terça-feira, 30 de setembro de 2008

PELA CIDADE II - Curiosidades do Meio-Dia

Eu almoçava em um restaurante bem bacana no outro lado da rua. Havia um cardápio à minha mão e eu então fazia o pedido. Tudo pago pela da empresa, claro. Quando eu simplesmente fazia as entregas, na hora do almoço era pegar um prato e seguir a fila dos self services. Alimentar-me daquela comida infestada de espirros e tosses alheias não fazia mais parte de minha rotina. Progresso, leitor! Progresso!

Eu e meus colegas de repartição sentíamos o perfume das mulheres mais belas e bem sucedidas da cidade. Algumas nem eram assim tão importantes e estavam em busca de emersão. Logo, almoços na companhia de seus respectivos chefes e sorrisos forçados diante de piadas sem graça e até de mau gosto faziam parte do mundo daquelas... Deixa.

Naquele período de minha vida, um terno, ou melhor, vários ternos faziam parte do meu vestuário profissional. Não mais pingava sob o sol quente dos verões cada vez mais cruéis. Eu ligava o ar condicionado e pronto. Refrescava-me quase ao orgasmo e contribuía para o inferno dos que, como o meu passado, vagavam do lado de fora. Eu estava sentindo o gostinho de ser inconseqüente. Era tão engraçado agir de forma irracional e ainda ter sua posição almejada por alguns. Mas voltando à refeição...
- Diga, Jorge. Como andam as fêmeas?
Perguntava-me Cícero, um dos colegas à mesa. Éramos tudo e éramos nada ao mesmo tempo. “Fêmeas”?
- Ora, Cícero. Elas andam pela cidade a nos maltratar. Eu tento desviar, mas não consigo! [Risos].
- Conte-me uma das suas, Jorge.
- Quer ouvir? OK! Nos correios. Naquela agência ali da esquina, sabe qual é?
- Sim, sim.
- Então. Vá até lá quando quiser e repare os olhos da atendente do guichê três.
- Por quê?
- Verás os olhos mais verdes e lindos do universo. Tomei uns sucos com ela.
- Sucos? Como assim?
- Isso. Sucos. Ela não quis que eu bebesse, pois confiei minha companhia até a sua casa.
- Olha só! Já traçou o par de olhos, pelo visto.
- Não, não. Desisti.
- Mas por quê?
- Pois ela é a dúvida em forma de gente.
- Dúvida és tu! Não te entendo! Precisas de conclusões para traçar um par de olhos? E verdes!
- Porque não teve a dúvida que tive.
- E qual foi?
- Acho que é ex-prostituta.
- O QUÊ?
- Isso mesmo que ouviu. Ela deu entender que é uma ex-profissional do sexo.
- E você? Ficou com medo de quê?
- Ora, ora. Quando vir os olhos dela entenderá!
- Devem ser demais, pelo que me fala.
- E são! Os mais belos que já vi. Não mais vou àquela agência. Minhas cartas agora eu envio próximo à minha casa. Lá, diferente dali, só tem uma atendente. Feia e gorda!
- Você é maluco, Jorge! Pois saiba que vou lá conferir esses olhos assim que sair daqui. Tenho umas correspondências mesmo.
- Vá. Só depois não me diga que não lhe avisei.
- OK!

Cícero ficava apontando para os olhos que zanzavam por aquele restaurante.
- São mais bonitos que aqueles?
- Muito mais!
- E aqueles?
- Mil vezes!
- E aqueles?
- Está brincando, Cícero!
- Ah! E aqueles ali de mãos dadas com o careca? Os olhos da tal atendente são mais bonitos que aqueles?
Era a própria Catarina adentrando ao recinto.
- É ela! É ela! Merda!
- Nossa! Não brinca, Jorge!
- Juro!
- Nossa! Você estava certo, Jorge! São lindos!
- Não disse? Não quero que ela me veja aqui.
- Por quê?
- Porque não mais a procurei, ora! Na certa o careca tomou o meu lugar.
- Será?
- E você tem dúvida?
- Não. Aliás, quem entende de dúvida aqui é você, não?
- Não brinque. É sério. Aposto que ela largou a agência e voltou para a “vida”.
- Não julgue assim, Jorge.
- Ela me disse que não agüentava mais aquele emprego. Esse aí deve ser muito mais rentável e prazeroso, não acha?
- Jorge, Jorge!
- Vou embora. Se quiser ficar, esteja à vontade!
- Espere-me. Eu vou também.
- Então vamos.

Catarina lançava seus olhos contra os meus assim que me levantava. Eu ficava vermelho de vergonha. Ela sorria. Não parecia estar furiosa comigo.
- Ela sorriu para você, Jorge! Estava errado, viu?
- Elas estão a nos maltratar, Cícero. Aprenda. Desviar é preciso às vezes.
Catarina pedia licença ao careca que a acompanhava e vinha em minha direção.
- Segura aí, Jorge. É contigo. Fui!
Deixava-me diante dos olhos verdes, Cícero.

- Olá Jorge!
- O... Olá Catarina, como vai?
- Bem e você?
- Bem também. Não sabia que almoçavas aqui.
- Não almoço. É a primeira vez que entro nesse lugar.
“Pergunto ou não pergunto?” Resolvia perguntar:
- Quem a acompanha?
- Como?
- Aquele senhor que está à sua mesa. Quem é?
- Curioso!
- Ora, não precisa responder se não quiser.
- Curioso!
- Sim, sou curioso.
- Por quê?
- Não comece, Catarina! Você não me responde nada e me enche de perguntas!
- Quer mesmo saber quem ele é?
- Quero!
- Curioso!
- Ora, deixe-me ir, sim?
- OK. Nos vemos por aí!
- (Espero que não) Claro! Até!
- Até!

Dentro do restaurante havia uma livraria, a Come Letras. Eu entrava e comprava um livro de bolso da Ruth Rendell. Do lado de fora, Cícero me esperava ao cigarro.
- Ruth Rendell? Não sabia que você lia romances policiais.
Dizia Cícero.
- Não leio muito. Mas as mulheres se sentem atraídas por leitores de romances policiais.
- E como sabe disso? Já pegou alguma com esse truque?
- Nunca. Mas eu sei que isso as atrai.
- Ora, Jorge. Você é um artista mesmo.
- É. Eu sei disso também.
- Mas e então? O que a Catarina lhe disse quando eu saí?
- Nada.
- Estava furiosa com seu sumiço?
- Nem tocou no assunto.
- E o careca? Quem é?
- Curioso!
- Eu curioso?
- Não! Eu! Ela me chamou de curioso. Apenas isso.
- Mas você...
- Esqueça. Vamos para a repartição. Os olhos de peixe morto nos esperam.

[Continua]

* * *
Foto da Capa por: Gabriel Andrade [meinframer].

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

PELA CIDADE - Virada de Mesa

- É simples?
- Como?
- A carta! É simples?
A atendente me perguntava.
- Não, não. Autenticada, por favor.
- OK.
Eu fitava os olhos da atendente tentando entender o porquê de Deus ser tão injusto. Esta tão linda e outra logo ao lado tão... Deixa. Olhos verdes semelhantes às bolas de vidro que enfeitavam a minha sala. A boca de tamanho ideal para sua fala suave desviava minha atenção dos olhos.
- Falta o remetente.
- O quê?
- O remetente. O envelope de sua carta está sem remetente. Preciso do remetente para enviá-la autenticada.
- Ah! Sim, claro! Dê-me aqui. Tens uma caneta?
- Aqui.
- Obrigado. Meu nome... Meu nome...
- Esqueceu seu próprio nome, senhor?
- É! Veja você. Mas seria capaz de lembrar o seu até o fim da minha vida.
A atendente sorria sem querer, mas logo se colocava séria novamente.
- Já preencheu o remetente?
- Sim! Aqui está.
Entregava-lhe o envelope.
- Três reais e vinte e cinco centavos, senhor.
Dava-lhe quatro.
- Teria vinte e cinco centavos?
- Não, infelizmente.
- Tudo bem.
- Não vai me dizer o seu nome?
- Aqui a sua notinha.
Não entendia a ênfase dada à palavra no instante. Somente no escritório eu notava que na parte superior da nota fiscal vinha impressa sua graça; Catarina.

Ficava comparando os rostos das mulheres do escritório – eu não mais fazia entregas como antigamente – com o de Catarina. Concluía que nenhuma delas chegava aos pés da nova atendente dos correios. Sentia vontade de voltar até lá, mas seria patético tentar alguma coisa durante o expediente fatídico daquela jovem. Atender toda aquela fila, ouvir um monte de grosserias e ainda as minhas indecentes propostas. Seria demais. Ela não agüentaria. Se ela estivesse há três semanas naquele emprego seria muito. Nunca a vira por lá. Enviar cartas em plena era digital nunca fora tão prazeroso.

No final de meu expediente, não pude deixar de passar na agência de Catarina. Não havia fila. Um outro atendente descia as portas anunciando o encerramento das atividades.
- Por favor. A Catarina ainda está aí?
- Estamos fechando!
Respondia-me estressado.
- Não brinca! Pensei que estivesse a dançar com esta porta pesada. Não quero enviar carta alguma, quero apenas falar com a Catarina!
- CATARINA! TEM UMA MALA AQUI QUERENDO...
- Dê mais uma palavra desse tipo sobre minha pessoa e sentirá o estrago que uma “mala” pode fazer numa cara feia como a sua!
Eu o interrompia com a mão na gola de seu uniforme.
- Ficou maluco? Eu chamo a polícia!
Nesse momento eu avistava Catarina vindo em direção à porta. Soltava aquele ser desprezível de imediato.
- Catarina!
- O que faz por aqui, senhor?
- Precisava falar com você!
- Ora, mas...
- Para onde está indo?
- Para casa, senhor.
- Primeiramente, pare de me chamar de senhor, por favor!
- Como quiser, mas...
- Está uma noite tão agradável. Podemos beber alguma coisa. Eu a levo até sua casa.
- Dirigir depois de beber?
- Um suco! Bebo um suco! Mas beba comigo, por favor!
- DEIXE A GAROTA EM PAZ, CARA! NÃO OUVIU ELA DIZER QUE NÃO?
O atendente estressado resolvia se meter. Não o dava atenção.
- Qual o seu nome?
Perguntava-me Catarina.
- Silva. Jorge Silva.
- Onde costuma beber?
- Verás. Tem um bar muito bom logo aqui, o Breu´s.
- Tudo bem, mas não vou demorar, OK?
- Como quiser, Catarina! Como quiser!

Sentávamos numa mesa no fundo do bar. Lá era mais escuro e por isso mais aconchegante também. Pedíamos nossos sucos. Na mesa ao lado, dois copos muito familiares e vazios me causavam uma certa impaciência.

Catarina se mostrava um pouco receosa nas informações que me passava sobre si. Começara naquele emprego há pouco mais de uma semana e já dizia detestar tal rotina.
- Não sei o que estou fazendo lá. Atendimento ao público não é a minha.
- Imagino que não mesmo.
- Por que imagina?
- Sei lá. A não ser pela sua beleza, lógico.
- A minha beleza? Como assim?
- O público gosta de ser atendido por belas pessoas, belos olhos.
- Você está me deixando sem jeito, sabia?
- Desculpe, mas é a mais pura verdade.

