quarta-feira, 30 de abril de 2008

O ENGANO

A curiosidade daqueles alunos em conhecer o tal mestre substituto tomava conta dos assuntos. As mulheres esperavam por um professor alto e musculoso. Os homens esperavam que fosse uma professora típica de um comercial de cerveja. O conteúdo intelectual pouco importava para ambas as partes da classe. Era uma turma de supletivo. Ali, alunos entre 20 e 35 anos tentavam concluir o ensino médio em apenas um ano. Todos naquela sala de aula faziam parte da base da pirâmide social. Moradores de locais abandonados pelo Estado, estavam ali em busca do diploma. Afinal, era isso que o “mundo lá fora” os exigia todos os dias.

Segunda-feira. Finalmente, aqueles alunos conheceriam a pessoa que pela quarta vez em seis meses os assumiria como substituta. Pontualmente às 19h, entrava a professora Lígia. Uma mulher de estatura média, porém, com as partes do corpo que mais interessavam à parcela masculina da classe em seus devidos lugares e em tamanho mais do que proporcionais. Lígia fazia o tipo “mignonzinha”. Tinha apenas 24 anos de idade, mas uma capacidade profissional absurda. Não era bem aquilo que os marmanjos esperavam, mas aquela beleza inesperada os pegava de surpresa.
- Boa noite!
Desejava Lígia com imenso bom humor tendo o silêncio como resposta.

Os rapazes calavam-se por estarem extremamente ocupados focalizando o decote comportado de Lígia, que mesmo assim acabava por aumentar-lhes a curiosidade sobre seus seios firmes e médios. As mulheres já tinham outro motivo para o silêncio. Observavam com ciúme e inveja os olhares de desejo que os homens direcionavam à professora.
- Eu disse boa noite, gente!
Repetia Lígia.
- Boa noite!
Respondia um e outro.
- Bem, vocês sofreram várias mudanças de professores nos últimos meses e com isso o conteúdo de vocês encontra-se bastante atrasado. Então, vamos ao que interessa. Abram seus cadernos e mãos à obra!
- Professora!
Chamava Wellington.
- Pois não.
- Você não vai querer que a gente se apresentamos?
- Para início de conversa, “se apresente” seria a forma correta! – Corrige a professora de Português – E não. Não farei questão disso agora. O tempo corre. Conhecerei vocês ao longo do ano letivo. OK?

Wellington na verdade estava inquieto. Estava boquiaberto com a beleza tratada e singela de Lígia e mal podia esperar para conhecê-la melhor e para lhe demonstrar os seus talentos; Era mecânico de uma oficina ao lado da escola.

No dia seguinte, Lígia chegava mais cedo à escola para lecionar para o turno da tarde. Passando pela oficina, avistou Wellington.
- Oi. Você é meu aluno à noite, não?
- Sim professora! Sou sim!
Respondia um maravilhado Wellington diante do ato raro do cumprimento.
- Então, trabalha aqui durante o dia e à noite ainda se esforça na sala de aula? Muito bem! Continue assim! Espero que consiga conciliar.
- A gente tenta, não é?
- Acertou o tempo verbal dessa vez! Fico feliz! Bom, até mais tarde. Um abraço.
- Até mais.
Respondia um Wellington negro de graxa dos pés à cabeça. Aquele breve cumprimento não saiu da cabeça do rapaz. Em seus 29 anos de idade, nunca havia sido tratado como o fez a professora Lígia. Não parava de pensar na moça.

Os dias passavam, as aulas tomavam os seus rumos e Wellington mantinha em si um desejo de uma aproximação mais íntima com Lígia, que por sua vez, tratava toda a classe com um carinho jamais visto pela mesma. O que fazia o coração de Wellington bater ainda mais forte durante suas aulas.

Um dia, Lígia levava seu carro para a oficina em que Wellington trabalhava, porém, acompanhada de um rapaz vistoso e de terno e gravata que fugia do conhecimento do mecânico. Ambos saltavam do carro. Cada um posicionado de um lado do veículo, ambos mandava beijo um para o outro e se despediam:

- Vai lá meu anjo. O carro ficando pronto hoje passo no seu trabalho e lhe busco. Não dou aula hoje à noite não. OK?
Despedia-se Lígia.
- Tudo bem, Liginha. Eu te ligo. Beijo!
Respondia o rapaz e seguia para o ponto de ônibus em frente à oficina.
- Oi Wellington. Trouxe meu carro para você dar uma olhada. Está com um barulho estranho. Vamos ver se é tão bom na mecânica quanto vem se mostrando nas aulas de português?
Brincava Lígia.
- Verá que sim.
Respondia Wellington, de cara amarrada.
- Acha que apronta isso para hoje?
- Com certeza, já sei do que se trata.
- Senti firmeza, Wellington! Então, passo aqui depois da aula do turno da tarde.
- Passa sim.

Wellington via suas esperanças irem para o ralo como a água que usava para lavar as mãos sujas de mais um dia de trabalho. Olhava-se no espelho e se sentia pequeno diante da companhia que Lígia exibia pela manhã na oficina. “Olhe para você mesmo. É um simples mecânico. Nunca terá Lígia”, dizia para si ao olhar-se no espelho quebrado da oficina. Trocava o macacão e espirrava forte o desodorante barato sobre as axilas, enquanto calculava que em breve a professora passaria por ali para apanhar o seu carro. Feito.
- Oi Wellington. Desculpe a demora.
- Que isso? Tudo bem.
- Quanto eu lhe devo?
- A notinha está lá no caixa. É só passar lá e pagar.
- OK!

Naquele dia, Lígia estava mais linda do que em todos os outros. A calça justa exibia o formato delicado de seu corpo. Wellington imaginava sua única mão tomando conta das duas nádegas de Lígia ao mesmo tempo. Imaginava aquela cintura de espessura jamais tocada pelas suas mãos. Aquele cabelo liso e até mesmo os fios suados que insistiam em colar no rosto da jovem ele imaginava puxar durante um ato selvagem que misturava o desejo sexual a tantos dias repreendido e a raiva de saber que Lígia já era de alguém.
- Muito obrigado Wellington! Você está indo para a escola agora?
- (Pausa) Não. Vou para casa.
- Não tens aula hoje?
- Tenho, mas preciso resolver umas coisas em casa.
- Eu vou para o centro da cidade. Serve-lhe uma carona?
Na verdade não servia, mas Wellington não recusaria jamais.
- Serve sim.
Wellington entrava no carro e os dois seguiam.
- Onde lhe deixo?
Perguntava Lígia já próxima ao centro.
- (Pausa) Entre na próxima à direita. É a minha rua.
- OK.
A professora entrava na determinada rua e seguia já por mais de quinhentos metros.
- Está próximo?
Perguntava Lígia com certo medo da escuridão que tomava aquele percurso.
- É aqui.
Respondia Wellington.

Lígia pára o carro. O rapaz não salta. Fica parado e calado. Quando Lígia se preparava para se despedir, era surpreendida pelas mãos enormes de Wellington em seu pescoço. Descontrolado, o mecânico asfixia a jovem em pouco tempo. Seguro de que estava em um local deserto, Wellington começava a saciar-se de todas aquelas imaginações que tanto lhe atordoavam.

Aproveitava-se ali, dentro do carro, do corpo morto Lígia. Rasgava as roupas com a fúria de na verdade estar esmurrando a cara daquele que a possuía. Sentia o prazer de estar sendo não o primeiro, mas o último a saborear das curvas de Lígia. Gozava ao mesmo tempo em que ria ao imaginar a cara do homem que naquele momento a esperava na porta do prédio onde trabalhava.

Satisfeito, Wellington deixava para trás o corpo de Lígia dentro de seu carro no meio daquele breu. Caminhava calmamente até a via principal a fim de tomar um ônibus para casa.

