segunda-feira, 29 de junho de 2009

O SOL DE ABAJUR III - Os Olhos de Bianca


Certo dia, eu estava assistindo TV com a minha mais nova companheira: a cadeira de rodas. Exatamente como naqueles últimos meses depois que saí do hospital, eu passava de canal em canal à procura de algo que me fizesse esquecer daquelas rodas; esquecer a ideia de que era agora metade homem metade rodas.

Cada ida ao banheiro ou à cozinha era um longo e dolorido trajeto – apesar dos meses, eu não conseguia me adaptar àquele novo jeito de me locomover –, porém, pelo caminho, eu tinha a oportunidade de passar o olho sobre o livro de minha amiga escritora, a Bianca Tavares, que ficava sobre a mesa da sala, abaixo do abajur. O simples ato de ler o nome daquela mulher me fazia sentir nos braços uma força enorme de continuar a luta; de continuar vivendo.

Bianca Tavares. Bianca. Esteve ao meu lado naquele momento difícil que foi saber de minha paralisia e, pelo menos uma vez por semana, visitava-me a fim de me animar.

A empresa de softwares na qual eu trabalhava me deu todo o apoio que precisei. Lógico que não mais pude cobrir a parte de vendas; fiquei apenas com a parte de criação – que eu passei a executar boa parte em casa mesmo.

Numa das visitas de Bianca, eu estava até bem atarefado.

- Estou atrapalhando? – perguntava-me Bianca à porta.
- Você nunca me atrapalha, Bianca! Entre, por favor!
- Como está, David?
- Indo...
- Indo não! Você está bem, David! É isso o que quero ouvir de você!
- Está bem... “Estou bem”, Bianca! Mas porque você está aqui!
- Bobo...
- É sério!
- Bem, estou aqui para lhe contar uma coisa!
- O quê?
- Meus livros serão traduzidos para alguns países! Não é o máximo?
- Que notícia maravilhosa, Bianca!
- Estou no céu, David – dizia-me Bianca com os braços abertos.

Bianca... é difícil descrever o que sentia na presença daquela mulher. Seus óculos de sol, sempre ao rosto, podiam esconder o olhar, mas todo o restante de sua figura fazia-a tão especial que por diversas vezes me esqueci dos olhos. Mas não nesse dia.

- Bianca! – eu interrompia aquele momento de felicidade púrpura.
- Diga!
- Tire os óculos, por favor!
- Por quê?
- Nunca vi seus olhos, menina! Nunca!
- Meus olhos são para que eu possa ver as coisas. Não precisam ver meus olhos.
- Mas por quê?

Senti que minha insistência a deixava um pouco desconfortável. Imaginei alguma cicatriz enorme sobre um dos olhos ou algo parecido.

- David – dizia Bianca a olhar para o chão –, você gosta das coisas que lhe digo?
- Claro! Dão-me forças!
- Gosta das coisas que escrevo?
- São lindas! Todas elas!
- Gosta dos abraços e dos beijos carinhosos que lhe dou?
- Como não? Adoro!
- Então, que diferença faz conhecer ou não os meus olhos?
- Não é essa a questão, Bianca, mas tudo bem... Você não quer mostrar os olhos, não mostre! Continuará tudo bem entre nós. Aliás...

Foi quando Bianca retirou os óculos.

- Deus! – eu dizia abismado.
- Estão aqui os meus olhos! Satisfeito?

O par de olhos mais lindo que já vi em toda minha existência. Eu escreveria aqui por décadas sem parar a fim de explicar tal experiência e, ainda assim, seria falho. Era como se a última peça daquele quebra-cabeça fosse finalmente encaixado. Os olhos!

- Bianca, que olhos são esses, menina?
- Os meus, David. Os meus.
- Sim, mas...
- Mas o quê?

Não lembro o tempo exato, mas fiquei ali por minutos, talvez, a admirar aqueles olhos. Quando:

- Eu vou indo – dizia Bianca com os óculos de volta ao rosto.
- Não!
- Eu preciso ir, David.
- E eu preciso que fique! Por favor!
- Preciso ir...

E foi.

Esperei o tempo dela chegar em casa e:

- Alô!
- Oi.
- Bianca?
- David?
- Sim, sou eu! Tudo bom?
- Sim! E você?
- Também!
- Diga!
- Preciso ver seus olhos novamente!
- Não espere por isso, David. Por favor!
- Mas por que não, Bianca? Eu... Eu estou apaixonado pelos seus olhos! Por você!

Bianca pausava. Pude escutar o pulsar de seu coração. O respirar de suas narinas.

- Eu vou lhe contar uma história, David. Mas prometa acreditar em mim!
- Sim, eu prometo!

Bianca respirava fundo e:

- Eu possuo um problema muito sério nos olhos. Eu não posso expô-los à luz em hipótese alguma. Desde de muito pequena isso me afeta, mas nenhum médico ainda foi capaz de me curar. Sendo assim, preciso usar esses óculos de sol, que, por mais que pareçam, não são normais; possuem lentes especiais etc. As poucas vezes que expus meus olhos às pessoas, a reação que tiveram foi exatamente como a sua: abismaram-se. Não é fácil possuir uma beleza num olhar que precisa ser escondido todo o tempo, entende? Por isso, peço que esqueça o que viu, por favor!

Fiz silêncio.

- Tudo bem?
- Sim. Eu acho que sim...

No dia seguinte, à noite, Bianca aparecia novamente lá em casa.

- Duas vezes na mesma semana! Vou começar a achar que possuo certa importância em sua vida, Bianca!
- E tem, seu bobo! Posso entrar?
- Claro!

Bianca tomou todas as atitudes. Fechou a porta, apagou as luzes, acendeu o abajur da sala e levou seu rosto bem perto do meu.