Ela me fazia lembrar a Laura, ou melhor, a Sheila [Vide “Quem Você Quiser” I e II, publicado em 26 e 29 de maio de 2008 neste blog], no seu jeito de falar. Sossegada. Soltava-se pouco. Só tive realmente impressão de se tratar de um diálogo depois de uns quarenta minutos de frases curtas e sem muita eficácia.
- Por que você voltou na agência? Não pensei que falasse sério quando o atendi pela tarde.
- Catarina. Tu tens os olhos mais belos que os meus já puderam fitar. Você pediu para eu preencher o remetente do envelope com tanto...
- Profissionalismo?
- Não!
- Profissionalismo sim, Jorge!
- Pode ser, mas veja você, como um ser humano atrai o outro sendo profissional?
- Existem as profissionais do sexo, não?
- Nem manche esses seus lábios com uma coisa dessas. Não são humanas!
- Que preconceito, Jorge!
- Desculpe. Mas é que estava me concentrando no seu poder de atração natural e você me veio falar das prostitutas... Desculpe.
- Não gosto de preconceitos.
- Também não. Pode estar certa disso.
- E se eu fosse?
- Fosse o quê?
- Uma profissional do sexo!
Pronto! De Sheila a lembrança foi até Laura num segundo. Laura! Aquele lado animal de Sheila que me... Deixa.
- Não diga isso, Catarina! Não estarias aqui. Não estarias nos correios.
- Uma ex-profissional. Por que não?
- OK! Digamos que fosse. Eu não saberia, então estaria tudo bem.
- E se eu lhe contasse?
- Contasse o quê?
- Que eu era um ex-profissional do sexo. O que você faria?
Mas que questionamento para um primeiro encontro! Sentia-me um moleque de 15 anos frente à Catarina.
- Bem... Eu...
- Não precisa responder. Ficou sem jeito, não?
- Claro. É uma questão complicada.
- Aos que têm preconceito sim!
- (!!!)

Eu tinha o dom! Eu devia ter um anjo só meu. Um anjo mau que me colocava nessas encrencas. Aquele rosto de menina virava a mesa e me colocava como caça! Daquele momento até o último gole do meu sugo de graviola eu não mais sabia o que dizer ou perguntar à Catarina. Ela se abria e me contava quase tudo sobre sua vida. O que não queria contar ela substituía por um “um dia eu te conto”. Até me disse que morava apenas com uma avó surda. Isso me dava idéias absurdas, mas me encontrava incapaz de sugeri-las. Preferia ouvi-la naquela noite de sucos!

Os dias passavam e eu não mais tinha coragem de entrar naquela agência dos correios. Conversáramos bastante naquela noite à base de frutas, mas saíra daquele bar com a impressão de conhecer Catarina menos do que antes de saber o seu nome. A jovem me deixara com mais dúvidas que conclusões a seu respeito. Seria ela uma ex-profissional do sexo, como havia suposto? Confesso que essa era a parte que mais me afastava da idéia de voltar a ver Catarina. Seus olhos tinham o poder de me hipnotizar e eu certamente cairia em tentação a amar aquela... Deixa.

[Continua]

* * *
Foto da Capa por: Gabriel Andrade [meinframer].

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

LUANA V - De Volta (Final)

Durante o jantar, aquela família se mantinha em total silêncio. Marcos, a pedido de Patrícia, não tocava no assunto do choro, embora estivesse bastante curioso. A menina engolia as garrafadas olhando para o nada. Na cabeça, a imagem de Daniel aos beijos com Manoela. Era horrível. Nem precisava perguntar o que a deixava tão séria e com os olhos brilhantes por conta das lágrimas que se acumulavam em pálpebras trêmulas.
- Está gostosa a comida, Luana?
Tentava quebrar o gelo Celeste.
- Está.
Celeste percebia vontade de Luana em permanecer quieta e não mais falava.
- Patrícia. Você ligou para o representante daqueles refrigerantes que chegaram...
- Marcos. Agora não. Depois falamos sobre isso, OK?
- OK.
Marcos também tentava criar diálogo, mas Patrícia preferia que o silêncio de Luana não fosse interrompido com ruídos desnecessários. Para a madrasta, Luana precisava sentir o mínimo da importância dada por eles aos problemas dela.

Luana e Patrícia terminavam juntas suas refeições e subiam para o quarto da primeira, como combinado.
- Vamos conversar agora, Luana. Vamos, me conte o que quiser sobre você, Daniel, essa tal de Manoela.
- Está bem.

Luana contava tudo. Desde a descoberta de que sentia algo mais pelo menino até a cena catastrófica que presenciara naquele início de noite. Patrícia ouvia calada e intercalava a direção dos olhares entre Luana, os pôsteres de seus ídolos colados à parede e Mimi, que dormia no tapete. Mimi abria os olhos vez em quando parecendo já ter ouvido todo aquele relato.
- E foi isso – dizia Luana. – Essa Manoela deve ter percebido algum olhar meu e tratou de tirar o Daniel do meu alcance antes mesmo que eu tivesse certeza do que eu sentia por ele. Agora eu tenho certeza do que sinto, porém, não mais ao meu alcance Daniel está.
- Você acha que Daniel sabia de tudo isso? O endereço errado...
Perguntava Patrícia.
- Não. Ele não tem motivos para isso. Manoela fez tudo planejado. Deu o meu endereço a ele na intenção de que eu o visse com ela. Aposto!
- Faz bem em não se juntar a essa menina. Tão nova com esse tipo de idéia. Nossa!
- Pois é.
- E o que você vai fazer em relação ao Daniel e ao que sente por ele, Luana?
- Esquecê-lo. É o mínimo que tenho a fazer. Não acha?
- Acho. Eu também faria o mesmo. Pelo menos tentaria.
- Então sabe que será difícil para mim esquecê-lo, não?
- Luana, eu já tive a sua idade e já passei por essas coisas. Mas entenda uma coisa; Nenhuma pessoa, nessas circunstâncias, merece sua tristeza. Pense nisso. Isso fará com que o esqueça em breve.
- Obrigado por me ouvir, Patrícia.
- Estou do seu lado. Já lhe disse.
- É. Eu sei disso.

Naquele instante, Mimi levantava como num susto, subia para a cômoda de Luana e mirava a rua pela janela tal como fez na aparição de Daniel.
- Mimi! Quem chegou?
Mimi ronronava para Luana.
- É a segunda vez hoje que ronrona para mim, Mimi. Não estou gostando disso!
Patrícia notava o dialogar da menina com a gata achando toda aquela troca interessante. Luana levantava-se e olhava também pela janela buscando a visão que tinha Mimi. Era o Daniel.
- Patrícia! É o Daniel! Lá no portão!
O prenúncio de Mimi referente à presença de Daniel assustava Patrícia. “Mais que animal inteligente”.
- O que faço?
Perguntava Luana com os olhos em lágrimas.
- Não faça nada. Espere ele chamá-la.
Daniel então a chamava do portão.
- LUANA!
- Vamos! Corra até lá antes que seu pai o atenda.
Sugeria Patrícia com uma tapinha na nádega de Luana.
- Mas o que eu direi a ele?
- Tudo dependerá dele.
- Claro.
Luana descia a escada. Patrícia e Mimi ficavam a vigiar da janela.

- É aquele menino de novo, Luana. Você quer que eu...
- Não. Deixe que eu o atendo.
- Mas minha filha, da última vez você...
- Pode deixar papai.
Luana seguia até o portão. Dessa vez sem a jogar os cabelos, sem cuidados no caminhar, sem intenção de nada, apenas de ouvir.

- Pois não?
Iniciava Luana.
- Luana?
- Sim, Daniel. Pode falar. Em que posso ajudar?
- Sabe meu nome?
- Creio que sim, não?
- Lógico. Que pergunta a minha. Eu vim aqui lhe pedir desculpas.
- Desculpas por quê?
- Por ter beijado a Manoela aqui na frente da sua casa. Sei que você viu tudo. A Manoela abriu o jogo e acabou me contando tudo o que havia tramado. Contou-me também sobre você, sobre o que sente por mim e...
- Ela lhe falou sobre o que eu sinto por você? E o que ela acha que eu sinto?
- Bem, ela disse que você estava apaixonada por mim. É verdade? Se for, até que você não é de se jogar fora. Está a fim?
- ( ! ) A fim?
- É!
Luana começava a se questionar se era mesmo esse tipo de declaração que gostaria de ouvir de Daniel. O “oi” que ambos nunca trocaram fazia uma imensa falta, pois perdia a oportunidade de não se decepcionar daquela forma.
- Daniel. Esqueça tudo o que ela lhe disse e também o que aconteceu aqui em frente, OK?
- Mas... Ela mentiu para mim então?
- Sim. Exatamente. Ela é uma louca e mentirosa. Boa noite.
Luana deixava Daniel plantado sem entender nada. Ele logo sumia pela rua.

Marcos via Luana passar determinada à sua frente em direção à escada.
- O que houve dessa vez, Luana?
- Nada. Exatamente nada, papai.
Chegando ao quarto, a menina encontrava-se com Patrícia e Mimi à janela.
- E então?
Perguntava a madrasta.
- Nada de mais. Apenas uma conclusão.
- Qual?
- Manoela me fez um grande favor.
Mimi pulava no colo de Luana e a lambia como nunca.
- Já o esqueci, Mimi. Já o esqueci.
Luana abraçava Mimi sob o olhar confuso e sorridente de Patrícia enquanto pensava que precisava no dia seguinte sem falta alertar a amiga Giovanna em relação a Marcelo. “Estes não merecem um pingo de lágrima”.

[Fim]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

LUANA IV - Golpe Baixo

À noite, Luana dedilhava algumas notas ao violão tendo Mimi como platéia. A gatinha, deitada, apoiava o focinho sobre as duas patinhas dianteiras e permanecia a admirar a quietude de sua dona com um olhar meigo típico de um felino amoroso. Luana dividia a atenção às notas com o sentimento de distância em relação a Daniel que começava a dar sinais de vida em seu peito. Já cansada da melodia que tocava há meia hora, encostava o violão sobre as pernas cruzadas e acariciava Mimi.
- Sei o que vai dizer, Mimi. Não mais perguntarei a ti sobre Daniel.
Mimi fechava os olhos depois de virar o focinho para o lado.
- Ah! É assim? Vai me ignorar, Mimi? Faz isso não!
Mimi se levantava, dava um salto sobre a cômoda de Luana e lançava o olhar para a rua.
- O que foi ver lá fora, Mimi? Papai chegou?
A gata virava-se para a dona ronronava como nunca antes.
- Mimi! Está ronronando para mim? Por quê?
Luana ia até a janela para ver o que tanto a gata espiava. Era Daniel.

Luana não podia acreditar no que seus olhos acusavam. O que Daniel faria plantado em frente a sua casa? A menina observava, ainda sem entender, a inquietação de Daniel. “Mas ele sequer fala comigo. Não entendo”. Comia incontrolavelmente as unhas sem parar à espera de alguma atitude do menino. Lá de baixo e com o quarto de Luana às escuras, não tinha como Daniel notar a presença das duas. Daniel andava para um lado e para o outro. Passava a mão no queixo, arrumava o cabelo, olhava ao relógio. Parecia esperar Luana para um encontro.
- O que faço, Mimi?
Mimi permanecia como estátua olhando fixamente para Daniel e ronronando baixo.

O carro que trazia Marcos e Patrícia iluminava com os faróis o rosto de Daniel. Eles chegavam para o jantar. Marcos saía do carro para abrir o portão da garagem e achava estranha a permanência do menino frente ao seu portão de entrada.
- Está esperando alguém? Posso ajudá-lo?
- Bem. O senhor é o pai da...
- Luana. Sim sou. Por quê?
- Não. Não é Luana quem procuro. É a Manoela.
- Não. Não mora nenhuma Manoela aqui. Não se enganou de endereço?
- Acho que não. Rua 20 de Julho nº 458. Não é aqui?
- Sim. Estranho.
Respondia Marcos.
Luana tentava entender o que seu pai e o menino que ela não tirava do pensamento estavam conversando. Nenhuma idéia do que poderia ser lhe vinha à mente.
- O que está havendo, Marcos?
Perguntava Patrícia de dentro do carro.
- Esse menino está com o nosso endereço, mas com o nome de uma pessoa que não mora aqui. Sabe se há alguma Manoela pela vizinhança?
- Não conheço – respondia Patrícia – Pergunte à Luana!
- Bem, vou perguntar à minha filha se ela conhece alguma Manoela. Agüenta aí.
- OK.

