quarta-feira, 29 de setembro de 2010

MEMÓRIAS DE UM PUBLICITÁRIO - VOL. 2

Resíduo de Princípios

Dado o aceite à proposta do Pr. Geraldo, eu tratei, logo no dia seguinte, de dar início aos trabalhos na campanha que visava induzir os fiéis de sua igreja a serem mais “solidários” na hora do dízimo. Não posso negar que naquela noite, quando de fato quebrei meus princípios em prol da comida na panela, aceitando tal job, voltei para casa com a pulga atrás da orelha. Mas também não posso negar que as cifras oferecidas pelo pastor me cegaram em parte – um adiantamento de 25% dos quarenta mil reais, só para começar a pensar.

Eram seis da manhã. Eu abria meu bloco de desenho e começava a escrever e rabiscar elementos num brainstorm solitário e focado. Várias ideias me vinham, mas eu sentia que um restinho de princípio ainda residia em minh’alma, o que resultava num bloqueio na hora de ousar; eu ainda estava pensando que aquilo ia contra o que eu acreditava em relação à fé. O jeito era me desprender daquele “resíduo de princípios”. E eu já sabia como.

Liguei a TV e comecei a buscar programas de cunho religioso, o que não foi difícil naquele horário – encontrei uns três. Mas eu queria um daqueles que pede o dinheiro sem metáforas ou palavras de enfeite; queria um daqueles no qual o dízimo é levado a sério mesmo! Escolhi um e passei a observá-lo.

O pastor pregava uma palavra cujo foco era, sem dúvida alguma, o dízimo. Resumindo: tem que agradecer a Deus com dinheiro, e pronto! Ao observar a maneira como aquele pastor se dirigia às suas “ovelhas”, notei o domínio que este possuía em relação à psicologia e à oratória. As câmeras, propositalmente, mostravam os semblantes convencidos dos fiéis presentes naquele culto, enquanto aquele pastor derramava, com desenvoltura, todo o seu apelo sobre estes.

Com muita dificuldade, tentei enxergar o serviço prestado pela igreja como um serviço prestado por uma empresa qualquer, que, evidentemente, precisa de dinheiro para se sustentar. Procurei me desprender de todo o luxo contido na sala de jantar do Pr. Geraldo, por exemplo. Se eu quisesse criar, sem culpas, uma campanha que realmente convencesse os fiéis a serem menos econômicos na hora do dízimo, eu teria de encarar aquela religião como um negócio, mas sem transparecer isso ao público alvo. E foi o que eu fiz.

Depois de algumas horas vendo aquele programa na TV, voltei ao bloco de desenho já com um esboço, uma ideia de conceito. Rabisquei, escrevi, rasurei, refiz. Até que, lá pelas cinco horas da tarde, eu fechava, enfim, a frase que traria o conceito de toda a campanha:

Eis o que há por trás da igreja.

Se eu usasse, por exemplo, esta frase numa peça de grande dimensão, bem localizada, na frente da igreja, eu teria, no mínimo, a atenção dos fiéis – por parecer, a princípio, se tratar de algo com a intenção de difamar a instituição. A frase seria usada apenas para chamar a atenção mesmo, porque a mensagem vital viria logo abaixo, ilustrada por uma foto que mostrasse bastidores de um culto, como por exemplo, um operador de som em meio àquela aparelhagem enorme, cheia de cabos, microfones etc:

A palavra de Deus não tem preço! Mas os meios pelos quais a palavra chega até você sim. Ajude-nos a manter a sua fé bem alimentada. Seja um dizimista.

Livre de Princípios

Naquela noite, fui até a igreja e fiz várias fotos que passassem a ideia de “bastidores do culto”, ou melhor: daquilo que custa dinheiro, mas que, seja lá o porquê, se apresenta aos fiéis como algo que, de forma mágica, simplesmente aparece na igreja.

As minhas peças precisavam fazer com que os fiéis pensassem da seguinte forma: “Eu venho à igreja e alimento a minha fé. Nada é de graça. Tudo custa dinheiro. E para a igreja não é diferente. Por isso, devo ajudá-la a manter esse trabalho”.

Em meio às fotos, eis que me surge o Pr. Geraldo.

- Meu caro irmão Victor! – disse-me ele – Vejo que já está trabalhando!

- Sim, pastor! Amanhã mesmo já devo lhe apresentar alguma coisa.

- Que benção!

- Espero que goste!

- Eu também espero, irmão!

Virei a madrugada tratando fotografias, diagramando peças, escolhendo cores etc. Às sete da manhã do dia seguinte eu já tinha uma série de peças, um conceito e uma defesa já decorada. Dormi até às três da tarde e, assim que acordei, telefonei para o Pr. Geraldo.

- Alô!

- Pastor, sou eu, o Victor!

- Diga, irmão Victor!

- Já possuo algo da campanha para te mostrar.

- Ágil você, hein, irmão? Glória a Deus!

- Quando podemos nos ver?

- Hoje, às seis da tarde, lá em casa, pode ser?

- Claro, pastor! Estarei lá!

Conforme combinado, lá estava eu, na luxuosa casa do Pr. Geraldo, com algumas peças impressas e um discurso decorado.

- Diga, irmão Victor. O que você nos trouxe?

- Bem, já consegui fechar o conceito, a linguagem etc. Só preciso que você aprove ou não, OK?

Eu lhe entregava os modelos de um folder, um flyer, um cartaz em A3 e uma faixa (em dimensão reduzida), e começava o meu discurso:

- O que procurei com esta campanha, Pr. Geraldo, foi conscientizar os fiéis da importância do dízimo para a continuidade do trabalho que a igreja lhes presta. É importante que o fiel entenda que tudo o que ele deposita na caixinha o retorna em forma de serviços, ou seja, num culto de qualidade. Sabemos que há muitos fiéis que não entendem que tudo aquilo ali, o som, os impressos, a manutenção da igreja, custa dinheiro, e...

- Mas não sei se gostei desse “eis o que há por trás da igreja”, irmão Victor. Parece ofensivo.

- Mas essa é a ideia, pastor! O fiel, principalmente aquele que não dá o devido valor ao dízimo – aquele a quem a peça mais se dirige –, é aquele que se deixa levar por escândalos, fofocas, essas coisas, e essa frase causa impacto neste tipo de fiel!

- É, acho que tem razão! Brilhante! E, de fato, as mensagens que você usou abaixo estão muito boas! Parabéns, irmão Victor! Ô glória!

- Obrigado. Agora, entenda que a faixa na frente da igreja será o pivô da campanha, que será reforçada pela distribuição desses impressos menores em suas mãos.

- Excelente, irmão Victor! E quando começamos?

- Acredito que em uma semana todo o material estará pronto e impresso, pastor.

- Ótimo! Precisa de mais algum adiantamento?

Meu Deus, lá vinha mais dinheiro! Eu já tinha recebido dez mil reais só para pensar.

- Não, não precisa, pastor. Você me paga o restante no início da veiculação da campanha, pode ser?

- Fechado!

Eu ia para casa sentindo o cumprimento do dever latejar meu peito, mas, ao mesmo tempo, ouvindo a palavra “mentira” soar diversas vezes, por várias vozes diferentes.

- Foda-se! – eu disse àquelas vozes, bem alto.

E as vozes se calaram.

Um comentário:

Vanessa Sagossi disse...

Será que a campanha vai funcionar? E Victor vai até o fim com a consciencia limpa?
Bjs