- É o que estou pensando, Bianca?
- O que você está pensando, David?
- Seus olhos, sua boca...
- Parece que finalmente me entende... Lê meus pensamentos...
- Mereço um beijo por isso, não?
- Sim... Mas antes, deixe-me tirar esses óculos.

Aqueles olhos, a luminosidade do ambiente, o hálito fresco de Bianca já a tomar os meus lábios... Um dos momentos mais felizes de minha vida.

Então, sob o calor de sentimentos mútuos e a luz do nosso sol de abajur, beijamos-nos ardentemente.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

1983 pt. final: Mês Doze

O meu namoro com Viviane corria às mil maravilhas. Já estávamos em dezembro e as aulas já haviam terminado. Encontrávamos-nos quase que todos os dias – era sinal de que o Sr. Daniel estava “entrando na minha”.

Certo dia, na praia com Viviane e a minha turma de sempre, sentado sob um guarda-sol, fiquei observando as ondas daquele imenso mar à minha frente. Comecei a pensar que, assim como elas, aqueles bons momentos de 1983 vinham, mas teriam o seu momento de ir. É como se eu tivesse a certeza de que as alegrias daquele ano não me acompanhariam em 84. Fiquei ali observando por horas.

- Bruno! – chamava-me Viviane.
- O que houve? Está tão compenetrado!
- É bom de vez em quando, não?
- Sim, mas você olha para o mar como se estivesse hipnotizado.
- E estava.
- Bobo.
- Viviane, você acredita nisso tudo?
- Nisso tudo o quê?
- Que a gente está vivendo. Você está feliz?
- Mais do que um dia imaginei estar, Bruno. E você?
- Também estou! Muito! Mas você acredita que não terá fim?
- Tudo tem um fim, Bruno, mas não precisamos pensar nele, não é?
- Você tem razão.
- Por que está se preocupando com isso, amor?
- Porque é forte, é gostoso, é bom demais ter você comigo. Não quero que acabe!
- Não pense nisso, Bruno. Vivamos o que temos em mãos! Apenas vivamos!
- Tem razão!

Eu beijava-a sempre como se fosse o nosso último beijo. As outras meninas chegavam a comentar que nossos beijos as causavam certa inveja. Os lábios molhados de Viviane por diversas vezes corria o meu pescoço. Eu não aguentava. Aquilo fazia de mim um ser fraco diante de meus desejos. A imagem do Sr. Daniel me ameaçando me vinha à mente sempre que Viviane me beijava daquela forma.

- Eu não sei se vou me controlar mais, Viviane – eu brincava.
- Como assim?
- Quando me beija o pescoço tenho vontade de...
- De?
- Esquece!
- Eu já sei o que ia dizer.
- Sabe nada!
- Sei! Fala de sexo! Não é?
- Não!
- Pode me falar, Bruno!
- Está bem! É isso! Sinto enorme tesão!
- Eu também sinto! – dizia-me sorrindo.

Essa frase, assim como seu semblante, nunca me saiu da cabeça. Acho que me lembro mais dessa frase que de meu primeiro beijo – que não foi com ela. Quando disse “eu também sinto”, ela brincava com uma mecha de seus longos cabelos. Sua boca, naquele momento, correu levemente para o lado, dando àquela fala todo o charme que ela precisava para quase me tirar o controle.

- Também sente? Eu devo estar sonhando!

Eu caía sorrindo de costas na areia.

- Gostou de saber, não é? – dizia-me Viviane também caindo ao meu lado.

Virei o rosto para o lado dela e notei que a parte superior de seu biquíni me prendia o olhar. Embora Viviane ainda não estivesse no auge de seu desenvolvimento corporal, aquele seu desenho me fascinava.

- Está olhando o quê, Bruno?
- Você!
- Mas o quê?
- Quer mesmo que eu diga?
- Se pergunto, sim! Diga!
- Seus olhos!
- Mentiroso! – Viviane sorria.
- É sério!

Naquele dia, nossa intimidade deu os seus primeiros passos.

* * *
No ônibus, voltando para nossas casas, Viviane e eu não entendíamos nada do que o restante da turma dizia. Soava tudo como uma conversa sem pé nem cabeça; uma bagunça. Não entendíamos porque estávamos ocupadíssimos em mais um de nossos beijos demorados. Viviane vinha no assento da janela e eu no do corredor. Àquela altura, eu a imprensava contra o vidro e, sem que percebêssemos, estávamos entrelaçados um no outro. Por diversas vezes minhas mãos tentaram correr por Viviane cintura acima, mas era reprimido por sua mão e um sorriso – que ela dava sem descolar sua boca da minha.

Em meio àquela situação efervescente, ouvi um barulho que rasgou o clima em pedaços. Era uma freada brusca de um automóvel. É tudo o que me lembro.

Quando acordei:

- Meu filho! Graças a Deus! Você acordou! – dizia minha mãe.
- O que foi que houve?
- Você estava em coma, meu filho! Mas já está tudo bem! Ô meu Deus!
- Mãe! Eu...
- Você sofreu um acidente, Bruno. Nem queira se lembrar, por favor!

Na mesma hora eu lembrava, estranhamente, não do rosto de Viviane, mas da boca.

- E Viviane?
- Ô meu filho...
- E Viviane, mãe? Responda!
- Depois, Bruno...
- Depois não! Agora!
- Acalme-se! Escute! Nem ela nem seus amigos sobreviveram, meu filho. Foi horrível...
- Mas...

Um caminhão enorme atingira nosso ônibus. Daquela tragédia somente eu saí vivo.

Eu começava a chorar.