Marcos guardava o carro e entrava a chamar Luana.
- LUANA!
Luana gelava. Em sua cabeça se passavam mil coisas. “Será que Daniel descobriu meu sentimento? Será que ele veio falar com meu pai sobre isso? Mas antes de falar comigo? Não pode ser! Não estou entendendo nada”.
- JÁ VOU!
Luana descia a escada. Mimi permanecia no quarto, sobre a cômoda. Luana descer a escada sem a companhia de Mimi chagava a ser exótico.
- O que houve papai?
- Filha, você conhece alguma Manoela que more por aqui?
- Sim, papai. No 470, lá no fim da rua. É a única que conheço. Ela é da minha sala, na escola.
“Manoela?” Pensava Luana. “O que Manoela tem a ver com isso tudo?”.

Manoela era uma das meninas mais antipáticas de sua classe. Embora morassem na mesma rua e dividiam a mesma sala de aula, ambas não se falavam. Todas as qualidades de Luana se apresentavam de maneira oposta na personalidade de Manoela.

- Tem um menino aí fora à procura dela. Pelo visto ele errou o endereço. Vou avisá-lo.
- NÃO!
- Como, filha?
- Deixa que eu o aviso, papai. Eu o conheço. O vi lá de cima. É lá da escola.
- Tudo bem.
Luana seguia até o lado de fora da casa a fim de entender aquela história. Seu coração acelerava, porém, se sentia contente em finalmente ter a oportunidade de falar com Daniel sem o risco de ser patética.

Com os pés já no quintal, Luana abaixava a cabeça, respirava fundo e no erguer do semblante de maneira suave, ajeitava a franja que lhe caía sobre os olhos. A primeira visão que tinha era a de um corpo feminino bem mais desenvolvido que o seu a pendurar-se no pescoço de Daniel durante um beijo escandaloso. Era Manoela realizando-se sob os braços do menino que a acariciava a cintura e as nádegas afoitamente. Boquiaberta, Luana paralisava-se.
- Parece que ele já a encontrou, Luana.
Dizia Marcos em pé à porta.
Os punhos de Luana se cerravam expressando raiva. “Essa filha de uma...”. Manoela olhava para Luana e jogava um sorriso malicioso. Mostrava posse sobre o rapaz que pelo visto sequer notou Luana. Pegava então Daniel pela mão e o puxava em direção à sua casa, no fim da rua.

Luana dava uma meia-volta brusca e com passadas fortes passava por Marcos feito flecha em direção ao seu quarto.
- O que houve, Luana?
Marcos ficava sem resposta.
- Você viu isso, Patrícia?
Perguntava Marcos.
- Vi, mas não entendi.
Patrícia omitia qualquer desconfiança.
- Viu, Celeste?
Marcos agora à empregada.
- Vim sim, senhor. Mas também não entendi nadinha.
- Eu vou lá falar com ela, Marcos.
Dizia Patrícia.

Luana desabava em sua cama a chorar. Mimi saltava para o lado de Luana e se acomodava nas curvas da menina.
- Ela fez aquilo de propósito, Mimi. Agora entendo aquele bilhete. Entendo tudo. Ela quis me mostrar a quem o coração de Daniel pertence. E ela conseguiu.
Mimi adormecia.

Patrícia batia à porta do quarto de Luana.
- Luana! Você está bem, querida?
- Não! Mas entre, Patrícia!
Luana respondia soluçando.
- O que houve, Luana?
- Você viu... [choro]. Você viu... [choro].
- Vi. Mas pare de chorar, vamos. Acalme-se. Aquele era o Daniel, pelo visto.
- Uhum...
- Eu desconfiei. Então pare de chorar, sim? Nós vamos jantar e depois subimos para que me conte tudo, OK? Combinado?
- Uhum...
- Agora me dê um abraço.
Luana a abraçava e se sentia um pouco melhor.
- Estou com você, Luana. Confie em mim.
- Eu confio... [choro]. E muito!

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

LUANA III - O Mundo Real

Terça-feira. No escritório, Marcos e Patrícia conversavam sobre o progresso que cada um tivera rumo à confiança de Luana. Eles se encontravam felizes diante dos resultados positivos que o jantar da noite anterior os proporcionara. Patrícia sentia que Luana, a partir daquela noite, era mais “filha” que enteada. Prometera à Luana que não tocaria no assunto sobre o tal Daniel com o Marcos e assim cumpria com a palavra. Embora achasse errado, era um laço maior com a menina que estava em jogo. Além do mais, que mal haveria naquela paquera de adolescente? E mais; o relacionamento de Luana e Mimi, além de curioso, era a garantia de uma inocência que anulava qualquer desconfiança de algo mais sério naquela história com o Daniel.

Na escola, Luana recebia um bilhete jogado de alguma das carteiras do fundo da sala. O bilhete caia-lhe sobre o colo assustando-a. Estudiosa como poucos por ali, Luana não desviava sua atenção à aula. Controlava facilmente a curiosidade – quase inexistente – e guardava o papel dobrado dentro de seu estojo. Luana não falava mais que o necessário com os demais alunos. Nunca destratara ninguém por ali, mas ao mesmo tempo não se podia esperar da menina uma atenção maior às banalidades que tomavam quase todos os assuntos de seus colegas. Tudo aquilo lhe soava cansativo e sem importância alguma. Luana ocupava-se quase sempre de livros ou fones de ouvido. Muito pouco, no intervalo, conversava com Giovanna [Vide “Por que ele?”, publicado neste blog em 17 de maio de 2008], uma menina calma e tímida de uma sala vizinha.
- Oi, Luana. O que está lendo?
- Poesia. Tudo bem, Giovanna?
- Tudo. E com você?
- Também. E então, já esqueceu aquele ridículo do Marcelo?
- Não fale assim, vai. Eu não sei o que ele tem, mas... Ele é tão...
- Tão imbecil. É o que ele é, Giovanna.
- A Lorena, aquela amiga dele, me procurou. Disse que quer me ajudar com o Marcelo.
- Giovanna, distancie-se desse pessoal. Para o seu próprio bem. Você é linda, inteligente... Pode almejar algo mais do que esse Marcelo, não acha?
- Luana, não me deixe mais confusa. E vem cá! E o Daniel? Já conseguiu falar com ele?
- Nada. Estou na mesma.
- Entendo. O que as outras meninas têm que nós não temos, para esses meninos estarem sempre ao lado delas?
- Olha, nem vem! Há sempre uns meninos interessantes na sua cola, vai.
- Que nada. São inteligentes até, mas perdem muito tempo com jogos de RPG. Um saco.
- Giovanna! Vou te dizer então o que as outras meninas têm para atrair os idiotas. Elas têm vulgaridade no agir e um vasto vocabulário de baixarias. Mas há uma coisa que temos e que elas não têm.
- Diga.
- Cérebro!
- [Risos] Concordo, Luana!
- Já ia me esquecendo. Alguém me jogou um bilhete na sala de aula.
- E o que dizia, Luana?
- Não sei. Verei agora!
Luana pegava o papelzinho e abria-o.

Se eu saber de alguma coisa de vc e Daniel eu vo mata vc.
Assinado: A namo dele!


- E então? O que diz o bilhete?
Perguntava Giovanna.
- Bem, pelo que entendi desse novo dialeto, alguma descerebrada vai me matar caso eu tenha algo com o Daniel. Mas como essa pessoa que mal sabe escrever notou meus sentimentos? E ela assina como namorada dele. “Namo” é namorada? Deve ser, não?
- É. Que horror. Mas você não anda dando bandeira demais?
- Sei lá. Mas estou intrigada com uma coisa. Daniel não tem namorada. Não que eu saiba.
- E o que vai fazer, Luana?
- Nada. Continuar lendo o meu livro. É mais válido.
- Não tem medo dessa garota?
- Medo? Tenho é pena, coitada. Uma mensalidade tão cara como a que nossos pais pagam, e essa menina sem saber escrever [risos].

Luana concluía que Mimi estava certa ao bocejar diante dos casos sobre meninos. Eles não valiam os aborrecimentos que os cercavam. Tudo o que ela queria naquele momento era continuar sua leitura debaixo de sua árvore favorita enquanto os outros alunos formavam suas correntes humanas pelo pátio como que num passeio meio fútil meio gincana. Coincidência ou não, os versos que Luana lia no exato momento, de um poeta contemporâneo qualquer, diziam:

Não se deve temer a nada,
exceto ao temível temor de temer
De nada adianta o medo
sejas tu um braço ou um dedo

Lamento pelo pobre de alma,
sem razão no destino de sua ação
de amedrontar aqueles cuja palma
permanece ao chão

Erga sua cabeça num movimento brando
Mente munida de idéias acima da superfície negra
de um mar calmo e de pouco encanto
Que se impõe por gritos ao invés de canto

Tu que dependes hoje
do aval de um intelecto cego,
e da piedade da barbárie opaca
Deixo-te o pensamento como se fosse faca.

Luana fechava o livro, o colocava sob as pernas já esticadas ao longo do banquinho e sentia-se forte por agora ter Patrícia para durante a noite conversar a fim de saber que medidas tomar frente àquela situação. Não que Luana se preocupasse com o conteúdo agressivo daquele bilhete, mas saber que alguém se incomodava com o seu gostar lhe fazia pensar seriamente em jogar tudo para os ares. Os bocejos e miados de Mimi diriam, logicamente, para que esquecesse Daniel e sua “namorada”. Nem contavam os conselhos que poderiam vir de Giovanna, já que se encontrava apaixonada pelo mais idiota dos meninos. Era a hora de colocar sua confiança em Patrícia em prática. Hora de romper os bloqueios e encarar um mundo real.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.
Versos citados: “O Pensamento Contra O Medo” de Luciano Freitas.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

LUANA II - Ensaios de Uma Aproximação

Naquela segunda-feira, Marcos e Patrícia chegavam em casa bem mais cedo que de costume. Celeste, a empregada, anunciava lá da cozinha a presença do casal à Luana, que largava o violão e descia correndo com Mimi ao colo.
- Chegaram cedo hoje! Por que?
Luana questionava.
- Pois é, filha. Vamos jantar juntos hoje.
Marcos sorria ao falar.
- Oba! Viu, Mimi? Papai e Patrícia vão jantar conosco!
Mimi apenas miava.
- Marcos, eu vou tomar meu banho. Celeste, pode por a mesa, sim? Luana, já tomou seu banho?
- Já, Patrícia.
- Então ponha comida para Mimi lá fora e depois venha ajudar Celeste com os talheres, OK?
- OK.
Patrícia sabia impor respeito e organizar a casa sem parecer um sargento.
- Marcos, não vai tomar um banho antes do jantar?
- Não, Patrícia, eu tomarei quando for dormir. O banho me tira a fome.
- Tira, Papai?
Perguntava Luana.
- Tira sim, filha. Pelo menos comigo sempre foi assim.
- Então você pode criar um regime, papai. O “regime do banho”. Que tal?
- [Risos] É, mas não acredito que daria certo com as outras pessoas.
Luana e Marcos ajudavam a Celeste arrumar a mesa com muita descontração. Riam das idéias de Luana, elogiavam o cheiro da comida e até brincavam de espadachins com os talheres. Celeste observava com um sorriso espantado que dizia tudo; jamais vira tamanha união e alegria naquela casa.

Depois de tudo arrumado, Celeste pedia permissão a Marcos para ir para casa. Marcos perguntava à Patrícia se ainda precisaria dos serviços da empregada.
- NÃO! PODE IR, CELESTE! OBRIGADA E FIQUE COM DEUS!
Patrícia respondia ainda no banho.

Era nítida a satisfação nos olhos brilhantes de Luana. Marcos parecia outra pessoa de domingo até então. Mais presente e comunicativo, o pai tirava centenas de sorrisos e gargalhadas – antes tão raras – de Luana. Mimi apresentava ciúmes em seus miados a fim de chamar a atenção de sua dona. Pela primeira vez, a gata cumpria o simples papel de animal de estimação ao invés de amiga, mas é que as piadas e brincadeiras de Marcos faziam a menina soluçar.
- O que houve com você, papai? Está tão...
- Tão?
- Tão engraçado. Sei lá.
- Precisávamos de noites como essa, não?
- Sim, papai. Precisávamos.
- Gosta de estar com o seu pai?
- Claro que gosto!
- Então me dê um abraço!
Luana o abraçava como se nunca tivesse o visto na vida.

