segunda-feira, 2 de agosto de 2010

CELINHA

Éramos feios. Meu Deus, como éramos feios naquela época. De longe, podia se enganar, achando se tratar de um grupo de jovens sadios e bonitos, aquele que nos visse sentados sobre o gramado em frente ao shopping. Mas bastava uma aproximação para a constatação de não passarmos de um bando de idiotas vestidos com malhas negras e calças jeans rasgadas – mais tarde fui saber que os alternativos nos chamavam de “mariolas”.

Zeca e eu, amigos inseparáveis, como que numa espécie de hora sagrada, comparecíamos ao gramado sempre às oito da noite. Carregando nossas bandas prediletas estampadas em verdadeiros trapos que chamávamos de camiseta, lá estávamos nós, todo santo dia, a fim de papo furado, vinho barato, som pesado e meninas.

O papo furado era certo – a quantidade de cabeças vazias naquele local era imensa –, o vinho barato também – era só o que nosso dinheiro dava para comprar –, o som pesado vinha de fitas cassetes para lá de gastas, de tanto rodarem em nossos antigos walkmans. Já as meninas... Bem, as meninas não eram das melhores. Elas fumavam muito, bebiam muito, gritavam muito umas com as outras, usavam camisetas masculinas e calças incapazes de atrair sequer um tarado na seca. Sim, as nossas meninas eram muito ruins, coitadas, mas... Fazer o quê?

Zeca e eu nunca nos envolvemos com nenhuma daquelas meninas. Exceto numa festa na casa do Franco, um amigo nosso, mas esse foi um episódio tão deprimente (além de etílico) que prefiro deixar para uma outra ocasião.

A verdade é que daquele gramado conseguíamos observar as chamadas patricinhas, que zanzavam serelepes pelo shopping. Tínhamos a noção de que vestidos daquele jeito não teríamos a menor chance com elas, mas, mesmo assim, as observávamos.

E como eram lindas as patricinhas! É engraçado concluir que nós (pelo menos Zeca e eu), ali, naquele gramado, queríamos mesmo era participar daquilo que as patricinhas participavam. Só em ter a chance de abraçar uma menina perfumada como elas... Mas a nossa cabeça estava tomada por aquele monte de besteiras que os astros do Heavy Metal nos faziam acreditar. Sim, nós acreditávamos que tais astros andavam como nós andávamos; rasgados, sujos, com a barba por fazer e com a pele de um ogro. Vê se pode! Enquanto isso, a cada dia, sabe-se lá quantos lábios doces deixávamos de beijar.

Até que, num determinado verão, o bando recebe uma nova integrante. Marcela, que mais tarde virou Celinha, na flor de seus dezessete anos, nos aparece como que perdida de uma floresta habitada por fadas alvas e virgens.

- Oi! Posso me sentar com vocês? – perguntava Celinha ao bando.

Como não poderia? Celinha era a junção perfeita do melhor dos dois extremos daquele shopping! Ela era a beleza, o charme e o cuidado de uma patricinha consumista, mas ao mesmo tempo a atitude de uma menina do gramado – pelo menos a atitude que nós meninos queríamos que as meninas tivessem.

A branquíssima Celinha me aparece com um tênis All Star cano longo, uma saia que nem sei descrever, uma camiseta preta justa, sem estampa alguma, e um cabelo que, sem exagero, é o mais belo cabelo que já vi; liso, negro, na altura dos seios, com mechas vermelhas, uma graça!

- Claro que pode! – respondemos em uníssono Zeca e eu.

Pronto. Estava determinado o marco zero do desentendimento histórico entre Zeca e eu, que, logo após a frase cordial, olhamos um para o outro num estranhamento inédito.

As meninas, logicamente, demonstraram, sem disfarce algum, todo o veneno de seus ciúmes. Mas como seria diferente? Todos! Eu disse todos! Todos os meninos do gramado não conseguiram olhar para mais nada que não fosse, ou não tivesse a ver com, Celinha.

