quarta-feira, 21 de maio de 2008

BUSCA INCONSCIENTE PELA SOLIDÃO

Eu sabia que àquela hora da noite Rafaela não ligaria mais. Só um idiota feito eu para esperar tanto tempo debaixo daquele sereno. Eu não tinha telefone fixo nem celular naquele estágio trágico de minha vida. 29 anos, desempregado e com a última parcela do seguro desemprego nas mãos. Já não era grande coisa e eu ainda torrava de dois em dois reais por algumas horinhas no PC da papelaria da esquina. Lá, conhecia Rafaela numa dessas salas de bate-papo. Mas como eu iria fazer para manter contato com uma menina sem sequer um telefone. Tive que apelar para o aparelho público que ficava na parede de frente ao sobrado onde eu morava.

Quando aquilo tocava, eu ouvia lá do meu quarto. Corria. Descia dois lances de escada, atravessava aquela rua de pouco movimento e chegava até o aparelho ofegante.
- A.... a.... alô.
- Lucas?
- Raf... Raf... Rafaela?
- Sim. Correndo?
- Sim. Estava no jardim. Fica longe da sala.
Mentia.

E a partir daquela mentira inicial, seguiam-se várias outras para que eu pudesse manter aquela voz doce de uma menina de 23 anos no meu ouvido. A realidade dela era totalmente diferente da minha, mas como eu já havia trabalhado para um bando de gente da classe social dela, me virava nas invenções. Carro, roupas, festas. Tudo que ela achava legal eu fingia também achar. Na verdade eu nem sabia o que realmente me fazia agir daquela forma. Acho que foi a foto que ela me enviou. De corpo inteiro. Linda. Morena. Cabelo negro liso até os seios. Olhos cor de amêndoa. Um sorriso capaz de enlouquecer qualquer pessoa. Se eu fosse mulher naquela hora eu virava sapatão com aquele sorriso.

Os papos foram tomando grandeza, e como eu era o único que morava próximo àquele telefone, ela nunca descobriu que não se tratava de um aparelho residencial. Fui levando a mentira sem nem mesmo saber até quando conseguiria manter tal situação. Como marcaria um encontro? Com esse par de sapatos filho único? Morando atrás dessa parede mofada? Jamais. Mas aquela foto me fazia encarnar um personagem onde apenas o meu nome era verdadeiro. Ali, naqueles telefonemas, eu era filho de um desembargador. Dono de três carros. Casa na região oceânica para passar um possível verão ao lado dela.

Até que um dia:
- Lucas.
- Oi.
- Quando iremos nos conhecer?
Gelei.
- Faz duas semanas que nos falamos todos os dias. Quero lhe ver pessoalmente. Você já me viu por foto. E eu? Como fico?
- Você vai me ver. Assim que eu puder. Ando tão enrolado.
- Enrolado com o que, Lucas? Você me disse que não trabalhava.
- E não trabalho mesmo, mas organizo as coisas aqui em casa. São muitos empregados.
- Sei.
- Mas não tem ninguém que faça isso?
Pensei: “Que idiota. Claro que deveria ter alguém que faria esse tipo de serviço”.
- É. Mas meu pai mandou a governanta embora. Foi isso.
- Sei.
- Está um frio aqui fora.
- Aí fora?
- Não está na sala?
Pensei: “Que idiota. Outro furo”.
- Estou na beira da piscina. Telefone sem fio. Está ventando aqui.
- Na piscina com esse vento? Enlouqueceu?
Nesse momento, uma moto passa pela rua com um enorme ronco.
- Lucas. Pelo número, não pode ser celular. E acredito que você não esteja com o telefone sem fio no meio da rua. Certo?
- Rafaela. Ligue-me amanhã? Meu pai acabou de chegar e preciso tratar coisas com ele.
- OK. Que horas?
- Às 20h, como sempre.
- Tudo bem.
Ela desligou o telefone com um ar de desconfiança. Essa desconfiança surgiu logo que ela veio com a idéia de querer me conhecer. Mas que merda.

Então, começava a pensar. Se a Rafaela não ia me aceitar depois de saber toda a verdade, por que insistir com aquilo? Mas aquela foto. Aquele sorriso. Se eu fosse mulher eu... Já disse isso.

No dia seguinte, lá estava eu. Naquele frio de julho, frente ao telefone da rua esperando o toque de Rafaela. Já passavam das 21h e nada. Perdi a conta de quantas vezes fui até ele e o tirei do gancho para saber se estava com defeito, mas o som de total funcionamento que ele me emitia ia lentamente acabando com as minhas esperanças de voltar a ouvir a voz de Rafaela.

23h. Eu sabia que estava fazendo papel de babaca ali agachado na calçada. Se ao menos eu tivesse pegado o número do telefone dela. Mas como eu ligaria? O valor de um cartão telefônico me faria uma enorme falta. Para falar poucos minutos? Nossos papos varavam a madrugada.

00h. Minhas mãos já estavam dormentes. Aquele vento frio era cortante. Começava a imaginar que ela poderia ter saído para alguma festa. Talvez até mesmo com um outro cara. Vai saber. E eu ali.

01h. Pegava no sono ali mesmo na calçada. Cheguei a sonhar que o telefone tocava e eu atendia. Sempre era ela nos sonhos. Mas na verdade estava apenas eu ali. A imagem do bico do meu sapato úmido do sereno não saía da minha cabeça. Sonhava com ele também. Eu estava encolhido e quase o beijava. Observava o quanto estavam gastos nas poucas vezes que acordava daquele sono.

07h. Acordava. O sol já dava sinal de um dia um pouco menos frio. O telefone não tocou durante toda a minha estadia naquela calçada. Estava ali há quase doze horas esperando pelo telefonema de Rafaela. Ela não ligou. Na certa desconfiou de toda a minha farsa e me mandou pastar. Aquele sorriso ficou paralisado pela foto. Antes ele se mexia conforme ela ia falando no meu ouvido, mas sem a voz de Rafaela tudo aquilo se acabou.

Olhei para o aparelho ali naquela parede. Tive vontade de quebrá-lo. Mas eu sabia que de nada iria adiantar. Ele não tinha culpa de eu ter me metido onde não era chamado e camuflado minha realidade fedorenta por causa de um sorriso que, vai saber, talvez nem dela é.

Pensando bem...


***
Foto da capa: Gabriel Andrade [meinframer.wordpress.com]

2 comentários:

Anônimo disse...

pensando bem...
achei seu conto ótimo!
lucas mentiroso! heheh.







beijocas.

Anônimo disse...

BAH! husahsuahsuasa

você conhece o Gabriel também? :p HUSAHSUAHSUAHSUA