Patrícia saía do banho e se deparava com o abraço de pai e filha no meio da cozinha. Recostava-se no portal e ficava observando tal cena com água nos olhos. Assim como Celeste, minutos antes, Patrícia constatava que era a falta desse tipo de relacionamento que fazia aquela casa ser tão fria e silenciosa. Faltava justamente o calor humano e a comunicação entre os três. Patrícia chegava até os dois e os abraçava também.

Durante o jantar, ensaios de uma aproximação aos assuntos e ao dia-a-dia de Luana tomavam Marcos e Patrícia. Luana via que sua vida e seus questionamentos passavam agora a fazer parte das preocupações de ambos. O pai e a madrasta tentavam fazer com que Luana confiasse mais neles. Eles sabiam que seria uma batalha lenta, mas estavam dispostos a tudo para serem mais participantes da vida da menina.
- Luana, seu aniversário está chegando. Podíamos fazer uma festa. Chamar seus amigos. O que acha? Sei que nunca gostou de festas, mas são seus 15 anos.
Sugeria Patrícia.
- Eu não tenho amigos, Patrícia.
- Como não? Estuda numa escola enorme como aquela e não tem amigos?
- Não.
- Explique isso para nós, filha.
Solicitava um Marcos cada vez mais curioso.
- Sabe o que é? Os meninos de lá só pensam em duas coisas; em times de futebol e em meninas!
- E as meninas?
Perguntava Patrícia.
- Em roupas e em meninos!
- E em que você pensa, Luana?
- Ora, em que devemos pensar dentro de uma escola? Eu também penso em meninos, mas eles não são o centro do universo.
- Mas pensa nos meninos como, filha?
- Como?
Luana não entendia a pergunta de Marcos.
- É. De que maneira você pensa em meninos?
Insistia o pai.
- Da mesma maneira que uma menina de 14 anos pensa, ora.
- Mas...
- QUEM QUER SOBREMESA?
Interrompia a afobação de Marcos, Patrícia. Ela também lhe acertava um chute na canela por baixo da mesa.
- EU!
Respondia uma Luana moleca.
- Eu também vou querer [dor].
Respondia Marcos passando a mão no local da agressão.

Depois da sobremesa, Marcos se retirava, deixando Luana e Patrícia a sós.
- Vamos lavar essa louça, Luana?
- Sim. Eu te ajudo.
As duas lavavam e secavam as louças enquanto papeavam.
- Seu pai me falou que Mimi a “diz” para esquecer os meninos que lhe interessam? Como é isso?
- É! Por exemplo, se eu pergunto para Mimi se devo ou não demonstrar o que sinto a Daniel, um menino lá da escola, ela boceja e faz uma cara que eu já até conheço. É a mesma cara que ela faz para algo que não goste. Eu sei que gatos não entendem nossa língua.
- Claro que não, Luana. Espantaria-me se você achasse isso!
- Mas Mimi entende!
Patrícia emudecia e tentava entender até que ponto Luana era inocência e até que ponto era sensibilidade.
- Ah! E sobre o Daniel, não comente nada ao papai, sim?
- Não devia haver segredos entre você e seu pai, Luana.
- Mas é que ele é homem, Patrícia. Você sabe o que quero dizer. Posso ou não confiar em você?
Patrícia parecia ver em Luana um pouco de sua própria adolescência, também cheia de novidades e perguntas.
- Claro que pode, Luana. Mas... Você não disse que não possuía amigos? E o Daniel?
- Nunca trocamos um “oi”.
- E como gosta de um garoto que nunca lhe deu um “oi”?
- Esse tipo de coisa Mimi não consegue me explicar.
Patrícia emudecia novamente.
- Fico feliz de estar conversando com você, Patrícia.
Luana a abraçava.
- Eu também fico, Luana.
Patrícia, como era de se esperar, chegava ainda mais próximo que Marcos ao centro da misteriosa Luana.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

LUANA

O barulho da chuva fina que caía sobre a janela fazia o seu convite a um readormecer de Luana. O rádio relógio marcava 8h de um domingo frio e justamente por isso mais prazeroso que qualquer outro domingo daquela jovem. Com o quarto ainda escuro por conta das imensas nuvens negras, Luana abria um par de olhos que parecia clarear o cômodo. Espreguiçava-se num ritmo vagaroso combinando assim com a sua vontade de se despertar daquele episódio aconchegante.

Os talheres para o café da manhã já começavam a soar da cozinha, no andar de baixo. Marcos, o pai da menina, acordava ainda mais cedo no domingo, pois era o dia em que aproveitava a sua folga para se “dedicar” à Luana. Domingo era o dia de saber como a filha seguia nos estudos etc. Durante toda a semana, Luana via o pai somente bem à noite, o que a impedia muitas vezes de conversar sobre assuntos que exigissem um pouco mais da atenção dele.

Marcos era dono de uma pequena rede de supermercados. Patrícia, sua segunda esposa, madrasta de Luana, o ajudava a tocar os negócios. Podia se dizer até que Patrícia era a responsável pelo progresso contínuo de Marcos. Mulher de fibra. Com isso, de segunda à sexta, Luana tinha a companhia apenas de Dona Celeste, empregada da família, e de Mimi, sua gatinha de estimação. Dona Celeste era muito responsável e competente nos afazeres relacionados à Luana, porém, a menina não se sentia à vontade o suficiente a ponto de lhe confiar seus inúmeros questionamentos a respeito daquela fase tão complicada; a adolescência.

Luana sentia falta da presença de uma mãe de verdade. Ela não tinha o que se queixar de Patrícia, que por sua vez era muito carinhosa dentro do possível. Luana apenas não se sentia na condição de exigir um afeto materno de uma mulher pelo simples fato desta ter se casado com seu pai. Luana entendia os sacrifícios de Patrícia. Manter-lhe sempre em uma boa escola era um dos objetivos principais de sua madrasta.
- Marcos! Nem pense em mudar Luana de escola! Quero que essa menina se torne um ser pensante, pois daqui a alguns anos esse será o seu diferencial nesse mercado cada vez mais competitivo!
- Ora, ora. Luana herdará nossos supermercados e...
- E se ela não quiser? Pense nisso, Marcos. Não temos o direito de definir o futuro profissional de sua filha.
Patrícia de fato se preocupava bastante com Luana. Isso era visível a todos. Mas faltava o calor de uma conversa mais íntima ou aquele carinho momentos antes de se deitar. Ficava a cargo de Mimi as confidências, os problemas, as dúvidas e a troca de afeto.

- LUANA, MEU AMOR! AINDA ESTÁ DORMINDO? VENHA TOMAR CAFÉ COMIGO!
Com aquele grito de Marcos, nem que a menina estivesse morta.
- JÁ VOU, PAPAI!
Luana levantava-se despertando também Mimi.
- Bom dia, Mimi! Teve uma boa noite? Está um dia lindo lá fora, veja!
Luana levantava a gata à altura de sua janela a fim de mostrar-lhe a chuva e o dia nublado que tanto a agradava.
- Veja o céu! Está da sua cor!
A menina referia-se ao cinza rajado com preto da pelagem de Mimi, que apenas bocejava e miava.
- VENHA FILHA! FIZ ALGUMAS TORRADAS! VENHA!
- JÁ VOU! ACABEI DE LEVANTAR DA CAMA!
Luana começava a pensar nas respostas que daria às perguntas do pai. Eram sempre as mesmas. “Como vai a escola?” “Como está a Mimi?”.

Luana seguia até o banheiro. Mimi ia atrás.
- POXA LUANA, AS TORRADAS VÃO ESFRIAR!
- EU POSSO ESCOVAR OS DENTES, PAPAI? POSSO?
- MAS VENHA LOGO...
Luana praticamente arrastava-se pelo corredor em seu conjunto de moletom azul. Com o cabelo numa bagunça, Luana se olhava no espelho e desejava estar ainda na cama sob sua janela desenhada pelas gotas de chuva. Mimi parecia entender bem sua preguiça de encarar a rotina dominical. Os 14 anos pesavam na menina pelo acúmulo de assuntos sobre os ombros. A mochila escolar de Luana carregava bem mais do que cadernos e livros. Carregava também as dificuldades de relacionamento e a solidão de uma menina que buscava de maneira pacata sua felicidade, mas não sabia por onde começar. Luana calava-se diante do silêncio familiar e transferia essa ausência para o seu dia-a-dia. Era uma constante troca de vazios.

O interesse de Luana por alguns meninos sumia antes mesmo de se desenvolver, já que Mimi não dava conta dos inúmeros conselhos pedidos por Luana. Os bocejos de Mimi diante das questões eram interpretados pela menina como “esqueça-os”. Ela os esquecia com a mesma facilidade do surgimento das feridas em seu coração inexperiente. Luana tinha apenas Mimi, a chuva e as perguntas. Jamais passara pela cabeça de Luana comentar com seu pai sobre seus flertes. Marcos ainda via em sua filha a imagem de uma criança. Aquela distância causada por sua jornada de trabalho o impedia de enxergar o desenvolvimento de Luana. Algumas vezes, precisava que Patrícia o alertasse.
- Marcos. Você alguma vez já perguntou à Luana se ela tem algum tipo de namorado, coisa assim?
- Como assim? Minha filha é uma criança ainda, Patrícia. Pelo amor de Deus!
- Marcos, Luana já está com 14 anos.
- Pois é. Uma criança. Veja como ela ainda brinca com Mimi. É a inocência em forma de gente.
- Você acha mesmo? Eu acho sua filha muito calada. Eu queria ter mais tempo para ela, mas o pouco contato que temos já me mostrou que Luana não pretende se abrir comigo. Você é o pai dela. Não quer tentar?
- Posso até tentar, mas já sei a resposta.
- E qual será?
- Ela me dirá que ainda não pensa em meninos. Você vai ver.
- Ela pode até lhe dizer isso. Saber se isso é verdade é a questão.
Patrícia era uma espécie de radar para Marcos, tanto nos negócios quanto na vida familiar. Sentia-se bloqueada pelo tipo sanguíneo ao tentar ajudar nas questões de Marcos e Luana, mas estava sempre atenta.

Enfim, Luana descia para o café da manhã.
- Bom dia, papai.
- Bom dia, filha. Dormiu bem?
- Sim.
- Que bom. E então? Como vai a escola?
- Bem.
- Onde está Mimi?
- Descendo a escada, papai.
- Como ela está?
- Bem também.
- Que bom.
Logo o silêncio tomava a cafeteira, as torradas, as louças e os talheres. O limite máximo de dedicação.
- E Patrícia?
Perguntava Luana para quebrar.
- Ainda na cama. Ela merece o domingo.
- Merece mesmo. E você? Não merece também?
- Mereço. Todos nós merecemos. Mas esse é o único momento da semana que consigo conversar com você, Luana.
- É mesmo.
Que magnífica conversa.

Marcos começava a pensar nos diálogos que tinha com Patrícia a respeito de Luana. Criava um conflito interno baseado no “pergunto ou não pergunto?”. Resolvia, depois de alguns goles de café, perguntar.
- Luana.
- Diga, papai.
- Você tem namorado? Quero dizer [tosse], alguma vez na sua vida você já veio a pensar na hipótese de gostar de algum menino? Não, não é?
Luana se via sem graça.
- Papai?
Assustava-se.
- Era o que eu imaginava. Nunca pensou nisso, não?
- Claro que já!
- Claro que já?
- Sim, mas não esperava essa pergunta assim de repente.
- [Tosse] Mas espere aí, minha filha. Como assim?
- De repente. Você me pegou de surpresa.
- Não. Refiro-me a você já ter...
- Gostado de alguém? Claro que já. Papai, eu já tenho 14 anos.
Marcos parecia ouvir no fundo a voz de Patrícia dizendo “eu não lhe disse?”.
- Não imaginava que você já tivesse esse tipo de interesse, minha filha. Eu nem sei o que dizer...
- Então por que perguntou?
- A Patrícia me deu essa idéia. Disse que andamos muito distantes um do outro.
- Talvez ela esteja certa.
- Agora vejo que sim.

