
S. Lázaro era um senhor de quase noventa anos; herdara a loja de seu pai, um dos primeiros proprietários de loja de instrumentos musicais da cidade. S. Lázaro quase não parava na loja, mas todo mundo sabia quem ele era. Com a cabeça bem branca, ele chegava com seus passos lentos, dando bom dia a todos, e logo saía, com o mesmo bom dia.
A gente sempre escutava histórias de que S. Lázaro era um exímio violonista. Porém, nunca ninguém o vira tocar de fato. “Dizem que esse aí arrebenta no violão de sete cordas”, era o que diziam. “Das duas uma: ou S. Lázaro era de fato tudo o que diziam, ou era um mestre do marketing pessoal”, eu pensava. Até que, num certo dia, eu resolvi provocá-lo.
- S. Lázaro, por que o senhor não tira uma casquinha desse novo Di Giorgio sete cordas que chegou na loja? – eu perguntei.
- Ficou maluco? – reprimiu-me um dos lojistas – Que intimidade é essa?
S. Lázaro olhou para mim, abriu um sorriso, no canto da boca, e:
- Afine-o que eu já volto.
Toda a loja ficou eufórica, porque, enfim, veríamos S. Lázaro tocar violão. Afinamos o Di Giorgio e o esperamos com ansiedade.
Quando voltou, S. Lázaro pegou o violão e disse:
- Façam silêncio, sim?
Fizemos.
Então, S. Lázaro começou a dedilhar um choro maravilhoso, num misto inteligentíssimo de técnica clássica e popular. Ficamos todos boquiabertos.
Quando S. Lázaro terminou de tocar, disse-me:
- E você? Toca?
- Toco, sim, senhor, mas não tão bem...
- Toque, por favor.
Toquei. Mas naquele momento, pressionado pelo olhar do velhinho e sem muita experiência nas sete cordas, executei um número simples, quase medíocre.
- Precisa de umas aulas, filho! – disse-me S. Lázaro – Minha neta é uma excelente professora!
- Sua neta? – questionei-o, pensando se tratar de uma criança.
- Não se assuste, rapaz. Ela tem a sua idade.
- Sei... – eu disse, ainda achando humilhante.
- Ela sabe tudo o que eu sei. Ligue para ela – disse-me ele, me dando um cartão e saindo da loja como um Deus das sete cordas.
* * *
Chegando em casa, liguei para a neta de S. Lázaro.
- Alô.
- Oi! É a Andréia?
- Sim, sou eu!
- Boa tarde. O seu avô me deu o seu cartão. Eu gostaria de tomar aulas de violão de sete cordas.
- Ah... Violão de sete cordas... Sei... Esse meu avô...
- Não entendi.
- Qual o seu nome?
- Plínio.
- Plínio, é o seguinte: eu não dou aula de violão, não sei sequer sacudir um chocalho, para você ter ideia da minha vocação musical.
- Mas...
- O meu avô acha que eu preciso de um namorado e fica por aí distribuindo cartões, que ele mesmo faz, para rapazes que ele diz “parecer boa pessoa”. Peço desculpas...
- Não, que isso? Mas o seu avô, hein... Bem, pelo menos sei que “pareço boa pessoa”, né?
- Isso é.
E, desculpe perguntar, mas... Esse plano do seu avô já funcionou alguma vez?
- Não, porque os rapazes acabam... desistindo.
- E... Você acha que precisa mesmo de um namorado?
- Não com a gravidade de vovô Lázaro. Acho que mulher nenhuma precise de um namorado. O namoro é algo natural, assim como a solidão também é.
- Ele me disse que tens a minha idade. Vinte e cinco?
- Vinte e três.
- Bem, eu não sei quanto a você, Andréia, mas eu estou com vontade de levar o plano de seu avô a sério.
- Então insiste em ter aulas de violão comigo? [risos].
- Façamos a vontade de S. Lázaro!
Resumindo, conversamos ao telefone por horas. Marcamos um encontro naquele mesmo dia, à noite. Nos conhecemos. Ela era linda, mas linda de morrer! Branquinha, cabelos castanhos e curtinhos. Boca carnuda, num batom de tom claro; corpo delicado, estatura mediana.
Depois de muito conversarmos num bar:
- Nossa, seu avô é um maluco – eu lhe disse.
- Por quê?
- Achar que uma menina linda como você precisa de ajuda para arrumar um namorado.
- Ai, o vovô... Ele acha que preciso de um namorado para me distrair até a minha...
- Não entendi.
- Deixe para lá.
- Não, me explique, por favor!
- Bem, Plínio, eu sofro de câncer... E, embora possa não parecer, tenho meus dias contados.
- ...
- Agora você vai fazer como todos os outros: pedir a conta, dizer “nós nos vemos por aí” e...
- Engana-se. Seu avô está certo. Você precisa de alguém que divida com você esses dias, que eu nem acredito que sejam poucos. Alguém que possa ser mais que a ajuda de seus familiares.
Andréia começou a chorar e:
- Que merda, Plínio! Eu acho que... Eu acho que gostei de você! Por que não foi como os outros?
- Não fui porque também gostei de ti! E por que diz “que merda”?
- Porque você não merece uma enferma!
Sequei suas lágrimas, levantei aquele rosto fino e beijei a boca como há anos não era beijada.
* * *
S. Lázaro morreu alguns dias depois – ele não andava bem de saúde. No velório, a viúva me disse que, antes pouco de morrer, sentindo muitas dores, S. Lázaro disse: “Diga ao Plínio que cuide de Andréia”.
Infelizmente, com o falecimento do avô, o câncer da neta piorou de forma assustadora. Mas eu estava lá, firme, ao seu lado, até o dia de sua morte, um mês depois.
4 comentários:
AHAM.
Tá vendo, gente que escreve conto fofinho é assim: até quando as pessoas morrem, morrerm fofinhamente. XD
aaai, que triste e que lindo tb...
=/
adorei ver dois contos em uma mesma semana, andava com saudades! rs
beijo
Oi, Luciano!
Mas que história mais fofinha!!!! :)
Adoreiii!
Bjs!
Muito bonito realmente, mas triste tbm...
bjs.
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