Dias depois, com o corpo já encontrado e a família da professora sedenta por justiça, a polícia aparecia na oficina para fazer algumas perguntas aos seus funcionários na intenção de encontrarem o assassino de Lígia. Não foi difícil traçar todo o trajeto da professora no dia de sua morte. Carla, a moça que trabalhava no caixa da oficina, dizia a um policial quem havia concertado o carro de Lígia e ainda apontava Wellington como a pessoa que melhor poderia informá-los sobre o assunto, já que havia pegado carona com a vítima momentos antes de sua morte.

Depois disso, ficava fácil para a polícia por as mãos em Wellington que logo confessava o crime. No dia em que era preso, Wellington viu-se frente à frente com aquele que naquela manhã acompanhava Lígia em seu carro.
- Como você teve coragem?
Wellington permanecia calado diante do homem de óculos escuros.
- Responda. Como teve coragem?
- Quis ter o que você tinha. Lígia. Fiquei desesperado em saber que ela era de alguém. Então a matei para que enfim a tivesse.
- Como assim? Lígia era minha irmã!

Aquela frase batia no peito de Wellington como uma marreta. Aquela que fazia agora suas frases soarem entendíveis na verdade era solteira. Nesse momento, algemado, Wellington avistava o ralo – o mesmo em que as águas sujas de suas mãos desciam – fazer um sentido inverso, dando um breve retorno daquelas águas que logo depois desciam novamente. Eram as chances de Wellington que o reapareciam, mas que ele mesmo as acabava de matar.

terça-feira, 29 de abril de 2008

URUBUS

Aquele cheiro forte já incomoda um raio de trezentos metros daquela vizinhança. A casa fechada a alguns dias causa o estranhamento de todos que ali residem.
- Aconteceu alguma coisa.
- Isso é cheiro de gente morta.
- Vamos chamar os bombeiros.
Dizem os vizinhos com a curiosidade mórbida e comum.
- Será que foi seu Oswaldo que morreu? Só morava ele na casa.
- Só pode ter sido. Deve estar podre já. Pelo tempo.
- Nossa. Será que foi o coração?
- Pode ter sido suicídio. O homem era tão sozinho. Tão triste isso, meu Deus.
- Já chamaram o bombeiro?
- Já!

Aos poucos vai se acumulando uma enorme quantidade de vizinhos da casa de Oswaldo e conseqüentemente de vizinhos dos vizinhos também. Um conhecido carro de reportagem chega ainda antes dos bombeiros. O jornalista, Sales, mais conhecido como “Sales do Sangue”, por sua capacidade de “farejar” tragédias antes mesmo que elas acontecessem, salta do carro como que fosse resolver a situação.
- Merda. Os bombeiros ainda não chegaram?
Pergunta no ar, Sales.
- Nada. O presunto já ta fedendo que dói. Você num pode arrombar a porta não?
Sugere D. Yolanda.
- Não. Eu faço a reportagem. Colocar mão em defunto não é comigo não, D. Yolanda.

A multidão já dá vários palpites sobre a morte de Oswaldo. Infarto, suicídio, assassinato etc. Sales colhe informações dos vizinhos enquanto aguarda o corpo de bombeiros.
- Puta que pariu. Acho que estou perdendo tempo aqui com essa ralé.
Reclama Sales.
- Que nada, Sales. Agüenta aí. Do jeito que a coisa está, já estou até vendo: Amanhã de manhã estará a foto do tal Oswaldo aí em decomposição, logo na primeira página. Foto de quem? De quem? Foto minha, claro!
Sugere Juan, o fotógrafo do jornal.
- É. Você tem razão. Vai vender que nem água. Se essa galera que se encontra aqui comprar o jornal já será uma vitória para aquela espelunca na qual trabalhamos.

O lembrete de Juan faz Sales permanecer debaixo daquele sol quente e em meio aquele odor insuportável que se misturava agora ao do suor daquele povo que permanecia no local fazendo suas apostas.Uma sirene é ouvida ao longe.
- É os bombêro, é os bombêro!
Berra D. Silvia com seu português errado que pouco importava naquele momento. O aviso é logo seguido de um grito organizado originado da desorganização, da curiosidade da euforia de verem aquele carro vermelho cheio de homens fardados em cima. Aquela cena parece dizer-lhes sempre que “hoje tem assunto na rua”.

Um bombeiro desce do veículo com as ferramentas apropriadas para um arrombamento. Ele toma todas as medidas previstas em casos como esse. Verifica se realmente não há ninguém em casa e se o arrombamento é a única alternativa. Faz um sinal ao seu superior de patente e começa.

O povo inicia um falatório incontrolável. Àquela altura, as mães se esqueceram até de aprontarem suas crianças para o colégio. Toda aquela comunidade se encontrava curiosa para saber o que de fato haveria ocorrido com Oswaldo.
- Sargento. Sou do jornal A Língua do Povo. O senhor deixaria eu fotografar o corpo logo assim que arrombar a porta?
Pergunta Juan sob os olhares de Sales.
- Vai depender. Se estiver muito ruim eu acho melhor que não fotografe.
- Por que?
- Tenham mais respeito com o defunto. Estampar aquilo que vocês chamam de jornal com um homem em total podridão. Ora vejam.
- É o nosso trabalho, sargento.
Responde Sales.
- Deixe-me trabalhar, seus urubus. Depois vocês caem de bico na carniça.
Espanta-os assim o sargento.

Por fim, a porta da casa de Oswaldo vai ao chão. Os outros bombeiros fazem uma corrente para evitar a invasão dos moradores que mal respeitaram o cordão de isolamento. O odor, ao contrário do que se esperava, não afasta a multidão, que com as mãos nas narinas arregalam os olhos para verem de perto o estado deplorável em que se encontrava o corpo de Oswaldo. Juan passa por baixo do cordão e se posiciona precisamente na porta da casa para disparar seu clique. Tinha de ser rápido. Os bombeiros logo embalariam o defunto.
- Calma urubu. Pode fotografar.
Diz o sargento.
- Obrigado.

Juan e Sales adentram a casa e se deparam com a cena mais bizarra que já tinham visto em todos os seus anos de jornalismo, que eram muitos. O corpo é de Oswaldo, como a vizinhança já previa. O estado do corpo é que foge totalmente de qualquer previsão. Além do ápice de sua decomposição, Oswaldo encontra-se fatiado, deixando reconhecível apenas alguns membros, como as mãos e a cabeça. Todo o resto do corpo são pedaços de carne podre e interpretável. Juan fica paralisado diante da cena. Os bombeiros ficam rindo da cara do fotógrafo.
- Porra. Desaprendeu? Tira logo essas fotos!
Grita Sales já em tom de verde.

Juan sua frio e permanece estático com a máquina em posição. Tosse e logo depois vomita todo o café com leite e as roscas que comera num boteco pouco antes de se dirigir ao local.
- Porra! Vai sujar ainda mais o local? Já não basta o sangue, a carne podre e agora o suco gástrico desse urubu?
Pergunta o sargento bombeiro em tom de deboche.

Sales não agüenta e põe para fora tudo que tinha naquela pança. Logo depois, a polícia chega para tomar também as suas providências diante do caso. Os dois jornalistas são postos para fora da casa lavados de bílis para a rejeição total do povo que insistiam em avistar Oswaldo. Mas não viram nada. As instituições ali presentes só saíram com os restos mortais de Oswaldo coberto, acabando assim com todo o prazer da comunidade.

