quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O LÍQUIDO

- Gol do Vasco! Putz, não acredito! – dizia Diogo nitidamente transtornado.

Eu degustava lentamente um Montecristo Churchill, enquanto Diogo enlouquecia com a hipótese de seu Flamengo não se manter bem no campeonato nacional de futebol. Naquele momento nossos olhares apresentavam rumos diferentes; enquanto o meu observava o transitar tranquilo das pessoas em volta daquele bar, o de Diogo se mantinha fixo na TV – no replay do gol. “Que idiotice”, eu pensava, ao mesmo tempo em que me questionava sobre o quão idiota eu deveria ser também – talvez até mais que aqueles torcedores fanáticos.

Diogo era capaz de não saber o nome do nosso atual governador, mas sabia, de ponta a ponta, todas as escalações presentes naquele raio de campeonato. Artilheiros, técnicos, número de cartões amarelos, pontos ganhos, classificação da tabela, tudo! Diogo sempre fez questão de se manter muito bem informado sobre essas coisas tão importantes às nossas vidas.

Era um domingo frio de julho e eu não sabia ao certo o motivo que me levara àquela mesa de bar com Diogo. Quando me encontro em depressão, qualquer convite para sair de casa é rapidamente recusado. Mas, sabe-se lá o porquê, naquele dia aceitei. Talvez, não sei, por causa da minha insistente vontade de morrer. É que, em depressão, posso ter concluído que ficando em casa as chances de óbito seriam mais remotas. A menos que eu cometesse o suicídio – coisa que tenho muito medo, confesso. Prefiro os acidentes, sabe? “Quem sabe um carro em alta velocidade não invade aquele bar?”, devo ter pensado.

- Gol do Vasco, foi? – eu perguntava observando o queimar de meu charuto.

- Merda! – respondia Diogo.

A minha neutralidade diante daquele entretenimento nacionalmente cultuado piorava ainda mais a fúria de Diogo, que, naquele momento, pouco se importava se, no fim do mês, seu salário não garantia sequer suas necessidades básicas – e isso eu também observava.

- Você me irrita, Luciano – continuava Diogo – Não sei por que te chamei para assistir ao jogo!

- Você me chamou para beber um pouco! Eu nem sabia do jogo, Diogo! – eu respondia.

- Inferno!

Verdade, eu me divertia com a fúria de Diogo. Mas eu ficava o tempo todo a comparar os motivos que o levam a sair do sério com os meus. Digo, que eu me recorde, a última vez em que fiquei nesse estado emocional foi quando concluí de fato que o mundo me julgava velho demais para os meus sonhos. A sensação de que o seu tempo de sonhar já passou é terrível. Ninguém me disse, mas é como se o mundo me emitisse vozes dizendo “está na hora de levar a vida mais a sério” ou “é difícil para você encarar as responsabilidades de uma vida adulta”. Eu pensava se Diogo algum dia passaria pelo que passo. Sempre concluí que não.

Sempre concluí – e nisso as aulas de filosofia me ajudaram muito – que a verdadeira felicidade está na ignorância. É! O saber te leva à loucura, aos questionamentos, ao autoconhecimento (ou à tentativa deste) e, por fim, muitas vezes, à depressão. Seria tão fácil me preocupar apenas com a posição do Flamengo na tabela do campeonato, por exemplo. Assinar sorrindo um contracheque de fome, ao mesmo tempo em que marco com os amigos uma noitada na qual toda aquela miséria será gasta com mulheres e bebidas... Deve ser bom demais. Viver um dia após o outro, só isso.

Por que diabos tenho que ficar pensando nos valores das coisas, se ninguém dá valor a nada? Por que preciso passar horas lendo, adquirindo cultura e informações que num piscar de olhos se transformam em lixo? A postura de um rapaz inteligente e sério está fadada à cafonice. Talvez porque o rapaz sério de hoje seja aquele que não leva absolutamente nada a sério. Frases que dizem que “isso” ou “aquilo” está morto são despejadas sem consequências e, pior, sem o mínimo de embasamento. Tudo isso me corrói, me deixa desarmado, confuso, sem ação.

