terça-feira, 22 de julho de 2008

A PIOR DAS PERDAS

Quando eu entrava em um ônibus, a vaga ao meu lado era sempre a última a ser ocupada. Eu culpava a minha aparência por isso. Eu trabalhava na construção naval e o estaleiro ficava um pouco longe da minha casa. Como era mais prático e econômico, eu não levava roupa de troca. Fazia os trajetos de ida e volta com minha roupa de serviço; o macacão. Já dá para imaginar o estado em que essa peça se encontrava, imunda. O máximo que eu fazia antes de ir embora era dar umas batidas para espanar-lhe a poeira e só a lavava nos fins de semana.

Minha barba fazia meus 27 anos quase dobrarem aos olhos de quem entrava na condução. A pele oleosa e as unhas negras também contribuíam para que a vaga permanecesse desocupada até que o veículo lotasse. Em algumas viagens eu ainda notava as pessoas de pé e espremidas enquanto o lugar ainda permanecia vago. Eu me apertava ao máximo contra a janela a fim de deixar espaço suficiente para que sentassem ao meu lado sem que precisassem encostar-se ao meu estado de calamidade. Mas era em vão, pois o cheiro de suor ampliava o meu limite deplorável.

Eu sabia que aquela situação chata acontecia todos os dias, mas sabia também que minha falta de cuidados comigo mesmo era um reflexo externo de um descuido mais grave ainda, o interno. Tomado por um pessimismo ímpar somado à descrença total no que o mundo poderia me oferecer, eu era constantemente atingido em cheio por uma depressão que me fazia desprender de tudo que me desse o mínimo de trabalho para pensar ou escolher. Tomar banho? Eu já havia acostumado com o meu odor. Fazer a barba? Ela escondia a minha feiúra estipulada pelos padrões. Lavar a roupa? Tudo bem, mas por uma questão de conservação daquilo que me custa dinheiro e mesmo assim eu podia usar uma mesma calça por semanas sem ver a água.

Sentia que na verdade faltava algo na minha vida que me fizesse realmente enxergar coisas boas ao meu redor. Algo que me estimulasse. Mas como me estimular diante de um caos urbano que a rotina insiste em esconder? Eu não estava nem um pouco disposto a entrar na briga por posições sociais. Eu só queria o básico, o que já me custava sacrifícios enormes à minha visão de vida. Eu perdi as contas de quantas vezes fui jantar junto aos moradores da marquise da padaria em frente a minha casa. Como eu poderia estar feliz com aquela miserabilidade invadindo nossos lares cobertos até o teto de individualismos?

Numa sexta-feira, na viagem de volta para casa, uma mulher linda, bem vestida e aparentando uns 35 anos sentava-se ao meu lado ainda com vários lugares vagos dentro do ônibus. Aquilo me causou uma certa estranheza. Por que uma mulher como aquela sentaria do lado de um quase mendigo tendo ainda tantas melhores opções? Até no teto seria mais agradável que ao meu lado.
- Boa noite.
A mulher dizia.
- Boa noite, senhora.
- Senhora? Por favor, senhora não.
- Desculpe.
- Tudo bem.
O que a fazia puxar um assunto comigo?
- Pode fechar essa janela?
Ela perguntava.
- Posso, mas é que meu cheiro...
- É que estou um pouco gripada. Esse vento...
- Tudo bem.
Eu gostava de deixar a janela aberta para que meu odor incomodasse menos a viagem, mas eu fechava a pedido daquela mulher.
- Odeio ficar resfriada.
- Ah...
- Não é horrível?
- O quê?
- Ficar resfriado.
- Ah sim, é horrível.
Eu respondia sem graça e olhando para a rua.
- Você trabalha em estaleiro?
- Sim.
- Deve ser cansativo.
- Sim. É cansativo sim.
- Deve chegar em casa louco por um banho.
- Nem sempre.
- Como não? Não me digas que dormes assim.
Mas que mulher mais enjoada. Por que não me deixava ali em paz?
- Às vezes durmo.
- Às vezes dorme sujo assim?
- Não. Disse que às vezes durmo.
Ela se espantava.
- E como agüenta ficar sem dormir?
- É mais fácil que agüentar tudo isso. A vida, a rotina, as regras...
- Deve ser um homem muito forte.
- Se fala de força física, sim, sou forte.
- E de que outra força eu poderia estar falando?
- Da força de vontade!
Conversávamos um pouco sobre a vida e a mulher abria a boca perplexa com cada frase que eu soltava.
- Nossa. Você me parece culto, mesmo que assim tão descrente e pessimista.
- Impressão sua, moça.
- “Moça”. Melhorou. Quantos anos você tem?
- Meu ponto chegou. Até mais.
Preferia não responder.
- Tome aqui o meu cartão. Gostei de conversar com você. Ligue-me quando quiser.
- OK. Ligo sim.
Eu descia do ônibus com o cartão já no bolso do macacão. Nem sequer tinha olhado o nome daquela mulher.

Chegava em casa e me lembrava que teria o sábado de folga. Jogava com algumas outras peças o macacão na máquina de lavar roupas. Preparava o jantar ao som da máquina e de um disco do Jimi Hendrix que uma antiga namorada havia esquecido lá em casa. Aquele momento era um dos poucos que me faziam dar alguns sorrisos, ainda que pequenos. “O cartão!” Eu me lembrava do cartão que àquela altura já devia estar em picadinhos na máquina de lavar.

Interrompia então o processo de lavagem e tentava encontrar o cartão. Para minha sorte, ele ainda estava no bolso do macacão, porém, completamente ensopado. Eu seguia até a luz da sala para tentar entender o conteúdo daquele pequenino papel molhado. E conseguia. O número de seu telefone não mais era possível ler, mas o nome dela sim; Esperança.