domingo, 27 de setembro de 2009

A ENTREVISTA II

Era inacreditável a insistência de certas mídias em entrevistar um cara como eu, que detestava toda essa palhaçada de idolatria. O último imbecil que cruzara minha porta a fim de me fazer perguntas idiotas por pouco não levou uma bengalada no meio da testa; e agora eles enviavam um novo jornalista, só que dessa vez um cara bem mais experiente, apenas uns vinte anos mais novo que eu.

O cara era uma massa enorme. Gordo, barbudo, com cara de mal e um ar culto que poderia ser percebido a milhares de quilômetros. A minha empregada, ao abrir a porta, o pedia para entrar. Intrometida que só, foi adiantando o assunto a respeito da minha bengala voadora, mas:

- Eu já sei dessa história, senhora – dizia o jornalista – Eu vim da mesma redação que aquele jovem. Foi um engano tremendo o mandarem entrevistar o Luciano, entende? Aquele garoto não conhece nem a décima parte da... Da obra do Luciano.

- Sei... – respondia minha empregada com num tom de ignorância completa.

Ao ouvi-lo entrar, tratei de chegar até à sala. Afeiçoei-me com aquele homem logo de cara, mas mantive minha máscara ríspida mesmo assim.

O calor que, quando jovem, me tirava do sério no verão se faz presente agora o ano todo. Por aí dá para imaginar o humor de um velho quando se soma o suor ininterrupto, o Parkinson e os jornalistas insistentes.

- Você é o...? – eu perguntava.

- Matheus, S. Luciano. Vim aqui para...

- Eu já sei para o quê! Fui eu quem confirmou essa entrevista, não foi?

- Sim, claro, é que...

- Sem mais... Sente-se aí e comece quando quiser.

- OK.

Talvez o tal Matheus tenha ficado um pouco sem jeito com a minha maneira de falar, mas reagiu muito profissionalmente. Ele se acomodava frente ao meu sofá e, pude notar, não usava nem metade das bugigangas daquele garoto de antes; apenas um bloco Recycled – a melhor marca de papel atualmente – e uma caneta.

- Como nos velhos tempos, não? – eu perguntei.

- Sim, ainda prefiro o papel. Não é branco como antigamente, mas...

- Pois é...

- Posso começar a entrevista, S.Luciano?

- O quanto antes, por favor.

- Bem, vou começar por uma pergunta que há anos tenho vontade de lhe fazer...

- Ah, essa é boa! Vai me fazer uma pergunta que você tinha vontade de saber a resposta? É para você a entrevista?

- Não, S. Luciano, é que acho ser uma pergunta de interesse de quase todos os seus leitores.

- Tu és um deles?

- Sim, S. Luciano. Li TODOS os seus contos! Todos!

- OK... Pode perguntar!

- Bem, desde seus primeiros contos, no início do século, o senhor aborda o romantismo de uma forma que para muita gente é irreal. Por exemplo, o senhor deve se lembrar, aquele jovem personagem, o Rômulo, namorado da gloriosa Luana. Não somente ele, mas a Luana também, possuía um comportamento um tanto quando “perfeito demais”, inclusive para a época, no que se trata de romantismo. Até hoje, quando você escreve sobre casais, essas características se mantêm, sendo que hoje, muito pior que nos anos de 2009, 2010, as pessoas transam enquanto esperam o ônibus! Não se sente, como se dizia antigamente, dando murro em ponta de faca? Não acha que as coisas que escreve não condizem com a realidade; especialmente a de hoje?

- Matheus... É Matheus o seu nome, não é?

- Sim. Matheus.

- Então... Primeiramente devo lhe dizer que gostei muito da sua pergunta. Terei a chance de, após décadas, explicar o porquê das minhas linhas, às vezes tão chamadas de “melosas”, serem assim.

- Por favor.

- Desde que comecei a escrever contos, isso com meus vinte e cinco anos, mais ou menos, sempre tive uma vontade enorme de que aquelas coisas se tornassem uma realidade na vida de alguém. Lembro que certa vez escrevi sobre uma menina que tinha na nuca a tatuagem de um “P”, que significava a palavra “pergunte”...

- Lembro desse. “Melissa – O interesse leva à pergunta”.

- Exatamente, Matheus!

- Uma coisa meio difícil de acontecer na vida real.

- Pois é, mas como eu queria que aquilo inspirasse a vida de alguém, Matheus! Seria lindo aquilo tudo na vida da gente! Na minha juventude essa coisa de romantismo já era vista como démodé, coisa daqueles cantores como o falecido Roberto Carlos. O sentimento verdadeiro entre o homem e a mulher estava no princípio disso aí que a gente conhece hoje como sexamor, sexamizade. O sexo ficou tão banalizado que todo o caminho até ele se tornou desnecessário. Você chegou a viver um pouco desse princípio que estou falando, não?

- Sim, S. Luciano, o caos desse princípio, na verdade. Meu primeiro beijo e minha primeira transa foram juntos.

- Tens Aids?

- E quem não a tem, S.Luciano?

- Eu não tenho!

- Sorte a sua.