- Obrigada. É que sou nova aqui na cidade. Cheguei nesse fim de semana de São Paulo e procurava por pessoas que, sei lá, curtissem as mesmas coisas que eu, entendem? – dizia Celinha com seu sotaque.

- Claro! – respondíamos novamente em uníssono Zeca e eu.

- Mas quem disse que gostamos das mesmas coisas que você, menina? – berrava Letícia, a mais feia do bando.

- Curtem rock, não? – dizia Celinha.

- Sim! – respondia Letícia – Mas você não parece curtir rock!

- Curto sim! Eu curto...

Celinha, então, derramou em nossas mentes uma lista de bandas que jamais tínhamos ouvido falar. Ela não curtia apenas Heavy Metal, mas todas as vertentes do Rock. Eu concluía que, além de estar completamente apaixonado por Celinha, estava também atrasado, e muito; enquanto Zeca e eu, por exemplo, discutíamos sobre a decadência do
Metallica, Celinha conhecia a fundo todos os detalhes das histórias contadas pelos discos do Rhapsody. Foi dessa forma que, mesmo sob os narizes torcidos das meninas, Celinha se juntou a nós.

Celinha passou a frequentar o gramado, mas não todos os dias. Sendo assim, as expectativas em relação a sua aparição – por parte de todos, é verdade – era diária. Zeca e eu, a essa altura, não tínhamos assunto que não fosse sobre cada pedaço de Celinha; dos lábios ao dedão do pé. E foi aí que começamos a notar que se tratava de uma disputa.

- Fernando – dizia-me Zeca –, não vê que não tem chances com Celinha?

- Por que diz isso? Acha que você tem? É isso?

- Ela se amarrou na minha, Fernando. Você sabe.

- Não, não sei. Sei que ela não tira os olhos de mim. Disso eu sei.

- É para rir, Fernando?

A verdade é que Celinha era uma menina muito carinhosa e atenciosa com todos. Seu carisma tomava os nossos corações. Com o tempo, até as meninas passaram a adorá-la, sendo Celinha, inclusive, o pivô de uma mudança radical na maneira daquelas feiosas se vestirem – algumas ficaram até bonitinhas.

* * *
O tempo passou. Zeca e eu, a essa altura, sequer nos suportávamos. Íamos para o gramado, mas em horários diferentes; ele ia mais cedo um pouco.

Até que, certo dia, eu resolvi ir para o gramado bem mais cedo, pensando numa chance (entre um milhão) de encontrar Celinha sozinha. E não é que tive sorte? Foi coisa de Deus mesmo, só pode. Naquele fim de tarde, por alguns segundos, pensei em Deus sem meus antigos preconceitos. “Deus, obrigado”, eu pensei.

- Celinha! – eu disse.

- Fernando!

- O que houve? Você cedo por aqui – eu disse.

- Nada. Vim olhar o mar, o Sol. Adoro ver o Sol se pondo.

- É bonito mesmo.

- E você? O que faz aqui mais cedo?

- Vim ver você vendo o Sol se pondo.

- Bobo. Sério. O que faz aqui tão cedo?

- Celinha, eu na verdade não sei. Acho que senti que estaria aqui também, não sei. Simplesmente vim.

Celinha percebeu a minha intenção de aproximar meus lábios aos seus e me parou com sua mão delicada sobre meu tórax.

- Fernando, qual é? Não ia me beijar, ia?

- Ia...

- Melhor não. O Zeca é muito seu amigo e...

- O que o Zeca tem a ver com o meu beijo, Celinha?

- É que o Zeca e eu estamos juntos. Mais ninguém sabe ainda, OK? Imaginei que ele tivesse contado a você, mas, pelo visto...

- Você e o Zeca? Mas ele não me disse nada... Bem, depois dessa, eu... Eu vou indo...

- Não vai ver o Sol se pondo? Comigo.

- Não. Acho que perdeu a graça. Vou nessa...

