domingo, 31 de janeiro de 2010

PERFUME PROIBIDO

Os fins de semana eram os dias mais felizes da minha vida. Sim, os fins de semana costumam ser os dias mais felizes de todos nós, eu sei. Mas não era pela ausência de um expediente ou algo do tipo, até porque eu sou o que chamamos de “do lar”. Sendo assim, qualquer dia, em relação a trabalho, para mim é igual. Na verdade, os sábados e domingos tinham o sabor dos sábados e domingos de minha adolescência, porque eu ficava à espera da pessoa amada, entende?

Às três da tarde, sagradamente, eu tomava um bom banho, vestia uma roupa legal, passava um perfumezinho e o esperava chegar. O coração batia sempre muito forte, como na adolescência mesmo. A vontade de que o ponteiro menor atingisse o quatro de uma vez era tamanha que eu o vigiava a cada minuto passado. Logo o cheiro do perfume de Felipe anunciaria sua chegada adentrando o meu quarto de forma avassaladora, pelo basculante. Eu dava um salto da cama e ia até a porta.

Até aqui a história seria perfeita. Mas o que ocorre é que quem atende prontamente ao toque da campainha é minha filha Liana. E eu preciso sempre presenciar aquele beijo apaixonado e longo entre os dois. Que ódio! Pois é, eu ainda não disse, mas o Felipe é namorado da minha filha. Não gosto nem de pensar, mas aquele moreno lindo pode um dia vir a ser meu genro. OK, eu explicarei essa história melhor.

Meu nome é Lídia, tenho trinta e seis anos, sou casada e tenho duas filhas: Liana, de quinze anos, e Laura, de dez. Meu marido... Bem, não vale a pena falar sobre o meu marido, pois tudo o que ele sabe fazer na vida é trabalhar, ganhar dinheiro e dormir, mais nada. A minha filha mais nova, a Laurinha, é uma criança doce e inocente, por isso também não vou falar muito sobre ela, a coitadinha, que não tem sequer noção do meu “problema”. Falarei sobre Liana.

Até os seus quatorze anos essa menina só me deu alegria. Andava comigo para cima e para baixo, éramos como irmãs! Minha filha, modéstia à parte, é, como posso dizer?, bem feita de tudo, sabe? Cabelos lisos e muito bem cortados na altura do pescoço e um corpo de deixar qualquer homem de queixo caído. Apesar de ser novinha, preciso confessar, Liana é um mulherão. Assim como eu fui quando jovem.

Digo que até os seus quatorze anos foi tudo muito bacana porque foi aí que ela começou a namorar o Felipe, seu primeiro namorado, inclusive. Até aí tudo bem. Afinal, quem não namora? Mas tinha que ser o Felipe?

Quando o vi pela primeira vez tive plena noção do que sentira Liana ao conhecê-lo. Uma quentura me tomou o corpo de forma que nem na minha juventude senti igual. Felipe era um rapaz de apenas dezoito anos, mas, meu Deus, que rapaz. O seu olhar, eu nem sei explicar, é capaz de nos despir de tão sexy. Moreno e dono de um corpo dotado de todas as curvas e traços que uma mulher pode imaginar existir num homem, Felipe era como uma miragem. Um espetáculo de rapaz, resumindo.

“Não posso sentir isso pelo namorado de minha filha, não posso”, foi o que pensei no exato momento em que o conheci. Foi tudo muito rápido. Sentia-me apaixonada, rejuvenescida, viva, o que não sentia há tempos ao lado de meu marido.

- Oi D. Lídia, tudo bom? – Felipe me dizia quando fomos apresentados.

- Tudo bom! Quer dizer que é você o namoradinho de Liana, não é? – eu brincava a fim de disfarçar o meu desejo de fugir dali com ele no colo.

Então. Eles já namoram faz pouco mais de um ano. E eu posso dizer que durante todo esse tempo venho pensando coisas terríveis a respeito de tal relacionamento. Por vezes sonho que Liana me confidencia o fim daquele romance, ou que Felipe me possui em minha cama às vistas de Liana e de meu marido. Enfim, coisas que sinto até vergonha de contar, mas que, infelizmente, frequentemente eu penso. Não depende de mim. Os pensamentos simplesmente me tomam a mente.

Numa dessas chegadas de Felipe à minha casa, Liana não estava – fazia um trabalho da escola na casa de uma amiga. Foi só o perfume de Felipe tomar meu quarto que, num salto, como de costume, cheguei até a porta da sala. Dessa vez, sem Liana para interromper o meu prazer, abri a porta para ele, que se apresentava acabando de vestir a camisa.

- Está calor, Felipe, não precisa se vestir. Você já é de casa – eu dizia.

- D. Lídia! – respondia um Felipe sem jeito – A Liana está?

- Liana foi fazer um trabalho na casa de uma amiga, mas logo estará de volta. Entre.

Liguei a TV, o deixei à vontade na sala e fui até a cozinha buscar dois copos de suco de melancia. Na volta, encostei a porta do meu quarto para que meu marido não acordasse de sua tradicional hibernação de domingo.

- Trouxe um suco para nós – eu dizia.

- Obrigado, D. Lídia.

- Pare com essa coisa de “D. Lídia”, Felipe. Só Lídia, ora.

- Tudo bem.

Antes mesmo de Felipe tocar aqueles lábios inexperientes no gelado copo de suco, minha imaginação já criava situações que é melhor eu nem expor aqui. Na TV, um desses programas dominicais exibia corpos femininos a se lambuzarem numa espécie de gincana machista. Notei um volume crescente na bermuda de Felipe, o que me deixou num estado que nem preciso dizer, não é?

Não aguentei. Juro que me concentrei, mas não aguentei. Tomei o copo de suco de suas mãos e o agarrei como se o mundo fosse acabar naquele momento. Felipe, assustado, se desviava de meus lábios como se fossem venenosos.

- O que é isso, D. Lídia? – ele dizia, mas eu parecia não ouvir e ao mesmo tempo em que insistia naquela loucura.

Até que de Felipe recebi um soco no meio do nariz, que imediatamente danou a sangrar. O rapaz levava as mãos à boca demonstrando arrependimento, enquanto eu, sem entender direito o que ocorrera, apenas chorava em silêncio – morria de dor.

- D. Lídia – dizia Felipe –, me perdoe! Eu não queria...

Foi quando escutei o barulho das chaves de Liana à porta. “Meu Deus, estou perdida”, pensei.

- O que está acontecendo, mãe? – perguntava Liana.

Felipe não sabia onde enfiar a cara, muito menos o que dizer à minha filha. Como explicar tal situação?

- Não foi nada, filha – eu dizia –, foi um acidente. Felipe acertou sem querer o copo em meu nariz, e...

- Como isso, mãe?

A minha história poderia até convencê-la, mas a cara de espanto de Felipe parecia entregar tudo. Saí de cena. Fui para o meu quarto com um medo enorme de Felipe contar toda a verdade. Mas, pelo visto, ele não contou. Aquele episódio lamentável está enterrado em nossas mentes.