- Onde está meu pai?
- Seu pai, Bruno, não aguentou o seu estado de coma e...
- Não!
- Ele sofria do coração, você sabe... – com água nos olhos – Ele faleceu um dia depois do acidente. Pensei que perderia vocês dois, meu filho...

Duas notícias ruins de uma só vez. Mas ainda havia uma terceira:

- Que dia é hoje, mãe?
- Hoje são sete de janeiro.
- 1984, então.
- Sim, meu filho.

Aquele ano de 1983 acabara-se sem que ao menos eu me despedisse Uma tragédia levara-me os meus melhores momentos. E pior: levara também os responsáveis por todas aquelas minhas alegrias. Foi como se aquele ano não quisesse mesmo que tudo aquilo pertencesse ao próximo que viria; tratou de encerrar tudo em meados de seu décimo segundo mês. Lembrei daquelas ondas do mar.

Papai, Viviane, Diogo, Vagner, Hélio, Guto, Gabriela, Daniel, Júlia, Ana Lúcia e Duda. Todos mortos e, já diante de minha ciência dos fatos, enterrados. O ano de 1983 não me dera nem a tristeza de ver o estado deplorável em que ficaram os corpos de meus amigos. Deixou a parte pior para 84, que foi saber disso tudo. Por isso, repito: 1983 fora, ainda assim, o melhor ano de minha vida. Nele eu percorri os extremos. Conheci o amor, a vida e a morte.

De lá para cá, vivo. Sem esperar pelo fim, sem me prender aos momentos. Como Viviane um dia me recomendou, apenas vivo.

[Fim]

* * *
Nota do Autor: A composição deste último capítulo se mostrou, além de inédita, muito esquisita. É que, esta noite, eu sonhei – bem, eu acho que foi um sonho – com a personagem Viviane tal como a descrevi. Ela sentou-se à beira de minha cama e me contou, com riqueza de detalhes, todo esse último capítulo.

Vale aqui ressaltar a certeza quase mórbida de alguns leitores ao comentar “ela morre”, na parte 2 desse conto. Notei que alguns esperavam alguma tragédia... Por mais previsível que possa ter parecido o fato de Viviane morrer ao final deste conto, espero que entendam que diante de um “sonho” dessa espécie...

Espero eu não ter escrito, mesmo que sem querer, uma história real.

Acho que preciso de férias...

segunda-feira, 22 de junho de 2009

1983 pt.2: O Pedido

Diante daquele primeiro beijo em Viviane, em plena arquibancada da escola, não restava nada a mim e a ela a não ser declararmos a nossa imensa e recíproca vontade de iniciarmos uma história juntos.

- Como esperei por isso, Viviane!
- Eu também, Bruno!
- Falo do nosso beijo!
- Sim, também estou falando do beijo!
- E quanto à vitória de Diogo no concurso de dança?
- Também, claro! Mas esse beijo... Quero outro!

Eu a beijava!

Dali por diante, os encontros na casa de Diogo tiveram um interesse a mais; era lá que namorávamos. Mas mãe de Diogo sempre nos dizia para contarmos aos nossos pais e:

- Seus pais sabem que vocês estão namorando?
- Ainda não, D. Odete, mas em breve saberão – eu dizia.
- Não gosto disso, Bruno. Estão se encontrando na minha casa. Sinto-me responsável por vocês. Prometam que, HOJE, comunicarão aos pais de vocês!

Viviane e eu nos olhávamos e:

- Sim! Prometemos! – dizíamos.
- OK!

Ao sairmos da casa de Diogo naquele dia, logo na primeira calçada que nos testemunhara, disse à Viviane que não achava uma boa ideia contarmos aos pais dela, principalmente. Eu lembrava da última vez que os vira. Eram conservadores ao extremo. Não queria passar pela prova de fogo que seria agradá-los, ou, até mesmo, convencê-los de que estávamos namorando diante das melhores das minhas intenções.

- Meus pais não são esses “monstros” também – dizia-me Viviane.
- Eu sei, mas... Tenho medo de que eles nos proíbam de namorarmos...
- Bem, você de fato é o meu primeiro namorado e...
- Pois é...
- Mas eu já tenho quinze anos, Bruno! Eles têm que aceitar a situação!
- Sim, concordo.
- Então! Hoje mesmo, falarei com eles!
- Falarei com os meus pais também, Viviane.
- Faça isso!

Despedíamos-nos e, durante o trajeto, concluí que Viviane tinha mais gana em “oficializar” esse nosso namorico que eu mesmo.

À noite, em casa, cheguei até meus pais.

- Pai, mãe... Lembram da Viviane?
- Não – dizia secamente meu pai.
- Você é capaz de não lembrar, pai, mas minha mãe se lembrará. Ela esteve aqui há um tempo atrás para fazermos um trabalho da escola, lembra, mãe?
- Ah sim – respondia minha mãe –, o que tem ela?
- Então, Viviane e eu estamos namorando.
- Que bonitinho! Meu filho está namorando! – dizia minha mãe.
- Quero conhecê-la, pode ser? – dizia meu pai.
- Claro. Assim que der eu a trago aqui. Quer dizer, se os pais dela concordarem com nosso namoro.
- Ah, vão sim! Você vai ver! – dizia minha mãe confiante.
- Assim espero – eu respondia.
- Ela é bonita? – perguntava meu pai.

Bonita? Viviane era a menina mais linda da minha classe! Ela tinha os cabelos negros e ondulados até a altura do meio das costas. Eu gostava quando ela prendia aqueles fios num imenso rabo-de-cavalo! A pele era nem branca nem morena demais. Nem sei explicar aquela cor. Mas se havia algo que me fascinava na Viviane eram suas curvas. Claro que, hoje, quarentão, lembro dela com um corpo ainda muito infantil até, mas, para um garoto de quinze anos, aquilo era lindo demais! E os olhos? Castanhos claros, mas tão claros que eu seria capaz de enxergar neles a minha feição de adolescente bobo.