- Mas respondendo a sua pergunta, eu tenho a absoluta certeza de que escrevi e ainda escrevo muitas coisas que não condizem com o comportamento real das pessoas, mas acho que no fundo os meus pouquíssimos seguidores ainda se identificam com esse lado irreal.

- O senhor mesmo considera irreal, não é?

- Considero irreal, sim, mas apenas às pessoas desprovidas de sentimento, caro Matheus. Você gosta dos velhos contos da Luana, por exemplo?

- Sim, principalmente os da primeira fase.

- Aquilo é irreal para você?

- Um pouco. Mas não pense que não tenho sentimentos!

- Não, meu filho, você não tem é passado. E, nos dias de hoje, quem não tem um passado de pelo menos cinquenta anos não tem sentimento algum. De real em ti há somente a carne.

Sem dizer palavra, o jornalista catou suas coisas e se foi.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

FORA DO SCRIPT

“Saiba que lhe esperarei o tempo que for preciso, Custódio. Não esqueça nunca que do outro lado do Atlântico há uma mulher aflita e louca pelo seu retorno, meu amor”.

Leve. Apesar do espanto e do medo, afinal eu estava embarcando para Itália para lutar na 2ª Guerra, me senti leve diante da fala gaguejada, doce e encantadora de Isadora. Saber que minha namorada esperaria pela minha volta me deixava até com a certeza de vitória dos países aliados sobre o eixo.

- Corta! – gritava o diretor – Muito bom, Isadora! Murilo, mais concentração, cara!

Bem, na verdade tudo não passava de uma cena da peça que ensaiávamos. Era a história de um soldado brasileiro morto na 2ª Guerra Mundial. Claro que diante dos olhos enormes e verdes de Isadora eu acabava transformando aquilo tudo numa verdade minha, só minha. Como eu queria que aquelas palavras fossem de verdade... Nem ligaria se estivesse realmente indo para a guerra, já que o simples ato de beijar aquela boca perfeita valeria qualquer sacrifício.

O diretor me chamava atenção quanto à concentração, mas mais concentrado que aquilo era impossível. O problema eu logo notei: o semblante de bobo que me tomava toda vez que Isadora me fitava. O meu personagem, dizia o script, era um homem valente, duro, e que pouco demonstraria os seus sentimentos. Além do mais estava indo para a guerra, ora; estava num estado em que o amor de sua namorada ocuparia, talvez, um segundo plano em suas preocupações. E eu fazendo cara de apaixonado.

- Murilo – dizia-me o diretor –, a sua expressão diante de Isadora não é a esperada. Está com cara de...

- Bobo.

- Isso! Bobo!

O que eu poderia fazer? Na nossa companhia todos estavam carecas de saber que Isadora me fazia perder a cabeça! Aquele jeito como ela prendia o cabelo – deixando alguns fios de cada lado do rosto –, aquele seu corpo, que mesmo coberto por calças largas exibia curvas delicadas, atraentes, perfeitas! Sobre os olhos eu já falei, mas repito: eram enormes e verdes. Até as orelhas de Isadora me faziam tremer; eram pequeninas, porém, salientavam-se sob aquele cabelo, que de tão liso parecia flutuar.

Lembro que ensaiávamos juntos na casa dela. Seus pais, também atores, nos deixavam sempre muito à vontade, porém, o seu namorado não. O cara ligava de quinze em quinze minutos. E o que mais me deixava atônito era o fato de Isadora em momento algum perder a paciência com ele.

- Meu anjo, eu estou ensaiando (...) Eu sei, eu também estou morrendo de saudades (...) Passa aqui depois do ensaio, então, pode ser? (...) Então está bem...

O ensaio e a chance de lhe arrancar um beijo que não fosse um daqueles já tantas vezes treinados iam por água abaixo.

- Bem – eu disse certa vez –, acho que por hoje está bom.

- Mas ainda não terminamos, Murilo.

- Mas o seu namorado não nos deixa... trabalhar, Isadora!

- Perdoe-me, Murilo, é que ele é tão inseguro...

- Então, da próxima vez, chame-o para assistir o ensaio!

- Está louco? Como acha que ele reagiria diante de nossos beijos?

- Um dia ele irá nos assistir nessa peça! Ou não? A estreia é no mês que vem! E outra: você é uma profissional, ora bolas! Ele tem que entender!

- É...

- Bem, de qualquer forma, acho que esses telefonemas estão tirando toda a nossa concentração e...

- A sua concentração, você quer dizer!

- A minha?

- O diretor mesmo já falou! Encenas com cara de bobo diante a mim!

- Era só o que me faltava, Isadora...

- A verdade lhe dói?

- Não! – eu dizia já desistindo de esconder qualquer coisa – A mentira é que me dói! Beijar-lhe de mentira me arranca pedaços enormes. Pronto! Falei!

- E precisava falar?

- Notavas?

- Sempre notei!

- E?

- E o quê?

- O que me diz frente ao sentimento que lhe tenho? O que me diz do meu... amor.