No dia seguinte, no A Língua do Povo, apenas uma pequena nota sobre o fato, para total chateação dos vizinhos de Oswaldo, já que não havia nenhuma foto do crime. A nota sequer foi lida. O autor da barbaridade, assim como a causa, a polícia nunca conseguiu descobrir. E, sendo Oswaldo um homem sozinho, morador de periferia e usuário de drogas, quem estaria interessado nisso?

segunda-feira, 28 de abril de 2008

RASTROS

Sexta-feira, 18:40h. O tumulto provocado pelo imenso fluxo de pessoas que se dirigiam para os pontos de ônibus já era de esperar. Uma chuva forte inundava todo o centro da cidade. Charles permanecia sob a marquise dos prédios da avenida principal. Com uma jaqueta de couro surrada sob uma camisa de malha de igual estado, uma calça jeans e um sapato ensopado pela chuva, Charles parecia o único ser imóvel em meio aquela confusão. Seu rosto de barba mal feita o incomodava bastante, fazendo-o coçar-se sem parar. Somente seus braços se mostravam inquietos sobre um tronco estático.

A pessoa que Charles esperava já se encontrava num atraso de trinta minutos. Não se tratava de um encontro marcado, mas de um acerto de contas do qual Charles estava incumbido de resolver. Marcos, segundo as investigações de Charles, sairia do prédio em frente às 18:10h, no máximo, como em todos os dias. Charles se encontrava ali desde 17:00h. Nada de Marcos. Chegou a avistar amigos de Marcos saindo do prédio com seus guarda-chuvas e sobretudos sob ternos bem ajustados. Seguiram em direção ao estacionamento rotativo onde se encontravam seus carros de última linha. Mas para Charles os amigos de Marcos de nada lhe serviam naquele momento. E na verdade era até proveitoso que os mesmos saíssem antes dele. Encontrar Marcos sozinho seria ainda melhor para os planos de Charles.

As horas voaram como se corressem também daquela chuva que agora já ameaçava as canelas de Charles. Já não haviam calçadas naquela avenida. Subiu na soleira de um bar onde dividia a tentativa de equilíbrio e a observação da portaria do prédio onde Marcos trabalhava. Já passavam das 20:00h e nem sinal de Marcos. Charles resolve então atravessar o rio que se encontrava à frente e subir até a sala do esperado.
- Pois não?
Pergunta o porteiro.
- Eu vou ao 14º andar.
- Sua identidade, por favor.
- Não tenho.
- Preciso de algo para lhe identificar, ora.
- Eu sou cliente da Lemos Advogados.
- Mas eles fecham às 18h.
- Mas o meu advogado está lá me esperando. Acabou de me confirmar no celular.

O porteiro já se encontrava de saco cheio daquela rotina idiota e mais pensava em como ele iria para casa com a cidade naquele estado do que na identificação de Charles.
- Está bem. Diga-me o seu nome pelo menos, para eu preencher essa merda aqui.
- Claro. Otávio de Souza Arruda.
Mentiu Charles.
- Pode subir.
Charles tomava o elevador moderno e vagaroso do prédio. Os pingos que brotavam de sua jaqueta caíam sob o piso do elevador como um ponteiro de segundos. A barba não parava de coçar. Chegava ao 14º andar. Um senhor que deveria pesar uns cento e cinqüenta quilos adentrava quase que ao mesmo tempo em que Charles saia do elevador. O “boa noite” de Charles ficava ao vento e sem resposta. Frente à sala de Marcos, a 1407, Charles procurava ouvir a voz de alguém encostando o ouvido na porta de madeira lisa. Nada. Tocava então a campainha. Nada. Ao colocar as luvas na maçaneta, percebia que a porta se encontrava apenas encostada. Naquele instante, Charles já previa algo de estranho. Não levava três passos a frente para confirmar sua intuição. Marcos exibia quatro tiros no tórax. Charles se dividia entre o espanto e a raiva de terem tomado sua frente no objetivo de lhe tirar a vida. Observava a ausência de qualquer pessoa além do corpo de Marcos no escritório.

Charles era um matador de aluguel experiente, porém, de preço camarada. Era conhecido por não desperdiçar sequer um projétil em seus serviços. Seus crimes não deixavam rastros para a polícia. Charles planejava seguir Marcos até sua casa num bairro litorâneo da cidade, que se encontrava praticamente deserto durante o inverno, e não fazer aquele serviço sujo que acabava de presenciar o resultado. Um chão lavado de sangue que permitia adivinhar todo o percurso feito pelo criminoso estabanado após o ato, pois as pegadas vermelhas sujaram todo o escritório. “Pelo menos o idiota pensou em limpar os pés no tapete antes de sair pisoteando todo o prédio de sangue”. Pensava Charles.

Estava claro que o criminoso o matou e tomou posse, ou pelo menos fez busca, de alguns documentos do escritório, por conta dos arquivos abertos e papéis revirados nos locais onde as pegadas indicavam. Mas isso não cabia mais a Charles, que por sua vez, pensava agora em uma maneira de não ser o culpado pelos quatro buracos de Marcos. Charles descia ainda desconfiado para o térreo.
- Achou alguém por lá?
Pergunta o porteiro.
- Não. Ninguém atendeu a campainha. Mesmo assim, obrigado por me deixar subir.
- Não por isso. Boa noite.
- Boa noite.
A chuva ainda se fazia presente e de maneira ainda mais forte e intensa. Charles chegava com dificuldades a seu carro. Dentro do veículo:
- Alô. Dr. Glauber?
- Sim. Pode falar. Assunto resolvido?
- Resolvido sim. Mas não por mim. Alguém foi mais rápido que eu.
- Ele já estava morto?
- Sim. Quatro rombos no meio do peito. O assassino foi um idiota. Logo, logo aquilo lá vai estar cheio de policiais, repórteres etc. Pelo visto o interesse ali era em alguns documentos também, doutor. Arquivos abertos, marcas em todo o piso, luzes acesas. Enfim, um serviço de porco.
- (Pausa) Bem, então não lhe devo nada, não é?
- Opa. Não é bem assim. Estou investigando o cara faz duas semanas. Corri o meu risco lá no meio daquela porcaria que fizeram. Quero minha grana, doutor!

Quarenta minutos depois, Charles chegava ao escritório particular do Deputado Glauber.
- Charles?
- Sim doutor. Eu mesmo. Quero o meu!
- Calma aí, Charles. Sente-se. Conte-me direito essa história. Quer dizer que você chegou lá e já haviam matado o Marcos?
- Como eu disse, doutor.
- Bom. Tive o que quis sem sujar as mãos. Isso é bom.
- Claro. E as minhas também, doutor. Isso é melhor ainda. Agora, chega de conversa e me dê a grana!

Glauber entrega um envelope contendo os sete mil reais para Charles, que sorrindo diz:
- É muito satisfatório trabalhar para o doutor. Muito obrigado.
Charles agradece em tom de deboche conferindo o conteúdo do envelope.

Charles se levantava da cadeira e seguia até a saída. Num reflexo imediato, Charles sacava sua pistola da cintura virando rapidamente de volta a Glauber, que se encontrava também com o dedo no gatilho e mirando o peito de Charles.
- O que é isso, doutor? Ficou maluco?
Pergunta com a calma de um experiente Charles.
- Deixe o envelope no chão ou eu estouro seus miolos. Eu não preciso mais de você.
- Tente fazer isso e acabarás como o Marcos.

Os dois se mantinham sob a mira um do outro durante quase dois minutos. Mudos. A porta se abria de maneira estúpida dando às vistas de Glauber uma pessoa esperada no momento. Charles, de costas para a visita, se aproveitava do desvio de olhar de Glauber e lhe acertava um tiro certeiro no meio da testa. Imediatamente se vira para a porta e se vê diante do gorducho que havia trombado no elevador do prédio de Marcos.
- Eu conheço você. O que está fazendo aqui? Ou melhor. O que estava fazendo lá naquele prédio?

