quinta-feira, 28 de maio de 2009

MÓVEL pt.2

Naquela noite, André já começava a demonstrar a si mesmo uma espécie de princípio de loucura. Ao mesmo tempo em que pensava no que fazer primeiro, diante da “liberdade” que aquela paralisação lhe provera, mantinha os olhos ora naquela mulher em sua cama, ora na única janela de sua casa. Uma “cabeça de porco”, para falar a verdade. Tinha certo medo.

Sentia-se num misto de felicidade, incômodo e inquietação. Ficava em dúvida em relação à prioridade que deveria dar a cada coisa a ser feita. Apaixonado por carros, André ainda pensava se aquela mulher deveria ser “traçada” antes ou depois de conhecer o gosto de dirigir o veículo que quisesse – estavam todos disponíveis à sua vontade. Até que, num estalo:

- Quer saber? – dizia a si mesmo André – Traço depois! Está tarde, preciso dormir, mas quem me garante que tudo não volta ao normal daqui a pouco? Mulher que se move eu pago. Carro que se move eu já cansei de só olhar!

Firme na ideia de pilotar as maravilhas do ano, André assume novamente o volante do carro daquela desconhecida. Mas antes, passava os olhos sobre as crianças que brincavam frente a sua casa. Pareciam estar jogando futebol, já que um deles, o mais magrelo, vestia uma blusa de goleiro e, esticado como que numa ponte defensiva, permanecia paralisado com o rosto voltado ao chão. André não sabia o que fazer quanto às crianças. O sereno umedecia levemente as costas delas. Ligava o carro e partia.

Fazendo outro trajeto – desviando-se de mais batidas e incêndios –, André seguia até uma concessionária Citroën.

Lá dentro, primeiramente, deu um beijo numa das recepcionistas, uma jovem linda.

- Gostou do beijo, boneca? – dizia André à “estátua”.

A loja estava escura. Apenas algumas luzes – as que iluminavam os carros –, estavam acesas. André procurou pelos disjuntores e, então, ascendeu toda a loja.

- Yeah! – gritava o contente André.

Nesse instante, André lembrava de um detalhe: onde pilotar aquelas máquinas? As principais vias estavam tomadas por veículos batidos e pedestres paralisados. Teve que dirigir sobre calçadas e até praças para chegar até ali. “Merda”, pensava.

André voltava até a recepcionista e:

- Merda de vida hein, senhorita... – André lia o crachá – senhorita Beatriz!

O rapaz, transtornado, dava uma tapa no rosto de Beatriz, que, mesmo assim, logicamente, não tirava o sorriso do rosto. Correu até um extintor de incêndio, muniu-se do mesmo e lançou-lhe contra o vidro da frente da concessionária. Vendo todos aqueles estilhaços vindo ao chão, caiu em si; notou seu real estado emocional: o desespero.

André entrou novamente no carro que o levou até ali, girou a chave, mas lembrou que já ia esquecendo algo. Voltou até o balcão para buscar Beatriz. Colocou-a no colo e a acomodou no banco do carona.

- Já que não posso com os carros, me darei o luxo de pelo menos escolher qual das duas gatinhas eu vou “traçar” quando chegar em casa.

No caminho, na subida de uma pequena ponte, André teve a vista do mar. Pode observar que diversas embarcações se amontoavam próximo à orla. Tudo perdera a direção de uma hora para outra. André dirigiu todo o trajeto pensando na quantidade de problemas ocasionados por aquela paralisação sem sentido.

- Quem pilotava um avião, caiu. Quem dirigia um carro, bateu. Quem mexia com fogo, causou incêndio...

Foi quando passou frente a um shopping. André desligou o automóvel e:

- Fica aqui Beatriz – dizia André com certa morbidez.

André queria, na verdade, constatar o que lhe vinha em mente: o que ocorrera com as pessoas nas escadas rolantes daquele shopping? Justamente o que ele já imaginava: um amontoado de pessoas enrijecidas bloqueava as saídas das escadas. Ele foi até um desses montes e observou um barulho de pancadas que se repetia. Eram os degraus da escada rolante que batiam forte sobre a cabeça – já com um buraco imenso - de um rapaz. André olhou aquilo, mas não teve coragem para ato algum; saiu.

Antes de tomar novamente o carro, passou por uma lanchonete, logo na entrada do shopping, e roubou um salgado de queijo e presunto e um copo de refresco de kiwi.

Dirigindo até em casa, André alisava as pernas de Beatriz.

- Você ri, não é? Ri porque gosta! Não gosta? Hein?

O sorriso que Beatriz mantinha em seu rosto fazia mesmo parecer que tudo aquilo estava sendo muito prazeroso. Era um sorriso lindo. Dentes perfeitos!

- Eu ainda estou lhe mantendo vestida, senhorita Beatriz! Espere até chegarmos em casa!

Chegando em casa, já por volta de 2h da madrugada, com mais uma mulher nos ombros, André notava que uma das casas vizinhas à sua pegava fogo.

- Merda! Um incêndio agora?

André deitava Beatriz em sua cama, do lado da outra mulher, e dizia a si:

- Eu com duas beldades na minha cama? Foda-se o incêndio, ora!

André pegava uma cerveja na geladeira. Dava um gole e partia para cima de Beatriz, que, imóvel, somente sorria. A jovem teve sua roupa rasgada como que por um animal selvagem.

- Ah! Que seios! – dizia André.

Como Beatriz estava sentada no momento da paralisação, sua posição não dava muitas opções a André.

- Vai “de quatro” mesmo, boneca!

André, covardemente, deliciava-se com o corpo imóvel de Beatriz. enquanto as chamas cruéis da casa vizinha levavam ao ar um sinistro odor de cremação.

[Continua]

* * *
Foto da Capa:
Renato Tavares.

5 comentários:

Nathalia disse...

ai, luciano... que cruel, não?

sabe que lendo, fiquei imaginando o que eu faria se eu fosse a única móvel...sabe que eu não sei?
talvez eu iria me conhecer de verdade...ah, sei lá! rsrs

beijos

Luciano Freitas disse...

Nathalia chegando ao ponto que quero...rs

Unknown disse...

putz... que conto "surtado"

rs

Janaina W Muller disse...

Que cara doente esse André hein. Tanta coisa que poderia fazer, tanta gente que poderia ajudar e a única coisa que consegue é fazer "isso" :p

Muito curiosa para saber como continua :)

Abraços
='-'=

Vanessa Sagossi disse...

Que horrível!
Surtado, maluco, animal, tarado! Eu hein