- Tu és o cara mais fofo com quem já encenei, Murilo. Saiba que nossos beijos, apesar de vestirem um caráter artístico, de ensaio, apesar de serem exaustivos às vezes, são beijos que me levam a dimensões que...

- Chega! Sei o que virá depois de toda essa explicação. Você dirá algo sobre amizade e...

- Não! Eu diria algo sobre os nossos personagens mesmo, o soldado Custódio e a sua namorada Maria de Lurdes.

- E o que têm eles?

- Tenho uma proposta.

- O quê?

- É o seguinte...

Isadora confessava que de amores não morrias por mim, mas que sentias, sim, uma atração muito forte pelo “soldado Custódio”. Sendo assim, ela propunha que namorássemos sempre que estivéssemos interpretando nossos personagens. Segundo Isadora, sempre que eu estivesse como soldado Custódio, Maria de Lurdes seria minha, sem limites como o script, por exemplo.

- OK! – eu dizia.

Recomeçávamos o ensaio improvisando totalmente o texto que tínhamos em mãos. Viajávamos de vez na história de Custódio e Maria fazendo com que a roupagem de seus sentimentos transformasse o ano de 1944 em um aconchegante julho de 2009; fomos para cama.

Eu sentia os nossos vinte e poucos anos se escorrerem pelos lençóis de sua cama de solteiro. As janelas abertas deixavam entrar um vento que fazia as cortinas grudarem sobre minhas costas suadas.

No fim de tudo, ambos nus naquela cama estreita, nos olhávamos.

- O que sentes por mim agora, Isadora? – eu perguntava.

- Não conheço Isadora alguma, Custódio!

Eu entendia e me corrigia:

- O que sentes por mim agora, Maria?

- O mesmo que sempre senti, Custódio: amor.

Namoramos durante toda aquela temporada.

COLORIDO SEU

Todas as manhãs eu tinha a oportunidade de observar cada gesto daquela menina. Ela tomava o mesmo ônibus que eu. Nunca trocamos sequer um “oi”, mas os olhares... Em relação aos olhares pode se dizer que éramos grandes conhecedores um do outro; aliás, eu poderia apostar a minha marmita que acertaria qualquer que fosse o seu sentimento em relação a cada olhar que carregasse. Era bem por aí.

Quer saber como ela era? Uma boneca! Ela deveria trabalhar num lugar muito bacana, chique, já que suas roupas eram, como posso dizer?, fofas demais para se imaginar compondo um visual de trabalhadores de um escritório; a menos que fosse um escritório bem descolado, moderno, no qual eu não saberia sequer distinguir o motivo de seu funcionamento. Ah! Tinha uma coisa nela que eu achava uma gracinha: ela fazia o sinal da cruz sempre que passava em frente à igreja.

Ela sempre tinha uma desculpa para se sentar o mais próximo possível de mim, eu notava, mas esta nunca me vinha verbalmente; sempre em forma de gestos. Certa vez, por exemplo, ela tropeçou – pelo menos atuou muito bem – e veio a cair exatamente no assento ao lado do meu. Um sussurro saiu de seus lábios: “desculpa”. Sua voz era tão meiga e doce que martelara em minha cabeça durante semanas. “Desculpa, desculpa, desculpa...”. Depois de algumas semanas minha mente tratou de transformar em “desculpa, meu amor”, mas o “meu amor” me vinha num timbre diferente, menos meigo e menos doce também.

Falei de suas roupas, de sua voz, mas não falei o quanto era linda aquele ser. Olhos negros, bem negros, um rosto de traços finos, os cabelos bastante cacheados e negros também. A pele era bem branca e o corpo, de medidas pequenas e atraentes, condizia com as roupas que vestia: de boneca.

Numa dessas manhãs, com a mente cheia de problemas do escritório, eu tomava o ônibus e não notava a presença daquela menina. Sentava-me e logo abria minha pasta para analisar umas planilhas. Ela se sentava ao meu lado, dessa vez com a desculpa nítida de ser o único lugar vago sem respingos de chuva – ela passara a mão sobre o assento primeiro.

Diante da estressante planilha eu sussurrava: “merda”.

- Calma, rapaz – ela resolvia falar.

Depois de meses nos estudando através das pupilas, exatamente num dia dos mais terríveis, ela resolvia falar comigo. Eu olhava para aquele rosto angelical e, sem sequer pensar, dizia:

- Odeio... planilhas.

- Eu também, mas são necessárias.

- Trouxe esta para casa porque preciso apresentar uma solução antes da hora do almoço.

- Desculpe me meter, mas do que se trata a planilha?

- Faturamentos, gastos da empresa, você não deve entender...

- Por que não?

Eu acabava de julgá-la sabe-se lá a causa. Sim, claro que eu sei, foi por sua roupa de boneca, por seu estilo descolado, por sua mãozinha delicada ao tocar na planilha... Na minha cabeça aquela menina deveria trabalhar numa dessas salas onde a criatividade é posta em primeiro plano, onde as pessoas trabalham descalças se quiserem, onde a decoração é toda colorida a fim de estimular o processo criativo...

- Desculpe-me – eu dizia – Eu nem sei o que você faz... Acabei de te julgar. Desculpe-me.