O gordo tenta sacar um 38 escondido na mala, mas é impedido pelo disparo de Charles na palma da mão.
- Lhe fiz uma pergunta.
- O monte de banhas se ajoelhava e suplicava:
- Está bem. Não me mate, por favor.
- Então responda a minha pergunta.
- Tudo bem. Eu sou ex-militar e antigo amigo do Dr. Glauber. Ele me falou sobre o serviço que lhe dera. Resolvi então propor o serviço a ele pela metade do preço que você o cobrou. Três mil e quinhentos reais para acabar com aquele frango não seria nada mal. Eu ainda colhi os documentos processuais que provavam contra o deputado.
- Você ficou louco? Já havia matado alguém antes, seu idiota?
- Há uns quinze anos atrás, quando ainda era militar.
- Percebi. Você deixou rastros demais naquele local. E por sua causa o ganancioso e burro do Glauber tentou me matar e ainda fui obrigado a matá-lo. Com a enorme merda que você fez lá no Marcos a polícia rapidamente chegará até você e conseqüentemente até o Glauber. Ou seja, você está frito, cara.
- Mas você acaba de matar o político mais influente da cidade, Charles. Como pensa que está agora?

Charles tremia ao pensar que havia cometido o mesmo erro que aquele matador estabanado. Olhava para o corpo de Glauber, que embora estivesse em um escritório particular e retirado do grande centro, iria mover ações incansáveis da polícia para descobrir o assassino. Nesse instante, o gordo é mais rápido e consegue, mesmo com a mão ferida e sob a mira de Charles, sacar seu calibre 38 e acertar dois tiros na cabeça do matador.

Pedro Paulo, o gordo desengonçado, findava ali um total de três mortes, se erguia do chão ferido e com rastros em forma de massa cefálica em sua blusa, porém, com um envelope contendo o dobro da proposta feita a Glauber. Deixava assim, tranqüilo diante das besteiras que cometera, o local em seu carro vermelho. Chamativo como sua aparência e barulhento como seus atos.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

A ENTREGA

A chuva não dava trégua naquela sexta-feira. Seis e meia da tarde, uma multidão fazia o centro da cidade parecer um enorme mosaico humano enquanto Ronaldo assistia tudo da janela de seu escritório, no vigésimo oitavo andar. O movimento rápido e intenso do fluxo de pessoas atravessando a avenida principal era constantemente iluminado por flashes vindos do céu. Raios e trovões se apresentavam a Ronaldo como um espetáculo de luz e som.
- Dr. Ronaldo.
O chamou a Cláudia, sua secretária.
- Sim?
Respondeu Ronaldo assustado por ser interrompido num momento em que observava o mundo desabando lá fora.
- É que todos os funcionários já foram e como pode ver está uma chuva tremenda. Gostaria de saber se o senhor ainda precisa de minha presença.
- Desculpe, Cláudia. Estava aqui na janela e nem me dei conta da hora. Está liberada. Desculpe, sim?
- Tudo bem Dr. Ronaldo.
- Como irá para casa nessa chuva?
- Meu noivo ficou de me buscar. Pediu para que eu ligasse quando tivesse saindo.
- Ah!


Pausou, olhou para o chão e subiu o olhar lentamente pelas lindas pernas de Cláudia, passando pelo quadril, barriga, seios e enfim, o rosto. Pensou que no alto de seus dois anos de viúvo, nunca tinha sentido tamanha vontade de possuir do corpo de sua secretária. Cláudia permaneceu calada e notou o olhar ascendente de Ronaldo.
- Então posso ir?
Cortou o clima, Cláudia.
- Espere. Não ligue para o seu noivo. Se não for incômodo, gostaria de conversar por uns minutos. Aqui no escritório mesmo.
- É que...
- Não negue, por favor. Se quiser ligar, ligue e diga que está tudo bem, mas que demorará ainda a sair por motivos de trabalho. Pode ser?
- Mas...
- Ótimo. Sente-se.

Cláudia ajeitou a saia, colocou sua agenda na mesa de Ronaldo e atirou:
- Não posso demorar, Dr. Ronaldo. Diga. O que queres?
Ronaldo tirou o paletó, afrouxou a gravata e foi direto ao assunto:
- Bem, já que tens pressa, vou ser rápido. Você trabalha comigo há anos e posso te dizer que pouquíssimas vezes eu reparei seu rosto como hoje. Como você sabe, minha esposa morreu faz uns dois anos e acho que a solidão tem me atingido profundamente de uns meses para cá.
- Onde quer chegar, Dr. Ronaldo?
- Calma. Eu acho que você já deve desconfiar. Sei que tu és noiva, porém, nunca fui de guardar sentimentos comigo. Sempre os coloco para fora. E o que ocorre é que desde o momento em que entrou na minha sala há cinco minutos atrás, senti por ti um tesão incontrolável. Perdoe-me. Sei que é embaraçoso para você...
- Dr. Ronaldo. Nunca imaginei ouvir isso do senhor. Estou chocada. Sabia que posso te denunciar? Isso é assédio sexual!
- Cláudia, não compliquemos as coisas. Sou homem e você mulher. Tenho tesão e acredito que você também tenha.
- Dr. Ronaldo?
- É isso mesmo. Se você não está afim, basta me dizer “não” e pronto. Na segunda-feira agiremos como se nada tivesse acontecido.

Nesse momento, um enorme estrondo é ouvido. Um raio atinge a rede elétrica e o recinto fica em total escuridão.
- Ai meu Deus!
- Calma Cláudia. Está tudo bem. Logo a luz volta. Eu tenho umas velas aqui no armário. Posso acendê-las para que não fiquemos no escuro.
- Não.
Dispara Cláudia.
- Não quer as velas?
- Não. Deixe assim como está.
Os vultos de ambos só eram perceptíveis quando um raio rasgava os céus. O celular de Cláudia toca.
- É meu noivo.
- Pede para ele lhe buscar. Será melhor.
- Não.
Desligou o celular, aproveitou o negro que tomava toda a sala e se despiu sem fazer barulho. Ronaldo ficou em total silencio sem perceber absolutamente nada.
- Por que não o atendeu?
Cláudia permanece muda. Completamente nua, ela se levanta. Apalpando a borda da mesa de Ronaldo para se guiar na escuridão, foi chegando até o chefe, que se encontrava de cabeça baixa pensando na merda que acabara de falar para sua secretária. De pé, já ao lado da cadeira do arrependimento em pessoa, Cláudia encosta um seio no rosto de Ronaldo e conduz a mão do mesmo até o outro. Outro raio volta a clarear o escritório, mas Cláudia tapa os olhos do chefe e se entrega por inteira. Um sexo voraz ao som de estrondos e chuva tomou conta da cena. Entre gemidos e respirações ofegantes, só se ouvia uma fala de cada um:
- Por que? Por que resolveu aceitar o meu pedido?
- Eu tenho tesão, Dr. Ronaldo. Mas acima do meu tesão está a minha vergonha!


Conto originalmente publicado em 09 de novembro de 2007 no fotolog.com/lucianofreitas.

sábado, 19 de abril de 2008

DO TUDO AO NADA

O vento já havia cuidado de bagunçar toda a preparação capilar feita por Andréia. Aquilo que há pouco era penteado, tornava-se um fuá para o desespero da menina. Nem tanto. Daniel já estava para chegar quando Andréia cismou de dar um pulo na calçada para ver se o avistava. A chegada do outono fazia aquela tarde parecer anunciar uma chuva que nunca vinha. Era apenas vento. Batendo os pés com força durante as passadas até o seu quarto, a medusa em forma de garota bufava de raiva. O vestido vinho combinando com o par de brincos e a sandália de borracha rasteira fazia a pele branca de Andréia sobressaltar como um efeito especial. O cabelo encaracolado na altura do pescoço e de cachos arrumados se misturou depois da rajada indesejada.

Sem problemas. Andréia trata de se acalmar ao som de um velho disco da Billie Holiday – presente de seu pai – e começava a reconstruir de maneira simples o estrago feito pelo vento. De frente para o espelho, a menina dividia o olhar entre sua tarefa e a foto de Daniel presa na armação de ferro. Sorria aos agudos da cantora que fazia a trilha sonora daquela tarde tão especial. O casal comemoraria as tão curtidas três semanas de namoro. É. A ansiedade deles era tamanha que não conseguiriam esperar mais uma semana para isso. Sem contar que toda sexta-feira eles comemoravam mais uma semana de namoro.