A mesa voltava ao silêncio. Marcos não conseguia disfarçar tamanha aflição diante da constatação de sua distância. Era como se Luana morasse a trezentos quilômetros e estivesse ali somente aos domingos. Uma mistura de ciúme e incompetência lhe tomava os olhos.
- Papai?
- Diga, filha.
- Se é o que você quer saber, eu ainda não beijei menino algum.
O alívio no rosto de Marcos era espontâneo. Ainda com medo da resposta que poderia receber, Marcos resolvia dar continuidade à questão.
- E por que ainda não beijou?
Luana com um olhar sem jeito e segurando uma enorme caneca estampada com personagens infantis, dava um gole no chocolate e respondia:
- Mimi me aconselha a esquecê-los toda vez que falo deles.
Marcos sorria e concluía que ele e Patrícia deveriam doar um pouco mais de tempo à criação de Luana. Aquela resposta doce e até certo ponto séria o mostrava que ela era uma adolescente cuja inocência ultrapassava seus limites físicos. A ausência de alguém com quem ela pudesse ser emissora e receptora de assuntos tão importantes naquela fase, omitia dos olhos de Marcos até mesmo o desenvolvimento de seu próprio corpo. Um corpo de mulher.

Após o café, Luana apanhava mais uma torrada, pedia licença, dava um raro sorriso e um beijo no rosto do pai.
- Vamos Mimi. Vamos!
Ela subia para o quarto e deixava o silêncio à mesa para a necessária reflexão de Marcos, que sorria.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Ana Claudia Temerozo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

ELES VII - Parte Final

O sábado amanhecia com chuva e eu acordava com o barulho da forte queda d’água sobre a calçada. Havia cinzas dos cigarros da noite anterior por toda a cama. O cheiro de cimento molhado que me tocava as narinas me fazia lembrar do quanto eu gostava daquele clima frio. Vestia uma roupa mais quente e, após o café, resolvia dar um jeito na casa.

Em cada canto que eu olhava havia vestígios de minhas frustrações e derrota. O cartão de Oscar ainda estava sobre a estante, próximo ao telefone. O jarro de flores que eu havia derrubado durante aquele orgasmo juvenil permanecia à minha espera. As roupas que eu pretendia ter posto para lavar continuavam no chão da sala. Eu ligava a TV para com o som da mesma me distrair enquanto limpava aquele ninho. O canal que exibira as cenas que me torturaram mostrava agora um desenho de um pato tagarela bastante divertido. Eu precisava mesmo rir um pouco.

Durante a limpeza, me flagrava algumas vezes precisando de um abraço forte. Pensava nas minhas amigas, mas pensava também em Charles. Mas por que o Charles? Aceitar as desculpas dele seria me reduzir ao pó que eu tirava daqueles móveis. O mesmo disco da noite anterior então começava a tocar na sala de Charles. Era o ápice do meu ódio àquela nossa parede. Eu aumentava o volume da TV a fim de que o pato falasse mais alto que a vitrola de Charles, mas era em vão. O mesmo tom melancólico daquela música voltava a tomar a minha sala. Eu desligava a TV. Esmurrava a parede no intuito de que Charles abaixasse o volume do som. Nada. Batia com o cabo da vassoura. Nada. Na verdade eu achava aquela música linda, porém, ela me fazia lembrar de Charles. Sentava-me exausta no sofá e assim permanecia por uns longos vinte minutos até que aquele lado do disco chegasse ao fim.

* * *

Três semanas se passavam sem que eu visse o rosto de Charles ou tivesse notícias das férias de Oscar aqui no Rio de Janeiro. Isolava-me de todos propositalmente. Eu não tinha o que dizer a Charles e acredito que ele, muito menos, teria algo a me dizer. O único contato que tive como Charles nesse período foi através da mesma música arrastada que ele insistia em colocar na vitrola todos os dias desde aquela sexta-feira. Eu já assimilava toda a melodia e confesso que às vezes até a assobiava pela casa. Sentia vontade de perguntar a ele de quem era aquele disco. Deveria na certa ser do tal Chet Baker. Trompetista em que ele tanto falava e amava. Aos poucos eu era anestesiada por aquelas notas.

Próximo de completar vinte e um dias sem contato com ninguém, a minha porta enfim voltava a soar batidas familiares. Ia atender.
- Oscar?
- Não diga nada. Só vim me despedir de você. Estou voltando para Belo Horizonte e não podia sair daqui sem lhe dar um abraço.
- Claro.
Abraçávamos-nos meio sem jeito, porém, permanecíamos longos segundos grudados.
- Desculpe qualquer coisa, Valéria. Sei que se não fosse por aquele episódio minhas férias teriam sido bem diferente.
- Em que sentido?
- Poderia ter aproveitado mais ao seu lado.
- Já passou. Esquece. Tenha uma boa viagem.
- Obrigado. Eu queria falar com o Charles, pois acho que lhe devo desculpas também. Tenho certeza de que o atrapalhei.
- Olha, não quero falar do Charles. Tudo bem?
- Tudo bem, mas será que ele me atende?
- Vá em frente.
- OK. Fique na paz, Valéria.
- Fique você também.

Da minha sala eu podia escutar as batidas na porta de Charles e chamadas sem resposta. Oscar insistia. Nada de Charles. Então Oscar gritava:
- CHARLES! SEI QUE ESTÁ AÍ! ESTOU VOLTANDO PARA BELO HORIZONTE, MAS ANTES GOSTARIA QUE ACEITASSE MINHAS DESCULPAS! EU NÃO TINHA O DIREITO DE...
A porta de Charles se abria.
- Oscar...
- Charles. Perdoe-me, por favor!
- Não fará a mínima diferença, Oscar.
- Eu sei que não. Ela não está falando com você?
- Não. Faz umas três semanas.
- Ainda gosta dela?
Eu permanecia a escutar tudo grudada à minha porta.
- Entre, Oscar. Vamos conversar. Seu ônibus sai agora?
- Não. Parto somente à noite. Às 23h.
- Então entre.
E eu com a curiosidade inesperada de ouvir a resposta de Charles à pergunta de Oscar. Eu corria para a cozinha e apanhava um copo. Encostava-o de boca para nossa parede geminada com o seu fundo voltado para o meu ouvido. Assim, podia escutar toda a conversa dos dois.

- Bebe alguma coisa? Um vinho? Um whisky?
Charles oferecia uma bebida. Era sinal de que o papo seria longo.
- Sim. Aceito um whisky.
- Ótimo.
Charles começava aquela conversa falando muito baixo. Até parecia saber sobre o meu copo à parede. Oscar falava normalmente. Depois de uns cinco minutos de papo eu começava a entender alguma coisa.
- (...) Eu escrevi isso para Valéria.
Dizia Charles. Eu começava a ouvir o que ele dizia.
- É? E com que intuito?
- Quero que ela sinta o que senti.
Charles parecia falar sobre uma carta que teria escrito para mim.
- Ainda não mostrou a ela?
- Não. Eu a finalizei hoje pela manhã.
- Pode me mostrar?
- Claro.
Não podia acreditar que Charles mostraria a carta que me escrevera ao Oscar? Que ódio! Então aquele disco começava a tocar novamente. A melancolia daquelas notas novamente. Eu permanecia paralisada com aquela música. Pela primeira vez eu a ouvia por completa. Aquele final eu ainda não tinha ouvido. Fundo musical para a leitura de Oscar? Só o Charles mesmo.
- E então? Gostou?
Perguntava Charles.
- Muito boa. Acha que ela vai gostar do que escreveu?
- Espero que sim.
- E quando irá mostrá-la?
- O dia que a coragem me vir.
- Mas você não acha que ela já deve ter ouvido tudo isso?
- Eu até espero que sim!

Eu parava para analisar o fato. Charles havia mostrado a Oscar uma carta que havia me escrito com palavras que eu já teria ouvido de alguém! Mas que idiota! Prova de que eu estava mais que certa em meu isolamento.

Permanecia os escutando.
- Por que não mostra logo isso à Valéria, Charles?
- Ela não irá me receber.
- Como não? Já se passaram três semanas, não é mesmo? Ninguém consegue guardar tanto rancor assim.
- É. Pensando bem, acho que você está certo. Vou lá agora!
- OK. Eu já vou indo. Boa sorte, Charles!
- Obrigado.
- E...
- Diga.
- Desculpe-me pelas palavras daquele dia, sim?
- Está tudo bem, Oscar.
- Amigos?
- Amigos!
Esses homens não prestam mesmo. Não têm vergonha na cara. Estavam amigos. Não dava para acreditar. Oscar logo se despedia de Charles como inseparáveis.

Momentos depois, a “pedra” batia à minha porta e eu o atendia. Charles me aparecia como nunca o tinha visto. Ele vestia um terno muito elegante. Uma cena inimaginável.
- Diga Charles.
- Eu escrevi algo para você.
- Não quero saber de nenhuma carta que venha de você, Charles!
Eu fazia jogo duro, mas morria de curiosidade.
- Mas quem falou em carta?
- Ih... Esquece. Mas, se não escreveu uma carta, então o que foi?
- Uma música.
“Mas como assim?” Eu me perguntava.
- Você escreveu uma música? Para corneta? Não me faça rir, Charles.
Charles, que escondia o trompete nas costas, começava então a tocar aquela música que durante três semanas me paralisava. Meus olhos se enchiam de lágrimas e meu coração disparava de maneira inédita ao entender o significado daquela proeza de Charles, que por sua vez a executara de maneira brilhante. Não parecia aquela “corneta” irritante de sempre. Por isso sempre achei que fosse um disco.
- O que achou?
- Mas... Essa música é sua, Charles? Eu a ouvi tocando na sua casa esses dias todos e...
- Não era disco. Era eu. Eu estava escrevendo-a.
- Mas... Desculpe-me Charles, mas como aprendeu a tocar o trompete tão bem de uma hora para outra? Eu amei essa música.
- Não sei lhe explicar, Valéria. Sei que desde aquela sexta-feira eu venho trabalhando nessa música pensando em você e...
Eu o abraçava forte e colava meus lábios nos dele. O tempo parava e o mundo parecia ser apenas eu e Charles nos beijando frente à minha casa.
- Promete-me uma coisa, Charles?
- O que você quiser, Valéria?
- Sempre que você me decepcionar, escreva uma música.
- Prometo.
Beijávamos-nos mais e mais.
- O que vai fazer agora, Charles?
- Eu pretendia dar um jeito lá em casa. Está tudo uma bagunça e...
- Eu tinha outros planos.
- É? Eu já vi esse filme, Valéria... Na sua casa ou na minha?
Eu o puxava pelo paletó e fechava minha porta sem idéia de que horas voltaria abri-la.

Enquanto rolava pela casa grudada ao corpo flamejante de Charles, eu chegava à conclusão do grau de nossa loucura. Passava a aceitar que nos braços daquele homem o meu destino seria a decepção constante, porém, diante de cada música ou atitude conseqüente de seus arrependimentos ou culpas eu estaria novamente pendente de um orgasmo causado por aquele mutante sentimental. Passava então a amar todos “eles” que habitavam o corpo de Charles. Pedaço de tudo! Pedaço de todos os homens!


[Fim]

terça-feira, 9 de setembro de 2008

ELES VI

Antes que eu pudesse terminar a terceira tentativa de saciar minha vontade louca, Oscar batia na porta. Àquela hora da noite, só podia ser ele, pois não esperava mais ninguém. Não obedecia às ordens de Oscar e me vestia com uma calcinha e uma grande blusa de malha surrada que me tapava até a altura da virilha. Eu estava maluca, mas nem tanto. Embora a minha vontade fosse a de agarrar o primeiro que entrasse à porta, exceto “a pedra”, lógico, não atenderia Oscar nua. Mais algumas batidas na porta. “Já vai!” Eu gritava.
- CHARLES?
Eu não podia acreditar. A pedra.
- Vim lhe pedir desculpas. Eu...
- Volte já para a sua casa, Charles. Não quero lhe ver. Respeite minha decisão.
- Não posso deixar que esta noite acabe dessa forma.
- Mas quem disse que a noite acabou? Pode ter acabado para você, Charles.
- Como assim?
Eu não tinha nada que dar corda ao Charles. Que burra.
- É... Nada. É que ainda verei um bom filme na TV e tentarei dormir feliz, ou seja, tentarei esquecer a noite de hoje. Com licença.
Eu fechava a porta sem dar chances a Charles.