- Tudo bem. É que eu sou contadora, e...

- Contadora? Também trabalho numa empresa de contabilidade! Não sou contador, mas...

- Jura?!

- Por que o espanto?

- Acho que pelo mesmo motivo que o seu!

- Eu não me espantei!

- Se espantou, sim, rapaz! Aposto que me imaginava numa agência de publicidade, ou num ateliê de artes plásticas, ou num estúdio fotográfico...

Ela conhecia meus olhares.

- Exatamente...

- Mas por quê?

- Acho que por andar tão bem vestida, talvez. Sabe como te imagino? Um ponto colorido em meio à multidão em branco e preto.

- Estou usando muitas cores? Você acha?

- Não. O colorido que me refiro não vem das roupas, mas de você mesmo.

Nitidamente envergonhada, a menina apontava para a planilha a fim de voltar o foco no meu problema.

- Qual o problema aqui?

- Não! Esqueça a planilha, por favor!

- Mas...

- Não sabe o quanto esperei por este momento, menina, eu...

- Eu sei sim! Pois foi exatamente o mesmo tempo que esperei!

Olhamos-nos por longos segundos. As nossas pupilas agora faziam um reconhecimento mais detalhado do rosto de cada um. A minha conclusão era a de estar diante do rosto mais belo desse mundo.

- Um beijo seria precoce demais? – eu me adiantava.

- Não no nosso caso – ela dizia fazendo jus ao seu jeito moderno de se vestir; inclinava-se até os meus lábios e me beijava.

E eu, fazendo jus ao meu terno sem graça e desbotado, assustava-me; beijava-a de olhos abertos, mas sentia-me contagiado pelo seu colorido interior.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A ENTREVISTA

Sentei-me e tossi umas seis ou sete vezes. Encostei minha bengala no braço direito do velho sofá da sala enquanto o nanico se acomodava no assento à frente; um jornalista recém formado. Ele retirava de sua bolsa apenas uma espécie de laptop só que bem fino, quase que como uma folha de papel. O teclado, no qual ele digitaria toda a entrevista, era apenas refletido sobre a minha mesa de centro. É, ele digitava sobre um teclado virtual. Minha empregada o ofereceu um copo d’água, apenas uma dose de três dedos, no máximo; era um luxo. Ele aceitou, logicamente.

Estava um dia muito quente e a minha paciência para entrevistas ficava ainda menor, quase inexistente diante de tal fato. Embora o ar condicionado estivesse ligado no nível máximo, a sensação ali era de uns 36º C.

- Podemos começar logo com isso, rapaz? – eu perguntava.

- Só mais um minuto... Agora sim!

Foi um alívio saber que aquele jornalista estava pronto para a minha tortura, pois tortura maior era vê-lo estabanado frente aquela “folha de papel”.

A primeira pergunta foi em relação ao fato de eu não ter publicado um único livro em toda a minha vida.

- As editoras nunca me quiseram, só isso.

- Mas o senhor sabe o porquê disso?

- Se eu soubesse jogava na loteria, meu filho.

- Seus contos fizeram muito sucesso no início do século, e fazem até hoje, mas o senhor não se sente antiquado por ainda usar o velho blog?

- Não, nem um pouco. Há quem goste.

- Mas é que nenhum escritor, mesmo os seus contemporâneos, usa mais o blog. Soube que o seu é um dos dez ou vinte blogs ativos no mundo inteiro...

- Você lê os meus contos?

- Sim, leio!

- É o que importa... Pode passar para o próximo assunto, por favor?

O nanico digitava com muita rapidez tudo o que eu dizia. O calor do ambiente aumentava conforme a entrevista se desenrolava. Minhas mãos trêmulas já respingavam suor por todo o sofá; Parkinson.

- Pode nos falar sobre alguns de seus personagens mais marcantes? – perguntava-me o jornalista.

- Houve algum que lhe marcou?

- Sim! Gosto muito daquele velhinho, o Jorge Silva, e gosto também daquela senhora, a Luana.

- É... Esses são, talvez, os meus personagens mais antigos. Já leu todos os contos desses personagens?

- Não, todos não. São muitos. Luana, por exemplo, comecei a ler faz uns três anos.

- Não leu nada, então. Pegou apenas a velhice dela, não foi?

- Sim, eu acho.

- Escrevo Luana desde que ela tinha 14 anos, rapaz.

- Eu sei disso, cheguei a ver nos arquivos do blog.

- E porque não os leu? – perguntei em tom ríspido.

Eu senti que o nanico perdia um pouco de sua paciência. Se já não bastasse o calor de quase 40º C naquela sala, aquele pobre rapaz ainda tinha de aturar a grosseria de um velho frustrado como eu.

- Não os li porque não tive tempo, Luciano.

- Tempo! Vocês jovens nunca têm tempo para nada! Só sabem beber e trepar com parceiras virtuais! A leitura...

- O senhor está me insultando!

A paciência dele agora era zero. Mesmo com o rosto rubro, num misto de calor e raiva, aquele jornalista decidia prosseguir com a entrevista:

- Você é um escritor que, durante toda a carreira, pouquíssimas vezes deu entrevista. Por quê?