Porém, naquele dia, os pais de Andréia não estavam em casa, para a alegria de Daniel, que não pensava em outra coisa a não ser naquele corpo esculpido em mármore de Carrara livre de qualquer tipo de vestimenta.

Dois dias antes, Andréia havia dito a Daniel a situação em que se encontraria naquela sexta:
- Daniel. Depois de amanhã que dia é?
- Sexta.
- E?
Perguntou em tom de brincadeira Andréia.
- Faremos três semanas de namoro.
- Pois é. O melhor você não sabe. Meus pais não estarão em casa!
- Isso significa?
- Isso significa que...
Sem deixar que Andréia ao menos concluísse Daniel lhe agarrava pela cintura fina e tentadora e lhe rouba um beijo que já dizia todas as intenções do garoto. Andréia sorria sem graça diante do primeiro namorado. Estava feliz demais com as imagens que lhe viam na cabeça. Daniel também. Cada um com suas devidas expectativas.

De cachos re-arrumados, Andréia acomodavam seus dezoito anos no sofá e sentia o cheiro da pizza que havia deixado no forno. Talheres sobre a mesa e um guaraná já na temperatura ideal no congelador. Um DVD do Almodóvar emprestado e uma sala de ar perfumado. Tudo era fundo para beleza de Andréia, que em primeiro plano parecia uma jóia rara num cenário publicitariamente pensado. Era tudo pensando em Daniel.

A campainha toca. Andréia dá um pulo, volta a agulha do disco para a primeira faixa, passa as mãos sobre o vestido e segue até a porta.
- Amor! Entra.
- Tudo bom? Você está linda, Andréia.
- Você também meu amor.
- E então? Tudo pronto?
- Sim. A pizza está quase pronta. Peguei aquele filme do qual lhe falei com a Paulinha e...
- Tudo bem. Mas antes da pizza e do filme eu queria lhe mostrar uma coisa.
- O que?
Pergunta Andréia pensando em várias coisas ao mesmo tempo, até mesmo num difícil anel de noivado.

A maldade dos 24 anos de Daniel fez Andréia apagar de uma só vez todas as opções. Num ato ágil e dotado de certa experiência, o rapaz retira as mãos da cintura que tanto o fascina e as coloca sob o vestido da menina. Agarra os dedos no elástico da peça íntima e puxa com força até a altura dos joelhos. Andréia não pensa. Acerta uma tapa no rosto do Daniel.
- Ficou maluco?
- Você que parece maluca. Por que me acertou?
- Olha o que você fez. O que você pensa que eu sou? O que você pensa que iríamos fazer aqui hoje, Daniel?
- Estamos sozinhos, Andréia. O que você acha que eu quero fazer?
- Meu Deus. Você entendeu tudo errado. Em que momento eu falei que iríamos transar? Pensei em aproveitarmos a ausência de meus pais para jantarmos juntos, ver um filme, namorar...
- Podemos fazer tudo isso, gata. Mas podemos transar também. Qual o problema? Vai dizer que és virgem?
- Sou! E eu não tenho a mínima idéia se será com você que deixarei de ser. Muito menos depois de sua atitude.

Pronto. Todo o clima estava desfeito. Daniel ia com tanta sede ao pote que a chance do que deveria ser a conseqüência de tudo o que Andréia planejava foi por água abaixo nos primeiros segundos do encontro. A pizza queimava, o guaraná congelava, o disco da Billie Holiday pulava e Andréia se enfurecia. Só a excitação de Daniel que não esfriava. Seus olhos seguiam todos os passos da menina que ao tentar ajeitar a calcinha antes arrancada por ele deixou sem perceber que o vestido se enrolasse no elástico da mesma, deixando assim as pernas e um pedaço das nádegas à mostra.

Daniel não agüentava somente olhar. Pulava sobre Andréia e assim caiam juntos no sofá. Andréia tenta resistir, mas a força do rapaz era muito superior a dela. Debatia-se no intuito de se livrar do peso do corpo de Daniel. Andréia começava a gritar.
- Socorro! Socorro!
Nessa altura, o vestido de Andréia eram pedaços de tecido ao chão. A menina não reconhecia aquele que semanas antes despertava seu coração.
- Eu não amei um monstro!
- Eu não sou monstro! Se você relaxar verá o quanto será bom!
- Me larga!
Gritava Andréia aos prantos.

Devido à rapidez de Daniel ao chegar à casa de Andréia, a mesma esquecia de trancar a porta, facilitando assim a entrada de Benedito, o vizinho do lado que ouvia os gritos.
- Saia de cima dela seu maluco.
Benedito puxava o rapaz com a sua força de marceneiro. Acerta dois socos em Daniel que cai desmaiado. Andréia corre para o quarto a procura de uma roupa.
- Você está bem, Andréia?
- Agora estou. Já vou sair.

Benedito vigia o desmaio de Daniel enquanto espera a saída de Andréia.
- Benedito!
Andréia o abraça e o agradece por salva-la.
- O que houve? Quem é esse rapaz? Ele invadiu?
- É, digo, era meu namorado. Ele tentou me estuprar, Benedito.
- Mas como você foi namorar ele? Ele me parece perigoso e um pouco mais velho que você.
- Ele não era assim. Só o conheci realmente hoje. Um monstro.
- E o que eu faço? Chamo a polícia?
- Não. Meus pais nem o conheciam. Iria os apresentar hoje à noite quando eles chegassem. Prefiro que ele suma e nunca mais volte.
- Vou levá-lo para bem longe.

Benedito põe o rapaz na mala do carro e o larga ainda inconsciente num lugar bem longe. Diante do cenário desfigurado, Andréia senta no sofá e chora incontrolavelmente. Olha para aquela bagunça que se tornara a sala de seus pais e não tem coragem nem forças para arrumar.

Os pais de Andréia chegam.
- O que houve por aqui?
- Nada papai.
- Como nada? Por que está chorando? Que roupa é essa rasgada aqui no chão?
- Nada papai.
- Quem esteve aqui? Quem fez isso? Esse perfume...
- Papai. Deixe-me quieta. Tudo que o senhor está vendo aqui é o nada. Eu esperava que fosse tudo, mas não é nada. Entende? Nem a causa e nem a conseqüência do que eu quis. Nada!

Os pais de Andréia não demoraram saber o que havia ocorrido. Benedito contou a eles logo que chegou. Eles entenderam que apesar da inconseqüência digna de um castigo de Andréia aquilo tudo havia sido fruto de um sentimento precipitado, porém, com as melhores das intenções. Dias depois, conversaram com a filha e a admiração de sua inocência, por parte deles, foi maior do que a revolta.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

2030 - A FELICIDADE DIANTE DO SISTEMA

Molhado da chuva fina que caía sobre a cidade e carregando com seu jeito desastrado quatro sacolas de supermercado com pequenas pendências de fim de mês, Alex estampava o semblante com um sorriso contrastante aos demais rostos derrotados que completavam o cenário naquela condução. Estava satisfeito pelo dia produtivo que tivera e por ter lembrado de comprar o rolo de papel toalha que Cíntia, sua esposa, lhe pedira havia dois dias.

Os olhos se voltavam para Alex naquele ônibus. Pareciam pensar em que raios o rapaz estaria pensando para desfrutar de tal sorriso. Depois de um dia inteiro de trabalho, às onze da noite, a grande maioria dos passageiros não tinha um bom motivo para sorrir. Em plena segunda-feira, ainda por cima? Difícil.