E o Diogo? Provavelmente, nesse exato momento, deve estar acendendo um cigarro às gargalhadas frente à lama que toma a calçada de sua casa.

Naquele domingo, já à noite, chego em casa e me deparo com minha escrivaninha, que, embora desarrumada, me mostra com nitidez os meus projetos que se encontram pela metade; me alfineta. Na estante ao lado, a televisão. Mas ao lado ainda, o computador. As tecnologias, que deviam me ajudar, parecem me atrapalhar ainda mais. Não sei por que, mas, naquele instante, a imagem de uma das aulas da faculdade de Publicidade me vem à mente; uma aula chatíssima em que noto a preocupação primária do professor em preencher o tempo com informações que (essas sim) já se tratam de lixo antes mesmo de nos tocar o intelecto.

Desabei no sofá. Constatava que carro algum invadira aquele bar e que eu, infelizmente, ainda me encontrava vivo. Tentei tirar algum proveito disso, mas tudo o que me tomava era uma preguiça sem tamanho. Não uma preguiça qualquer, causa de um desgaste físico ou mental, mas uma preguiça da vida mesmo; uma sensação de mesmice que vinha desde o par de tênis que eu calçava ao infinito céu nublado que engolia minha casa. Era como se eu não fosse capaz de fazer nada aproveitável; como se o tempo passasse tão depressa que cada traço meu à caneta tivesse sua tinta dissolvida pelo futuro avassalador. Meus papéis continuariam em branco, sempre.

Quando você se sente anormal por conta de suas reflexões antes tão naturais à sua existência, é porque você já não sabe mais o porquê te tudo o que o cerca. “Qual o sentido disso tudo?”, eu pensei. Por mais sem resposta que possa parecer tal pergunta, insisti: “Qual o sentido disso tudo?”.

Deus nos deu as coisas concretas, perfeitas, lindas, mas nos deu também a capacidade de vagar pela escuridão do abstrato. E é ajoelhado nesse abstrato que sofro mais. Sofro naquilo que não posso desenhar, escrever, cantar ou musicar; aquilo que é só meu. Sofro com aquilo que insiste em viver dentro de mim – até porque lá fora não há vida capaz de compreendê-lo.

Foi quando, em meio a pensamentos que se misturavam, me veio uma imagem: uma faca desejando boa noite ao meu pulso esquerdo. Achei que já era hora de ir para a cama. E fui.

4 comentários:

Camila disse...

Há meses, nos meus pensamentos, ideias e sentimentos semelhantes aos que você expôs no texto se alternam. É, me sinto EXATAMENTE assim, sinto essa mesma mesmice. Apenas não me sinto velha pra sonhar, mas sinto que todos me pressionam pra verem os sonhos que já sonharam para mim. É confuso, e o tic tac do relógio, mostrando o tempo que escorre pouco a pouco, é atordoante. E até a unica forma que eu encontrei pra lidar com isso por um tempo, o maldito autoconhecimento e sessões de terapia me tirou.

Nathalia disse...

"Quando você se sente anormal por conta de suas reflexões antes tão naturais à sua existência, é porque você já não sabe mais o porquê te tudo o que o cerca."

Eu ando exatamente assim. A esperança de morrer massacrada por um carro ainda não chegou, mas a vontade de sumir está presente em casa segundo dos meus dias. Dai voce junta esse meu jeito bipolar nojento e insuportável com uma TPM braba e um bando de gente PODRE ligando pro seu trabalho e gritando comvoce (esse ultimosó entrou porque ACABOU de acontecer). Alguém suporta? rs

Lendo o comentária da Camila, acho que um terapia ia cair bem, vamos?

DL ;* disse...

que deprê.. rs
mas adorei o conto..
para refletir.. e pior que mts dessas coisas são verdade :s
dá pra enlouquecer.. rs

adori luuh!
Beeijos (L

Vanessa Sagossi disse...

Eia, Luciano.
Verdade. E deprê!
Identifiquei muitas coisas desse texto!
Beijos,