quarta-feira, 16 de abril de 2008

2030 - A FELICIDADE DIANTE DO SISTEMA

Molhado da chuva fina que caía sobre a cidade e carregando com seu jeito desastrado quatro sacolas de supermercado com pequenas pendências de fim de mês, Alex estampava o semblante com um sorriso contrastante aos demais rostos derrotados que completavam o cenário naquela condução. Estava satisfeito pelo dia produtivo que tivera e por ter lembrado de comprar o rolo de papel toalha que Cíntia, sua esposa, lhe pedira havia dois dias.

Os olhos se voltavam para Alex naquele ônibus. Pareciam pensar em que raios o rapaz estaria pensando para desfrutar de tal sorriso. Depois de um dia inteiro de trabalho, às onze da noite, a grande maioria dos passageiros não tinha um bom motivo para sorrir. Em plena segunda-feira, ainda por cima? Difícil.

A felicidade de Alex era proporcionada sempre a partir das coisas mais simples da vida. Olhar para a mesinha de contas e encontrá-las todas quitadas, abrir o armário e notar que o seu achocolatado ainda está acima da metade, poder uma vez por semana tomar café da manhã com a Cíntia. As dificuldades que lhe apareciam pelo caminho eram encaradas com o seu bom humor de sempre e com isso as tirava de letra.

Com esse seu modo de ser, Alex preenchia o quadro de funcionário do mês pelo menos três vezes no ano. Produzir era o que o rapaz fazia de melhor dentro de suas vinte e quatro horas. Vivia para o trabalho e para as pequenas coisas do cotidiano. Pensamentos grandiosos quase nunca pairavam sobre a cabeça de Alex, pois preferia pensar pequeno, porém, continuamente. Cíntia já estava acostumada com o adestramento de Alex diante de suas obrigações. Tinha o seu lado bom, pois necessidades ela nunca passou ao lado dele.

Cíntia já pensava um pouco maior do que Alex. Sonhava em mudar de casa, mudar de carro, ter mais dois filhos, além do João Pedro, e em montar o seu próprio negócio no ramo de alimentos. Em alguns dias, Cíntia perdia a paciência com Alex devido a sua estagnação profissional e intelectual. Eram dois tipos de visões diferentes habitando a mesma casa. Visões estas que colocavam os destinos de ambos dentro do objetivo individual de cada um. O que Alex queria era manter o seu padrão de vida como estava, já que era muito feliz em tal estado. Isso incluía a Cíntia também, que por sua vez, se achava sempre na necessidade de crescer. E isso também incluía o Alex.

Eles se amavam. Talvez, o amor era um dos poucos sentimentos em comum entre os dois. A visão de Cíntia estava na realização material cada vez mais crescente para o casal e o filho. Alex se contentava com aquele sorriso que era capaz de atingir àquela hora da noite naquele ônibus rumo a casa. Seria mais fácil para Alex se juntar aos cabisbaixos da lotação, mas a vida lhe parecia tão bela e tão entrosada para tal humor que era incapaz de alcançá-lo.

O tempo passa, Alex e Cíntia envelhecem. Alex se aposenta na mesma empresa onde trabalhou durante toda sua vida e passa a ajudar Cíntia, que consegue finalmente montar o seu restaurante e apenas o administra sem muitos lucros com o auxílio de João Pedro. O garoto cresce sob os conselhos dos pais. Conselhos diferentes entre si, mas o menino tem a consciência de absorver aquilo que ele achava mais viável diante de seu ponto de vista. A idéia de felicidade foi passada para ele de duas maneiras. Uma pela aquisição de riquezas como causa, por Cíntia e outra pelo simples fato de viver feliz diante de qualquer que fosse sua situação, por Alex.

João Pedro se pergunta: Como concordar que a riqueza não traz uma vida feliz numa sociedade onde é preciso dinheiro para viver? A opção de busca passada por sua mãe se transforma em obrigação. A de seu pai vira lenda ou causa mortis de alguns sonhadores. Estar vivo ou simplesmente sobrevivendo nesse mundo de competições e de barbáries é para João Pedro uma felicidade em forma de esmola.

Lembra das manhãs de um passado distante em que seu pai apreciava o canto de um sabiá sobre uma árvore seca no quintal e compara a cena ao fato de sua vida corrida não lhe dar tempo de sequer procurar uma árvore ao seu redor, até porque não há mesmo. Pior. A felicidade projetada por João Pedro é agora algo tão inalcançável que o desejo pela mesma é atropelado pelo desespero de sobrevivência.

3 comentários:

Anônimo disse...

nossa, luciano... eu ADOREI o que vc escreveu hj. muito bom!

"Lembra das manhãs de um passado distante em que seu pai apreciava o canto de um sabiá sobre uma árvore seca no quintal e compara a cena ao fato de sua vida corrida não lhe dar tempo de sequer procurar uma árvore ao seu redor, até porque não há mesmo"

putz! fiquei até arrepiada com isso.

bjs.

Anônimo disse...

Texto tão macio como algodão.
Tudo em sintonia, com calma levando-o até o fim.
A felicidade foi dita sem forçar nada, parabéns!
Até me acalmou agora!

^^

Anônimo disse...

Texto sublime,

Foi com tanta naturalidade e levesa que você abordou sobre o nosso futuro atorduado e competitivo,que mesmo sabendo de tantos aborrecimetos em que vamos ter futuramente,me passo através da leitura uma calma de espirito capaz de lidar com mancidão, qualquer dificuldade futura.

Beijao amigo e sucesso!!