Eu permanecia colada na porta tentando ouvir Charles seguindo para casa, mas ainda podia sentir a presença dele frente à minha casa.
- Valéria. Abra essa porta. Sei que estás plantada junto a ela.
E se Oscar chegasse agora? Meu Deus, que vergonha!
- Olá Charles!
Não! Eu ouvia a voz de Oscar. Um diálogo se iniciava enquanto eu, quieta, permanecia a escutar. Que vergonha! Que vergonha!
- O que faz aqui, Oscar?
- Ora, Charles. Pergunte à Valéria. Ah! Desculpe. Acho que ela não quer ver-te nem pintado de ouro, não é mesmo? Lamentável.
- Como foi que...?
- Charles. Eu não gastarei meu tempo com você. Valéria me espera. Com licença.
- Por que não volta para Belo Horizonte, seu...
- Volto. Volto daqui a três semanas, mas antes preciso... Você sabe, não? Preciso aquecer-me em um par de pernas familiar.

Quem Oscar pensava que eu era para falar dessa maneira de mim? “Aquecer-me em um par de pernas familiar”. Mas o que eu podia esperar? Eu acabava de agir feito uma prostituta com ele ao telefone. Atitudes como a que eu tive só me trariam atitudes desse nível por parte desses homens. Eu me enojava com os dois ao ouvi-los discutir. Enojava-me comigo também.
- Pois fique sabendo, Oscar, que antes de aquecer o que já não lhe funciona mais, aquele par de pernas aqueceu a mim. Compreende?
- Quando? Antes de você estragar tudo? Olhe para você, Charles. Não passa de um idiota. Acha mesmo que uma mulher como a Valéria se deitaria com você?
- Por que não? Se Valéria marca de deitar-se com você, Oscar, até os cachorros tem alguma chance.
- Cachorros como você, Charles. Espero que ela tenha tomado um bom banho depois de ter te beijado! Odeio sarnas!
- Sarnas ela pegará de você, seu...

Para mim, bastava! “Chega!” Abria a porta com a força de um leão.
- SOBRE QUEM VOCÊS PENSAM ESTAREM FALANDO?
Eles emudeciam.
- VOCÊS DOIS SÃO IGUAIS! SÃO PEDRAS!
Charles, ainda assim, não tirava os olhos de minhas pernas. Era impressionante a atração que eu parecia causar naquele homem. Oscar olhava para os lados, mas com a culpa nos olhos.
- Eu posso explicar, Valéria.
Ensaiava um discurso Oscar.
- EU NÃO QUERO EXPLICAÇÃO ALGUMA! SUMAM DA FRENTE DA MINHA CASA! AGORA!
Eu batia a porta e voltava para a estaca zero. Que noite esclarecedora eu acabava de ter. Noite que me mostrava o quanto eu estava certa em me manter longe dos homens por alguns meses. Nunca me decepcionara tanto com eles numa só noite. Alguns minutos depois, eu abria a porta novamente para me certificar de que ambos haviam tomado os seus rumos. Não mais estavam lá. Ainda bem.

Charles logo me dava a comprovação de que já se encontrava em sua casa, pois um trompete solitário começava a soar de maneira bem interessante. Eram notas longas, tristes e separadas por pausas mais tristes ainda. As notas não oscilavam e eu chegava a achá-las bonitas e bem tocadas. A melancolia com a qual elas eram executadas combinava com o meu estado emocional. Eu nunca havia escutado aquele disco pela parede geminada que separava nossas casas. Eu conseguia imaginar o outro lado da parede. Um Charles sentado no sofá com uma taça de vinho branco à mão e pensando nas besteiras que havia dito.

Já na cama, eu fumava mais um cigarro. A claridade das luzes dos postes que adentrava pelo basculante de minha janela me permitia imaginar desenhos e formatos não muito lógicos vindos da fumaça que eu soprava para o alto. Via barcos, pássaros, corpos, borboletas e até um guarda-chuva. Minha imaginação era contrária à minha dor. Aquele momento era meu, só meu. Sem filme erótico, sem Charles, sem Oscar, sem a minha mão direita safada e sem ninguém. Fazia-me parar numa retrospectiva de todo aquele dia. Desde o momento em que eu acordava o Charles às 11h até o último trago daquele cigarro. Havia sido o meu dia de derrota. Mas eu não parecia unicamente derrotada. Charles e Oscar também estavam destruídos. Pelo menos a idéia dos dois se “aquecerem” em minhas pernas devia estar destruída.

Eu pensava na possibilidade de ambos estarem arrependidos do que fizeram. Arrependidos da maneira como agiram. Eu me sentia cada vez pior ao lembrar da discussão dos dois. Não podia deixar de imaginar a cena grotesca dos cachorros da rua fazendo fila em minha porta esperando por uma “chance”. Como Charles foi capaz de usar termos tão rasos? Mas por que os usou? Eu deveria não estar julgando as frases de Charles e Oscar, mas analisando o que de fato eu teria feito para que eles as pronunciassem. Eu me sentia uma vadia no mostruário de dois animais insensíveis. Pedaço de corpo. Pedaço de merda. Pedaço de um coração.

[Continua]

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

ELES V

Eu me desviava das mãos de Charles, que imploravam perdão, catando minhas roupas. Nunca havia ocorrido tal cena em toda minha vida. Ser chamada pelo nome de outra? E pior! Essa outra nem existia, era um sonho maldito! Por mais que Charles tentasse me explicar que Larissa na verdade se tratava da imagem de meu passado, eu não conseguia aceitar. Se ele chamava pelo meu passado, então era o meu passado que ele queria. Era Larissa, não eu.
- Calma Valéria, calma!
- Você só acerta meu nome quando me pede calma! É impressionante!
- É sério. Desculpe-me. Não vai mais acontecer.
- Claro que não vai. Não terás outra chance para errar, Charles. Não comigo!
- TENHA UM PINGO DE COMPREENSÃO, VALÉRIA. POR FAVOR!
Charles me pegava pelos dois braços e me sacudia enquanto gritava.
- Solte-me sua PEDRA!
- Pedra?
- Nunca irá entender, Charles. Boa Noite!
Saía de sua casa em direção à minha apenas de calcinha e com o restante de minha roupa embolada no colo. Por sorte a rua estava deserta.

Eu batia minha porta e jogava as roupas no sofá. Precisava de um banho. As lágrimas caíam sem que eu soubesse ao certo o motivo. Era uma mistura tão grande de sentimentos ruins que eu mal conseguia decifrá-los.

Antes do chuveiro, sentada no chão da sala frente à TV, eu fumava uns três cigarros. Um filme não familiar era exibido. Não me recordo o nome, mas se tratava de uma obra bastante picante. Havia duas mulheres e apenas um rapaz numa cama de dar inveja. Elas o beijavam todo o corpo. Uma delas não tirava a mão de dentro da calça dele. Por que eu havia ligado aquela TV? Àquela hora da noite somente coisas daquele tipo estariam ao meu alcance. As cenas pareciam não ter censuras. Minhas lágrimas cessavam e eu começava realmente a prestar atenção nas imagens. Eu poderia mudar o canal. Certamente haveria algum pastor a fim de falar com as minhas paredes, mas preferia focar-me naquele trio tomado de indecência. O tesão que Charles me cortara se reapresentava em questão de minutos. Eu estava acesa novamente e sem notar o paradeiro de minha mão direita que, por vontade própria, já havia levado minha calcinha à altura da canela e se encontrava entre minhas pernas a movimentar-se de maneira frenética.

No ápice do ato, minhas pernas sem controle chutavam a mesa de centro levando um jarro de flores ao chão, o que não me impedia de levar até o fim a minha busca por um prazer solitário e inevitável. Fazia tempo que não praticava tal sacanagem. Depois do orgasmo eu mudava de canal, pois naquele momento as cenas já me faziam rir ao invés de desejá-las. Enfim, seguia para o meu banho.

Deixava a água quente cair sobre meu corpo e aos poucos ia relaxando e esquecendo tudo o que ocorrera naquela noite. Pegava-me pensando novamente no trio do filme. Era mais forte que eu. Então eu me tocava novamente, dessa vez com mais furor e com gemidos que pareciam querer atordoar o sono de Charles do outro lado da parede. Aquela “pedra” já devia estar dormindo, no mínimo.

Saía do banho exausta, porém, satisfeita com meu trabalho braçal. Por que eu precisaria deles? Eu me virava sozinha. E bem! Nua, seguia até a sala a fim de por minhas roupas para lavar. Avistava o jarro quebrado no chão, mas não me importava. Ligava a TV novamente, mas o filme parecia ter seguido outro rumo. O mesmo rapaz que antes estava entre as mulheres naquela imensa cama já pilotava um helicóptero. Pegava então o embolado de roupas, mas notava um cartão caindo no chão. Largava as roupas no chão e imediatamente tomava ciência do conteúdo daquele pequeno papel. Era um bilhete de Oscar. Ele havia posto-o no bolso de minha jaqueta sem que eu percebesse. Só podia ter sido na hora em que acariciava na mão de Charles. O bilhete dizia:

Decepcionou-se com o Charles? Eu sabia! Seja que horas for, me ligue!
Beijos do Oscar. 9983-XXXX.

Eu ficava abismada. Como Oscar podia ter tanta certeza a esse ponto? Eu me via diante de dois tipos de homem; Charles era o do tipo que eu jamais queria ver na minha frente novamente. Oscar, o do tipo que se eu não ligasse naquele instante meus braços não mais agüentariam. Corria até o telefone. Ele dizia “seja que horas for” no bilhete. Então...

- Alô!
- Valéria!
Atendia-me com uma voz sedutora.
- Sim, Oscar.
- Eu sabia que ligaria. Mais cedo ou mais tarde.
- Pois é. Você acertou.
- Claro que acertei. Você ainda tinha dúvidas sobre resultado de sua noite com o Charles?
- Também não é assim, vai...
- Como está vestida?
- Como assim?
- Não entendeu? Vou repetir pausadamente. Como... está.... vestida?
- Se lhe contasse...
Que safada eu estava.
- Nua! Não é mesmo?
- Pára Oscar.
- Está nua, não está?
- Sim. Mas já estou indo dormir. Minha noite, você sabe, foi uma merda.
- Seus braços trabalharam bem ainda pouco, não?
- Mas como sabe?
- Dedução. Está a fim de algo mais concreto?
- Meus braços não são nem um pouco abstratos, Oscar.
- Estou passando aí.
- Não. Não venha, eu...
- Até daqui a pouco. E não ponha sequer uma peça de roupa nesse corpo!
Ele desligava. E eu, completamente louca com a atitude de Oscar, o esperava controlando os dedos. Eu devia estar totalmente fora de controle ou a carência era tanta a ponto de me afetar a noção de meus princípios. Minha mão direita me desobedecia novamente durante a espera. Tocava-me pela terceira vez.

