo passou. Anos mais tarde, descobrimos que Guto, pouco antes de partir conosco para o Canadá, havia deixado uma menina grávida no Brasil. Quando conheci, o filho de Guto já tinha uns quatro anos e morava com a mãe e a avó Elaine. A mãe do menino, Clara, pediu para que eu fosse até a casa deles. Queria que eu visse uma coisa.

- Olá... Então esse moleque é filho do Guto?
- É sim, Cristiano. Ele se chama Levi – dizia Clara.
- Que gracinha. É a cara do Guto! E do Sávio também!
- Não só a cara, Cristiano. Veja isso!

Clara colocava o menino frente ao velho piano de Sávio. O menino dedilhava “Parabéns Pra Você”.

- É... Mas não sei se nós da banda viveremos até lá, Clara... – eu dizia com os olhos cheios de lágrimas.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O CONDUTOR

- Mas Dr. Célio, o senhor tem certeza de que não há riscos para a minha filha?
- Disso eu tenho. Pode ser que meus objetivos não sejam alcançados, mas pior do que está ela não fica. Isso eu garanto!
- OK. Sabe o quanto confio no senhor, não sabe? Desde os tempos do colégio.
- Pedro, você não sabe o quanto estará me ajudando colocando sua filha à disposição da ciência.
- Só quero que ela fique bem, Dr. Célio. É o que lhe peço.
- Eu lhe garanto, Pedro! Fique tranquilo. Traga-a aqui amanhã, às nove. E pare de me chamar de doutor, por favor.

O Célio é um velho amigo meu. Sempre muito estudioso, ele hoje é um conceituado oftalmologista, além de se dedicar incansavelmente às suas pesquisas.

Certo dia, Célio me telefona com uma notícia que, para mim, fora a mais esperançosa de todas que já ouvira na vida.

- Pedro! Acho que estou no caminho certo. Tenho quase certeza de que consigo levar um cego à visão!

Minha filha, a Luciana, é cega de nascença. Nunca imaginei que um dia pudesse estar diante de uma solução dessas. A menina, então com quatorze anos, já estava tão habituada à cegueira, que já fazia um bom tempo que não tocava na probabilidade de um dia enxergar.

- Nossa, Pedro! Mas como assim?
- Eu só preciso fazer mais alguns testes, entende? Mas creio que, dentro de poucos meses, poderei experimentar a cirurgia em sua filha, se você autorizar, claro.
- Se for para o bem dela, Dr. Célio...
- Claro que será! Não somente dela, mas de todos os cegos! Assim que eu tiver notícias mais concretas, te ligo.
- OK.

Eu já havia conversado com Luciana sobre as pesquisas de Célio, mas a garota não se mostrava muito animada. Parecia bastante confortável à escuridão eterna. Mas eu, de alguma forma, acreditava no meu amigo Célio. E a minha vontade de ver minha filha curada era tão intensa... Queria que tivesse uma vida normal. Enxergasse as cores da vida, do mundo.

Quando Célio me informou sobre a possibilidade da cirurgia, corri para contar à Luciana, que se mostrou meio distante de minha euforia.

- Você não fica esperançosa, filha?
- Um pouco. Mas só um pouco, sabe?
- Não tem vontade de ver como é tudo por aqui? Saber, enfim, o que chamamos visualmente de lindo, de feio; ver seu pai, filha! Não tem?
- Sim, claro que tenho. Mas não queria depositar muitas esperanças. É um experimento, não é?
- É, filha, mas o Dr. Célio é um cara super experiente. As chances são grandes, segundo ele.
- OK.
- Amanhã às nove horas, está bem?
- Está bem, papai.

* * *
Como combinado, às nove horas em ponto, lá estávamos nós: Célio, minha filha e eu. Luciana permanecia calada; eu, apreensivo; e Célio confiante.

- E então, Luciana? Tudo firme? – perguntava Célio.
- Sim, doutor, tudo firme. – respondia Luciana apertando meu braço.
- Está desanimada? Ou com medo?
- Um pouco de medo, doutor.
- Relaxa, menina. Não vai doer nada. Eu prometo.

Eu ficava na sala de espera enquanto Célio trabalhava.

Depois de algumas horas, Luciana saía da sala com os olhos tapados por uma atadura que circulava toda a cabeça.

- E então, Dr. Célio?
- Correu tudo bem. Deixe-me dizer sobre a cirurgia...

Célio me explicava todo o procedimento, mas eu não compreendia muito bem. Na verdade, eu só queria saber quando minha filha enxergaria.

- Olha, Pedro, não tire o curativo, entendeu? Daqui a dois dias, vocês voltam aqui para que eu possa retirar.

Célio puxava-me para um canto e dizia ao pé do ouvido:

- Caso a cirurgia tenha sido satisfatória – o que eu acho que foi –, preciso prepará-la psicologicamente para a visão.
- Como assim?
- É muita informação. Ela nunca viu nada na vida. Ela possui em sua mente uma imagem das coisas apenas pelo tato. Ao enxergar, será uma quantidade enorme de informações ao mesmo tempo. Precisamos ir com calma, OK?
- Como quiser, Dr. Célio.
- Quando vai parar de me chamar de doutor, Pedro?

Eu ria.

* * *
Dois dias depois, eu levava Luciana para retirar o curativo e, enfim, saber sobre o sucesso ou fracasso da cirurgia. Luciana dizia que sentia certa diferença nos olhos. Tinha dentro de si a esperança de que Célio acertara.

Dessa vez, eu estava presente à sala de cirurgia. Eu não perderia por nada aquele momento. Célio usava uma espécie de varal com lençóis brancos, a fim de ir dando a visão das coisas aos poucos à Luciana.

Célio retirava o curativo lentamente:

- Permaneça com os olhos fechados, sim? – dizia Célio.
- OK. – respondia Luciana.
- Bem, quando eu mandar, abra os olhos lentamente. Caso esteja enxergando, irá ver a mim e a seu pai. Atrás de nós há um lençol claro...
- OK.
- Pode abrir, Luciana.

Lentamente, Luciana abria os olhos e ao mesmo tempo um sorriso crescente tomava-lhe o rosto. Minha filha adquiria um semblante que eu jamais vira. Era como se ela estivesse, enfim, nascido, acordado para a vida.

- O que vê, Luciana? – perguntava Célio.
- Vejo o senhor, doutor. Vejo meu pai. Vejo o senhor... Que é tão...

Luciana pausava.

- Como?
- Tão lindo!

Luciana largava minha mão e pegava na de Célio. Rapidamente, meio fora de si, pegava-o pelo pescoço e o beijava num misto de tensão e inexperiência. Eu não pude fazer nada. Sim, era a minha filha de quatorze anos beijando um velho amigo de quarenta e seis, mas era também uma jovem recém chegada ao “mundo” beijando o homem que a conduziu. Naquele momento, chamá-lo de doutor ou de genro pouco me importava. Em meio àquela situação feliz e embaraçosa, eu apenas chorei de emoção.

* * *
Foto da Capa por Ruy Machado