A felicidade de Alex era proporcionada sempre a partir das coisas mais simples da vida. Olhar para a mesinha de contas e encontrá-las todas quitadas, abrir o armário e notar que o seu achocolatado ainda está acima da metade, poder uma vez por semana tomar café da manhã com a Cíntia. As dificuldades que lhe apareciam pelo caminho eram encaradas com o seu bom humor de sempre e com isso as tirava de letra.

Com esse seu modo de ser, Alex preenchia o quadro de funcionário do mês pelo menos três vezes no ano. Produzir era o que o rapaz fazia de melhor dentro de suas vinte e quatro horas. Vivia para o trabalho e para as pequenas coisas do cotidiano. Pensamentos grandiosos quase nunca pairavam sobre a cabeça de Alex, pois preferia pensar pequeno, porém, continuamente. Cíntia já estava acostumada com o adestramento de Alex diante de suas obrigações. Tinha o seu lado bom, pois necessidades ela nunca passou ao lado dele.

Cíntia já pensava um pouco maior do que Alex. Sonhava em mudar de casa, mudar de carro, ter mais dois filhos, além do João Pedro, e em montar o seu próprio negócio no ramo de alimentos. Em alguns dias, Cíntia perdia a paciência com Alex devido a sua estagnação profissional e intelectual. Eram dois tipos de visões diferentes habitando a mesma casa. Visões estas que colocavam os destinos de ambos dentro do objetivo individual de cada um. O que Alex queria era manter o seu padrão de vida como estava, já que era muito feliz em tal estado. Isso incluía a Cíntia também, que por sua vez, se achava sempre na necessidade de crescer. E isso também incluía o Alex.

Eles se amavam. Talvez, o amor era um dos poucos sentimentos em comum entre os dois. A visão de Cíntia estava na realização material cada vez mais crescente para o casal e o filho. Alex se contentava com aquele sorriso que era capaz de atingir àquela hora da noite naquele ônibus rumo a casa. Seria mais fácil para Alex se juntar aos cabisbaixos da lotação, mas a vida lhe parecia tão bela e tão entrosada para tal humor que era incapaz de alcançá-lo.

O tempo passa, Alex e Cíntia envelhecem. Alex se aposenta na mesma empresa onde trabalhou durante toda sua vida e passa a ajudar Cíntia, que consegue finalmente montar o seu restaurante e apenas o administra sem muitos lucros com o auxílio de João Pedro. O garoto cresce sob os conselhos dos pais. Conselhos diferentes entre si, mas o menino tem a consciência de absorver aquilo que ele achava mais viável diante de seu ponto de vista. A idéia de felicidade foi passada para ele de duas maneiras. Uma pela aquisição de riquezas como causa, por Cíntia e outra pelo simples fato de viver feliz diante de qualquer que fosse sua situação, por Alex.

João Pedro se pergunta: Como concordar que a riqueza não traz uma vida feliz numa sociedade onde é preciso dinheiro para viver? A opção de busca passada por sua mãe se transforma em obrigação. A de seu pai vira lenda ou causa mortis de alguns sonhadores. Estar vivo ou simplesmente sobrevivendo nesse mundo de competições e de barbáries é para João Pedro uma felicidade em forma de esmola.

Lembra das manhãs de um passado distante em que seu pai apreciava o canto de um sabiá sobre uma árvore seca no quintal e compara a cena ao fato de sua vida corrida não lhe dar tempo de sequer procurar uma árvore ao seu redor, até porque não há mesmo. Pior. A felicidade projetada por João Pedro é agora algo tão inalcançável que o desejo pela mesma é atropelado pelo desespero de sobrevivência.

terça-feira, 15 de abril de 2008

SOFIA DE SÃO JORGE

À noite as tapas ressoavam por toda a vila. No dia seguinte, pela manhã, os vizinhos se acomodavam em seus muros cobertos de limo para receberem o silêncio de Sofia que passava coberta de hematomas. Os comentários em voz baixa eram conseqüentes daquela cena repetida tantas vezes. Durante as agressões que duravam bons minutos não se ouvia uma palavra, apenas gemidos de aspectos diferentes. Os de Sofia eram sofridos. Os de Antônio eram frutos de um prazer. Todos sabiam da situação, porém, ninguém era capaz de lhe oferecer ajuda ou mesmo chamar a polícia. Antônio espancava a introspectiva Sofia quase todas as noites.

Sofia saía de casa por volta das sete da manhã. Quando eram seis e meia, os despertadores de toda a vila tocavam juntos. Era hora de se preparar para ver o estrago feito por Antônio dessa vez. Sofia não procurava ajuda. Tentava maquiar os círculos roxos que predominavam seu rosto maltratado em vão. Era nítida a força com que o marido lhe surrava só de olhar para Sofia. O casal era bastante calado. Ambos não falavam com ninguém da vizinhança e a figura de Antônio era praticamente desconhecida, já que o brutamonte não trabalhava e não colocava o rosto para fora de casa um só minuto. Eram nas costas de Sofia que caíam todas as responsabilidades do lar e também a vergonha de sofrer tamanha violência.

No trabalho, as desculpas de Sofia não surtiam mais efeitos. Era de conhecimento de todos que a mulher sofria agressões em casa. Mas Sofia negava sempre e ainda fazia questão de elogiar Antônio aos sete ventos. De sua boca saíam qualidades que de forma alguma poderiam pertencer ao marido. Companheiro, carinhoso e trabalhador eram os mais repetidos. Fato. Sofia possuía um problema grave, porém, de tanto negar ajudas – se dizendo não precisar delas – a empresa onde trabalhava unanimemente resolveu deixar que ela mesma tomasse suas próprias providências no momento que as achasse necessárias.

À noite, chegava à casa e uma longa lista de tarefas a esperava antes mesmo de se alimentar. Uma casa imunda da preguiça de Antônio para limpar, janta para preparar e, a mais dolorosa de todas, satisfazer um doente que há dois anos aceitava sobre o altar e sob os olhos de São Jorge como seu legítimo esposo. Sofia era devota assumida do santo guerreiro e por isso sempre esperavam dela uma postura à altura. Mas despir-se para Antônio era um ato de coragem. Era entregar-se ao mais obscuro e duvidoso destino. A vergonha lhe batia a face ainda mais forte que o terror em forma de homem. Mas um dia, Sofia se enxergava de forma diferente.

Nesse dia, Sofia chegava à casa com os braços ainda doídos da noite anterior. Estava cansada dos olhares vindos dos vizinhos que pareciam condená-la como culpada de toda aquela vida dolorosa. Aquela mulher estava disposta a acabar com a rotina de maus tratos em que se via obrigada a viver. Antônio tinha um poder sobre Sofia que não a deixava tomar nenhuma atitude contra os fatos. Ela se sentia acuada pelo marido e envergonhada de ser vítima de tal truculência. Mas naquele dia, o corpo de Sofia pedia misericórdia e a fim de obter uma vida normal, os braços anteriormente acorrentados para a satisfação sexual de Antônio desejavam matar o sujeito.

O caixa do supermercado devia até ter estranhado a compra feita por uma enlouquecida Sofia. Uma bisnaga e um espeto de churrasco era o que aquele rosto marcado estava disposto a comprar. Chegando a casa, como de costume, Antônio, num ato violento, toma a bisnaga da mão de Sofia, que por sua vez segura aquele pão com força e empurra contra a barriga do marido. Dentro da bisnaga, Sofia havia escondido o espeto que comprara, fincando assim o pontiagudo e vazando o corpo forte de Antônio com uma força excomunal. O berro de Antônio fez a vizinhança toda sair de seus casulos e cercarem a casa do casal.

Antes que entrassem para julgar aquele cenário, Sofia aparecia na porta com os braços vermelhos de sangue e em forma de grito responde a todas as perguntas ocultas daquela gente:
- Matei de uma vez aquele que me matava aos poucos!
Todos saíam correndo. Um deles finalmente chamava a polícia, que chegava e encontrava Sofia ainda degolando o corpo de Antônio. Sem resistir, deixava ser algemada e permanecia muda até à delegacia. Devido à raiva que lhe tomava, Sofia só entenderia o que tinha cometido no dia seguinte, já em cárcere, onde permaneceria por longos anos.