- Pai, ela é linda!
- Meu garoto.
- Carlos! – reprimia-o minha mãe.

* * *
No dia seguinte, Viviane e eu nos encontrávamos na escola.

- Como foi com seus pais? – ela perguntava.
- Tudo bem. E com os seus?
- Mais ou menos. Eles querem falar com você, Bruno.
- Eu sabia!
- Calma! Eles parecem ter aceitado numa boa. Só que querem falar com você.
- Quando?
- Hoje! Disseram que não devo beijá-lo até que fale com eles.
- Nossa...

Eu seria capaz de enfrentar o capeta para voltar a beijar aquela boquinha.

- E então? – Viviane perguntava.
- OK! Estarei lá esta noite!
- Fofo!

* * *
Naquela noite, lá estava eu diante dos pais de Viviane.

- Diga-me, garoto, o que lhe traz aqui? – perguntava o pai de Viviane.
- Bem, como vocês já devem saber, Viviane e eu nos gostamos muito e...
- Sim, mas pulando esse clichê, quais as suas intenções com ela? – interrompia-me o pai de Viviane.
- As melhores possíveis, Sr. Daniel.
- OK! Você pode namorar a minha filha.

Eu estranhei. Assim tão fácil?

Foi quando o Sr. Daniel me chamou até o seu escritório.

- Bruno, não é? – perguntava-me.
- Sim. Bruno.
- Bruno, eu vou lhe dizer uma coisa de homem para homem, pode ser?
- Claro.
- Pode parecer tudo bem para mim o que está acontecendo entre você e a Viviane, mas fique sabendo que se eu souber de algum “avanço” de sua parte, caço-o até o inferno! Entendido?
- Sim, claro que sim, Sr. Daniel.
- OK!

Foi a partir daí que, diante de um ódio mortal ao Sr. Daniel, eu resolvi que faria de Viviane a menina mais feliz do mundo. E fiz! A felicidade dela contagiou os seus pais a ponto do Sr. Daniel, certo dia me dizer:

- O que está fazendo com minha filha, rapaz?
- Como assim? – eu perguntava.
- Ela anda muito “feliz” para o meu gosto!
- Isso, Sr. Daniel, é apenas o efeito de minhas intenções!
- ...

Os minutos de silêncio do pai de Viviane me diziam que eu ia bem.

[Continua]

quinta-feira, 18 de junho de 2009

1983 pt.1: A Dança

Considero o ano de 1983 o melhor da minha vida. No auge de meus quinze anos, estudante da oitava série, eu percorria os corredores da escola a desejar aquelas boquinhas borradas de batom barato, tinha uma boa atuação no time de futebol e, modéstia à parte, eu era um jovem muito bonito. Eu era também o típico garoto esperto: odiava a escola, mas estudava o suficiente para nunca ser reprovado. Repetir qualquer um daqueles anos de estudos fajutos seria a morte!

Uma das coisas mais bacanas no ano de 1983 foi – além de Viviane, minha primeira namorada –, a amizade que boa parte de minha classe manteve com Diogo, um aluno portador de síndrome de down.

Quando Diogo chegou à classe, no início de maio, se não me engano, eu pensava a escola não estar preparada para a presença dele e vice versa, confesso. Mas, depois que o conheci melhor, vi que não passava de uma ideia idiota. Diogo era inteligentíssimo!

Logo na segunda semana na escola, Diogo levou a mim e minha “turminha”, ou seja, Vagner, Hélio, Guto, Viviane, Gabriela, Daniel, Júlia, Ana Lúcia e Duda, para uma tarde na casa dele. A mãe de Diogo, D. Odete, nos recebeu muito bem. Sorridente, ela nos esperava com uma farta mesa de lanche. Eu sentia que todo aquele carinho que depositávamos no Diogo parecia inédito para aquela família. Cheguei a flagrar uma lágrima no rosto de D. Odete, certa vez.

Numa dessas “tardes na casa de Diogo”, conversávamos espalhados naquela imensa varanda quando:

- Galera – dizia Gabriela –, sabia que vai ter um concurso de dança lá na escola?
- É mesmo? E você vai participar? – dizia D. Odete lá da cozinha.
- Não, mas estava pensando se o Diogo não participaria!
- O Diogo? Não sei se ele leva muito jeito para dança, minha filha.
- Eu sei dançar, mamãe – dizia Diogo.
- Sabe, meu filho? Então dança para a gente ver, pode ser?
- Está bem!

Diogo ia até seu quarto, pegava um rádio portátil e uma fita cassete de uma daquelas bandas de rock que faziam sucesso na época. A galera se animou em ver tal atitude. Logo nos acomodamos melhor naquelas cadeiras de palha para ver o que nosso amigo tinha para nos mostrar.

E lá vinha Diogo. Colocava o cassete no ponto e apertava o play. Na mesma hora, Diogo se transformava. Parecendo deixar de lado qualquer ideia de dança armazenada em sua mente, Diogo executava, como que numa complexa jam session de Jazz, passos que, além de divertidíssimos, não pareciam nada fáceis de se copiar.

- Diogo, meu filho! Mas que dança é essa? – perguntava D. Odete sorrindo.
- É a MINHA dança, mamãe!

Todos nós ficamos boquiabertos e inexplicavelmente com a mesma ideia na cabeça:

- O Diogo tem que participar desse concurso, D. Odete! – dizia Gabriela e Viviane em uníssono.
- Vocês acham mesmo? Você quer, Diogo? – perguntava D. Odete.
- Quero sim, mamãe! – respondia um sorridente e ofegante Diogo ainda a dançar.

