
O cara era uma massa enorme. Gordo, barbudo, com cara de mal e um ar culto que poderia ser percebido a milhares de quilômetros. A minha empregada, ao abrir a porta, o pedia para entrar. Intrometida que só, foi adiantando o assunto a respeito da minha bengala voadora, mas:
- Eu já sei dessa história, senhora – dizia o jornalista – Eu vim da mesma redação que aquele jovem. Foi um engano tremendo o mandarem entrevistar o Luciano, entende? Aquele garoto não conhece nem a décima parte da... Da obra do Luciano.
- Sei... – respondia minha empregada com num tom de ignorância completa.
Ao ouvi-lo entrar, tratei de chegar até à sala. Afeiçoei-me com aquele homem logo de cara, mas mantive minha máscara ríspida mesmo assim.
O calor que, quando jovem, me tirava do sério no verão se faz presente agora o ano todo. Por aí dá para imaginar o humor de um velho quando se soma o suor ininterrupto, o Parkinson e os jornalistas insistentes.
- Você é o...? – eu perguntava.
- Matheus, S. Luciano. Vim aqui para...
- Eu já sei para o quê! Fui eu quem confirmou essa entrevista, não foi?
- Sim, claro, é que...
- Sem mais... Sente-se aí e comece quando quiser.
- OK.
Talvez o tal Matheus tenha ficado um pouco sem jeito com a minha maneira de falar, mas reagiu muito profissionalmente. Ele se acomodava frente ao meu sofá e, pude notar, não usava nem metade das bugigangas daquele garoto de antes; apenas um bloco Recycled – a melhor marca de papel atualmente – e uma caneta.
- Como nos velhos tempos, não? – eu perguntei.
- Sim, ainda prefiro o papel. Não é branco como antigamente, mas...
- Pois é...
- Posso começar a entrevista, S.Luciano?
- O quanto antes, por favor.
- Bem, vou começar por uma pergunta que há anos tenho vontade de lhe fazer...
- Ah, essa é boa! Vai me fazer uma pergunta que você tinha vontade de saber a resposta? É para você a entrevista?
- Não, S. Luciano, é que acho ser uma pergunta de interesse de quase todos os seus leitores.
- Tu és um deles?
- Sim, S. Luciano. Li TODOS os seus contos! Todos!
- OK... Pode perguntar!
- Bem, desde seus primeiros contos, no início do século, o senhor aborda o romantismo de uma forma que para muita gente é irreal. Por exemplo, o senhor deve se lembrar, aquele jovem personagem, o Rômulo, namorado da gloriosa Luana. Não somente ele, mas a Luana também, possuía um comportamento um tanto quando “perfeito demais”, inclusive para a época, no que se trata de romantismo. Até hoje, quando você escreve sobre casais, essas características se mantêm, sendo que hoje, muito pior que nos anos de 2009, 2010, as pessoas transam enquanto esperam o ônibus! Não se sente, como se dizia antigamente, dando murro em ponta de faca? Não acha que as coisas que escreve não condizem com a realidade; especialmente a de hoje?
- Matheus... É Matheus o seu nome, não é?
- Sim. Matheus.
- Então... Primeiramente devo lhe dizer que gostei muito da sua pergunta. Terei a chance de, após décadas, explicar o porquê das minhas linhas, às vezes tão chamadas de “melosas”, serem assim.
- Por favor.
- Desde que comecei a escrever contos, isso com meus vinte e cinco anos, mais ou menos, sempre tive uma vontade enorme de que aquelas coisas se tornassem uma realidade na vida de alguém. Lembro que certa vez escrevi sobre uma menina que tinha na nuca a tatuagem de um “P”, que significava a palavra “pergunte”...
- Lembro desse. “Melissa – O interesse leva à pergunta”.
- Exatamente, Matheus!
- Uma coisa meio difícil de acontecer na vida real.
- Pois é, mas como eu queria que aquilo inspirasse a vida de alguém, Matheus! Seria lindo aquilo tudo na vida da gente! Na minha juventude essa coisa de romantismo já era vista como démodé, coisa daqueles cantores como o falecido Roberto Carlos. O sentimento verdadeiro entre o homem e a mulher estava no princípio disso aí que a gente conhece hoje como sexamor, sexamizade. O sexo ficou tão banalizado que todo o caminho até ele se tornou desnecessário. Você chegou a viver um pouco desse princípio que estou falando, não?
- Sim, S. Luciano, o caos desse princípio, na verdade. Meu primeiro beijo e minha primeira transa foram juntos.
- Tens Aids?
- E quem não a tem, S.Luciano?
- Eu não tenho!
- Sorte a sua.
- Mas respondendo a sua pergunta, eu tenho a absoluta certeza de que escrevi e ainda escrevo muitas coisas que não condizem com o comportamento real das pessoas, mas acho que no fundo os meus pouquíssimos seguidores ainda se identificam com esse lado irreal.
- O senhor mesmo considera irreal, não é?
- Considero irreal, sim, mas apenas às pessoas desprovidas de sentimento, caro Matheus. Você gosta dos velhos contos da Luana, por exemplo?
- Sim, principalmente os da primeira fase.
- Aquilo é irreal para você?
- Um pouco. Mas não pense que não tenho sentimentos!
- Não, meu filho, você não tem é passado. E, nos dias de hoje, quem não tem um passado de pelo menos cinquenta anos não tem sentimento algum. De real em ti há somente a carne.
Sem dizer palavra, o jornalista catou suas coisas e se foi.