Nunca mais tive coragem de olhar nos olhos de Felipe, é verdade. Hoje, quando seu perfume adentra meu quarto, eu corro para o banheiro e me masturbo loucamente. Isso é vergonhoso, eu sei, mas, sim, ainda sou apaixonada pelo namorado da minha filha, confesso.

Os fins de semana passaram a ser os dias mais terríveis de se encarar. Isso porque já ouço vir da sala sons de um sexo escondido, mas que sinto medo de interromper. Mais até do que uma preocupação materna, sinto raiva.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A SOLUÇÃO

“Daqui eu não passo”, disse a si mesmo com os pés no peitoril do vigésimo oitavo andar, no prédio onde morava. Ventava muito lá em cima, o que fazia com que o corpo de Vanderlei balançasse levemente para frente e para trás. Com a camisa de botão aberta e o peito a receber o beijo convidativo à morte, Vanderlei evitava olhar para baixo, mas conseguia avistar o grande movimento da praia ali próximo.

O amontoado de gente sobre aquela areia brilhosa comemorava o auge da estação mais esperada do ano, mas não tinha a noção de que, logo ali, no alto de um luxuoso edifício, havia um homem mergulhado num total desespero, numa espécie de lama pegajosa, que o impedia de emergir.

“Espero me esfacelar durante a queda”, pensava Vanderlei. O jovem esperava que o vento o fizesse em pedaços antes mesmo que seu corpo já inútil tocasse o asfalto quente. Seus pés tentavam encontrar posição mais confortável, de equilíbrio, mas o vento parecia querer encerrar de vez aquela história – soprava mais forte ainda.

As lágrimas de Vanderlei corriam pelo ar e caíam sabe Deus onde, mas o fato é que elas se faziam presentes em quantidades cada vez maiores. As cores que vinham da areia da praia, do mar e dos edifícios vizinhos começavam a se misturar na visão amedrontada de Vanderlei. Por um segundo se viu arrependido de estar ali, de estar prestes a cometer um suicídio estúpido. Mas Vanderlei fechou os olhos e sua visão então voltava ao normal.

Foi quando Vitória, sua irmã adotiva, abriu a porta do apartamento e avistou Vanderlei sobre o peitoril.

- VANDERLEI, SAIA DAÍ, PELO AMOR DE DEUS!

Vitória correu até a janela sem sequer prever que tal atitude pudesse assustá-lo e derrubá-lo de vez. Mas, magrinha e leve como uma pena, a menina conseguiu chegar aos pés Do irmão a tempo.

- O que está acontecendo, meu irmão? – perguntava Vitória tentando acalmá-lo; não tinha a menor noção do que ocorria.

- Deixe-me ir, Vitória!

- Desça daí, meu irmão, e vamos conversar.

Se havia alguém capaz de convencê-lo de qualquer coisa, esse alguém era Vitória. Com um pouco mais de cinco anos entre os dois – Vanderlei tinha vinte e cinco e Vitória completaria vinte naquele ano –, aqueles irmãos de pais diferentes se amavam muito.

Vanderlei tinha apenas doze anos quando Vitória fora adotada por seus pais. Nos primeiros dias a convivência fora difícil, já que Vitória, por ser menina, arrancava carinhos excessivos de sua mãe, o que lhe causava um pouco de ciúme. Mas com o passar do tempo Vanderlei aprendeu a amá-la. E a amou como jamais amou seus próprios pais, inclusive.

Andar com Vitória para cima e para baixo se tornava para Vanderlei praticamente uma obrigação. E quem não gostaria de exibir por aí uma irmã tão linda e graciosa como Vitória, que sempre foi uma criança linda, mas foi no desabrochar da juventude que sua beleza se mostrou de forma rara.

Vitória tinha os olhos da esperança, grandes e amendoados. A pele morena fazia de Vitória um exemplo vivo do poder do verão carioca. Os seus cabelos longos, cacheados e volumosos deixavam das costas à mostra apenas a cintura, que, sozinha, de tão fina e delicada, era um convite à paixão – à perdição, melhor dizendo.

- O que foi que houve, meu irmão? – dizia Vitória ao colocá-lo sobre o sofá.

- Você não entenderia, Vitória. É algo que, de tão complexo, não merece explicação alguma.

- Você ia se matar, Vanderlei! Isso me preocupa! Quero saber, sim, o que está acontecendo! Que fique entre nós, papai e mamãe jamais saberão disso, mas se abra comigo, por favor, meu irmão!

- Contar a você não ajudará em nada, Vitória, acredite, só vai piorar as coisas.

- Então não confia mais em mim como antes? Sempre contou tudo a mim, Vanderlei, sempre! Por que isso agora? Vou começar a achar que tenho algo a ver com tudo isso que presenciei!

- E tem!

Vitória gelou. O fato é que jamais imaginou estar envolvida numa tentativa de suicídio, muito menos a do próprio irmão. De tão nervosa que ficou, diante da afirmação de Vanderlei, a menina sequer pensou no que poderia ser.

- Agora, mais do que nunca, tenho o direito de saber, Vanderlei! Vamos! Conte o que está havendo? Foi algo que eu fiz?

- Não... Na verdade você não fez nada demais... Eu fiz!

- Não estou entendendo, Vanderlei. Seja mais claro, por favor.

Vanderlei emudeceu por longos dois minutos. Até que:

- É difícil dizer isso, mas... Eu estou apaixonado por você, Vitória!

- Não acredito... – dizia Vitória a levantar e a zanzar frente ao irmão, que tentava se explicar.

- Isso começou faz alguns meses, Vitória, e eu não consigo me perdoar por isso, entende? É como se eu quisesse me livrar de uma droga que todo instante estivesse bem próxima a mim. É claro que eu não queria que fosse assim, mas não estou sabendo conviver com isso!

- Você é meu irmão, Vanderlei! Pelo menos deveríamos considerar assim.

- E eu considero, Vitória, sempre considerei! É exatamente pelo fato de não aceitar essa paixão que resolvi não viver mais... Acha que é fácil? Eu não escolhi isso, Vitória!

- OK... Acho que entendo... – dizia Vitória bastante atordoada – Eu vou tomar um banho e... – continuava a passar a mão sobre a cabeça, sem saber para onde olhar – É isso... vou tomar um banho... E você... Fique aí quietinho, OK? Não vá para a janela. Promete?

- Prometo – dizia um Vanderlei mais calmo e, talvez, mais aliviado.

Enquanto a água lhe caía sobre o corpo virgem, Vitória pensava sem parar nas palavras de Vanderlei. Simultaneamente as lembranças de uma infância e adolescência cobertas pelo carinho quase paterno de Vanderlei lhe tomavam a mente. Passava então a analisar friamente o fato. “Sairei deste banho com uma solução”, objetivava Vitória, apesar de sua verdadeira vontade ser a de jamais sair daquele box.

Longos minutos depois, Vitória aparecia na sala e se deparava com Vanderlei na mesma posição que o deixara: cabisbaixo.