No dia seguinte, inscrevemos Diogo no concurso e, naquela mesma tarde, começávamos a organizar uma verdadeira torcida organizada. Nós os meninos pintamos cartazes com o nome dele. As meninas se focaram no figurino de Diogo e nas músicas com as quais ele se apresentaria.

Certa noite, depois de muito trabalho com os cartazes etc, D. Odete chegou até a mim:

- Bruno!
- Oi, D. Odete!
- Preciso lhe dizer uma coisa.
- Diga.
- O que estão fazendo pelo meu filho é inacreditável! Nunca o vi cercado de tantos amigos e...
- Ele vai arrasar, D. Odete!
- Ora, Bruno, eu não sei se ele ganha esse concurso, mas estou imensamente feliz pelo fato de ele estar se interessando por alguma atividade e...
- Não subestime seu filho, D. Odete! Ele pode não entender nada de dança, mas será o dançarino mais original e espontâneo desse concurso!
- Isso com certeza – ela sorria ao ver Diogo ensaiando com as meninas.

* * *
Diogo fez ao todo três apresentações até a grande final e, por incrível que possa parecer, sempre se classificando em primeiro lugar. Os jurados ficavam boquiabertos com a mistura de nonsense e feeling em seus movimentos – que a cada apresentação se davam de forma completamente diferente.

Na grande final, a arquibancada do ginásio da escola já era praticamente 90% Diogo e 10% Felipe França, um garoto que dançava muito bem; praticamente um profissional. Diogo dançou de forma inédita, como sempre. Felipe, muito disciplinado e concentrado, executou movimentos firmes e impecáveis.

No fim, os jurados deram o (muito merecido) primeiro prêmio a Felipe, ficando Diogo com um importantíssimo segundo lugar.

Na entrega dos troféus, Diogo foi nitidamente o mais aplaudido de todos os três ali premiados. E quando chegou a sua vez de falar ao microfone:

- Mamãe! Eu não disse que eu sabia dançar?

- Eu sei, meu filho! Eu te amo! Muito!

Todos nós nos abraçamos. Estávamos muito felizes. Até o meu primeiro beijo em Viviane se deu por conta de toda aquela emoção. Que época feliz!

[Continua]

segunda-feira, 15 de junho de 2009

MELISSA - O Interesse Leva à Pergunta

Já passou das cinco da tarde e a Professora Elaine não libera esse bando de estudantes de inglês da qual eu faço parte. Quando entrei nessa droga de curso, fui esclarecido de que as aulas seriam das duas às cinco da tarde, e não cinco e quinze.

A minha preocupação nem é com os quinze minutos a mais que a professora me faz perder aqui nessa sala, mas com a sala ao lado, em que o Professor Marcos é extraordinariamente pontual. Minha preocupação também não é com a pontualidade do Marcos, mas com a Melissa, a menina mais linda de todo o prédio do curso, que por sua vez, estuda na sala do Professor Marcos.

O problema é o seguinte: Melissa desce uns dois pontos de ônibus antes do meu. Sempre que consigo, ou seja, que a minha professora coopera, consigo tomar a mesma condução que Melissa. Sento-me atrás dela e sigo minha viagem de uma hora e vinte minutos sentindo o perfume de seus cabelos negros e curtos, picotados na altura do pescoço, deixando à mostra uma singela tatuagem de uma estrela com a letra “P” no centro, bem no meio da nuca. Sigo pensando que aquele “P” poderia ser de Paulo, meu nome. Ela sabe quem eu sou, de vista, mas dificilmente saberia o meu nome. Nunca nos falamos. O nome dela eu sei porque todos os meninos do curso sabem, logicamente.

Todas as segundas, quartas e sextas, eu faço essa viagem na esperança de surgir, sei lá de onde, uma coragem para puxar um assunto com Melissa. Mas acho que seu perfume me deixa em outra dimensão durante o trajeto. Então me perco em tentativas que mal saem da garganta.

Seria uma boa idéia se eu perguntasse o significado daquela tatuagem. Ela não deixaria de responder. Afinal, para que mostrar uma tatuagem se aquilo não desperta a curiosidade ou interesse de outras pessoas? Ela a mostra para que a vejam; quem a vê acha interessante e quem se interessa pergunta! Isso! Isso que farei! Até porque essa tatuagem apareceu de umas duas semanas para cá, será uma boa forma de conhecê-la.

- Turma, bom fim de semana. Vão com Deus e estudem para a prova de segunda! – disse a “frase da liberdade”, a Professora Elaine.

Saio correndo entre os colegas sem ao menos lhes desejar um bom fim de semana. É que eu estava mais interessado no meu fim de semana. O que acontecer no ônibus hoje pode mudar tudo! Quem sabe um sábado de papo no portão da casa dela? Uma tarde de estudos no domingo, já que o Marcos também aplicará prova para a turma dela na segunda. Mas preciso correr, se não a perco de vista e ela tomará o ônibus antes que eu chegue ao ponto.

* * *
Consegui! Ela ainda está ali e o ônibus já aponta no horizonte. Tomamos a condução. Ela senta e eu sento atrás, como sempre. Respiro fundo e antes de fazer a pergunta sobre o significado de sua tatuagem, imagino milhões de possíveis respostas: “Não é da sua conta”. “É uma estrela e um P, só isso”. “É P de prostituta. Sou uma prostituta, você não sabia?” “Não é um P, é um D minúsculo de cabeça para baixo, garoto”.

Não, não. As respostas que imaginei são horríveis. Melhor não perguntar. (Pausa) Quer saber? Dane-se. Vou perguntar.

- Melissa!
- Oi – respondeu ao chamado e virou para trás num sorriso que me cativou de vez.
- Essa tatuagem que você tem na nuca. O que significa?