- Isso é uma provocação?

- Ah?!

- É! Está me provocando!

- Não, senhor! São mais de cinquenta anos de carreira e apenas duas entrevistas publicadas. Só gostaria de saber o porquê disso!

- Está me provocando seu moleque!

Segurei minha bengala com a mão firme e, num movimento rápido, lancei-a em direção à testa do nanico. Passou raspando.

- Você é louco! – disse o jovem.

Ele pegava as suas coisas e saía da minha casa dizendo um monte de palavrões. A minha empregada chegava assustada até a sala e:

- O que houve S. Luciano?

- Nada! Pegue minha bengala e me ajude a chegar até o escritório. Acabo de ter uma ideia para o conto de amanhã.

- E que ideia é essa, S. Luciano, eu posso saber? – perguntava-me a enxerida.

- Vou contar a história de um rapaz que não sabe entrevistar...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

ÚMIDOS LÁBIOS

O relógio marcava cinco da tarde de sábado quando o maior dos trovões fez tremer as louças sobre o móvel. “Não iremos”, pensava Leonardo. Conforme a chuva apertava, o coração do rapaz apertava junto. Foram tantas semanas de olhares, risinhos, bilhetes, que o rapaz preferiria a morte ao ver aquele passeio se escorrer como as águas que agora lavavam a janela de sua sala.

Foram dias e mais dias de tentativas até que, na tarde anterior, Leonardo abrisse a boca. Com a fala ainda engasgada de tanto medo, convidava Vânia para assistir a uma peça de teatro. A pequena, dona de um sorriso meigo, assim como todas as partes de seu singelo rosto, disse que sim. Ela usava um vestido verde e um tênis da mesma cor, sujo, mas que contrastava logo com a pele limpa que das coxas às canelas se podia notar.

Vânia era uma jovem de apenas dezoito anos, mas que pegara os vinte e cinco de Leonardo pelos pés. Era iniciante no curso de Letras, adorava literatura, não só a brasileira, mas a russa, principalmente. Naquela sexta-feira, carregava consigo um livro de bolso do Dostoievski, mas escondia-o com as mãos para trás do corpo; tinha pavor de parecer uma pseudo-intelectual.

- O que tens aí atrás? – perguntava Leonardo.

- É só um livro – respondia-o mostrando rapidamente o pequeno livro e o retornando para a altura do coaxe.

Até mesmo com aquele gesto inocente e infantil Leonardo vidrava.

Os cabelos bem negros, lisos e curtos de Vânia eram o que mais chamava a atenção do rapaz, já que a cada movimento da menina os fios se comportavam de uma maneira, ora caíam sobre a vista, ora colavam-se sobre os lábios sempre úmidos.

- Bem, então está marcado. Posso lhe pegar amanhã às...?

- Às seis!

- Fechado!

Leonardo ficava parado enquanto Vânia caminhava rumo à sala de aula. Estava ele em meio ao jardim da faculdade onde terminaria, naquele semestre, o curso de Cinema. Uma mente criativa como a dele foi facilmente capaz de imaginar, diante do caminhar de Vânia, mil cenas de amor, nas quais a menina, enlouquecida por uma paixão cega, contracenava com ele, logicamente. A timidez tomava conta de Leonardo apenas externamente; por dentro, o rapaz era desinibido o bastante para causar a sua própria vergonha.

Mas no sábado, todo o sol e o colorido daquele jardim, que se fizera de fundo para o convite de Leonardo, haviam dado lugar a uma chuva que caía como água fria nos planos românticos do rapaz.

Cinco e trinta da tarde. Leonardo resolvia ligar para Vânia a fim de desmarcar o encontro.

- Vânia? É o Leonardo, tudo bom?

- Oi, Leonardo! Que chuva, hein!

- Pois é... Acho que não vai rolar, não é?

- Com essa chuva eu acho meio difícil, mas ainda temos meia hora para São Pedro nos dar uma ajudinha.

Leonardo sorria calado diante do “São Pedro nos dar uma ajudinha”; achava de uma delicadeza tão grande a pequena dizer dessa forma que tinha vontade de beijá-la só por isso.

- Você é uma graça, já te disseram? – perguntava Leonardo.

- E você me parece mais desinibido ao telefone, não?

- Um pouco.

O papo dos dois era frequentemente interrompido por trovões e relâmpagos, mas conforme o tempo foi passando, tanto os estrondos quanto o aguaceiro foram perdendo as forças.

- Ih! – dizia Leonardo – Parece que a chuva está passando!

- Aqui já passou, inclusive!

- Que bom! Então, pelo visto, no Centro também já não deve ter mais chuva! Estou indo te buscar, pode ser?

- Estarei pronta! Beijos!

“Beijos”. Depois dessa palavra Leonardo não mais falou. Escutou o desligar afoito de Vânia e paralisou. Passou a pensar que os lábios úmidos da menina estavam a cada minuto mais perto dos seus; quis voar para a casa dela.