- Vanderlei. Acho que tenho uma solução para esse caso.

- Esse caso não tem solução, Vitória, mas de qualquer forma... No que pensou?

Vitória então, com seus cachos ainda molhados do demorado banho, lhe apresenta o resultado dos intermináveis minutos de análise. Levantava o rosto de Vanderlei e lhe alcançava os lábios num misto de timidez e medo.

- Por que me beijou, Vitória? – dizia Vanderlei a disfarçar um tesão que há muito fugira de seu controle.

- Vamos ver no que dá, Vanderlei. Não será fácil mudar a essência do meu amor por ti. Mas, nesse caso, antes viver um amor “proibido” a vê-lo morto.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

SATISFEITA?

A noite era de chuva. Uma noite de domingo quente, mas de chuva. Eduardo assistia de sua janela, no décimo primeiro andar, a um espetáculo que se realizava bem ali em frente, na areia da praia. Tratava-se de um espetáculo em comemoração ao aniversário de Tom Jobim, que, se vivo, estaria completando oitenta e três anos.

Sua posição era privilegiada, pois tinha uma boa vista do palco, estava protegido da fina chuva e, o melhor, estava próximo da geladeira e do banheiro. Daquela janela Eduardo podia ver com detalhes a performance de todos aqueles músicos formidáveis, os quais tanto admirava. Entre uma cerveja e outra, o rapaz cantarolava os temas de Bossa Nova ali apresentados com tanta precisão. Eduardo sorria de tão confortável que era a situação.

Tudo estava perfeito. Até que a campainha soa, interrompendo aquele momento de quase meditação. “Puta merda! Quem será?”, dizia a si mesmo Eduardo, que, ao abrir a porta, toma um susto. “Andréia? O que faz aqui?”, dizia pasmo.

Andréia era uma ex-namorada de cinco anos atrás, que lhe aparecia trazendo um par de olhos fundos e uma magreza de dar pena – aquilo que parecia um bracelete estava junto ao seu relógio de pulso. Vestindo uma calça skinny – que deixava à mostra uma terrível cicatriz abaixo do umbigo –, uma camiseta amarelada e uma jaqueta jeans surrada, Andréia lhe fazia pedido: “Preciso de um lugar, Dudu”.

- O quê? – dizia Eduardo.

Andréia adentrou ao apartamento como se fosse uma estranha que nunca estivera naquele lugar – o que não condizia com os altos gemidos durante as longas noites de sexo protagonizadas pelo casal anos antes.

- O que está acontecendo, Andréia?

- Perdi tudo, Dudu! Tudo!

- O que quer dizer com isso?

- Eu me meti numa furada, Dudu. Numa furada de merda, você sabe. Agora eles querem me matar. Eles já mataram meu irmão, a única pessoa que eu tinha por aqui. A minha irmã sumiu no mapa, nunca mais a vi. Aquela vagabunda... Só me restou você.

- Não fale assim da Andressa! E espere aí! Essa “furada de merda”... Você não está falando do Cola, está?

Há quatro anos Andréia deixara Eduardo para se envolver com um traficante de drogas, o Cola, de uma favela próxima dali. Eduardo sofreu muito com a situação na época, mas apenas por algumas semanas, pois logo entendeu que a atitude de Andréia não valia uma lágrima sequer. Tocou sua vida.

- Sim. Eu me envolvi com um filho de uma puta lá do movimento, o Zeca, que resolveu dar uma “volta” no Cola. Ele deu mole e o Cola descobriu. Mas o Zeca foi falar para o Cola que me comia...

- Entendi, e no meio dessa confusão toda você lembrou que eu existo? Você me abandona para viver dando para um bando de vagabundos sob um telhado de amianto e, agora, que a “casa caiu”, você vem me procurar? Era só isso que me faltava!

- Eu sei que errei, Dudu!

- Não me chame de Dudu!

- Eu sei que errei! Mas eu estou a fim de começar vida nova, entende?

- Entendo, sim, mas longe de mim, por favor. Vamos, saia do meu apartamento, daqui a pouco sou eu que acordo com a boca cheia de formiga. Vamos, saia!

- Quem está aí? – uma voz feminina vinha do quarto.

- Uma amiga, mas ela já está de saída, amor – dizia Eduardo fazendo sinal à desconfiada Andréia para que saísse.

- Quem é essa mulher? – perguntava Andréia.

- Não te interessa, OK? É uma pessoa com quem estou desde que você se foi! Nós nos amamos! O que te interessa é que aqui você não vai ficar! Vamos, saia!

- Eu quero saber quem é essa mulher! Eu a conheço?

- Saia da minha casa, Andréia!

- Eu quero saber! Quem é?

Até que a dona daquela voz aparece na sala. Andréia olhava para a mulher num misto de ódio e de confusão. Para o espanto de Andréia, a mulher que lhe direcionava olhar de repulsa era Andressa, sua irmã.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

CONFLITOS DE CAROLINE 2

Leia Conflitos de Caroline.

Caroline se tornara uma linda mulher. Não era mais aquela menina que aos quatorze sentira medo diante do conflito que era se assumir homossexual – sem contar o fato de constatar na mesma época a, então inexplicável, bissexualidade. Já com seus vinte anos e um domínio mais nítido de seus sentimentos e desejos, Caroline mantinha então um relacionamento de dois anos com Lorena, uma menina que, curiosamente, passara pelos mesmos conflitos adolescentes. A história das duas tratara de uni-las.

Diante da indiferença sempre presente em sua família, a rotina de Caroline e Lorena como namoradas era como a de qualquer namoro heterossexual; cinema, pizza na sala, tudo. Carmem e Hamilton, pais de Caroline, agiam naturalmente, sem muito apego, mas naturalmente. Somente Rodolfo, irmão mais novo de Caroline, é que não aprovava a postura da irmã, mas tinha plena consciência de que nada poderia fazer para mudá-la.

Caroline e Lorena estavam no terceiro ano do curso de Desenho Industrial. Sendo assim, se viam todos os dias, o que não parecia o bastante. A verdade é que o casal se mantinha junto da hora em que acordava à hora de dormir. As duas eram muito unidas.

Mas como em todo casal, o ciúme, mesmo que discreto, se fazia presente em alguns momentos. Caroline, como já disse, era assumidamente bissexual, mas Lorena não, era apenas homossexual. Com isso, a carga maior de ciúme vinha quase sempre de Lorena, que não se conformava com as corriqueiras tentativas de aproximação vindas dos meninos em direção à Caroline.

Caroline era a beleza em forma de pessoa, sempre foi. Vestia-se de forma bastante feminina, fazia questão disso. Vaidosa como a maioria das mulheres, Caroline tratava de seus cabelos lisos com carinho quase materno. Os cortes e penteados adotados por ela faziam a cabeça de qualquer menina que a visse. A pele alva de Caroline dava luz às suas singelas tatuagens, que tomavam pequenas partes de um corpo de curvas perfeitas – daí as aproximações constantes por parte dos meninos.