Perguntei e abaixei a cabeça esperando umas das respostas imaginadas segundos antes.

- Para começar, Paulo, por que você não se senta do meu lado? Fica melhor para conversarmos, não acha?
- Acho! Mas como sabe meu nome? – pergunto eu, totalmente abobalhado e feliz.
- Da mesma forma que você sabe o meu. Quem se interessa pergunta, ora.

Sento ao seu lado com as pernas em total dormência e aguardo a explicação da tatuagem, que a essa altura nem me interessa tanto, mas ela começa:

- Eu noto que você sai correndo pela rua para tomar o mesmo ônibus que eu. Noto que, de vez em quando, quase cola seu rosto na minha nuca. É o perfume, não é?
- É! – respondo sentindo imensa vergonha. Que pateta. O “P” deve ser de pateta.
- Pois é. Eu sempre o espero uns quinze minutos para que você consiga chegar até o ponto, sempre sento num banco com duas vagas para que se sente ao meu lado e tudo o que você faz em todos esses meses é sentar-se no banco de trás e sentir o meu perfume durante o trajeto. Então tive a idéia de fazer essa tatuagem de henna na altura de seus olhos para que o que está acontecendo agora enfim acontecesse. E vejo que funcionou. O “P” é de “pergunte”.

Sigo novamente minha viagem de uma hora de vinte minutos, só que desta vez, além do perfume, tenho o som da voz de Melissa e uma promessa de futuros grandes momentos.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

Conto publicado originalmente em 01 de novembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

MÓVEL pt.final

André passou então a perambular pela cidade à procura de alimentos ou soluções para seus desejos agora já tão fora de controle. Temeroso de encontrar pessoas móveis como ele, seus olhos mexiam rapidamente e sem parar.

Por várias vezes, André subia ao topo do prédio mais alto daquela cidade. Lá, passava horas a olhar aquele misto de paralisação e mobilidade mórbida em que se encontrava o Centro. Muitos incêndios e uma desordem que transformava tudo aquilo num grande mosaico de destruição.

Os dias foram passando e André notava que os corpos paralisados passavam agora a cheirar mal.

- Mortos... – disse André a si mesmo.

E acertou! Os órgãos daquelas pessoas também haviam paralisado, por que não?

- Eu transei com gente morta! Merda!

André corria pela rua e gritava como se todos pudessem ouvi-lo.

- MORTOS! MORTOS!

Numa dessas corridas, André reencontra Yolanda, já desfigurada de tanto perambular atrás de soluções, porém com um semblante menos preocupado.

- Mas você? De novo? – perguntava André!
- Seu louco! Acha que não escuto seus berros por aí?
- Não sou louco!
- Ah, não? Olhe para você, André! Não sabe mais o que fazer! Somente agora sua mente egoísta pode notar que todos estão mortos!
- Não me faça lembrar disso, sua velha! Acha que é fácil saber que transei com gente morta?
- Para gente como você, André? Isso deve ser apenas um detalhe. Mas...
- Ora, sua...

André avançava em Yolanda como um animal feroz. Agarrado no pescoço da senhora, ele tentava estrangula-la.

- MORRA! MORRA! – gritava ele.
- Seu.... Seu.... Animal!

Com muita dificuldade, Yolanda acerta uma joelhada entre as pernas de André. Na mesma hora, ela pega um caco de vidro do chão e ataca o rapaz!

- MORRA VOCÊ, SEU LOUCO!

Yolanda tenta cravar o cortante na garganta de André, mas é acertada por um chute na altura dos seios, que a faz gritar e chorar de forma terrível.

- AAAAAAI, SEU MISERÁVEL!

André se levanta e, já sem controle de si, decide:

- EU VOU TE MATAR, SUA VELHA DESGRAÇADA!

Quando André levantava sua perna direita a fim de pisar de forma violenta sobre a cabeça de Yolanda, ele ouve uma voz:

- PARE!
- Ah? – assusta-se André.
- Aqui!
- Onde?

Eis que surge do alto de um ônibus um homem. Ele era alto, usava uma jaqueta de couro, uma calça jeans e sandálias.

- Quem é você? – pergunta André.
- Alguém como você! Móvel! Temos muito trabalho pela frente, rapaz. Não gaste suas forças matando essa mulher.
- Do que você está falando?
- Estou falando da vida!

O homem chegava mais próximo de André.

- Seu nome é André.
- Como sabe?
- Não quer saber o meu nome?
- Qual é?
- Jesus!
- O quê? Jesus? Jesus Cristo?
- Está assustado, André?
- Não me venha com essa!
- Ora, não vê? Tudo isso que está acontecendo! Acha ser obra de quem? Foi meu Pai quem ordenou tudo isso!
- Era só o que me faltava. Um homem se passando pelo Salvador! Onde está a barba? E aquelas roupas que deveria usar?
- Não seja ingênuo, André! Estamos no século XXI, não?

Outras seis pessoas apareciam por trás do mesmo ônibus de onde saiu aquele homem. Duas mulheres, uma menina de apenas três anos, e três homens.

- Não pode estar falando sério – dizia André – Meu Deus, o que está acontecendo? – perguntava-se.
- Siga-me e saberá. Peçam desculpas um ao outro e venham os dois.
- Sim, Senhor! – dizia Yolanda.
- Se é realmente Jesus Cristo, o Salvador, acredito que este seja o fim do mundo e nós, os móveis, os salvos, não é? – perguntava André.
- Sim. Exatamente – respondia Jesus.
- E por que eu fui salvo, se nem à igreja eu ia?
- Não precisa me dizer sobre seus atos, André. Meu Pai sabe de tudo, inclusive das besteiras que você andou fazendo nos últimos dias.
- Então? E mesmo assim sou um dos salvos?
- Acreditas que podes ser um deles?
- Eu...
- Acreditas?
- Sim.
- Já é um bom começo. Siga-me e entenderá que durante anos e anos interpretaram muito erroneamente as palavras de meu Pai. Inclusive sobre o próprio fim e a minha vinda.
- E quantos mais estão salvos, Jesus?
- Não faço ideia. Mas eles nos encontrarão. Agora, livres de tudo o que vocês mesmos criaram, poderemos começar de novo. E da maneira certa dessa vez.