Na vila onde morava com Antônio, a sua história ficaria eternizada na lembrança dos moradores, porém, sempre tendo o crime como fato único e não como desfecho de uma revolta motivada. Onde antes havia uma atração matinal, poderia a partir dali haver uma ameaça. A voz da vizinhança somente fez-se ativa a partir do momento em que o perigo ultrapassou o limite da porta de Sofia.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A EXIGÊNCIA DA ALMA

Nas rodas de conversa nos intervalos das aulas da faculdade, as amigas de Leila atentavam para o fato dela estar sendo muito criteriosa na escolha de um namorado. Leila, 22 anos, ainda sonhava com o famoso, batido e raro “príncipe encantado”. Nos dias de hoje? Uma menina com essa idade e com esse tipo de expectativa? Parece piada. Porém, era assim que Leila se posicionava diante de sentimentos atualmente tão banalizados.

Leila não escondia o fato de ter beijado apenas um rapaz até então, o Renato, seu primeiro e único namorado. Beijos frutos de um relacionamento que foi dos 17 aos 19 anos. De lá para cá, a menina nunca mais beijou ninguém. Permaneceu na espera de um cara que realmente quisesse algo sério com sua pessoa, visto que Renato a deixou por motivos de “força maior”. Tratava-se da força que tinha de fazer para não perder a razão e avançar o sinal vermelho imposto por Leila.

Certo dia, Camila, a melhor amiga de Leila, lhe chega com uma possível solução para a pausa de três anos da menina.
- Leila. Olha só. Se esse meu primo que irei te apresentar não lhe servir, esquece! Nunca mais arrumará ninguém! Palavra de amiga!
- Calma. Mas o que de tão especial tem esse seu primo?
Perguntava Leila.
- Preste atenção. Ele é romântico, atencioso e companheiro. Sem contar que é muito trabalhador e lindo de morrer. O nome dele é Plínio.
- Mas espere aí. Como você sabe disso tudo? Por acaso você já provou?
Questionava mais uma vez Leila.
- Não é nada disso, Leila. Eu era unha e carne da ex-namorada dele. E ela me contava tudo.

Leila, depois de mais umas dezenas de questionamentos, aceitou conhecer o tal do Plínio.
- Amanhã haverá um almoço lá em casa para comemorarmos os 50 anos de papai. Ele estará lá. Topa?
- Tudo bem, mas Camila, eu espero que esteja certa nas coisas que fala sobre ele.
- Vai ver que estou, mas ele só tem um problema.
- Qual?
- Nada demais. Mas se eu lhe contar agora, você pode querer desistir.
- Amiga, como assim?
- Você vai saber, mas lá!
Afirmava Camila com um sorriso.

No dia seguinte, na casa de Camila, lá estava Leila em um vestido que, embora comportado, a deixava irresistível. A menina tratava bem de seus longos e lisos cabelos castanhos que junto a sua pele morena a tornava ali naquele almoço a mais bela das convidadas. O que uma jovem tão linda fazia sem namorado? Era o que se perguntavam todos os amigos que segundo o olhar de Leila não serviam para serem donos de um coração tão exigente.

- Leila! Você está linda!
Elogiava Camila.
- Obrigada amiga. Só quero ver o que você está aprontando.
- Vai ver agora mesmo. Está vendo aquele gato ali na segunda mesa?
- Estou.
Já respondia Leila encantada com o que vê.
- É o Plínio. Vamos lá para que eu lhe apresente.
- Mas já?
- Já! Vocês terão a tarde toda para conversarem. Que tal?
- Nossa, ele é lindo mesmo, Camila!
E lá ia Camila puxando Leila pelo braço que a seguia boquiaberta.

- Oi, Plínio!
- Oi prima! Tudo bom?
- Tudo! Esta é minha amiga, a Leila.
Apresentava-lhes um ao outro e se explicava:
- Hoje estarei muito enrolada por aqui, você pode fazer companhia a ela? Ela não conhece ninguém da família.
Sem sair da cadeira, Plínio respondia admirando Leila dos pés à cabeça:
- Claro, será um prazer, prima.
- Que ótimo.
Retirava-se de cena Camila.

Plínio e Leila conversaram durante toda aquela tarde. Leila só olhava para os olhos claros de Plínio e se deliciava com aquela fala calma, suave e precisa do rapaz. Realmente Camila tinha razão, pois Plínio em poucos minutos de conversa já se mostrava uma excelente companhia. Leila, linda do jeito que era, fez o primo de Camila empenhar-se ainda mais na tarefa que lhe foi dada. Os dois não saíram de suas cadeiras sequer um minuto tamanho era o excesso de assunto. Plínio era um homem interessantíssimo e de conteúdo vasto. A essa altura da festa, Leila já nem se lembrava do defeito que Camila havia citado. Para ela, Plínio já era perfeito!

Findando a tarde, a família se reúne para o canto dos parabéns ao pai de Camila. Todos ficam de pé. Leila também se levanta, mas sem prestar atenção em sequer uma palavra do discurso do aniversariante. Só pensava no fato de ter enfim encontrado uma pessoa que merecia a sua dedicação. Dedicação. Palavra forte para uma simples possibilidade de inicio de um namoro. Mas era como ela se colocava diante de um relacionamento.

Ao fim do discurso, Leila nota que Plínio permanecia sentado.
- Não vai se levantar?
- Ah sim! Claro.
Plínio estica suas mãos para debaixo da mesa e puxa um par de muletas. Ergue-se com dificuldades e estampando um sorriso sem graça no rosto por conta da falta de uma perna. Plínio esperava de Leila naquele momento um espanto.
- Ah! Agora sim, pensei que você fosse um mau sobrinho!
Afirmava sorrindo a graciosa Leila para surpresa de Plínio.

De pé, os dois ainda conversaram até umas oito da noite, quando Plínio teve de se despedir.
- Quando nos vemos de novo? Estou encantado com sua pessoa!
- Eu estou sempre com a Camila, ela será nossa mensageira, pode ser? Também gostei muito de você e...
Nesse momento, Plínio a interrompe com um beijo e emenda:
- A gente vai se ver! Não vai?
- Claro que vamos. Depois desse beijo então.
- Ótimo.
Plínio segue com seus passos difíceis em direção ao carro de seu pai.

Chegava uma sorridente Camila à Leila.
- Eu vi! Beijaram!
- Amiga, ele é perfeito! Por que não me apresentou ele antes?
- Sei lá. Sempre pensei que o “defeito” dele poderia te incomodar.
- Pois é. Mas que defeito é esse que você me alertou? Não vi defeito nenhum!
- Ele não tem uma perna, Leila. Não viu?
- Como assim?
- Ele usa muletas, Leila. Não viu?
- Não.
- Como não? Está maluca?

Naquele momento, as duas amigas reconheciam que a visão que Leila tinha sobre os homens era focada sempre no interior dos mesmos. O coração de Leila foi incapaz de notar a deficiência física de Plínio. Leila na verdade não era exigente quanto ao corpo, mas quanto à alma de um companheiro.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

MARCAS DE UMA GUERRA PSICOLÓGICA

Este conto é baseado em fatos reais, porém, os personagens contidos no mesmo são meras ficções.

Quem olha para João Lacerda de Castro, 85 anos, pensa estar diante de uma pessoa dona de uma paz interior infinita. Se não fosse por suas experiências como soldado do 6º Regimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial, lutando contra os regimes autoritários nazi-fascistas, a pessoa que o observa poderia estar com a razão, mas os anos de 1944 e 1945 lhe deixaram marcas que tornaram tal paz impossível. Vários ex-combatentes – os que deram sorte de possuir um psicológico forte a ponto de resistir às atrocidades da guerra – levam hoje uma vida normal. João não.

