sexta-feira, 28 de março de 2008

O CICLO

Não. Não era essa melodia que Euclides procurava para terminar sua peça. Violonista clássico e conceituado que era, o músico morria de medo de apresentar, no concerto marcado para a próxima semana, um plágio de si mesmo. Euclides possuía uma vasta obra com centenas de peças para violão e sua capacidade criativa ainda aguçava cada vez mais a curiosidade de seus ouvintes em suas novas composições. Ele batia com o violão sobre as pernas e soltava berros quando não conseguia terminar determinada linha melódica. Isso o irritava. O fato de possivelmente ter plagiado uma melodia alheia ou até mesmo sua o fazia pirar e passar dias procurando em seus registros musicais a possível falha.

Diante daquela folha de partitura manchada de tanto apagar as cabeças de notas escritas, Euclides parava, levantava e se dirigia até os fundos de sua casa, onde havia um imenso jardim. Bebia um copo com água morna enquanto ouvia os pássaros a cantar sobre as árvores. Buscava na natureza e no cotidiano algo que o pudesse inspirar ou, por que não, uma melodia pronta, como já tinha feito várias vezes a partir dos uivos dos cachorros da casa vizinha. A busca pela melodia inédita e capaz de seduzir os jovens ouvidos que os seguia por todos os teatros no mundo inteiro era desgastante, era obsessiva, era doentia, era neurótica e, ao mesmo tempo, era prazerosa e recompensadora.

Voltava para o seu violão, depois de uma pausa de mais ou menos meia hora, e continuava a pensar. Executava todos os movimentos por dezenas, às vezes centenas de vezes até obter o lampejo para a conclusão de seus problemas musicais. Naquele dia, acontecia o que por mais de trinta anos Euclides buscava incansavelmente. A melodia final que foi capaz de tirar lágrimas de seus próprios olhos. O velho músico não entendia como era capaz de emocionar as platéias lotadas e mudas que o cercavam durante sua vida sem comover a si mesmo. Mas isso finalmente havia acontecido. Como uma obra divina, Euclides terminava uma de suas mais trabalhosas peças e, de maneira celestial, conseguia também emocionar a si mesmo pela primeira vez com a criação.

Rapidamente, Euclides transcrevia em pautas limpas todo aquele suor derramado durante dias. Disposto a apresentar a nova peça no próximo concerto, o profissional se acomodava na velha cadeira da sala e exaustivamente a ensaiava em busca da execução perfeita. Euclides concentrava-se em exprimir de seu instrumento apenas o som das notas, omitindo qualquer tipo de sonoridade vinda do arraste de suas mãos sobre o braço do violão. Essa era uma de suas marcas registradas.

No dia do tão esperado concerto de Euclides Romero, no Teatro Municipal de sua cidade natal, uma fila enorme na portaria tornava o local ainda mais lindo e atraente. Durante o espetáculo, Euclides executava suas peças mais famosas – que também eram as mais rebuscadas – sob o olhar boquiaberto do público presente. No final, apresentava-lhes sua mais nova criação dividida em três movimentos: “Ao meu próprio coração”. A platéia continuava intacta e hipnotizada por aquelas cordas. Ao final do terceiro e último movimento, Euclides novamente chorava.

Terminada a peça, direcionava os olhos para frente e deparava-se com um certo desconforto daqueles que o apreciava. Focos de pequenas conversas apareciam diante de Euclides. Notava que justamente a música que lhe tirava lágrimas não surtiu o efeito aos presentes no teatro. O público somente se dava conta de que era o fim da peça quando o violonista levantava-se para receber os aplausos.

Findado o concerto, Euclides não se dirigiu ao Café do teatro para os autógrafos. Permaneceu no camarim até que a última pessoa se retirasse do recinto. Tomava ali como falha sua nova composição e entrava em intenso conflito com a música que produzia. Depois de tantos anos de carreira, entendia agora que o caminho da onda de emoção transmitida por sua obra era de seu coração para o violão, do violão para o público e finalmente, do público para o seu coração novamente. Um ciclo no qual todos precisam de todos para se emocionar.

2 comentários:

Henrique Monteiro disse...

http://conmsk.blogspot.com/2008/03/exceo.html
Foi aqui que vi o conto.


Volto mais tarde para ler aqui.
Abç.

Anônimo disse...

grande Euclides...


gostei muito (sempre falo isso, né?!)

só consegui ler hoje! e sei q já fiz comentários bem + bacanas... mas tudo bem...

hehe




beijo