[Continua]

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ELES IV

Durante o intervalo da apresentação de Mônica, o bar voltava a ter cara de bar. Falatório, bebidas, exageros etc. Oscar e Charles olhavam-se como que numa disputa de conhecimentos sobre minha pessoa. Um verdadeiro quiz. O papo tomava um rumo que eu não imaginava. Oscar era só elogios a mim. Eu via que Charles ocupava a boca com petiscos para não atacar Oscar.
- Mas e você, Valéria? O tempo esqueceu de você. Continuas tão jovial.
Elogiava-me Oscar.
- Não diga isso, Oscar. Está querendo me agradar. Só pode. Você é quem está melhor por aqui.
Charles assistia aquela seda sendo rasgada com o olhar fulminante. Oscar continuava:
- Veja a Mônica.
Ai. Sempre a Mônica.
- Ela é bem mais nova que nós. Parece? Está meio acabada. Não acha?
- Eu não acho!
Interrompia Charles. Sempre o Charles.
- Não? Por que? Olhe para Valéria e olha para Mônica. Daria uns sete anos a mais para Mônica.
- Você só pode estar brincando, Oscar. Olhe bem. Olhe a pele da Mônica!
Charles tentava mostrar provas a suas opiniões. O que me fazia diminuir centímetro a centímetro naquela cadeira.
- Charles! Olhe a pele de Valéria! Aparenta ter... ter...
- 32.
Eu lembrava minha idade a Oscar.
- Isso. 32. A pele de Valéria aparenta ter 32 anos?
- Obrigada Oscar, mas Charles parece preferir as peles que cheiram a leite. Se é que me entende.
- Valéria! Não é isso. Também lhe acho muito bonita e jovial, mas não precisamos lhe comparar com a Mônica. Ela é bem mais nova que você. Hoje mesmo, antes de virmos para cá, o que eu lhe disse?
- Disse que eu estava linda.
Eu tinha que reconhecer.
- E o que mais?
- Que eu estava linda sempre.
- Viu? Fim de papo.
Oscar e eu calávamos-nos.

Pela primeira vez na noite, Charles parecia estar a favor de quem “ama”. Evitar a comparação de minha aparência com a de uma mocinha alegando que cada uma possuía a sua beleza correspondente chamava a minha atenção de volta a Charles. Como um homem podia ser tão seco e ao mesmo tempo tão cuidadoso? Esses seus mistérios são os maiores responsáveis pela atração que Charles provoca. Ele sabia dar uma tapa, mas parecia também saber dar um bom carinho. Dupla personalidade? Podia até ser, mas me atraía.

Logo Mônica voltava ao palco para a segunda parte de sua apresentação. Oscar insinuava uma permanência em nossa mesa. Ia se ajeitando e pedindo mais uma bebida. Eu gostava muito do Oscar, como pessoa, mas não gostava da idéia de sua companhia naquela noite. A chegada de Oscar havia feito com que Charles se tocasse a respeito de meu querer. Charles pegava na minha mão. Eu retribuía acariciando-o. Oscar já tinha feito a sua parte, acendia a chama de Charles, através do ciúme, eu tinha ciência disso, mas acendia. Charles fazia questão de ser o menos discreto possível em seus carinhos à minha mão direita. Logo Oscar nos acenava em despedida e levantava-se da mesa. Charles mal olhava para Oscar. Eu lhe abria um sorriso e mencionava em voz baixa um “depois nos vemos”. Oscar confirmava com um polegar firme. “Jóia”.

Eu chegava minha cadeira para mais perto de Charles e entrelaçava meu braço no dele. Recostava minha cabeça em seu ombro e rapidamente recebia um carinho inesperado. Engraçado. A partir daquele momento, o show de Mônica parecia muito mais agradável. O timbre de sua voz realmente inundava o ambiente de emoções e tensões estranhas. Pela primeira vez eu sentia o calor de um Charles que eu não conhecia. Um Charles que mudava a cada instante, mas um Charles que me tocava. Pedaço de pedra. Pedaço de homem. Pedaço de mim.

Eu tinha noção de meu grau de carência. Fazia uns bons meses que não me aproximava de alguém daquela forma. Charles, pelo menos até aquele episódio cômico em julho, era a última pessoal pela qual eu pensaria um dia ter sentimento tão confuso e tão gostoso. Desde o momento em que me pegara em casa até acariciar-me a nuca eu havia me decepcionado, me irritado e me apaixonado por aquele homem.

O show de Mônica se findava. Aplausos e mais aplausos de pé por parte de Charles. Eu também levantava e aplaudia.
- Lindo, não?
- Sim. Lindo demais!
A imagem que eu tinha de Mônica era de uma concorrente. Que tola eu era. Bastava uma atenção de Charles e eu já passava a vê-la como apenas uma excelente cantora da qual eu também deveria admirar.
- Vamos nos reunir com o pessoal?
Ele sugeria. Mas eu não queria deixar ele se transformar em pedra novamente.
- Eu tinha outros planos, Charles.
- E quais eram esses planos, senhorita?
Ele perguntava coberto de malícia enquanto me pegava pela cintura num puxão.
- Irmos para casa. O que acha?
- Qual delas?
- A sua, a minha... Tanto faz. Não seria legal?
- Agora entendo o que você chama de clima.
Enfim, me beijava. Sua mão apertava ainda mais a minha cintura. Aos poucos sentia seus dedos puxando o passador de minha calça a fim de avistar onde minha pele era mais alva. Com a outra mão, Charles acariciava com destreza o meu abdômen. Eu só conseguia puxar as mangas de sua jaqueta contra o meu corpo. Dava-me conta de que nossa conversa em si na verdade não acontecera. Estaria eu teorizando demais um simples “pega”? Mesmo com todos os seus erros, Charles conseguia o que queria, ou melhor, o que queríamos. Íamos direto para sua casa.

Logo em sua sala, Charles me mostrava toda sua experiência em despir uma mulher sem a desgrudar de sua boca. Segundo minhas amigas, eu havia acabado de “ligar a máquina”. Quando estava apenas de roupas íntimas, desprendia-me de suas garras. Ia até a porta de seu quarto e lhe chamava com uma maldade no olhar que nem eu mesma sabia que possuía.
- Venha, Charles! Domine-me. O amanhã que nos espere!
- Larissa, sua safadinha...
Pronto. Ele tinha que estragar tudo novamente!
- LARISSA? Larissa, Charles? É a Larissa quem você quer, não é? Que MERDA!
- Calma Valéria, não precisamos estragar esse momento por causa disso, precisamos?
- Não. De fato não precisamos estragar nada. VOCÊ JÁ ESTRAGOU TUDO!

[Continua]

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

ELES III

De costas para mim e de queixo caído para o palco, Charles se emocionava a cada tema interpretado por Mônica Lisboa. E isso devia se repetir todas as noites. Eu particularmente sempre achei o jazz um pouco chato. Tudo o que ouvi do estilo foi por intermédio de Charles. Não que ele tenha me convidado alguma vez para apreciar algum de suas centenas de discos, graças a Deus, mas como nossas casas são geminadas fica impossível não fazer parte de seus momentos de audição.

Com a mão direita eu alisava a borda de meu copo em movimentos lentos e circulares. Com a esquerda apoiava um queixo entediado e uma cabeça confusa de tanto Charles. Eu olhava ao meu redor e me assustava com tamanha devoção à Mônica por parte do público presente. Ninguém emitia palavra. Eu mal conseguia me concentrar de tanta vontade de falar, mas a minha vontade maior era de ouvir. Ouvir Charles dizer de novo que me amavas.

Estranhava-me. Estaria eu também gostando daquele pedaço de pedra? Sim. Dava-me conta disso à medida que controlava meus impulsos para não agarrá-lo de uma vez. Pedaço de pedra. Pedaço de homem. Pedaço de mau caminho, como dizia minha mãe.
- Charles! Vou ao toalete.
- Sim.
Respondia-me sem desviar o olhar, agora, das mãos do guitarrista. Um tal de Alfredo. Eu me levantava e podia perceber o povo se incomodando com os centésimos de segundos em que meu corpo o impedia de assistir o show. Que loucura aquela gente!

No caminho sofrido até o toalete, uma forte mão me pegava pelo braço.
- Valéria?
Abordava-me com uma voz familiar e baixíssima.
- Oscar?
Eu não podia acreditar. Um velho amigo de infância.
- Quanto tempo, Valéria!
- Pois é. Fugiste de Belo Horizonte?
- Não. Apenas passando as férias por aqui.
- Está na casa de sua mãe?
- Sim. Cheguei hoje pela tarde. Não pude deixar de vir aqui no Jazz Bar. Sabia que encontraria pessoas especiais. Olha a Mônica! Ontem mesmo era uma moleca. A chamávamos de rouxinol, lembra?
A Mônica. Sempre a Mônica.
- Eu não a conheci quando criança. Na verdade é a primeira vez que a vejo. Só ouço falarem muito dela. Deixe-me ir ao toalete. Já volto.
- OK.

Oscar também se encontrava hipnotizado pela voz de Mônica, porém, teve a decência de me cumprimentar. Ato impossível para o idiota do Charles. Oscar parecia ótimo. Sua idade, 31 anos, não se fazia presente em sua aparência. Saiu daqui do Rio de Janeiro com uns 20 anos, mais ou menos, a trabalho. Esse sim, sempre demonstrou interesse por minha pessoa. Chegamos a trocar uns beijos no passado, mas sua mudança para Minas Gerais acabou apagando aquele pequeno feixe de luz.

Em direção à mesa de Charles, com as mãos enfiadas nos bolsos de minha jaqueta, voltava a falar, em voz baixa, lógico, com Oscar.
- Estou com o Charles numa mesa próxima ao balcão.
- Posso sentar-me com vocês?
Eu, por incrível que pareça, ainda queria conversar com Charles a sós, mas tinha de ser educada.
- Claro. Pode sim. Charles também vai gostar de lhe ver.
- Então, no intervalo passo por lá.
- OK.

Chegava à mesa de Charles. Ele sequer notava meu retorno ou questionava minha demora. Eu voltava à posição das mãos. A mão direita na borda do copo e a esquerda no queixo. Mônica então anunciava um intervalo de “vinte minutinhos”.
- Lindo, não?
Perguntava-me Charles, já fora do hipnotismo, aplaudindo.
- Como?
- O show. Não é lindo?
- Ah sim. Lindo demais.
Esperava que não me perguntasse sobre detalhes da apresentação. Não saberia responder nada.
- Onde paramos?
- Como?
- Estávamos conversando, Valéria. Lembra?
- Sim. Mas a Mônica nos interrompeu.
- Você iria responder se sentes vontade de me beijar.
Nossa. Ele conseguia ser mais frio que os petiscos intocados sobre a mesa.
- Como assim, Charles? Você quer que eu retome o clima assim, em segundos?
- Clima?
- Sim. Dependendo de minha resposta, preciso de um clima! Não é assim!
- A sua resposta então é “sim”. Não é?
Meu Deus. Eles são frios demais.
- Charles. Estamos falando de um beijo e não de uma cerveja que você pede logo assim que a banda pára de tocar.
- Bem lembrado! GARÇOM!
Eu não podia acreditar numa cena daquelas. Calava-me e mastigava um petisco com raiva enquanto assistia uma pedra pedindo bebidas. As pedras podem não pensar, mas existem porque pedem bebidas. Charles era a prova viva disso.

- DUAS CERVEJAS, GARÇOM!
Interrompia o pedido de Charles, Oscar.
- Como vai, Charles?
Oscar o cumprimentava.
- Bem. Até o momento de sua chegada.
Respondia um Charles agora mais gelado que a cerveja que estava por vir.
- Charles! Isso é jeito de falar?
Eu tentava consertar a merda.
- Mas o que foi que lhe fiz, meu caro?
Insistia Oscar em tom de deboche.
- Nada, Oscar. Sente-se conosco e conte-nos sua história de sucesso profissional. Estamos ansiosos para ouvi-la. Não é mesmo, Valéria?
Eu não me lembrava da rincha entre os dois. Os beijinhos que Oscar e eu trocamos há mais de uma década pareciam, ainda que não tivéssemos nada um com o outro, perturbar o Charles, que por sua vez, também não tinha nada comigo. Eu permanecia sem ação no meio daquela troca competitiva de olhares. A fim de melhorar o ambiente, eu soltava então a frase mais brilhante que me vinha à mente.
- Sente-se Oscar. Você não cresce mais.
Péssima.

