quarta-feira, 13 de agosto de 2008

ÁREA DE RISCO

Certa vez, conversando com uma grande amiga minha, a Débora, discutia sobre a verdadeira essência do amor. Eu colocava à mesa minha crença de que tal sentimento era tão forte que se tornava incapaz de ser modificado, desviado ou impedido de existir por causas externas à alma. Débora, por sua vez deixava claro sua opinião inversa. Dizia que qualquer sentimento, inclusive o próprio amor, nasceria, permaneceria igual ou diferente, vivo ou morto de acordo com a situação vivida pelo indivíduo que o sente.

- Ora, Juliano, o amor não resiste a brigas familiares, à doença, à monotonia, à distância... Isso é coisa de filmes e novelas.
- Eu tenho minhas dúvidas. De que tipo de amor você está falando?
Eu perguntava.
- De qualquer tipo.
- Então você nunca amou ninguém.
- Eu já amei sim.
- Quem?
- Não posso dizer, mas já amei.
- E não o ama mais?
- Não A amo mais!
- Era uma mulher? Sua mãe?
- Não. Amor de mãe não conta, Juliano.
- Você disse qualquer tipo, Débora.
- Ih garoto, você está me complicando.
- Eu?
- O negócio é o seguinte, eu amei uma menina.
Ela revelava.
- Como assim?
- Eu já senti uma atração muito forte por outra menina. Era amor, eu sabia que era. Porém, o preconceito que eu sabia que enfrentaria me fez esquecê-la. Depois dela, nunca mais me senti atraída por mulher alguma. Não vai contar isso a ninguém, por favor.
- Claro que não, Débora. Mas, nossa, estou bobo.
- Viu como uma questão externa à alma é capaz de anular um amor?
- O preconceito é externo, mas o medo que sentia do mesmo vem da alma, não?
- Juliano! Chega! Você está me deixando confusa. Vamos para a aula. Estamos atrasados já.
- OK.
Seguíamos rindo de nós mesmos.

Na verdade aquela discussão havia se iniciado por conta do meu primeiro amor. Tratava-se de uma namoradinha que me fazia perder o sono e a noção também. Eu ficava horas ao telefone com aquela pequena. Com isso, as broncas dos meus pais eram mensais como a contas absurdas que eles pagavam.

Bianca era uma morena de deixar as outras todas de seu colégio iguais e sem graça. Seu cabelo negro e liso tinha o peso equivalente à beleza que os fios exibiam. O tórax liso sempre à mostra era a prévia da perfeição dos seios logo abaixo. Não que Bianca fosse exibida. Não. Sua beleza era natural como o céu que se abria sempre na sua presença. Era a harmonia entre Bianca e a Terra que fazia a busca das outras meninas se tornarem inúteis.

O maior problema de nosso namoro era o local onde Bianca residia. Em quase um ano de namoro, eu ainda não tinha sequer visto a casa de Bianca. Segundo ela, morava em local de risco. Uma vez ela até me mostrou a favela onde morava, porém, insistiu que a deixasse lá em baixo.
- Bianca, deixe-me ir até sua casa, por favor. Quero conhecer seus pais.
- Um dia, quem sabe? Em outro lugar. Aqui não.
- Então marcarei um almoço na minha casa. Você os leva e então apresentamos nossas famílias. Já estamos juntos a quase um ano, Bianca.
- Eu sei, meu amor, mas é que tenho muita vergonha de onde moro. Chegando lá, verá homens armados andando tranqüilamente entre nós. Isso não é legal. Constantemente há troca de tiros com a polícia. Não quero que corra esse perigo, Juliano.
- Quero um dia poder lhe tirar daí.
- Seria um sonho.

Naquele caso com a Bianca, Débora perdia sua razão comigo. O perigo em volta de Bianca, sim, uma questão externa à alma, me impedia apenas de ir até a sua casa. O meu amor por ela aumentava a cada dia.
- E como anda o seu namorico lá com aquela menina do colégio vizinho?
Perguntava-me Débora.
- Vai bem, mas eu queira conhecer os pais dela, fazer mais parte de sua vida, mas...
- Mas?
- Ela mora em área de risco. Naquele morro ali.
Eu apontava a fim de mostrá-la. Do pátio de nossa escola avistávamos aquela área onde parecia não chegar leis, benefícios e outras coisas estatais. Um amontoado de barracos que contrastava absurdamente com o conteúdo de Bianca, que por sua vez buscava muito mais do que aquele local podia lhe oferecer. Eu me surpreendia com a capacidade de observação e de concentração daquela menina. A carência de sua comunidade não a abatia em absolutamente nada.
- E porque ela mora no meio da favela você não pode ir vê-la? Viu como tenho razão? A criminalidade vai matar o seu amor.
- Erra. Eu a amo cada vez mais. Ela apenas não quer me ver em perigo.
- Está certo. Vamos ver até quando isso vai durar e então retomaremos nossa discussão, Juliano.
Débora insistia na idéia de que meu amor não suportaria o bloqueio social que impedia a mim e a Bianca de fazermos coisas que todo casal costumava fazer. Até certo ponto ela tinha razão. Eu não podia levá-la para sair de deixá-la em casa antes das 18h, por exemplo.