* * *
Como combinado, Leonardo buscava Vânia em sua casa. O rapaz teve de ouvir do pai da menina uma lista enorme de ordens, mas mesmo assim seguiu feliz sob um céu que começava a mostrar algumas estrelas.

Chegaram ao teatro e, logo na entrada, o cartaz da peça, que trazia a foto do rosto rústico de uma atriz, os convidava a entrar pelo simples impacto. Era um monólogo no qual a atriz interpretava uma mulher que perdera os quatro filhos e o marido em guerras.

* * *
A peça mexeu demais com os sentimentos de Vânia, que por várias vezes deixou escorrer um fio de lágrima. Leonardo só pensava no quão sentimental era aquela menina; tão jovem, tão linda, tão dona de sua própria personalidade, tão diferente das tantas outras mulheres que passaram pela sua vida.

Na saída, ao olharem para o lado de fora do teatro, viam que a chuva voltara e com muita força.

- Mais chuva... – dizia Vânia.

- È... Mas diga! O que achou da peça?

- Linda demais! Amei! Triste, mas muito bonita! E você?

- Também gostei muito.

- Que noite maravilhosa, não?

- Não ainda, Vânia.

- O que falta?

- Preciso dizer?

- Sim, com todas as palavras.

- Mas...

A timidez de Leonardo o tinha deixado leve e solto até então, mas, diante da maturidade de Vânia ao ser posta próxima ao beijo, o travava.

- Diga! – dizia Vânia com os lábios entreabertos, deixando a ponta da língua à mostra.

- Um...

- Diga!

- Um beijo!

- Só se for um beijo na chuva! – dizia Vânia numa empolgação inesperada, talvez, até mesmo por ela.

- Na chuva?

Corriam então os dois para o lado de fora do teatro para reproduzirem a cena de beijo mais sonhada por Leonardo.

Mas quando o rapaz abriu os olhos, estava na verdade sozinho a rolar na grama do quintal de sua casa, sob a imensa chuva, ainda às cinco e quinze da tarde daquele sábado; beijava uma Vânia imaginária, que àquela altura devia ainda estar esperando o telefonema de Leonardo. Sentiu-se tendo que enfrentar a sua timidez toda “novamente” e com um medo enorme de Vânia não ser tão meiga como no sonho.

Leonardo ligava para Vânia e desmarcava o encontro – tinha a chuva como desculpa. Fria, a menina respondia: “OK, fica para a próxima, então”.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

QUARENTA E TRÊS OITENTA

A sirene soava. Era o fim de mais um dos raros momentos de lazer semanal: a boa e velha “pelada” de domingo. Logo vinha o S. Osmar, dono do campo que alugávamos, nos pondo para fora do gramado a base de berros. “Acabou! Já tem outra turma para entrar, cambada! Vazem!”, ele dizia. Era tudo uma brincadeira, lógico, pois ele sabia que, depois do futebol, nós gastávamos uma boa grana em cervejas e tira gostos em seu bar. Mas antes de ocuparmos as mesas do bar do S. Osmar, tomávamos um banho e nos trocávamos no vestiário.

- Preciso te contar uma, Ney – dizia-me Laerte a se enxugar.

Laerte era bem mais velho que eu, tinha seus cinquenta anos, por aí. Nossa amizade se baseava apenas naquele encontro semanal, mas era bastante sincera. Laerte era um dos donos de uma rede de lanchonetes famosíssimas aqui no bairro. Era um cara de sorte, porque, além da pequena fortuna que tinha, ele era o que chamamos de um “coroa inteiro”; corpo atlético, cabelos levemente grisalhos, olhos castanhos bem claros. Era viúvo. Tinha seus casos, logicamente, mas nunca assumiu um outro compromisso novamente.

- Diga! – eu dizia a Laerte.

Eu, ao contrário de Laerte, era “duro”, casado e quase que unanimemente considerado um cara desprovido de qualquer tipo de beleza física. Trinta anos, empregado de uma indústria de cosméticos e dono de uma barriga a cada dia mais saliente, eu era o que chamamos de “perdedor”.

- Acho que estou amando novamente – dizia Laerte.

- Que bom, cara! Já sei! Era apenas mais um de seus casos, mas te pegou de jeito, não foi?

- Não. Pior que não. Nem a conheço direito, se quer saber. Eu nunca a vi pessoalmente, inclusive.
- Mas como isso? Amor não nasce assim, Laerte! E outra: não está certo um cara de trinta anos dando conselhos sobre o que é o amor para um outro de cinquenta, está? – eu ria.

- Não, não está. Mas, talvez, porque você não saiba o que realmente estou sentindo.

- Pode até ser, mas... Acho estranho amar sem ver.

- Eu já a vi. Nos conhecemos pela Internet, e ela, logicamente, já me mandou algumas fotos.

- É bonita, naturalmente.

- É sim. Muito bonita.

- E isso foi o suficiente para despertar o amor?

- Eu só penso nela, Ney! Atrapalha até o meu expediente! Chego no escritório e só penso em falar com ela!

- E de onde ela é?

- Daqui mesmo do bairro.

- E porque ainda não a encontrou, Laerte?

- Ela prefere esperar mais um pouco.