[Continua]

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

ELES II

O Jazz Bar não fica muito longe, logo, íamos andando mesmo. Pelo caminho, quase não falava, preferia ouvir o que Charles tinha a dizer. Ele estava inspirado naquela noite. Por conta das cervejas grátis, tudo bem, mas inspirado. O sorriso no rosto de Charles era coisa rara de se ver. Só mesmo em uma noite “como aquela” em que ele assistiria o show da Mônica Lisboa e estaria perto dos músicos que sonhava ser é que se podia presenciar tal semblante.
- O ano já se aproxima do final.
- É.
Eu concordava friamente.
- Como passa rápido, não?
- Sim. Muito rápido.
- Já parou para pensar que a cada passo que damos, cada segundo que corre, cada rua que atravessamos, nossos corpos vão envelhecendo numa proporção micro imperceptível? Só nos damos conta de nosso estado atual quando nos deparamos com fotos de nossa juventude. Já pensou nisso?
- Sim. Claro.
- Somos como as coisas e o lixo. Temos o nosso tempo de vida útil até que apodrecemos e morremos.
- É.
- Eu não quero morrer antes de...
Antes de me beijar. Antes de me beijar. Fala logo!
- ...Antes de pisar no palco do Jazz Bar ou sentar-me em uma das cadeiras da orquestra do Walter Lins. Sentiria-me útil e realizado. Depois eu poderia apodrecer tranqüilamente.
- Ah sim. Certamente.
Que idiota.

Eu sentia que o objetivo de Charles durante a caminhada era de não me dar chances de falar sobre o ocorrido em julho. Filosofava e questionava a vida e as coisas de maneira frenética. Eu não conseguia acompanhar o raciocínio de Charles. Não mesmo. Ele era inteligentíssimo. O fato é que ele havia me atendido de forma ríspida pela manhã, mas à noite parecia outra pessoa. Eu não entendia no que realmente ele focava. Havia muita coisa a ser focada naquela noite: o show da Mônica, os músicos freqüentadores do Jazz Bar, as bebidas, o nosso assunto, minha boca e talvez as minhas pernas. Charles preferia, pelo menos na ida, agir como se nada houvesse sido revelado entre nós.

Chegando no bar, Charles encontrava alguns de seus amigos. Na minha opinião, um bando desocupado e insistente na carreira musical. Logo no jazz? Ninguém ganha dinheiro com o jazz no Brasil. Mas eu não era tola de expressar minha opinião diante daqueles loucos. Eles me esquartejariam e pendurariam meus pedaços em cada canto daquele bar. Mas eu até que gostava de ver aquela cena. Charles feliz. Era tão difícil fazê-lo sorrir, descontrair-se. Pela primeira vez eu via o quão importante aquele trompete, os amigos e até mesmo as frustrações musicais eram para Charles.

Ele então os cumprimentava com fervor. Luiz “Cabeça”, Fábio “do Swing”, Jair “Duro”, Lílian “Pixinguinha”, Zé “do Sax” e Marcel “Couro de Gato”. Todos com nomes típicos de músico, porém, sem um níquel no bolso. Mas eram todos muito divertidos, quando estavam de bocas fechadas, logicamente. Por isso, eu rezava para o show da Mônica começar logo ou para que Charles me conduzisse a uma mesa.

Eu acenava para cada um de seus amigos e insinuava querer uma mesa só para nós dois, a fim de conversarmos mais à vontade.
- Vamos para aquela, Charles?
- Por que não nos sentamos com o pessoal?
- Bem, Charles. Estamos aqui por um motivo, lembra?
- Sim. Mas podemos conversar depois do show, não?
- Não! Depois do show estarás fora de controle de tanta bebida. Quero você sóbrio.
- Por que?
- Porque não quero que fale comigo achando que sou a Larissa ou qualquer outra mulher que sua imaginação fértil seja capaz de produzir.
Ele emudecia. Despedia-se do pessoal com educação e então sentávamos numa mesa a sós.

Charles parecia inquieto. Não olhava nos meus olhos. Apontava seu olhar para vários lugares e intercalava tais movimentos com pequenas goladas na cerveja.
- Podemos conversar? Antes que o show comece e isso aqui vire um velório?
- Claro.
- Primeiramente queria me desculpar pelo sumiço. Eu estava sem graça e achava que você também não quisesse muito papo depois daquele episódio.
- Valéria, aquele sonho só me deu coragem para lhe falar aquilo que há muito tempo me tomava.
- Mas Charles, você vira para mim e diz que me ama. Estávamos esperando o chaveiro, ou seja, uma situação tão comum e tão desprovida de sentimentos. Eu...
- Meu sentimento assustou você?
- Claro que sim!
- Claro que não, Valéria. Você nunca havia percebido?
- Claro que não!
- Claro que sim, Valéria. Você deve ter percebido em algum dia!
- Claro que sim!
- Claro que sim?
- Você me confunde, Charles!
Ele era um mestre na arte de confundir.
- Só me responda uma coisa, Valéria.
- Sim.
- O que sentes por mim?
- Ora... Eu... Eu gosto de você. Como amigo, mas gosto.
- Sentes vontade de me beijar?
- Beijar?
Eu gelava e tentava ganhar tempo. Gaguejava.
- Sim beijar. Sentes vontade de me beijar?
- Bem, eu...
- Ih. A Mônica vai começar! No intervalo do show continuamos. OK? Agora, silêncio.
- ???
Charles era um completo idiota. Maluco! O que eu estava fazendo ali também? Outra maluca. Como que um cara pode amar alguém e ao mesmo tempo interromper o ápice da realização do sentimento ali proposto? No momento em que minha boca tomava o formato de um beijo, numa atitude experimental, mas de um beijo sincero e até certo ponto morrendo de vontades, Charles mudava o foco. Ele não me amava. Nem amava Larissa. Ele amava a música, a Mônica, os amigos metidos à artista, o Jazz Bar e aquela corneta dos infernos! Isso mesmo! Corneta! Eles estragam tudo sempre. É incrível.

[Continua]

terça-feira, 2 de setembro de 2008

ELES

Charles acordava com a sensação de sempre: ser o homem mais fracassado de toda humanidade. Todos os dias, a presença de seu trompete sobre a mesa da sala o fazia pensar no quão tolo diante de mim ele havia sido naquele mês de julho. Sonhar tanta coisa impossível depois daquele porre e ainda me contar tudo foi o auge de suas derrotas. Lógico que a imagem e as palavras da imaginária Larissa continuavam a lhe perturbar. Setembro já dava suas caras e ele não conseguia desapaixonar-se daquela menina que nem existia. Os últimos meses não haviam sido muito agradáveis à sua mente confusa. Ele entendia cada vez menos o sexo oposto.

Eu resolvia, talvez por causa daquela confusão toda de sonhos e amores, distanciar-me por uns tempos. À noite, quando ele saía para fumar o seu cigarro, não mais me via em minha porta. Era melhor assim mesmo. Ele não tinha cara de olhar em meus olhos depois de demonstrar seus sentimentos daquela forma imbecil. E além do mais, ele precisava de tempo para se concentrar no rosto de Larissa que frequentemente o vinha, porém, parecia se apagar com o passar dos dias. O que Charles mais queria naquele fim de inverno era encontrar alguma menina com as características de Larissa. Aposto. Seria ótimo para ele àquela altura.

Eu, sempre tão amiga de Charles, me via numa situação chata. Para não dizer confusa. Embora fosse um fracasso em forma de gente, Charles era um tanto quanto tentador. Resistir à forma rústica de Charles não era uma tarefa fácil para as mulheres. Pelo menos até ele abrir a boca. É que o pessimismo exagerado que o rodeava espantava qualquer garota de sua vida. Ele calado, um monumento. Falando, um intelectual mal compreendido. Falando de si mesmo, um homem assustador. Mas havia algo nele. Algo que me confundia.

Desde julho que não mais ouvia sua corneta. Corneta não! Trompete. Ele sempre me corrige. Acho que o fato de ter experimentado o gosto de se sentar numas das cadeiras da orquestra do Clube dos Líderes, em seu sonho, o fez desistir de vez da música. Charles soprando aquilo é uma agressão sonora. O maestro Walter Lins jamais o contrataria. Charles parecia estar condenado a assistir os seus ídolos locais no Jazz Bar por toda a vida. Sem sequer apresentar-se por lá profissionalmente.

Charles desde pequeno foi muito solitário e sempre preferiu fazer as coisas do seu modo. Não me lembro de vê-lo tendo aulas com nenhum professor além dos que não se podiam fugir, durante o ensino fundamental e médio. De lá para cá, Charles se mostrara autodidata em tudo o que resolvera fazer. Bem, no trompete ele ficou devendo. E na arte da conquista também. As mulheres que passaram pela vida de Charles foram como relâmpagos em noites de verão. Algumas até amigas minhas, que acabavam me contando tudo sobre o jeito esquisito de tratá-las entre quatro paredes. “Ele é bom e ruim ao mesmo tempo. Ele é como uma máquina automática. Você liga-o e ele desliga sozinho após o serviço. Não dá um pio”.

Nesses dias em que eu resolvia me manter afastada de Charles, pretendia mostrar-lhe também que se ele realmente me amava, deveria lutar pelo o que queria. Mesmo sem saber se eu cederia ou não aos beijos de um cara como ele, como amiga eu queria vê-lo lutar realmente por algo que quisesse muito. O desânimo com o qual Charles encarava o meu silêncio só me fazia entender que na verdade ele não me amava. Ele um dia havia me amado. Quando era jovem. Jovem como a Larissa.
Depois de alguns dias, eu mesma não resistia à minha própria frieza. Tinha de falar com Charles. Então eu ia até sua casa.
- Charles!
Ele não dava sinal de vida.
- Charles?
- Sim.
Respondia com voz de sono. Eram 11h da manhã. Ele abria a porta.
- Bom dia.
- Bom dia Valéria. Está viva?
- Sim. Você é que me parece meio morto. Como sempre.
- Como?
- Deixa para lá. Vai fazer algo esta noite?
- Não.
- Quer sair? Tem show da Mônica Lisboa no Jazz Bar e eu achei que...
- Achou que poderíamos ir juntos?
- Olha, não é nada do que você está pensando, Charles. Eu só acho que precisamos conversar, não?
- Eu não estou pensando nada, Valéria. Eu passei dois meses sem sequer ouvir um bom dia seu. O que houve? Você está chateada com o que lhe falei naquele dia? Disse que a amava. E você? O que fez? Sumiu! Mesmo dividindo comigo uma mesma parede.
Eu ficava muda por uns segundos.
- Sentiu minha falta?
Eu arriscava.
- Eu disse que te amo. O que você acha?
- Acho que você ama a minha juventude. Acho que ama a Larissa.
- Aquilo foi um sonho. Só isso.
- Mas me lembro de como entrou na minha casa procurando-a. Parecia sedento por ela.
- Ela na verdade era você, Valéria.
- Não quero discutir. Quero conversar. Vamos ao Jazz Bar hoje à noite ou não?
- Sim. Eu a chamarei às 21h. OK?
- Estarei esperando.
Sentia que não havia feito uma boa escolha ao tentar me aproximar de Charles. Ele parecia magoado. Mas era preciso.

Às 21h, pontualmente Charles batia à minha porta. Eu atendia.
- Você está linda, Valéria.
O Charles me dizendo aquilo era tão estranho, mas eu gostava.
- Obrigada, mas estou vestida com o de sempre.
- Pois é. Está sempre muito linda. Nunca lhe disse?
- Pára Charles. Por favor.
- Tudo bem, tudo bem.
- Você me parece melhor do que mais cedo. O que houve? Gosto de lhe ver assim.
Na certa era por estar próximo a um possível beijo meu.
- É que me sinto muito bem em noites como a de hoje.
- E posso saber o que há de especial em noites como a de hoje?
Lógico que era por causa de minha companhia no bar que ele mais freqüenta.
- As bebidas de cortesia do Jazz Bar! Sexta-feira são duas cervejas grátis! Bom, não?
- !!!
De fato um troglodita. Boçal. Eu estava errada sobre eles.

- Sim. Claro.

[Continua]