Lorena, apesar da intensa afinidade com Caroline, na questão estética era o oposto da namorada. Era bonita, sim, mas não dava muita importância à sua própria aparência. Lorena não chegava a ser masculina, mas uma mulher distante dos recursos de embelezamento, talvez. Não usava maquiagem e, na hora de se vestir, preferia o conforto à beleza, sempre. Lorena tinha, sim, um rosto lindo, como o de Caroline, mas sua simpatia não seria capaz de atrair meninos – e nem muitos as meninas, diga-se de passagem.

Um dia, Lorena e Caroline caminhavam pela praia. Caroline usava um biquíni lindo de estampas, enquanto Lorena, um pouco sem sal, preferia um short e uma camiseta. As duas jogavam conversa fora, riam, se divertiam, como sempre faziam no verão do Rio. Até que, para a surpresa de Caroline, cruza o seu caminho aquele que por muito tempo em sua adolescência lhe causou sérios conflitos internos: Alexandre.

Alexandre era o verão, o mar, o Rio, tudo numa só pessoa. Sem camisa, o rapaz exibia um corpo muito bem cuidado e uma cor difícil até de definir. A bermuda trazia o botão de pressão aberto, como se Alexandre estivesse pronto para um mergulho a qualquer momento. Caroline notava que o abdômen do rapaz lhe atraía os olhos como um imã. A jovem sentia então a mesma sensação de anos atrás, quando seu corpo ainda era um poço de mistério; sentia tesão ardente.

- Caroline? – dizia Alexandre.

- Alexandre? Meu Deus... – deixava escapar o entusiasmo Caroline.

- Como você está, menina? – dizia Alexandre a abraçá-la fortemente.

Lorena não demonstrou ciúmes, pelo menos a princípio. Um amigo, o que havia demais? Mas quando Alexandre enterrou o rosto no pescoço de Caroline e suspirou “você está uma gata”, o tempo fechou.

Lorena fazia cara de raiva, a fim de que Alexandre se tocasse, mas em vão. Jamais passaria na cabeça do rapaz que Caroline, aquela “coisinha”, mantinha um namoro com aquela menina ali parada.

Ao se afastarem, Alexandre alisou a bochecha de Caroline como se quisesse constatar a existência de semblante tão perfeito. “Você está tão linda, Caroline”, ele repetia meio abobalhado. Caroline tentava conter as mãos de Alexandre; não queria causar ciúmes em Lorena. Mas o fato é que a mente de Caroline parecia brigar com o próprio corpo, pois a vontade real era inexplicavelmente a de se entregar àqueles braços bronzeados de Alexandre.

- Bem [respira], essa aqui é a Lorena – soltava-se enfim Caroline daquele sonho de verão – Lorena, esse aqui é o Alexandre, um velho amigo.

- Sim. Que ele é um velho amigo seu eu já sei. Mas acho que ele não sabe o que eu sou sua, não é? Esqueceu de dizer? – dizia Lorena com o humor um pouco alterado.

- Ah, sim, que cabeça a minha. Alexandre, Lorena é minha namorada.

- Ah?!

Alexandre se viu boquiaberto. Talvez nem tanto pelo homossexualismo, ali, em carne e osso, mas por ser Caroline, ali, em seios médios e rijos e um bumbum redondo de nádegas que caberiam na medida de suas mãos.

- Namorada, é? Entendi... – dizia Alexandre bastante sem graça – Bem, a gente se vê por aí. Tem MSN?

- Ela não usa MSN – cortava Lorena.

- Seu telefone ainda é o mesmo, Alexandre? – dizia Caroline, para a ira de Lorena.

- O da minha casa é o mesmo. Ainda o tem?

- Sim, claro – dizia docemente Caroline.

- OK. Então me ligue quando puder. Beijos.

Os dois se despediam apenas com um tchau.

Lorena seguia na frente em passadas fortes, enquanto Caroline, coberta não por pensamentos a respeito de seu relacionamento, mas por delírios destinados unicamente ao carinho recebido por Alexandre, seguia levemente atrás.

Seis anos atrás isso lhe provocaria um conflito enorme. Mas Caroline hoje é uma mulher. E como mulher, dominadora plena de seus sentimentos e desejos, sem sequer discutir o assunto com Lorena, tratava de ligar para Alexandre naquele mesmo dia, à noite.

- Alô.

- Alexandre?

- Sim, quem...?

- Sou eu, Caroline!

- Ah! Oi Caroline! Não pensei que ligaria.

- Por que não?

- Sua namorada...

- Esquece isso. Preciso te ver. Preciso de uma coisa que... Por isso te liguei.

- Você precisa de quê?

A madrugada então tratou de fazer o pano de fundo para a reprise de uma cena de seis anos atrás. Um beijo capaz de enlouquecer o mundo se deu sob o calor daquela noite de verão.

Alexandre a tomava pelos braços e mostrava que, definitivamente, não era mais aquele menino de antes. Caroline, adulta, adultera, se entregava de tal forma que se sentia estranha – pensava em Lorena, sim, mas, dominada pelas carícias de Alexandre, se sentia num novo conflito, só que muito mais ardente...

...e prazeroso ao extremo.

* * *
Foto da Capa: Fabiana Romeo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

OCÊ

Éramos duas crianças, é verdade. Eu tinha meus dez e Ana Alice seus nove anos, talvez, quando nos conhecemos. Quando estávamos juntos, brincávamos de muita coisa, e melhor: sem precisar de nenhum daqueles meus brinquedos sofisticados que na capital deixava. Ana Alice era vizinha de meus avós maternos, que moravam no interior do estado. Por causa da distância, somente nos víamos nas férias de janeiro, quando eu – por ordens severas de meus avós –, tinha de passar pelo menos uma semana por lá. O que eu adorava, é claro.

O fato é que os mimos que eu recebia de meus avós não eram o que de melhor aquele lugar possuía. É bem verdade que a maior motivação vinha da ideia de estar com Ana Alice, porque ela era a amiga mais diferente que eu tinha. Eu ria de seu sotaque e achava muito interessante a forma como ela, mesmo no meio do mato e sem muitas crianças para brincar, se mostrava uma pessoa tão feliz, tão para cima.

Lembro de quando eu chegava à casa dos meus avós, geralmente na segunda semana de janeiro. Meus pais me deixavam por lá logo pela manhã. Vovô Charles, Vovó Jacira e Ana Alice me esperavam naquele portão ranheta de madeira – Ana Alice era sempre avisada por meus avós quando eu estava de chegada. Ana Alice, com um sorriso imenso no rosto, era a primeira a me abraçar, para nítida comoção dos adultos.