João nunca mais andou de barco, por exemplo. Estar frente a uma navegação lhe traz à memória o dia 02 de julho de 1944, quando embarcou no primeiro escalão rumo à Itália. A viagem foi longa e sofrida devido aos enjôos. Nos primeiros dias, em Nápoles, o treinamento intenso. Essas lembranças lhe deixam com águas nos olhos até os dias de hoje. Seus netos jamais entenderam as broncas que levam quando brincam com estalos de São João. É que os mesmos o remetiam às duras batalhas pela tomada de Monte Castelo.

Durante o período em que permaneceu na guerra, João recebia cartas de sua então namorada, Almerinda. As cartas o animavam e o encorajavam para cumprir as missões. Sua vontade de lutar se dividia com a de estar nos braços de sua terra mãe. Cansou de carregar amigos mortos na companhia de dezenas de outros gemendo de dores. Estilhaços de uma granada alemã o deixaram marcas profundas em seu braço, mas também lhe deram a chance de conhecer os olhos verdes da 1º Tenente Enfermeira Alice. Olhos que também jamais saíram de sua mente, mesmo tendo casado com Almerinda dois meses depois de seu retorno ao Brasil em julho de 1945.

- Amor. Se eu tivesse morrido naquela guerra, você teria se casado com outro?
Pergunta João.
- Mas que pergunta, João. Como vou saber?
- Curiosidade.
- E você? Se quando chegasse ao Brasil, me visse nos braços de outro. O que faria? Casaria-se com outra?
Rebate Almerinda.
- Almerinda. Nunca tive olhos para outra mulher. Foi você, aqui do Brasil, quem me deu coragem para encarar os bombardeios alemães.

Nesse momento, os olhos verdes de Alice lhe vêm à mente. Pensou ligeiramente que talvez somente aqueles olhos seriam capazes de um recuo seu perante o amor que sentias por Almerinda. Era incrível como, unidos ao sorriso e o carinho de Alice, aqueles olhos tinham forças para o manter bem mesmo estando ao lado de cenas horríveis presenciadas nos leitos vizinhos.

João procura sempre não demonstrar, mas ainda ouve com freqüência os berros de socorro. Passa por alguns minutos de paralisia como se encontrasse em estado de choque. Almerinda evita falar sobre a guerra que dilacerou os sentimentos de João. Mas alguns artigos usados por ele nas batalhas permanecem guardados num baú que fica numa espécie de sótão. Uma vez por ano, na data de seu retorno ao país de origem, ele abre a grande caixa e revira todas as suas memórias em lágrimas diante de fotos, medalhas e fardas. Um dos guardados era um panfleto distribuído pela FEB meses antes do embarque:

CUIDADO COM OS ESPIÕES

Recorda-te que, em breve, libertarás cidades onde serás recebido como herói. Mas lembra-te, também, que, entre aqueles que te festejam, o inimigo plantou agentes que o informarão dos nossos movimentos. Fecha portanto: tua boca para os assuntos militares.

Exército do Brasil
FEB
Abril 1944


No meio das traumáticas lembranças do ex-combatente, os olhos de Alice, as cartas de Almerinda, as piadas contadas entre os “pracinhas”, os corpos alvejados que teve de carregar, os alemães que aprisionou, os cigarros que usou para passar o tempo e as explosões em Monte Castelo. João observava seus netos brincarem de soldado no jardim de sua casa e em meio a uma tremedeira constante na mão esquerda, conseguia sorrir e agradecer a Deus por ser apenas uma distração dos meninos. Ele não gostaria de ver embarcar novamente uma alma intacta rumo às batalhas e depois de alguns meses revê-la em pedaços e marcada pelas crueldades vividas em campanha, ou talvez, nunca mais a vê-la, como sua paz interior e seus amigos enterrados em Pistóia, Itália.

***
Esta é a minha homenagem aos 25.334 homens integrantes da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que lutaram heroicamente e sem recursos na Itália entre 1944 e 1945, durante a 2ª Guerra Mundial. Homens estes que foram abandonados pelo nosso governo até a Constituição Federal de 1988, que finalmente previa uma pensão especial aos nossos ex-combatentes.

A FEB teve 465 homens mortos, 2.722 feridos, 35 prisioneiros e 16 desaparecidos durante a campanha.


Pela valorização da história do nosso povo!


***
Bônus: Video com áudio da BBC no qual se ouve os nossos "pracinhas" cantando o Hino Nacional Brasileiro sob ataque aéreo inimigo:
http://www.youtube.com/watch?v=LHiCN5p09BI

quarta-feira, 2 de abril de 2008

AS TENTATIVAS DE MATHEUS

Um completo branco toma sua vista no momento em que o caminhão passa a poucos centímetros de seu corpo. Matheus se coloca próximo à morte sempre que deseja obter coragem para encarar uma determinada situação. Na cabeça dele, a sensação do “nascer de novo” o faz levantar o sentimento de “agora, o que vier é lucro”. Para falar com o pai da namorada sobre a gravidez indesejada, roleta russa com o revólver de um amigo. Para explicar à sua mãe um simples, porém profundo arranhão na lateral do carro, travessia da Avenida Brasil de olhos vendados. Apenas alguns exemplos.

Após sair ileso de uma colisão onde morreram todos os outros quatro amigos ocupantes do veículo, quando tinha dezesseis anos, Matheus se sentiu mais vivo e mais pronto do que nunca para praticar suas tentativas suicidas. O fato lhe chocou, mas a sensação vivida ali naquele momento foi uma descoberta. O branco que ele vê toda vez que se arrisca é, segundo ele, prazeroso. A sensação de estar meio desprendido e meio dentro da matéria o faz passar alguns momentos seguintes em total anestesia e detentor de uma enorme coragem.

Alguns amigos sabem das tentativas de Matheus e o alertam para o fato de estar brincando com um caminho sem volta. Com uma filha de dois anos para sustentar, Matheus afirma que não é a morte que ele busca, e sim, o êxtase que se encontra toda vez que se entrega a esses atos inconseqüentes. Na empresa onde trabalha, o rapaz se vê enlouquecido diante de uma reunião importante e a nula chance de fazer suas tentativas para encarar a mesma.

Sua esposa, Mônica, também sabe de sua mania suicida. Convive com a dúvida eterna se Matheus chega ou não a casa ao anoitecer. O amor de Mônica é ainda maior do que o medo. Isso a faz tentar ajudá-lo de todas as formas possíveis. Acha que não é normal um ser humano conviver com essa necessidade louca de estar a um fio da morte por puro prazer ou busca de coragem. Matheus recusa a visita a qualquer profissional que ouse estudar o que se passa em sua cabeça.

Como entender esse estágio de passagem entre a vida e a morte? Como Matheus foi capaz de desenvolver essa “técnica” de segurar-se a vida através da proximidade da morte? Como consegue coragem após a covardia a fim de adquirir uma outra coragem? Confuso?

Certo dia, Matheus precisou daquela dose de adrenalina e daquele branco que o fazia tornar uma outra pessoa tão diferente. Necessitou nascer novamente para enfrentar Mônica numa conversa que colocaria seu casamento na rampa. Matheus engravidou Letícia, um caso antigo, e não sabia como confessar o adultério à esposa. O processo começou e o necessitado deitou-se no meio da, mais uma vez, Avenida Brasil e contou quantos automóveis rasparam seu corpo trêmulo e em transe. Até que um ônibus em alta velocidade não conseguiu desviar e passou por cima daquela cabeça tão complexa de Matheus.

A morte trágica do rapaz deixou para trás não só uma confissão, mas uma covardia, uma coragem não obtida e o entendimento, por parte dos que o rodeavam, de uma mente covarde e corajosa ao mesmo tempo.