Dias se passavam e aquele almoço que tinha em meus planos nunca se realizava. Bianca sempre me aparecia com alguma desculpa. Foi quando tive a idéia de furar aquele bloqueio.

Eu acabava de buscá-la no colégio onde estudava e como de costume a levava até a entrada da favela onde morava.
- Até amanhã, Juliano.
- Não. Vou levá-la até sua casa.
- Juliano, já falamos sobre isso.
- Mas eu quero. Só hoje. Por favor.
- Não.
- Então terminamos aqui!
Eu fingia perder o controle.
- Juliano. Não é para tanto.
- É sim. Parece que esconde algo de mim.
Ela ficava furiosa.
- ENTÃO ESTÁ BEM! VAMOS ATÉ MINHA CASA!
Ela me pegava pela mão me puxava pelos becos sempre subindo. Logo via alguns jovens, até mais que eu, portando armas e acenando para Bianca.
- Ô MORENA... TÁ GOSTOSA DEMAIS!
Ela sequer olhava para eles, mas demonstrava uma vergonha imensa. Eu nada podia fazer. Consumia-me numa raiva silenciosa.

Enfim, chegávamos à casa de Bianca. Frente à porta:
- Satisfeito? Conhece minha casa agora! Gostou dela?
Ela falava em tom ríspido.
- Por que está zangada?
- Por que? Como assim por que? Acha que tenho prazer em trazer a pessoa que amo nesse lugar?
Eu ficava calado.
- Responda! Acha?
Permanecia calado.

Uma rajada de metralhadora interrompe o meu silêncio.
- ABAIXE-SE!
Gritava uma experiente Bianca.
- O QUE É ISSO?
Eu perguntava aflito.
- A POLÍCIA DEVE ESTAR SUBINDO O MORRO! VAMOS ENTRE!
Eu escorregava na lama que se concentrava frente à casa de Bianca.
- LEVANTA, JULIANO!
O barulho dos tiros se aproximava e uma correria tomava conta daquele lugar. Ao levantar-me, recebia um projétil nas costas.
- JULIANO!
Eu caía aos berros.
- ENTRE, BIANCA! ENTRE!
- NÃO POSSO TE DEIXAR AQUI!
Foi a última frase de Bianca que ouvi antes do desmaio.

Acordava no hospital rodeado de familiares e amigos. Débora segurava minha mão.
- O que houve comigo?
- Descanse, Juliano. Apenas descanse.
- E Bianca? Lembro de um tiroteio e...
- Pois é. A Bianca está bem. Você, nem tanto, amigo. Precisa descansar.
- Mas onde está ela?
- Não sei, mas ela deixou um bilhete comigo lá no colégio. Quer ler?
- Claro!

“Juliano. Nunca vou me perdoar pelo ocorrido. Penso que seria ainda melhor se deixasse que terminasse o nosso namoro a subir com você. Nada disso teria acontecido se eu fosse mais firme com você naquele momento. Espero que entenda pelo menos metade do tamanho da culpa que força a distanciar-me de sua vida. O nosso amor perdeu essa batalha”.

- Ela terminou comigo, Débora.
- Não sei o que dizer, Juliano.
- Não diga nada. Bianca acaba de lhe dar razão sobre o amor. Eu continuo a descordar. Que fique claro.
Débora calava-se.

Eu não entendia o que o descaso de nossos governantes tinha a ver com os sentimentos íntimos dos cidadãos. Ambos não se relacionavam diretamente, porém, indiretamente, a folga dos seus ternos, naquele momento, de alguma forma impedia-me de viver o meu primeiro amor. Era bizarro enxergar como os meus representantes se manifestavam e se tornavam presentes não por ações concretas, mas através do medo de Bianca. Fiz questão de nunca mais vê-la.

Um comentário:

Anônimo disse...

ai que triste...
eu tava achando que ela não morava na favela
=/
rsrs

ÓTIMO!

beijão

nathalia - ucam