Ana Alice tinha os cabelinhos em cachos tão loirinhos que se confundiam perto das flores amarelas do quintal. Seus vestidos floridos, feitos com muito bom gosto por sua mãe, ajudavam muito na beleza daquela criança. Ana Alice tinha os olhinhos levemente puxados e verdes, como o lago ali de perto. As manchinhas que ela tinha pelo rosto e um pouco abaixo do pescoço se davam por causa das frutas que consumia, já que muitas das poupas ou dos caldos reagiam na pele sob o sol. Com os dentes sempre muito branquinhos, Ana Alice sorrindo era de encher qualquer peito da mais pura esperança, seja lá em quê.

Um abraço. Era um abraço apertado que Ana Alice me dava sempre que eu chegava à casa de meus avós – e sempre que me despedia também. “Que saudade de ocê, Anderson”, ela dizia com o sotaque engraçadinho de sempre e com a sinceridade a lhe escorrer dos poros. Eu recebia então um abraço menos caloroso mas não menos sincero de meus avós, enquanto Ana Alice falava com meus pais. “Tudo bom com ocês?”. Meus pais a beijavam e a cumprimentavam. Era como se Ana Alice já fosse da família.

Enquanto eu estava por lá, as refeições de Ana Alice eram todas feitas na casa de meus avós, que faziam questão disso, diante daquela amizade tão forte entre ela e eu. Era bonito de se ver.

Aquela sagrada semana era sempre regada a muitas brincadeiras, como eu já disse, mas também a muita conversa. Á tardinha, enquanto minha avó preparava o jantar, Ana Alice e eu, ambos cansados de tanto brincar e já de banho tomado, sentávamos num banquinho de madeira nos fundos da casa e conversávamos por horas. Ela costumava a me perguntar muito sobre a vida na capital.

- Lá tem aqueles prédios compridos igual se vê na novela? – ela me perguntava.

- Sim. São enormes. Meu pai trabalha em um que tem trinta e cinco andares!

- Nossa mãe! E ocê já foi lá no altão?

- Já. O andar do meu pai é o último.

- E ocê num tem medo de cair de lá de cima não?

Eu ria sempre quando tinha de explicar alguma coisa desse tipo à Ana Alice. Talvez porque a inocência dela e as risadas que ela dava de seu próprio desconhecimento me cativavam muito. Era um grande barato conversar com ela.

Mas não era apenas Ana Alice que tinha perguntas por ali. Eu não sabia quase nada sobre o campo. E confesso que as descobertas feitas por mim eram muito mais valiosas que as dela. A vida na cidade, por mais recursos que tivéssemos, me parecia chata quando estava perto dela, perto das experiências de vida dela.

Todos os dias, depois do café da manhã, quando o sol já mostrava um pouco do seu poder, Ana Alice costumava me chamar para tomar banho no rio ou no lago. Em meio às recomendações de meus avós, uma era bem interessante: “Anderson, não fique longe de Ana Alice, hein”. Parecia um pedido para que eu tomasse conta dela, mas era exatamente o contrário. Meus avós sabiam o quanto Ana Alice nadava e conhecia cada corrente daquelas águas.

Chegando no rio, Ana Alice tirava o vestido e, somente de calcinha, mergulhava. Embora fôssemos apenas duas crianças, eu me encabulava em ter de tirar a roupa. Ana Alice não ligava, não via mal algum em tomar banho no rio apenas de calcinha. Mas na certa eu estava impregnado de todos aqueles valores da capital; tomava banho de bermuda mesmo.

O tempo foi passando e nossa amizade só aumentou. Todo ano era a mesma coisa. A chegada, o café da manhã com Ana Alice, o banho de rio, as brincadeiras que ela me apresentava, os longos papos e questionamentos nos fundos da casa até altas horas...

Mas uma coisa havia mudado. Eu, já com meus quatorze anos, passei a enxergar em Ana Alice uma boca a ser beijada. Já havia notado naquele ano que Ana Alice não mais tomava banho no rio apenas de calcinha. O que era lógico, já que no lugar daquele corpo de criança havia a formação de um pequeno par de seios. Os vestidos floridos de Ana Alice já mostravam curvas antes inexistentes.

Na minha classe todos os meninos já haviam beijado, menos eu. Não sei por que, mas sentia que seria nos lábios de Ana Alice que constataria o verdadeiro sabor daquilo que tanto treinara frente ao espelho.

Numa tarde, nos fundos da casa de meus avós, como sempre, conversávamos. Isso! Eu já tinha os meus quatorze e Ana Alice os seus treze anos. Então, num daqueles questionamentos de Ana Alice:

- Ocê tem muitos amigos lá, num é? – ela me perguntava.

- Sim, tenho bastante. E você por aqui?

- Alguns. Mas eles moram longe daqui. Só vejo no colégio.

- Entendi.

- Ocê tem amigas também?

- Sim, claro que tenho.

- Elas são bonitas?

- Sim, algumas.

- Eu sou bonita, Anderson?

- Claro que é! Muito bonita até!

- Ninguém nunca me chamou de bonita.

- Eu estou chamando. Você é muito bonita. Sempre foi.

- Brigada – ela dizia sem graça.

Eu poderia dar o assunto por encerrado naquele momento, mas a minha vontade incontrolável de beijar, ou melhor: de ter o que contar aos meus amigos na volta às aulas fez com que eu a convidasse para um banho no rio.

- Mas agora, Anderson? – ela questionava.

- O que tem? Ainda está claro. Vamos?

- Ai, num sei, Anderson.

Foi quando, tomado por uma coragem inédita, a puxei pelo braço em direção ao rio.

Não sei o que deu em mim, mas, ao chegar sob o imenso pé de manga – onde costumávamos trocar de roupa –, puxei-a pela cintura indo de encontro com seus lábios. Ali se dava o nosso primeiro beijo – Ana Alice, logo após o “transe”, me confessava jamais ter beijado alguém antes.

Tomados por aquela sensação inexplicável do primeiro beijo, Ana Alice e eu resolvíamos dar um mergulho. “Seus avós num vão gostar de nos ver molhados a essa hora, Anderson”, ela dizia.

- Besteira, Ana! Vamos! Só um mergulho!

- Tá bão! Só um mergulho e voltamos!

Ana Alice, como já fizera outras vezes, não tirou o sutiã. Mas não tinha problema para mim. Mergulhamos, nadamos e nos beijamos várias vezes. Esquecemos da hora. Já estava escuro quando resolvi que daríamos um último mergulho. “Vamu embora, Anderson”, ela insistia, mas consegui convencê-la a dar mais um mergulho.

Eu mergulhei primeiro e a chamei. Ela então mergulhava, mas eu, completamente errado, mudei minha posição no rio em relação à Ana Alice. Foi quando senti sua cabeça acertando em cheio o meu joelho, que se encontrava levemente erguido. A corrente levou o corpo desmaiado de Ana Alice até que não mais a vi. Ainda tentei nadar em direção à Ana Alice, mas a força da corrente me assustou muito e resolvi não mais buscá-la.

Com muito medo das consequencias, não contei a história real a ninguém, nem aos meus avós e nem aos meus pais. O corpo inchado de Ana Alice foi encontrado somente dois dias depois e a quilômetros dali.

