domingo, 19 de abril de 2009

SER EU?

Eu acordo e tudo à minha volta parece tão atrasado. Do livro que leio à cor das paredes de meu quarto. Viro-me para o lado e avisto parte de meu par de sapatos, estes já gastos de tanto eu procurar algo que me faça sentir-me parte do mundo em que “vivo”.

Olho para o relógio e, ao contrário de todo o contexto em que me encontro, o tempo passa rápido. Confundo os minutos com os segundos, os segundos com os centésimos... O tempo corre, porém, minha vida permanece estacionada numa espécie de vaga cativa.

Levanto e escovo os dentes com um creme dental já endurecido. Seco meu rosto com toalhas cujas estampas não cairiam bem nem mesmo no século retrasado.

Sigo.

O pão que se encontra à mesa é a partícula do meu dia anterior. Talvez a única coisa que eu trouxe para o dia de hoje; comprei-o ontem, ao vir do trabalho. Trabalho, pão... Isso tem uma lógica.

Lembro-me que preciso estar no escritório às sete horas. Noto-me atrasado, mas esse tipo de atraso eu não posso aceitar, de forma alguma! Sou um membro de um corpo empresarial que precisa caminhar a passos largos; bem diferente dos meus – lentos e desatualizados em relação aos passos alheios.

Ao chegar no escritório, antes de qualquer coisa, eu preciso cuidar da minha imagem virtual. Não quero que pensem que sou todo esse fracasso exposto anteriormente. Para isso, possuo ferramentas que tratam de levantar minha aceitação numa roda de pessoas que eu nunca vi.

As frases que escrevo são falsamente otimistas e despreocupadas. O que vale ali, para mim, é a intensidade de meu presente. Um sorriso bem inspirado causa, quase sempre, uma boa impressão de minha figura, que, na verdade, monta tudo aquilo em seu último sinal de vida feliz. Basta que eu “altere” e cheque se está tudo como eu planejei parecer. Pronto! Fecho-me e dano a viver todo o contrário do que acabei de criar.

- Não está atrasado, Alfredo? – diz o meu supervisor chefe.
- Sim, estou. Mas vou correndo...
- Acho bom, pois o cliente lhe aguarda às oito.
- Eu sei...

Outra luta: Desempenhar, ao mesmo tempo, o papel de vendedor eficiente (para a empresa) e o de vendedor sincero (para o cliente). Ser sincero e eficiente onde trabalho não é tão fácil. Eu sempre preciso romper com um dos papéis, mas nunca sei qual dos dois merece fidelidade absoluta.

Eu corro atrás das coisas novas, sabe? Mas, devido a minha condição de quase escravo, nunca as agarro no momento certo; estão sempre “obsoletas” à minha mão. Quando meu celular toca, tenho vergonha imensa de atendê-lo, mas essa vergonha eu guardo para mim mesmo. Fazer o quê? Eu preciso desse aparelho. Tenho até orgulho de alguns amigos cujos números de seus telefones eu guardo com carinho na memória de meu chamado “tijolo”. Amigos estes que talvez nada saibam da minha vida real.

- Como foi lá com o cliente, Alfredo? – pergunta-me meu supervisor chefe.
- Nada feito.
- Por quê?
- Ele preferiu a concorrência. Não tive como convencê-lo do contrário. Nossos produtos parecem estar a um passo atrás, além de nossas condições de pagamento não serem lá tão vantajosas...
- E onde está o seu poder de persuasão?

Aquela pergunta me pega de jeito. Onde está?

- Hein, Alfredo? Onde está o seu poder de persuasão?

Fico mudo por alguns segundos.

- Hein, Alfredo? Onde está?
- Persuasão? É...
- Sim. É o que espero de meus vendedores, ora!
- Poder de enganação, você quer dizer!
- Que seja enganação, Alfredo! Não me importa os artifícios que use! Importa-me que venda! Só isso! Espelhe-se no Leandro! Já viu o quanto esse menino vende?

O Leandro é novo, bonito, se veste bem, é “antenado”. Talvez Leandro seja a real imagem da empresa ou, pelo menos, a imagem que a empresa deseja ter. Leandro faz a empresa parecer compromissada com o bem-estar dos clientes. Talvez, eu não.

- Sim senhor – eu respondo.
- Já estamos no dia vinte, Alfredo. Sua meta ainda está longe de ser alcançada... Eu não sei não, hein...
- Eu melhorarei. Pode deixar.

Em casa, penso no que fazer para chegar ao patamar de um vendedor como o Leandro. Ao ligar o PC, percebo que “ali dentro” eu pareço tão bem-sucedido; sou tão bem aceito – vejo isso através do interesse em me conhecerem. Chego a dar um sorriso, de tão contagiado. Porém, deito-me sem uma conclusão do que realmente fazer.

Ao colar meu corpo num colchão já tão cheio de sonhos, percebo o tempo voltando ao normal. Ao meu normal: lento, atrasado e completamente desinteressante.

Durmo à espera da escolha do dia seguinte: ser eu?

9 comentários:

Pequeno Historiador Urbano . disse...

Procurando ser eu mesma, sempre penso numa fase do Sartre: " Eu mudo para continuar o mesmo", mas mudar muitas vezes é dificil e no mundo virtual vc se recria em minutos, do jeito perfeito que vc quer.

Me identifiquei com o seu texto em muitas partes, inclusive a da vergonha de atender o celular HEUHEUEUHUEHUHEU

Muito bom!

www.contando-um-conto.blogspot.com

lorena disse...

vida de vendedor não é fácil, hehe, eu q o diga.

a arte de vender até aquilo que não presta, maquiando e fazendo parecer que é a maior maravilha do universo, é pra poucos, não dá pra mim não.

pobre afreldo, será que tomará decisão certa?

venho aqui poucas vezes, mas é smpre bom.

teh mais

Janaina W Muller disse...

Que texto diferente esse de hoje...com ares mais filosóficos :) faz a gente pensar; a vida desse personagem é a vida muitos. o "vazio" que o mundo de hoje implica ás pessoas :~


abraços
='-'=

Livia Queiroz disse...

Ah bacana o texto e coitado do Alfredo corta o maior dobrado...


Pois é caro Luciano, e caro Alfredo vida reale não é brincadeira às vezes há um preço altíssimo a se pagar quando se deseja ser quem é de VERDADE!

Adorei
Esse é bem diferente dos q vc costuma escrever!

bjaum

Nathalia disse...

uiá.. texto diferente!
gostei!!!
faz pensar, sabe?
rs

beijosss

blogixo disse...

isso de "venda de qq jeito, mesmo enganando" é típico de brasileiros babacas! q nojo q tenho dessa gente q sempre quer tirar proveito dos outros!

Lucas disse...

Agora sim! Meu preferido até agora.

Esses embates entre vida real e virtual, vida rápida e vida vagarosa e ser eu ou não ser, são tão comuns em mim. =/

Adorei o personagem, a história, a narrativa em primeira pessoa e a capa!

Muito bom Luciano.

Abraço.

Anônimo disse...

Muito bom texto, bem legal esse conto.

Me parece que ele nem sabe realmente quem ele é, então fica ainda mais difícil ser ele mesmo. Talvez quando ele se descobrir, souber quem realmente ele é e o que ele quer. Ele seja sincero no que faz, com os outros e consigo mesmo.


: )

Vanessa Sagossi disse...

Ain, triste!