
Sofia saía de casa por volta das sete da manhã. Quando eram seis e meia, os despertadores de toda a vila tocavam juntos. Era hora de se preparar para ver o estrago feito por Antônio dessa vez. Sofia não procurava ajuda. Tentava maquiar os círculos roxos que predominavam seu rosto maltratado em vão. Era nítida a força com que o marido lhe surrava só de olhar para Sofia. O casal era bastante calado. Ambos não falavam com ninguém da vizinhança e a figura de Antônio era praticamente desconhecida, já que o brutamonte não trabalhava e não colocava o rosto para fora de casa um só minuto. Eram nas costas de Sofia que caíam todas as responsabilidades do lar e também a vergonha de sofrer tamanha violência.
No trabalho, as desculpas de Sofia não surtiam mais efeitos. Era de conhecimento de todos que a mulher sofria agressões em casa. Mas Sofia negava sempre e ainda fazia questão de elogiar Antônio aos sete ventos. De sua boca saíam qualidades que de forma alguma poderiam pertencer ao marido. Companheiro, carinhoso e trabalhador eram os mais repetidos. Fato. Sofia possuía um problema grave, porém, de tanto negar ajudas – se dizendo não precisar delas – a empresa onde trabalhava unanimemente resolveu deixar que ela mesma tomasse suas próprias providências no momento que as achasse necessárias.
À noite, chegava à casa e uma longa lista de tarefas a esperava antes mesmo de se alimentar. Uma casa imunda da preguiça de Antônio para limpar, janta para preparar e, a mais dolorosa de todas, satisfazer um doente que há dois anos aceitava sobre o altar e sob os olhos de São Jorge como seu legítimo esposo. Sofia era devota assumida do santo guerreiro e por isso sempre esperavam dela uma postura à altura. Mas despir-se para Antônio era um ato de coragem. Era entregar-se ao mais obscuro e duvidoso destino. A vergonha lhe batia a face ainda mais forte que o terror em forma de homem. Mas um dia, Sofia se enxergava de forma diferente.
Nesse dia, Sofia chegava à casa com os braços ainda doídos da noite anterior. Estava cansada dos olhares vindos dos vizinhos que pareciam condená-la como culpada de toda aquela vida dolorosa. Aquela mulher estava disposta a acabar com a rotina de maus tratos em que se via obrigada a viver. Antônio tinha um poder sobre Sofia que não a deixava tomar nenhuma atitude contra os fatos. Ela se sentia acuada pelo marido e envergonhada de ser vítima de tal truculência. Mas naquele dia, o corpo de Sofia pedia misericórdia e a fim de obter uma vida normal, os braços anteriormente acorrentados para a satisfação sexual de Antônio desejavam matar o sujeito.
O caixa do supermercado devia até ter estranhado a compra feita por uma enlouquecida Sofia. Uma bisnaga e um espeto de churrasco era o que aquele rosto marcado estava disposto a comprar. Chegando a casa, como de costume, Antônio, num ato violento, toma a bisnaga da mão de Sofia, que por sua vez segura aquele pão com força e empurra contra a barriga do marido. Dentro da bisnaga, Sofia havia escondido o espeto que comprara, fincando assim o pontiagudo e vazando o corpo forte de Antônio com uma força excomunal. O berro de Antônio fez a vizinhança toda sair de seus casulos e cercarem a casa do casal.
Antes que entrassem para julgar aquele cenário, Sofia aparecia na porta com os braços vermelhos de sangue e em forma de grito responde a todas as perguntas ocultas daquela gente:
- Matei de uma vez aquele que me matava aos poucos!
Todos saíam correndo. Um deles finalmente chamava a polícia, que chegava e encontrava Sofia ainda degolando o corpo de Antônio. Sem resistir, deixava ser algemada e permanecia muda até à delegacia. Devido à raiva que lhe tomava, Sofia só entenderia o que tinha cometido no dia seguinte, já em cárcere, onde permaneceria por longos anos.
Na vila onde morava com Antônio, a sua história ficaria eternizada na lembrança dos moradores, porém, sempre tendo o crime como fato único e não como desfecho de uma revolta motivada. Onde antes havia uma atração matinal, poderia a partir dali haver uma ameaça. A voz da vizinhança somente fez-se ativa a partir do momento em que o perigo ultrapassou o limite da porta de Sofia.
3 comentários:
conto violento, né?!
confesso que me "embrulhou" o estômago do início ao fim.
muito bem escrito. parabéns, luciano!
bjs
A dor pela dor, a justiça com as próprias mãos..
Eu fugiria, mas se não tivesse como, acho que também chegaria nesse mesmo limite que a Sofia: Um ultimato inconsciente :P
Beijo!
É isso aí.
Acho que não chegaria a tal ponto, mas com toda a certeza ele não iria encostar uma mão em mim.
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