Somente voltei à casa de meus avós quando tinha meus vinte e dois anos. Foi estranho como tudo naquele lugar me lembrava Ana Alice. Senti que tudo ali perdera o sentido depois daquela tragédia.

Fui então até o rio onde o primeiro beijo e a perda eterna ocorrera num só instante. Ao chegar sob o mesmo pé de manga, tudo veio à tona. O cheiro do mato e o barulho das águas daquele rio faziam com que Ana Alice se materializasse bem à minha frente, só que crescida – uma mulher linda vestida em flores, como sempre.

Com saudades e lágrimas, eu beijava o vento.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

TEMPERO

- Quero essa mulher pra mim!

Foi a primeira coisa que disse a mim mesmo, assim que avistei meu amigo Lucas e sua namorada Fabrícia. Inveja! Cobiça! Senti os pecados capitais correrem ferozes por minhas veias. Devo dizer que me senti um pouco estranho diante do fato, mas preciso confessar que meu desejo de dar um soco no Lucas, tomar a Fabrícia pelos braços e fugir para o horizonte foi bem maior que o desconforto.

Lá vinham eles caminhando pelo calçadão, curtindo aquele verão sob tecidos de tons claros. O que o Lucas vestia eu não me lembro muito bem, mas o conjunto branco que Fabrícia usava naquele dia não me sai da cabeça até hoje. Acho que dei bandeira, porque lembro de somente ter olhos para a namorada de Lucas. Ele me falava sobre coisas que hoje não saberia reproduzir – não prestei a mínima atenção.

E a Fabrícia? Ela tinha uma estatura mediana e um corpo muito bem distribuído. Seus cabelos, na altura da cintura – eu babava –, eram lisos e tinham a cor daquele sol que nos dourava. O rosto de Fabrícia expressava, a princípio, certa seriedade; seus poucos sorrisos, não sei por que, não faziam dela uma mulher fechada, mas comprometida. Nos olhos de Fabrícia, a cor do mar, ou melhor: do céu, porque pude notar em outras ocasiões a mudança de cores conforme o dia. Enfim, Fabrícia era uma mulher bela, não a ponto de paralisar a praia, mas de fazê-la mais bonita.

Naquele dia nós conversamos, quer dizer, Lucas falou por alguns minutos, nos despedimos e pronto. O que me impressiona é como alguns poucos minutos podem mudar a nossa vida em tantos dias, semanas e até meses ou anos. É que depois daquele dia a minha amizade com o Lucas passou a ter uma segunda intenção da minha parte. Todos os almoços, jantares, passeios e noitadas que fizemos juntos tiveram como objetivo apenas um: o de ver Fabrícia. Eu não conseguia tirar aquela mulher da minha cabeça. Não conseguia. Não adiantava o que eu fizesse. E o quanto que eu pedi a Deus para que os separassem? Até à igreja eu fui!

Quando Lucas me ligava e dizendo que precisava desabafar um pouco, eu pensava: “É hoje que ele me diz que o namoro dele já era”. Mas que nada. Era sempre sobre alguma insatisfação boba daquela vida de playboy que ele levava. A verdade é que o namoro dos dois era mais firme que uma rocha. Isso sem contar que durante todas esses programas que fizemos juntos a Fabrícia e eu sequer trocamos um olhar que pudesse me dizer algo. Ela era muito simpática nessas horas. Nós conversávamos um pouco, mas ela estava sempre pendurada no pescoço do Lucas. Cheguei a pensar que o que me atrapalhava era a questão dele ser um cara bem de vida e eu não. Mas isso não me desanimou.

Cada gesto, cada palavra que eu dizia, tudo era pensando na reação de Fabrícia em relação à minha pessoa. Mas ela, com sua seriedade e comprometimento visível, como já disse, não demonstrava nenhuma brecha para uma aproximação maior. A minha frustração de toda noite se transformava quase sempre num choro mudo ao chegar em casa. Se já não bastasse um anjinho do meu lado direito me dizendo “ele é seu melhor amigo” e um diabinho a me cochichar “viu como ela é gostosinha?”, eu ainda sentia que já não era mais desejo, mas amor o que eu sentia.

Depois de muito tentar e me frustrar, resolvi correr atrás de alguém que valesse o esforço. Não que Fabrícia não valesse, mas ela era do Lucas, isso era um fato.

Foi quando conheci a Mariana, uma garota bacana que cursava o segundo ano de Letras numa das mais concorridas universidades do estado. Ela era uma gracinha, mas não vou me deter às suas características físicas. Digo é que, apesar de ser um pouco mais nova que nós, Mariana passou a colaborar com um conteúdo muito mais interessante às nossas rodas de papo. Inteligentíssima e talvez mais culta que os pais de nós três ali juntos, Mariana nos dava até umas sugestões mais proveitosas de programas. Museu, cinema, salas de debates... A gente embarcou na dela legal.

Depois de umas duas semanas saindo juntos, passei a notar que os olhares de Fabrícia tinham novas direções. Ela não mais me passava aquele comprometimento todo para com o Lucas. Longe das vistas do Lucas e da Mariana, Fabrícia e eu já trocávamos alguns olhares dos quais, sim, sabíamos bem o que representavam.

Não pude deixar de notar também a boca aberta de Lucas quando a Mariana danava a falar sobre a vida e a obra de alguns dos nossos grandes escritores – nessas horas Fabrícia também se mantinha encantada pelo falar de Mariana. A verdade é que o conteúdo de Mariana pegou aquele playboy de surpresa. Nesse ponto Fabrícia deixava muito a desejar, já que tudo o que sabia dialogar era sobre a TV, a moda e o comportamento contemporâneos.

Com o tempo a situação ficou insustentável. Não disfarçávamos mais os nossos olhares. Se os dois casais estavam numa mesa, era Lucas a conversar com Mariana, e Fabrícia a conversar, veja você, comigo. Na hora de ir embora, depois de muito bebermos, faltava pouco para que saíssemos trocados na hora de dar as mãos.

Certo dia, depois de mais um exagero no álcool, eu, coberto de uma coragem artificial, propus o que parecia inevitável.

- Vamos trocar! – eu disse.

- Do que está falando, Tadeu? – disse-me Lucas.

- Trocar, ora! Ficam você e a Mariana... Ficamos Fabrícia e eu! O que acha?

- Eu... – pensava um pouco Lucas – topo!

Mariana e Fabrícia ficaram um pouco assustadas no início, mas já sentia o sorriso das duas querendo sair do canto daqueles lábios ardentes.

- Vocês topam também? – disse eu às mulheres.

Elas sorriram. Mariana colocou as mãos sobre a testa enquanto Fabrícia mordia os lábios como que num tesão incontrolável. As duas se olharam como se pensassem no que fazer.

- Eu topo! – disse Fabrícia.

- Meu Deus... Está bem! Eu também topo! – disse Mariana.

Eu já podia sentir aqueles lábios tão desejados de Fabrícia colarem nos meus. Eu não podia imaginar que a Mariana traria frutos tão valiosos a um desejo já antigo mas não adormecido. Eu estava a ponto de explodir de paixão, de tesão, de amor.