Pelo caminho pude ver o Zeca rumo ao gramado. Foi quando as peças finalmente se encaixaram; eles estavam realmente juntos. O Zeca ia mais cedo ao gramado a fim de se encontrar com Celinha.

Fiquei tomado por uma inveja mórbida por dias. Não conseguia ir ao gramado. Não conseguiria ficar ali sabendo que, minutos antes, Celinha e Zeca haviam trocado suas salivas. Daí à loucura: “Será que ela deixa o Zeca passar a mão na bunda? E nos peitos?”, eu pensava doentiamente.

Deixei de ouvir qualquer música que me lembrasse Celinha, ouvindo apenas
King Diamond – que ela odiava – bem alto. Em todos os rostos na rua era o de Celinha que eu via. Não dormi durante semanas por conta disso. Foram dias muito difíceis.

Alguns meses depois, Zeca batia à minha porta.

- Fernando.

- Lembrou que eu existo, seu filho da puta?

- Chega, Fernando! Sei que você tá puto, mas o que me traz aqui é sério.

- O que foi? Tirou o cabaço de Celinha, foi?

- Não, Fernando! Celinha foi baleada num assalto. Celinha morreu, cara! Vim te avisar do enterro de Celinha! Babaca!

Zeca, contendo as lágrimas, foi embora. Eu, sem dizer palavra, fechava a porta numa forte tristeza, mas também numa assustadora e macabra alegria. Chorava e ria compulsivamente ao som alto de
Conspiracy. Até hoje não entendo o que senti naquele momento.

9 comentários:

CAMILA de Araujo disse...

Há momentos que pra não ver o nosso objeto de desejo, quem amamos, nas mãos de outra pessoa. Ficamos estranhamente contentes por um infortunio dessa mesma pessoa que a separe de quem esteja por perto. O amor nos torna egoístas, principalmente amor adolescente, já que o adolescente, durante boa parte do tempo, só vê a si mesmo.

Esse gramado na história, me lembrou o gramado da Lapa, bons tempos hehehe...


www.teoria-do-playmobil.blogspot.com

Unknown disse...

Exatamente, cara Camys. E sobre o gramado, tive como referência um gramado aqui de Niterói mesmo; um reduto de "rockers" rs.

Obrigado pela visita!

Nathalia disse...

nossa! =(

Vanessa Sagossi disse...

Ai, que triste, Lu.
Pensei que ia ter continuação, mas você acabou com as esperanças... Hahahha..
Mas gostei.
Beijos

Anônimo disse...

Nossa, bem doentia a reação dele!

aqui ta bem diferente hein :)
bjs!

Anônimo disse...

Após ler sua história cara, tive uma reação bem peculiar que só tenho quando me surpreendo positivamente com alguma coisa. Ao passar os olhos pelas suas palavras pude ver as imagens da história de tão clara que é a tua capacidade de explicação e descrição dos fatos. Um grande misto de amor, amizade, ódio, tristeza, raiva e revolta fizeram do teu texto um dos melhores que já li, isso sem falar no final que foi sensacional, que fugiu completamente a regrinhas de "felizes para sempre" da qual estou saturado, diga-se de passagem. Só tenho a lhe dizer: Parabéns, porque faltam-me palavras.

Abraços,

www.catarseonline.blogspot.com

Anônimo disse...

Eu que agradeço...

Voltei aqui para te convidar a passar no Catarse e ler o último post: Aos Pais.

Abraços cara,

www.catarseonline.blogspot.com

Unknown disse...

Eu percebi, pelo conto, que você consegue passar uma espécie de "imagem" do que está dizendo, imagem essa que me ficou bastante clara.

Parabéns!!

Seguindo...

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www.temalgumacoisaerrada.blogspot.com

DL ;* disse...

Nooossa..!
Adorei, é o tipo da história que vc lê ancioso pelo final, e quando ele chega.. vc fica chocado e não acredita que acabou assim.. rs

luuh.. saudades da luana.. rsrs =P


Beeijos (L)