- Entendi...

Entendi nada! Não quis jogá-lo água fria, mas estava na cara que se tratava de alguém pregando uma boa peça no coroa. Essa “mulher”, no mínimo, lhe enviara fotos de alguma beldade, o que o deixou maluco. Que motivo ela teria para esperar?

- ...Mas por que esperar? Será que ela é casada? – eu continuava.

- Não, não é. Pelo menos foi o que ela me disse.

- Vamos beber! – eu cortava o assunto e o levava até o bar do S. Osmar.

O pagode já comia solto enquanto Laerte, entre um gole e outro de refrigerante – ele não bebia nada alcoólico –, perdia-se em seu próprio olhar. Ele de fato não estava ali; nitidamente pensava na tal mulher da Internet. Eu precisava fazer alguma coisa. Aquilo já estava me incomodando.

- Laerte! Acorda, cara!

- Estou acordado, estou acordado!

- Não está! Está pensando na tal mulher, cara! E se ela... – eu me precipitava.

- E se ela o quê?

- E se nem for uma mulher, cara? – eu dizia.

- Como assim? É claro que ela é uma mulher! Ela... Ela já me deu provas disso!

- Foto? Isso não prova nada!

- Não! Antes do futebol, ela me telefonou. Pela primeira vez ouvi a sua voz. Por isso estou assim...
- Bem, uma voz é fácil de...

- Não, Ney, era uma voz de mulher! E disso eu tenho certeza! Era uma voz doce...

- E por que você não liga de volta?

- Ela me pediu, pelo amor de Deus, que não fizesse isso.

- Estou sentindo cheiro de mulher casada, cara!

- Acho pouco provável... Sabe o que ela me disse, Ney?

- O quê?

- Que não faz sexo há anos!

- Lorota! Mulher nenhuma...

- Eu acreditei.

- Hum...

Durante toda a confraternização “pós-pelada” eu conversei com Laerte. Eu notava o quão inocente era aquele coroa. Queria tirar aquilo da cabeça dele; estava na cara que se tratava de um trote muito bem armado. “Em algum lugar, devem estar rindo dele”, eu pensava.

O telefone de Laerte tocou e ele logo tratou de se afastar para atendê-lo. De longe, pude ver a cara de felicidade daquele senhor grisalho. Ele sorria, gesticulava, falava. Até que desligou o aparelho.

- Era ela? – eu pergunto logo assim que ele chega à mesa.

- Era sim. Disse que não aguenta mais, que quer me ver.

Das duas uma: ou Laerte realmente encontraria o amor de sua vida ou a decepção da confirmação de uma grande brincadeira o faria em pedaços.

- E quando será? – eu perguntava.

- Amanhã! Ela quer almoçar comigo!

- Que legal, Laerte! Não esqueça de me contar no domingo que vem!

- Pode deixar, Ney!

Ambos mais tranquilos, tratamos de cantar algumas coisas do Paulinho da Viola.

* * *
Eu costumava chegar do futebol um verdadeiro bagaço. Cansado, suado e ligeiramente embriagado. Minha esposa Estela vinha com o velho sermão de todos os domingos:

- Chegou você! Acabou o meu domingo!

- O meu também acabou, mulher! Já joguei meu futebol, bebi a minha cervejinha...

- É só para isso que serve o seu domingo, não é mesmo?

- Que saco! Toda vez é a mesma ladainha! Ralo igual a um cachorro a semana inteira! Não tenho sequer o direito de me divertir, porra?

- Ladainha não, Ney! A nossa água continua cortada, você se lembra? Você sequer ligou para a fornecedora para regularizar nossa situação!

- Está bem, está bem, eu ligo! Eu liguei ontem à noite, mas ninguém me atendeu naquela merda!

Como eu não havia feito ligação alguma entre a noite anterior e aquele momento e o meu teor alcoólico mental se encontrava elevadíssimo, tentei a sorte apertando o “redial”. O som de uma seqüência automaticamente sendo discada ecoava em meus ouvidos.

- Alô! Amor? Você de novo? – uma voz familiar me atendia.

Ao mesmo tempo em que minha mente soluçante se esforçava para identificar o dono daquela voz, meu peito sofria um aperto monstruoso.

Depois de alguns segundos, eu ligava a voz à pessoa; era Laerte.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

COMPLEXO

Sexta-feira sempre foi um dia no qual eu gostava de chegar do trabalho, encontrar a minha família em casa e jantar com ela. À mesa, gostava de saber como foi a semana de minha esposa Norma e de minha filha Yasmin. Sempre achei isso importante. Quase não as via, por conta do excesso de serviço no escritório.

Minha esposa quase nunca me apresentava novidades em seus relatos semanais, o que me preocupava e muito; a monotonia na vida de uma mulher de quarenta pode trazer complicações graves. Digo isso porque tive uma prima que, por esse motivo, caiu em depressão e se jogou do décimo sexto andar. Sendo assim, procurava aos domingos levar Norma para dar um passeio, o que quase sempre significava ir ao shopping, claro.