- Mas eu tenho uma ideia melhor! – disse Fabrícia – E eu acho que Mariana também concorda.

- Eu? – disse Mariana, a princípio, sem entender.

- É! Você, Mariana! – continuou Fabrícia – Eu proponho que troquemos, sim, mas fico eu com a Mariana e fica o Lucas com o Tadeu.

- Você só pode estar brincando... – eu disse.

- É? Pois falo muito sério!

Fabrícia dava a volta na mesa e chegava até Mariana, que por sua vez já a esperava de pé e com os olhos e boca numa sincronizada espera pelo beijo, que se fez diante de nossas vistas desprovidas de compreensão.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

VALIOSO INSTANTE (Final)

Leia a Parte 1

Mesmo com a informação de que Breno não apareceria por ali durante algumas semanas – por conta de uma viagem a trabalho –, Sônia não deixava de conferir o ponto de ônibus um dia sequer. Pensava sempre no quão impressionante seria ver aquele moreno novamente. Ser alvo daqueles sorrisos e olhares conquistadores era o que a menina mais sonhava ultimamente.

Certo dia, dessa vez sem muita esperança, Sônia abrira a janela, como feito em todos os dias anteriores. Como se as nuvens se abrissem para o desvendar de um céu azul jamais visto, os olhos da menina se deparavam com os do moreno a brilhar. Ele mostrava um sorriso saudoso e logo tinha o sorriso de Sônia como resposta. Era uma menina, sim, mas ele tinha pouca noção disso, por conta da distância e do peitoril, que nunca desvendara o corpo de Sônia dos seios para baixo.

Sônia estava decidida a não pagar o mico que pagara ao irmão gêmeo do rapaz; muito encabulada, fez um sinal de espera a ele e correu para o quarto com o intuito de se trocar.

Correu.

Jogando as peças pelo caminho, a menina chegava apenas de calcinha a seu quarto. Procurava então por roupas adequadas ao encontro que pretendia. Uma saia jeans, uma camiseta, e foi tudo. Correndo de volta à janela, passava as mãos de leve em seus fios longos e negros. “Estou bonita, será? Estou bonita para Breno?”, pensava a contente Sônia.

Meio que atropelando a mesa de centro da sala, pulando as almofadas jogadas ao chão, Sônia chegava até a janela e:

- Oi. – dizia o rapaz já próximo ao peitoril.

- Ai! Que susto!

- Desculpe-me.

- Tudo bem, tudo bem... – dizia Sônia sem saber para onde olhar.

- E... E então?

A menina se calava diante do rapaz. O que dizer? Mas disse:

- Eu não sei o que dizer.

- Podemos não dizer nada, se preferir.

- Como?

- A gente se beija e pronto.

- Ah?!

Antes que Sônia tivesse qualquer reflexo em desistir de cena tão sonhada, o rapaz alcançava os seus lábios com ternura. Sônia então fechava os olhos e se deixava levar pelo beijo mais esperado de sua vida.

- Meu Deus – dizia o rapaz –, o que estou fazendo?

- Por que isso?

- Você... Você é uma menina!

- E?

- Eu sou um homem! Tenho trinta e dois anos...

- E?

- Ora, menina... Eu sei lá. Estou apaixonado por ti, mas ao mesmo tempo eu me sinto muito mal por isso.

- Olha! Outro dia mesmo paguei o maior mico para o seu irmão! Não vou te perder por besteira! Quero te beijar de novo!

Um pedido de Sônia, àquela altura, era uma ordem. Mas quando o rapaz levou sua boca ao encontro da menina, teve seu corpo pausado pela pequenina mão.

- O que foi?

- Não quero outro beijo na janela! Entre, por favor!

- Entrar? E seus pais?

- Não estão! Entre! Ande!

Sônia abria a porta como uma louca. O moreno entrava num salto, já com as mãos na cintura fina da menina. Mal trancara a porta, Sônia já tinha seu corpo lançado sobre as almofadas da sala. Seguindo sabe-se lá que sentimento, aos gemidos agudos de menina, Sônia era desvirginada ao mesmo tempo em que levava aquele homem à loucura. Como se tivesse jogado a inocência e a timidez de antes ao vento, aquela menina passaria toda a manhã nos braços daquele moreno.

Mas o que ambos não sabiam era que, no momento do primeiro beijo, o verdadeiro Breno acabava de chegar no ponto de ônibus. Depois de ver seu irmão se aproveitar de toda aquela história, Breno não era mais um moreno, mas um rio de lágrimas.

* * *
Foto da Capa: Pâmella Gomide.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

VALIOSO INSTANTE

Abriu a janela com a vontade equivalente a um verão inteiro. Esperava vê-lo de pé, sob aquele sol escaldante, a pele morena daquele rapaz. Mas tudo o que via era um amontoado de nuvens que tratava de dar um tom acinzentado àquele ponto de ônibus frente a sua casa. Sônia desfazia então o sorriso ao se colocar na dúvida. Teria o moreno já seguido seu destino? Recostou os pequenos seios sobre o peitoril e resolveu esperar.

O cheiro era o da chuva que se aproximava. Um forte vento levantava a franja negra da jovem, que, com o queixo apoiado sobre as mãos, sonhava com os olhos do rapaz. Sônia se mantinha à espera porque sabia que o horário da condução era cumprida diariamente com pontualidade. Mas, diferente dos outros dias, aquele ônibus passava sem frear nem nada.

Sônia daria tudo para ver aquele sorriso, que, entre outros sinais, parecia ser a porta para a felicidade. Os dois trocavam olhares havia duas semanas. O jeito encabulado da jovem parecia atrair cada vez mais as atitudes daquele moreno em demonstrar certo interesse. Entre os dois, apenas uma rua de mão única, mas que mais parecia o Mar Vermelho – tamanha era a vontade mútua de uma aproximação.

Naquele dia tudo indicava que o flerte daria uma pequena pausa. Sônia, sem entender muito bem o porquê, sentia uma pontinha de preocupação. O que causara a ausência daquele moreno? Uma doença, talvez? Mas depois de alguns minutos Sônia preferiu não pensar mais em possíveis motivos. Fechou a janela e tratou de ligar a TV.

As férias de Sônia na escola ocasionavam sempre em boas sensações. Jogada no sofá, a jovem se lembrava de seu primeiro beijo em pleno 3 de janeiro, um ano antes. Lembrava também do curso de teatro que fizera num fevereiro distante, no qual sonhava ensaiar beijos calorosos em uma de suas paixonites da época.

- Tola – dizia a si mesma. Talvez por pensar que nenhum beijo, nem mesmo o primeiro, seria melhor que aquele que já pressentia receber.

No dia seguinte, como vinha fazendo, Sônia abria a janela; dessa vez ainda com mais vontade que no dia anterior. Para sua surpresa, o rapaz trazia ao seu lado, de mãos dadas, uma moça muito bonita.