André ajudava a levantar Yolanda. Todos de pé, seguiam, Jesus à frente e o restante atrás.

[Fim]

* * *
Foto da Capa:
Renato Tavares.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

MÓVEL pt.4

André saía das Casas Bahia com fome. As lanchonetes seriam uma boa opção para o rapaz, se quase tudo que estivesse sob aqueles balcões não estivesse estragado ou “borrachudo”. Avistou uma mulher paralisada a mexer em sua carteira. A mulher pegava em notas de cem e de cinquenta reais. A princípio, André pensou em se apossar de tal quantia, porém, lembrou-se que diante daquela situação, aquilo não passava de um monte de papel.

Foi quando André escutou, vinda do meio da rua principal, uma voz que o chamava:

- Senhor! Ei, você!

Depois de muitas horas sem ouvir som de um ser semelhante a ti, André estranha.

- Eu ouvi alguém me chamar? – perguntava-se André.

Em meio a tantas “estátuas”, André não teve muita dificuldade em avistar aquele corpo móvel a atravessar a rua.

- Aqui! Sou eu!

Era uma senhora, aparentando seus cinquenta e poucos anos. Ela corria na direção de André.

- Nossa! Ela também se move!

Chegando bem perto dele:

- O que está acontecendo? – perguntava aquela senhora.
- Eu não sei, senhora! Desde o meio-dia de ontem, se não me engano, que tudo parou. Ou melhor: nem tudo. Achei que somente eu estivesse móvel, mas vejo que você também teve sorte.
- Sorte? Você chama isso de sorte? Não temos transporte, prédios estão pegando fogo, as ruas estão cheias de carros batidos e de pessoas atropeladas! Presenciar isso tudo é sorte para você?
- Bem, eu...
- O que você fez de ontem para hoje?
- Bem, eu...
- Eu não consegui sair do Centro, senhor. Estou a quase vinte e quatro horas andando sem parar à procura de alguém móvel!
- Acalme-se, senhora! Deve haver mais pessoas móveis por aqui.
- Mas o que isso adiantaria, meu Deus?
- Então por que procurava?
- Pensei que pudesse me explicar o porquê disso tudo!
- Eu? Ora, eu sou apenas um montador de móveis das Casas Bahia. Como saberia explicar essa loucura?
- Não sei...
- Espere, senhora. Você pode me dizer se, antes da paralisação ocorrer, você sentiu algo estranho.
- Lembro de uma tonteira, apenas. Por quê?
- Foi o mesmo que eu senti.
- Estranho.

André a tratou bem, mas, por dentro, lamentava-se profundamente ao saber que não estava completamente sozinho por ali. Já pensava em abrir uma daquelas geladeiras horizontais do bar do Dedo Torto e beber todas as cervejas ali estocadas. Mas aquela senhora parecia muito mais preocupada com aquela situação, o que o deixava sem graça de tomar tal atitude tão supérflua.

- Qual o seu nome, senhor?
- André. E o da senhora?
- Yolanda.
- OK. E então? O que você vai fazer?
- Juntar-me a ti, ora? Podemos nos virar melhor estando juntos.
- Eu não acho, D. Yolanda.
- Por que não?
- Preciso fazer umas coisas, sabe? Por exemplo, eu já fui à prefeitura e dei um soco na cara do prefeito.
- Ah?!
- Sim! E outra: grampeei a mão de meu chefe, ou melhor: ex-chefe, no seu próprio pênis.
- Cristo!
- Não é o máximo? É a hora de nos vingarmos de todos esses canalhas...
- Mas você não tinha coisa mais interessante para fazer, seu louco?
- Ter eu tinha, mas eu já havia feito pela madrugada! Levei duas mulheres para casa e...
- Chega! Você é um maluco, rapaz! Acho que não é mesmo uma boa ideia ficar próximo a você, sabe?
- Eu também acho! Eu preciso confessar que as móveis ainda são mais divertidas, se é que você me entende!
- Louco!

A senhora ia embora, sem rumo.

- Consegui! – dizia André a si mesmo.

A ideia de estar solitário num lugar onde tudo era “permitido” tomara a cabeça de André. Onde, naquela situação já tão assustadora, André sentiria falta de uma pessoa móvel como ele?

Um medo se instalara em André: se D. Yolanda estava móvel, mais pessoas deveriam estar também. Não sabia o porquê, mas a frase “dominar o mundo” não saía de sua mente desde a noite anterior. Mas naquele momento, diante da constatação da mobilidade de D. Yolanda, a frase parecia ter mais sentido. Ou melhor: menos.

Com sua imagem refletida na vitrine das Casas Bahia, André pôde notar uma cor diferente em seu olhar. Embora André ainda não percebesse por completo, ele não era mais o mesmo. Desprendia-se do pouco de sua educação, ética e moral. Era um animal à procura de presas. Usaria o pouco que lhe restara de sua racionalidade apenas para decidir onde seria, no meio daquele caos, os locais exatos para saciar suas necessidades. O mundo dava, de maneira esquisita, uma pausa na produção de soluções. Agora, muito contrário a antes, sua mobilidade é o seu principal problema.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

MÓVEL pt.3

André acordava pela manhã e logo tomava um susto. Estranhava a presença daquelas duas estátuas em sua cama. Beatriz, com quem ele transara durante a madrugada, em posição de sentada, estava de lado. A outra mulher, a qual ele se quer tocara, também em posição de sentada, permanecia ao chão – caíra durante as ações covardes de André madrugada adentro.