Com Yasmin era um pouco diferente. A sua adolescência interminável me trazia sempre uma novidade. Era uma menina até calma, mas com seus “problemas da idade”.

Certo dia, à mesa, Yasmin me chega com um pedido. Haveria uma festa em que “todos os seus amigos estariam” e ela “não poderia deixar de estar lá, de forma alguma”.

- Onde é essa festa?

- Na casa da Carla.

- A Carla não é aquela que...

- Sim, pai – dizia Yasmin olhando para o teto, em tom de deboche –, ela está grávida e não sabe quem é o pai, mas o que isso tem a ver?

- Tem a ver que não quero você, minha filha, em companhia de uma menina que está grávida e não sabe de quem é o filho, ora!

- Ah, pai, por favor, vai!

- Yasmin, eu já posso imaginar os convidados dessa festa.

- Todos meus amigos, pai!

- Pois é. É o que mais me preocupa.

Minha esposa permanecia calada a morder uma coxa de frango. Apenas o seu olhar se movimentava, ora a mim, ora à Yasmin.

- Pai, eu não tenho nada a ver com a vida da Carla. Eu só quero me divertir. É só uma festa.

- Eu posso ir junto?

- Ah, pai!

- Então não vai.

- Pai?! De novo isso?

- É a condição.

- Prefiro não ir!

- Ótimo, então.

Isso sempre funcionava. Que menina naquela idade carregaria o pai numa festa entre amigos? Ela desistia de ir e estava tudo resolvido.

* * *
Durante todo o sábado, Yasmin sequer falou comigo; estava muito chateada pela conversa da noite anterior, logicamente. Até que Norma chegou até a mim e:

- Marcelo, por que não a deixa ir?

- Ela já lhe contaminou, não foi?

- Não, mas é que a menina está visivelmente triste e...

- Ora, Norma, eu dei uma condição a ela...

- E que condição, não é, Marcelo?

- O que há demais? Um pai não pode acompanhar a filha numa festa? Não pode?

- Não dá para conversar com você. Acha que está certo, não acha?

- Certíssimo! É pelo bem da Yasmin, Norma, você não vê?

- Não!

* * *
À noite, depois do telejornal, desliguei a TV e fechei os olhos. Norma já dormia em sono profundo. Apaguei. As noites de sábado eram as minhas preferidas, já que era o único dia em que eu conseguia dormir cedo e acordar tarde no dia seguinte.

* * *
Pela manhã, eu procurava pelas chaves de casa, mas sem sucesso.

- Norma, onde estão as chaves? Quero buscar o jornal!

- No chaveiro, ora?

- Não estão!

- Como assim?

- Não estando, ora! O pior é que esqueci as minhas no escritório, na sexta.

- Então – dizia Norma assustada –, estamos trancados?

- Como, Norma? Se nós entramos, a chave tem que estar aqui. Só se...

Uma hipótese ruim me vinha à mente.

- Só se o quê, Marcelo?

- Yasmin! Onde está Yasmin?

- Na cama, ora!

- Duvido!

Fui correndo até o quarto de Yasmin e o que encontrei eu quase já previa: a cama estava vazia. A menina aproveitara o nosso sono para ir a tal festa. Uma dor muito forte me surgia ao peito. Yasmin nunca fizera isso. Apesar de tudo, sempre respeitara as minhas decisões.

Então, fui até Norma para dizer o que ocorrera, e ao chegar à cozinha, lá já estava uma Yasmin suada, bêbada e com uma maquiagem pesada e borrada. Eu jamais vira minha filha naquele estado, mas preferi o silêncio a uma atitude violenta.

- Vá tomar um banho – foi só que eu disse.

Aquela sua fuga para a festa, a maquiagem pesada, a embriagues só ocorreram, talvez, por conta de minha falta de confiança na responsabilidade e no juízo de Yasmin, confesso.

Se fosse apenas por aquele aspecto de derrota que apresentamos um ao outro naquele momento, estava ótimo; eu encararia como um aprendizado, talvez, para ambos. Mas, alguns meses depois, eu fui notando uma singela barriguinha em Yasmin. Não precisou Norma ou ela me falar sobre atraso menstrual ou coisas do tipo, eu vi e pronto.

- O seu “namorado” já sabe que tu terás um filho? – foi apenas o que perguntei à Yasmin, mesmo não fazendo ideia de com quem ela namorava.

- Eu não tenho namorado.

- Como assim? Carregas um filho “dele”!

Norma, muda, mordia um pedaço de pão.

- Eu não sei quem é o pai do meu filho, satisfeito, pai?

- Como assim “satisfeito, pai”? Claro que não estou satisfeito! Aposto que foi naquela festa, não foi? Não foi?

- Foi, pai! Transei com tantos naquela noite, que...

Não tive forças para nada. Nem um berro e nem um soco. Senti-me fraco, derrotado, falho diante da frieza de uma Yasmin que eu já não reconhecia.

Uma dúvida que, a partir de então, me martela todas as noites – as de sábado principalmente – é: e seu tivesse a deixado ir àquela festa?

Espero que Yasmin sinta na pele a complexidade de educar um filho, pois o seu será justamente o fruto da tal.