segunda-feira, 6 de abril de 2009

NA MESMA TECLA

Isso faz tempo que aconteceu, mas ainda me lembro com riqueza de detalhes. Eu tinha um conjunto musical no qual todos eram amantes do jazz e da bossa nova. Porém, devido à falta de locais específicos para se fazer esse tipo de som, a gente tocava em bordéis e casas de strip-tease.

As músicas que nós éramos obrigados a tocar nesses lugares não eram das melhores. Para falar a verdade, eram da pior qualidade. Mas era o nosso dinheiro. O aluguel, a gasolina e o leite de algumas crianças dependiam daquelas notas de mau gosto. Fazer o quê? Tínhamos que tocar!

Certo dia, o nosso pianista, o Sávio, sofreu um acidente de automóvel e, infelizmente, partiu dessa para outra. Deixou a esposa Elaine e o filho Guto na pior. Elaine era deficiente auditiva – o que explica, talvez, tantos anos de casamento com um pianista. E Guto sonhava seguir os passos do pai; estudava piano desde cedo.

O Sávio sempre foi o mais “bem sucedido” da banda. Além de tocar conosco, ele pegava festas particulares, empresariais, de casamento etc. Nunca faltara nada à Elaine e nem ao Guto. Mas depois do acidente a coisa ficou apertada.

Foi quando o Guto, então com dezesseis anos, apareceu na minha casa.

- Fala Guto! O que te traz? Está tudo bem? – eu o recebia.
- Está sim, Cristiano. Só precisava trocar uma palavra contigo. Pode ser?
- Claro, entre.

Guto entrava e logo desabava em um de meus sofás.

- Diga – eu dizia.
- Então, Cristiano. Queria saber qual a possibilidade de eu substituir meu pai na sua banda.
- Veja bem, Guto...
- Pode falar.
- Nós estamos fazendo testes com alguns pianistas. São caras bem experientes, entende? E...
- Está querendo dizer que eu não tenho experiência para tocar com vocês? É isso?
- E não é verdade? Eu entendo que a situação sua e de sua mãe tenha se complicado, mas há outras famílias que dependem do funcionamento dessa banda. Eu queria muito ajudar vocês, mas não posso lhe colocar no cargo apenas por ser filho do antecessor.
- Deixe-me fazer o teste, então.

Eu pensava “que raios esse fedelho acha que é?”, mas sentia que havia nele uma vontade muito grande de tocar.

- OK, Guto. Vá ali naquele piano e mostre tudo o que você sabe.
- Tudo bem.

Guto aproximava-se do piano que eu conservava em minha sala. O garoto parecia muito com o Sávio quando mais novo. Até o andar. Um andar de pianista!

- O que você quer ouvir? – ele perguntava.
- Não sei. Quero que dê tudo de si. Manda ver.
- OK.

Guto, genialmente, foi de Chopin a Zeca Pagodinho. Eu não acreditei no que vi. Não sabia que o garoto estava tão bom naquilo. Ele foi muito esperto. Mostrou-me que era culto, mas sem deixar de me provar que estava preparado para todas as armadilhas da noite.

- E então? O que achou? – perguntava-me Guto.

Eu já estava com o telefone na orelha:

- É do Clube das Fatais? Preciso falar com o Fausto (o dono daquele bordel).
- Alô!
- Fausto? É o Cristiano, tudo bom?
- Tudo indo. O que é?
- Pode confirmar a nossa volta para esse sábado!
- Até que enfim, seu bando de bichas!
- Fechado!

* * *
Aquele foi o primeiro show de Guto conosco. Tivemos que molhar a mão de muita gente para que os dezesseis anos do garoto não dessem problemas para a banda ou para os clubes onde tocávamos.

Guto era divino nas teclas. Sávio – que Deus o tenha – não chegava nem aos pés do filho, que convencia-nos a colocar pelo menos três improvisos do Thenolious Monk nos repertórios. Nós nunca havíamos imaginado que um jazz faria algum sucesso naquelas casas. Não era bem o jazz, mas o carisma de Guto o responsável pelos aplausos – antes inexistentes. Em duas semanas não havia sequer uma prostituta daqueles inferninhos que não o chamasse de “meu bebê”.

Até que um produtor – em uma escapadinha básica no Clube das Fatais – assistiu o Guto numa de suas melhores apresentações. A partir dali, as coisas foram mudando. Mudaram tanto que a banda, antes chamada “O Sopro da Madrugada”, mudou seu nome para “Guto & Banda Sopro”. Gravamos apenas um disco, que nos rendeu shows em lugares que jamais imaginávamos pisar.

Durante a turnê com o show “A Madrugada de Guto”, no Canadá, nosso pianista prodígio, já com seus dezoito anos, foi atropelado por uma moto que vinha em alta velocidade. Não deu nem tempo de prestar os primeiros socorros. Guto morrera na hora. Com a banda sentimentalmente em pedaços pela segunda vez, voltávamos para o Brasil com o corpo daquele que nos levou ao nosso auge.

O tempo passou. Anos mais tarde, descobrimos que Guto, pouco antes de partir conosco para o Canadá, havia deixado uma menina grávida no Brasil. Quando conheci, o filho de Guto já tinha uns quatro anos e morava com a mãe e a avó Elaine. A mãe do menino, Clara, pediu para que eu fosse até a casa deles. Queria que eu visse uma coisa.

- Olá... Então esse moleque é filho do Guto?
- É sim, Cristiano. Ele se chama Levi – dizia Clara.
- Que gracinha. É a cara do Guto! E do Sávio também!
- Não só a cara, Cristiano. Veja isso!

Clara colocava o menino frente ao velho piano de Sávio. O menino dedilhava “Parabéns Pra Você”.

- É... Mas não sei se nós da banda viveremos até lá, Clara... – eu dizia com os olhos cheios de lágrimas.

7 comentários:

Blog Dona Ingrid disse...

Ah... Sempre quis ter uma banda, mas não sei tomar nada =(

Tambem adore o seu blog e estou seguindo!

Erich Pontoldio disse...

Coisas da vida...subida e descida!
Resta esperar pelo filho do guto...quem sabe não vira um gde pianista!!!

nathalia disse...

ai, me deu uma dor lendo a morte do Guto, tão novinho, tadinho...

bem, mas a história continua, né levi?

Fabiana disse...

own. que bonitinho!
(o menininho tocando parabéns pra você, é claro)

Lucas disse...

Obrigado pelo comentário Luciano. 8)
_

Ótima história!

E que família talentosa...

Livia Queiroz disse...

Uauuuuuuuuuuuuu

Pois num é que é genético??
rsrsrsrs

Adoreiiiiiiii

Vanessa Sagossi disse...

Ainn..