quinta-feira, 3 de abril de 2008

MARCAS DE UMA GUERRA PSICOLÓGICA

Este conto é baseado em fatos reais, porém, os personagens contidos no mesmo são meras ficções.

Quem olha para João Lacerda de Castro, 85 anos, pensa estar diante de uma pessoa dona de uma paz interior infinita. Se não fosse por suas experiências como soldado do 6º Regimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial, lutando contra os regimes autoritários nazi-fascistas, a pessoa que o observa poderia estar com a razão, mas os anos de 1944 e 1945 lhe deixaram marcas que tornaram tal paz impossível. Vários ex-combatentes – os que deram sorte de possuir um psicológico forte a ponto de resistir às atrocidades da guerra – levam hoje uma vida normal. João não.

João nunca mais andou de barco, por exemplo. Estar frente a uma navegação lhe traz à memória o dia 02 de julho de 1944, quando embarcou no primeiro escalão rumo à Itália. A viagem foi longa e sofrida devido aos enjôos. Nos primeiros dias, em Nápoles, o treinamento intenso. Essas lembranças lhe deixam com águas nos olhos até os dias de hoje. Seus netos jamais entenderam as broncas que levam quando brincam com estalos de São João. É que os mesmos o remetiam às duras batalhas pela tomada de Monte Castelo.

Durante o período em que permaneceu na guerra, João recebia cartas de sua então namorada, Almerinda. As cartas o animavam e o encorajavam para cumprir as missões. Sua vontade de lutar se dividia com a de estar nos braços de sua terra mãe. Cansou de carregar amigos mortos na companhia de dezenas de outros gemendo de dores. Estilhaços de uma granada alemã o deixaram marcas profundas em seu braço, mas também lhe deram a chance de conhecer os olhos verdes da 1º Tenente Enfermeira Alice. Olhos que também jamais saíram de sua mente, mesmo tendo casado com Almerinda dois meses depois de seu retorno ao Brasil em julho de 1945.

- Amor. Se eu tivesse morrido naquela guerra, você teria se casado com outro?
Pergunta João.
- Mas que pergunta, João. Como vou saber?
- Curiosidade.
- E você? Se quando chegasse ao Brasil, me visse nos braços de outro. O que faria? Casaria-se com outra?
Rebate Almerinda.
- Almerinda. Nunca tive olhos para outra mulher. Foi você, aqui do Brasil, quem me deu coragem para encarar os bombardeios alemães.

Nesse momento, os olhos verdes de Alice lhe vêm à mente. Pensou ligeiramente que talvez somente aqueles olhos seriam capazes de um recuo seu perante o amor que sentias por Almerinda. Era incrível como, unidos ao sorriso e o carinho de Alice, aqueles olhos tinham forças para o manter bem mesmo estando ao lado de cenas horríveis presenciadas nos leitos vizinhos.

João procura sempre não demonstrar, mas ainda ouve com freqüência os berros de socorro. Passa por alguns minutos de paralisia como se encontrasse em estado de choque. Almerinda evita falar sobre a guerra que dilacerou os sentimentos de João. Mas alguns artigos usados por ele nas batalhas permanecem guardados num baú que fica numa espécie de sótão. Uma vez por ano, na data de seu retorno ao país de origem, ele abre a grande caixa e revira todas as suas memórias em lágrimas diante de fotos, medalhas e fardas. Um dos guardados era um panfleto distribuído pela FEB meses antes do embarque:

CUIDADO COM OS ESPIÕES

Recorda-te que, em breve, libertarás cidades onde serás recebido como herói. Mas lembra-te, também, que, entre aqueles que te festejam, o inimigo plantou agentes que o informarão dos nossos movimentos. Fecha portanto: tua boca para os assuntos militares.

Exército do Brasil
FEB
Abril 1944


No meio das traumáticas lembranças do ex-combatente, os olhos de Alice, as cartas de Almerinda, as piadas contadas entre os “pracinhas”, os corpos alvejados que teve de carregar, os alemães que aprisionou, os cigarros que usou para passar o tempo e as explosões em Monte Castelo. João observava seus netos brincarem de soldado no jardim de sua casa e em meio a uma tremedeira constante na mão esquerda, conseguia sorrir e agradecer a Deus por ser apenas uma distração dos meninos. Ele não gostaria de ver embarcar novamente uma alma intacta rumo às batalhas e depois de alguns meses revê-la em pedaços e marcada pelas crueldades vividas em campanha, ou talvez, nunca mais a vê-la, como sua paz interior e seus amigos enterrados em Pistóia, Itália.

***
Esta é a minha homenagem aos 25.334 homens integrantes da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que lutaram heroicamente e sem recursos na Itália entre 1944 e 1945, durante a 2ª Guerra Mundial. Homens estes que foram abandonados pelo nosso governo até a Constituição Federal de 1988, que finalmente previa uma pensão especial aos nossos ex-combatentes.

A FEB teve 465 homens mortos, 2.722 feridos, 35 prisioneiros e 16 desaparecidos durante a campanha.


Pela valorização da história do nosso povo!


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Bônus: Video com áudio da BBC no qual se ouve os nossos "pracinhas" cantando o Hino Nacional Brasileiro sob ataque aéreo inimigo:
http://www.youtube.com/watch?v=LHiCN5p09BI

Um comentário:

Anônimo disse...

muito legal!