André se vestia enquanto questionava-se quanto ao cheiro de fumaça que lhe tomava as narinas.

- Lembrei. Merda de incêndio!

Foi então até o lado de fora a fim de situar-se em meio àquela loucura que já atravessava o dia. Constatou que a casa que pegava fogo na noite anterior encontrava-se agora completamente destruída. Mais à frente, outra casa vizinha ainda estava em chamas.

Entrou novamente e, por hábito, ligou a TV. A âncora do telejornal permanecia na mesma posição de quando tudo aquilo começou. Trocou os canais e chegou a dar uma risada ao concluir que todas as emissoras paralisaram. Algumas delas, como a do telejornal, exibiam cena monótona de seus âncoras ou repórteres. Porém, outras conseguiam ser mais “cômicas” para André, como a que transmitia, no momento, um chefe de cozinha a preparar uma receita. No instante em que a câmera focalizava-o abrindo o forno – a fim de verificar o prato – a paralisação os atingia. André ria do rosto do chefe que, diante do calor do forno aberto por muito tempo, assara.

Depois de correr pelos canais televisivos e soltar algumas mórbidas gargalhadas, André resolvia ir até o Centro da cidade. Mais precisamente à loja onde trabalhava. Seguia a pé, já que de automóvel seria praticamente impossível.

Pelo caminho, avistou operários que pintavam a fachada de um enorme edifício. Eles – ou o que restou deles – estavam agora sobre a rua, calçada e alguns carros. Era carne para todos os lados. Paralisados, provavelmente perderam o equilíbrio. Um hidrante, que fora atingido por um ônibus, jorrava água para o alto. A ideia de uma chuva artificial fez com que André se molhasse por alguns instantes. Enquanto as gotas tocavam seu rosto, dizia:

- Liberdade! Liberdade! Eu posso tudo! Eu posso ter e fazer tudo o que quiser!

A partir daquele instante, André dava início a uma sucessão de ações que há muito lhe tomavam o peito.

Primeiramente, dirigiu-se até a prefeitura de sua cidade. Subiu as escadas até o último andar – o gabinete do prefeito. Por sorte, o encontrou por lá. Sentado em sua mesa, recebia sorridente um café de sua secretária.

- Você está aí, não é? – dizia André à “estátua” do prefeito.

André chegou até a secretária e:

- Até que você é bonitinha! Deixe-me ver uma coisa.

André sobe-lhe a saia, mas não gosta do que vê.

- Quanta celulite! Só o prefeito mesmo!

Empurrava então a secretária, que caía ao chão abrindo um rasgo em sua testa por conta da bandeja do café.

- Saia daqui, sua vagabunda. O papo aqui é entre eu e o prefeito!

O sangue da secretária tomava lentamente o carpete do gabinete.

- Querido prefeito, eu queria lhe dizer umas coisinhas! – André acertava um soco no queixo do prefeito, que sangrava na hora – Você tem noção que como anda a nossa cidade? Não! Claro que não! Está aí feito uma estátua sorridente a olhar para essa bunda horrorosa que a sua secretária tem, não é mesmo? Pois bem, sei que não é o único culpado por eu ter que trabalhar durante dez horas diárias e ganhar o correspondente à minha fome! Fome de comida, sim, mas fome de prazeres! Eu não tenho prazer algum, prefeito! O prazer inocente que eu tinha de ver feliz a cara dos que, por mim, tinham seus móveis montados se foi faz tempo! Eu odeio esta merda de vida a qual sou condicionado a viver! Acho que me enganei, prefeito! Eu disse vida? Não! Eu não tenho vida! Olha para isso aqui, prefeito! – André ia até o armário do gabinete, onde se encontravam diversas garrafas de whisky e vinho – Com o dinheiro de quem, hein? Diga! Diga! Você é a minha vergonha, prefeito! Você, sua secretária e todos que aqui trabalham! Deus me deu esse dia, prefeito! Eu já entendi tudo! Esse dia é meu! É o dia que tenho para fazer tudo o que eu queria fazer! Sem todas essas merdas de olhares tortos que, por conta de meu macacão, insistem em me mirar! Agora eu vou indo! Preciso achar o outro culpado!

André descia as escadas da prefeitura e ia direto ao seu destino anteriormente pensado: as Casas Bahia.

Chegando lá, primeiramente foi até o depósito, onde seus amigos ainda se encontravam na mesma posição do almoço. A diferença era que a comida em suas mãos agora exalava um terrível odor de azedo.

André seguia então até a sala do gerente geral da loja. Precisou arrombar a porta. Encontrava-o com o telefone ao ouvido, porém, ao invés de um semblante preocupado de um gerente atarefado, uma cara de gozo profundo. Com o pênis à mão, aquele profissional exemplar – tantas vezes citado como molde das Casas Bahia – masturbava-se como um tarado ao som da voz de alguém.

- Eu não posso acreditar! Mas que tremendo filho da puta! Enquanto nós montamos móveis como escravos, ele fica se... Que deprimente!

André alcançou um enorme grampeador, que estava numa das estantes da sala, e dirigiu-se até o órgão sexual daquele gerente.

- Vai ficar preso a ele, gerente! Você não gosta tanto?

André grampeava-lhe a pele da mão à do pênis. Um sangue começou a escorrer sobre as calças. André ria.

[Continua]

* * *
Foto da Capa: Renato Tavares.