terça-feira, 18 de março de 2008

A DESPEDIDA

Enquanto ouvia xingamentos e desaforos, juntava as duas camisas e a única calça que tinha, num saco. Pegou também seu violão e um chinelo. Ela não parava de falar. Recebeu adjetivos que jamais havia ouvido na vida e mal sabia o significado deles, mas dava para perceber que não era coisa que prestasse. Ela gritava muito.

Nos papéis ainda molhados de círculos de café, suas músicas. Pegou-as também. Secou os escritos na camisa velha que vestia, dobrou-os e enfiou junto às calças. Ela continuava gritando. Assustado com a confusão, o cachorro latia sem parar. E ela reclamava com o pobrezinho também.

Na verdade Francisco não agüentava mais ouvir a voz daquela mulher, que por sua vez não agüentava mais assistir o seu silêncio. Na opinião dela ele era um sonhador, vagabundo e que nada queria com a “hora do Brasil”. Ao ver dela, estava "desempregado", mas trabalhava de 07:00h às 17:00h como servente de pedreiro há alguns meses atrás.

Naquele dia, ele decidiu que não mais ia falar. Discutir com ela não valia nem uma gota de sua saliva, nem um movimento de sua boca, nem um pulsar mais acelerado de seu coração... Viver naquela casa não tinha mais sentido se houvessem os dois a dividindo. Aquele campo de batalha chamado quarto só teria paz com a saída de uma das tropas. Francisco retirou então a dele, que a essa altura da guerra se encontrava cansada de tanto se defender e com orgulho de nunca ter atacado.

Abriu o portão e a voz da ex-companheira já o vinha sem muito poder. Notou que o cão direcionava seu latido à sua pessoa. Era a conclusão da despedida. Baixou a cabeça com tristeza, mas ao mesmo tempo se sentia muito feliz. A liberdade e o medo do que planejava para depois daquele portão traziam uma certa alegria a Francisco. Saiu caminhando pela estrada de terra e deixando para trás apenas as marcas de seu chinelo velho no chão.

Durante vários dias, andou sem rumo. Compôs algumas canções, todas falando de despedias. Cantava-as apenas para si. A última, a mais bela que já fez, foi cantada uma única vez, poucas horas antes de morrer de fome. Francisco a compôs e cantou para depois de tantas guerras se despedir. Se despedir da vida.

Conto publicado em 31 de agosto de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas

Um comentário:

Henrique Monteiro disse...

Dessa vez eu achei que terminaria com o cachorro atacando a dona até a morte.