- Ah!? – assustava-se Sônia.

Sônia não conseguia assimilar o que seus olhos lhe mostravam. Chegou a fechar a janela e abri-la novamente, a fim de constatar um possível pesadelo, ou uma ilusão de ótica. Mas lá estava o par na mesma posição a esperar o ônibus.

- Mas que pilantra! E quem é aquela vagabunda? – dizia Sônia em pensamento.

O rapaz sequer notara a presença de Sônia na janela, estava ocupado demais em meio aos sorrisos e mimos que enlaçavam o casal. A ira foi tomando conta de Sônia, que, mesmo sabendo que entre sua pessoa e o moreno nada havia além de simples olhares, sentia vontades cada vez maiores de ir até eles.

E foi.

Sônia, sem ligar para a transparência de seu traje de dormir, pulou a janela com a raiva acumulada de longos segundos. Atravessou a estreita rua de paralelepípedos em direção ao casal. A cena, de tão estranha, chamou os olhares da fila no ponto de ônibus, menos os daquele casal.

Bem próximo aos dois, Sônia berrava:

- QUEM É ESTA VAGABUNDA?

Assustado, o rapaz protegia seu par em suas costas largas e:

- Quem é você?

- Quem sou eu? – dizia Sônia – Durante semanas você me direciona sorrisos e simpatias mil! E agora não sabe quem eu sou? Quem é ela?

- Você é doida? Jamais te vi na vida!

- Não se faça de idiota!

- E quando mandaria sorrisos para uma fedelha como você? Se enxergue!

Os dezessete anos de Sônia podiam, sim, ser empecilhos para os trinta e dois daquele rapaz, que ainda trazia na mão direita uma robusta aliança dourada. Mas os pequenos seios rijos de Sônia, pelo menos por poucos segundos, prenderam o foco do rapaz.

- Amor – dizia a moça atrás do rapaz –, não estaria ela a te confundir com o Breno?

Naquele instante um estalo se fez na cabeça daquele homem.

- Ah sim! Olha, menina – dizia o rapaz –, eu possuo um irmão gêmeo. Não seria ele a pessoa que...?

- Irmão? Gêmeo? – dizia Sônia como se levasse um banho das águas mais gélidas da noção – Mas... Qual o nome dele? Eu não sei.

- O nome dele é Breno. E sei que ele pega o ônibus nesse ponto todos os dias. Mas ontem ele viajou a trabalho. Deve voltar na semana que vem. Eu...

- Sim! Meu Deus... Eu te peço desculpas. Mas é que...

- Está tudo bem, menina. Agora vá para casa. Não está adequadamente vestida...

- Ai, meu Deus! – dizia Sônia ao notar tamanha indiscrição nas suas nádegas quase nuas.

Sônia corria encabulada até a sua janela. Preocupava-se com o pudor, mas se alegrava ao constatar a inocência de seu amado naquela situação. O rapaz então, como se a menina estivesse em câmera lenta, observava aquele trajeto juvenil e até mesmo o pulo sobre o peitoril. Sônia precisou de uma boa abertura das pernas, o que acabou desvendando uma pequenina calcinha rosa.

O rapaz afrouxou a gola de seu terno, secou o suor de seu rosto e, no fundo de sua alma, desejou ser Breno por alguns instantes.


[Continua]

* * *
Foto da Capa: Pâmella Gomide.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

MORANGOS

Um mergulho na piscina. Pronto. Foi o suficiente para que a jovem Letícia atraísse os olhos de Thiago, que à beira daquele imenso cubo d’água secava o rosto dos respingos causados. Letícia passou de forma leve de uma borda à outra. Seus movimentos perfeitos de um nado disciplinado somados àquele corpo moreno e ao comportado biquíni verde de listras davam àquela instantânea conquista um sabor diferente. Jamais Thiago vira tanta beleza adequada a uma só menina. Letícia era o resumo do verão, das férias, do amor.

Ao sair da piscina, depois de duas voltas sob os olhos de Thiago, Letícia torceu os longos fios negros e notou que perdera um dos brincos durante o nado.

- Ai, que meleca! – dizia a jovem com a mão na orelha esquerda.

A menina chegou a passar rapidamente as vistas sobre a superfície azul em busca da jóia, mas, logicamente, em vão.

Thiago percebia que além das listras, peixinhos e conchas também faziam parte da estampa de seu biquíni. “Que delicada”, pensou o rapaz. Percebeu também que um dos laços da parte de baixo daquele traje se mostrava a ponto de se desfazer. “Dois motivos para me aproximar”, pensou no brinco perdido e no laço frouxo.

Thiago foi até Letícia e:

- Oi.

- Oi – respondia-o ainda olhando para a água.

- Vi que perdeu o brinco.

- Pois é... – agora o olhando nos olhos.

- Posso ajudar? Eu...

- Sim, claro, mas acho difícil achá-lo numa piscina enorme como essa.

- Não custa. Como ele é?

- Como esse aqui, olha – ela dizia mostrando a orelha direita –, um moranguinho com pedrinhas.

O brinco era minúsculo. Seria impossível o achar naquele mundo d’água.

- O Roberto podia ter feito uma piscina menor, não? – brincava Thiago em relação ao amigo em comum, o dono da casa.

- É... – ela sorria.

- Ah! O laço de seu biquíni!

- Ops! Obrigada! – dizia Letícia um pouco sem jeito.

Thiago então aproveitava a calma momentânea da piscina e mergulhava em busca do brinco perdido. Logo depois Letícia resolvia ajudá-lo.

Os dois nadavam, iam até o fundo, emergiam, riam da situação, mas nada de brinco. Durante um descanso, Thiago chegou a dizer à Letícia que:

- Foi bom você perdê-lo. [respira]

- Por quê? [respira]

- Nos conhecemos. [respira]

- Ah... [respira] pensando assim... [respira]

- Bem, voltemos às buscas.

- Sim.

Sem planejarem, os dois mergulharam na direção um do outro. Já no fundo da piscina, os olhos dos dois se encontraram por alguns segundos. Sorriram um para o outro e se desviaram.

“Assim que eu achar esse brinco, tua boca será minha”, pensava Thiago, que logo dava falta do corpo de Letícia.

Thiago emergiu procurando a morena, que já se encontrava fora da água. No semblante de Letícia, um sorriso lindo se fazia presente. Um rapaz de corpo atlético e bronzeado lhe entregava o pequeno morango de pedras.

- ...sim, é meu! Onde o achou? – dizia Letícia ao rapaz.

- Aqui no chão. Deve ter caído quando você saiu da piscina, não?

- Ai, que burra. Obrigada!

Sem ao menos agradecer o esforço de Thiago, Letícia e aquele rapaz seguiam em direção ao restante do pessoal. Thiago, vendo sua gana na conquista superar o seu real espírito de ajuda, saiu da piscina cabisbaixo.

- THIAGO! – gritava da cozinha um de seus amigos – VAI DE VODKA COM MORANGO?

- NÃO!